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THRLEMANN, Felix. Olhar como os pssaros. Sobre a estrutura de enunciao de um tipo de mapa cartogrfico
Revista Galxia, So Paulo, n. 22, p. 118-132, dez. 2011.118
Olhar como os pssaros. Sobre a estrutura de
enunciao de um tipo de mapa1 cartogrfico2
Felix Thrlemann
Resumo: Alguns estudiosos das cincias humanas se interessaram por estudar textos visuais no valorizados pela grande arte. Esse recente interesse pelas imagens que no se enquadram na disciplina da histria da arte reflete o crescente papel que desempenha a visualidade atualmente. Seguindo os passos de Algirdas Julien Greimas, que sempre incentivou os estudos nos diferentes domnios da expresso visual independentemente da substncia da expresso implicada, escolhemos como objeto de anlise um gnero de texto visual extra-esttico - um mapa cartogrfico - com o intuito de estudar como se estrutura a enunciao de um tipo particular de mapa, o chamado vista voo de pssaro.
Palavras-chave: semitica visual; mapa cartogrfico; enunciao; perspectiva
Abstract: To look like the birds: about the enunciation structure present on a kind of cartographic map. Some human sciences researchers are interested on studying visual texts that are not valorized by the great art. This recent interest for images that are not framed by art history discipline reflect the upgrowing role that visuality plays nowadays. According to the steps of Algirdas Julien Greimas, that has always encouraged the studies on different domains of visual expression - regardless the implied expressions substance - we have chosen as an object of analysis a textual genre extra-aesthetical - a cartographic map - with the intention of studying how can be structured the enunciation of a particular type of map called view like a birds flight.
Keywords: visual semiotics; cartographic map; enunciation; perspective
1 - [N. do T.] Para o termo em francs carte optamos pelo termo mapa em portugus que apresenta o sentido relacionado representao geogrfica de um plano.
2 - Traduzido do original francs, Regarder avec les oiseaux. Sur la structure dnonciation dun type de carte go-graphique, Nouveaux Actes Smiotiques [en ligne]. NAS, 2009, N 112. Disponible sur: (consulta em: 05/07/2009). Por Pedro dos Santos Silva, mestrando do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Semitica da PUC-SP, integrante do Centro de Pesquisas Sociossemiticas (CPS) e reviso terica de Ana Claudia de Oliveira (PEPGCOS/PUC-SP).
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H apenas dez anos - sob os termos icnico e pictrico - alguns representantes das cincias humanas comearam a se interessar pelos textos visuais no estudados pela disciplina tradicional da histria da arte. Esse interesse recente pelas imagens que no se enquadram na grande arte reflete o crescente papel que desempenha a visualidade na sociedade ps-moderna dominada pela mdia eletrnica.
Os estudos visuais (visual studies ou Bildwissenschaften, como so denominados nas culturas anglo-saxnica e germnica, respectivamente) deixam, entretanto, de ser apoiados por uma abordagem sistmica adequada, uma abordagem que seria capaz de abranger o conjunto dos fenmenos significantes que se correlacionam ao colocado pelo sentido da viso.
H mais de trinta anos, Algirdas Julien Greimas, em seu ensino na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, levou a introduzir o seu conceito de iconizao3 incentivando trabalhos de investigao nos diferentes domnios da expresso visual. O termo icnico greimasiano no era o resultado de um modismo. Baseava-se numa reflexo sistemtica guiada pela convico de que uma semitica digna deste nome deveria ser capaz de dar conta de todas as formas de manifestao da significao, e isto indepen-dentemente da substncia da expresso implicada.
Se eu escolho, aqui, como objeto de anlise um gnero de texto visual extra-esttico, no o fao por obedecer ao imperativo da moda, mas para seguir os ensinamentos de um mestre inesquecvel.
Vista voo de pssaro
Primeiro, um exemplo (Fig. 1):
Fig. 1. Fotografia da paisagem4
3 - [N. do T.] Segundo A. J. Greimas e J. Courts (2008) o termo icononizao a ltima etapa da figuratizao do discurso em que distinguimos duas fases: a figurao e a iconizao. A primeira responde pela converso dos temas em figuras, e a segunda que tomando as figuras j constitudas, as dotas de investimentos particulari-zantes, suscetveis de produzir a iluso referencial.
4 - Arquivos do autor. NEUBRONNER, J. (1908). Carto postal a voo de pssaro.
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A fotografia de paisagem aqui reproduzida no se distingue certamente por uma
clareza extraordinria ou uma estrutura composicional muito refinada: algumas linhas
brancas - indicando provavelmente os caminhos - desenham na parte superior do formato
quadriltero uma espcie de arabesco; algumas manchas brancas poderiam corresponder
a poas de gua; no canto inferior esquerdo do quadriltero, distingue-se um fragmento
de estrada A perspectiva da tomada de vista, no entanto, bastante singular: enquanto
que na parte inferior da imagem as rvores so apresentadas em vista area, a imagem
parece em certa medida redirecionar-se e distingue, perto da borda superior, o horizonte
sob uma estreita banda de cu.
O que me conduziu a ocupar-me desta tomada de vista no a qualidade esttica
da fotografia, mas as condies, sobretudo estranhas, da sua produo. A fotografia foi
publicada - como um documento de valor excepcional em um carto postal (Fig. 2):
Fig. 2. Carto postal do pombo-correio, 19085 .
direita da fotografia, enquadrada por uma coroa de honra oval, est representado
o autor da obra: um pombo-correio portando ao pescoo um minsculo aparelho foto-
grfico. A legenda explica: Nebenstehend Photographisches wurde aufgenommen Bild
aus der von einer Vogelschau Brieftaube (A imagem fotogrfica ao lado foi capturada em
voo por um pombo-correio).
Outra legenda, localizada sob a fotografia, d informaes suplementares:
Aufgenommen durch eine Brieftaube von Dr. Neubronner (Capturada com a ajuda de
um pombo-correio pelo doutor Neubronner). A ave heroica era, portanto, apenas como
um instrumento nas mos de um meta-autor, certo Julius Neubronner, farmacutico, que
em 1906, inventou um dispositivo fora do comum de fotografias capturadas por pombos
em voo.
O que torna o emprego de pombos-correio como fotgrafos interessantes e fora do
comum ao mesmo tempo, que esta inveno toma ao p da letra a expresso vista voo
5 - Arquivos do autor. NEUBRONNER, J. (1908). Carto postal a voo de pssaro.
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de pssaro - aus der Vogelschau [] aufgenommen, como diz o carto postal. Isto que as
fotografias em questo nos do a ver o que - aparentemente - veem os pombos quando
eles sobrevoam a terra. A experincia ainda mais estranha uma vez que na poca, em
1906, o homem j conhecia desde um longo perodo esse tipo de vista, exatamente desde
o 21 de novembro de 1783, dia em que o primeiro balo tripulado se elevou nos ares,
e - sob forma documentada - desde que em 1868, Nadar fixou fotograficamente esse tipo
de vista com base em experimentaes iniciadas dez anos antes:
Fig. 3. Nadar, fotografia area de Paris, datada de 1858 (realizada em 1868)6 .
Mas h um aspecto mais importante: o conceito de vista voo de pssaro, Vogelschau
ou Vogelperspektive em alemo, birds eye view em ingls, foi imaginado pelo homem bem
antes que ele dispusesse dos meios de alar-se nos ares. Antes de ter tido a possibilidade de
olhar a superfcie da terra a partir de bales e de avies, o homem desenhou mapas e plantas
de cidades voo de pssaro, como ainda o chamam hoje - e isto independentemente da
possibilidade de uma vista real inclinada a partir de montanhas ou de torres. isto que
mostra incontestavelmente o exemplo da primeira planta que foi conservada da cidade
Vilnius7, intitulada VILNA LITVANIAE Metropolis, publicada em 1581 em Colnia, na
6 - [N. do T.] Flix Nadar (por vezes abreviado por Nadar) o pseudnimo de Gaspard-Flix Tournachon. Ele foi um fotgrafo, caricaturista e jornalista francs. Tirou as suas primeiras fotografias em 1853, e em 1858 (1868) ao sobrevoar Paris num balo de ar quente, tornou-se a primeira pessoa a tirar fotografias areas
7 - [N. do T.] Capital da Litunia.
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Alemanha por Georg Braun e Franz Hogenberg em sua famosa coleo Civitates orbis
terrarum8:
Fig.4. Planta da cidade de Vilnius publicada por Braun e Hogenberg em 1581.
A suposta vista, embora parea ser da competncia do discurso mimtico, aqui o resultado de uma construo semitica. As antigas plantas voo de pssaro quase mostram sem exceo fragmentos da terra a partir de um ponto de vista que, poca de sua produo, era inacessvel ao homem.
O mapa voo de pssaro pressupe uma tomada prvia ortogonal, isto , perpendicular, da superfcie representada. Subsequentemente, esta tomada submetida a uma perspectiva oblqua. O procedimento de construo da vista voo de pssaro explicado de uma maneira muito clara por Leonardo da Vinci numa pgina do Codex Atlanticus, datado por volta de 1500 (Fig. 5):
Fig. 5. Leonardo da Vinci Codex Atlanticus, Folha. 73v-a, 15009
8 - [N. do T.] do latim, As cidades do mundo.9 - Arquivos do autor. DA VINCI, L. (1500). Codex Atlanticus, Folha. 73v-a.
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Trata-se de uma dupla representao da cidade de Milo, uma sobre a outra. Leonardo
da Vinci comeou por desenhar a cidade seguindo uma projeo ortogonal completada
pela indicao das distncias entre as portas da cidade e pela rede das principais ruas que
as religavam entre si. esta representao ortogonal que lhe permitiu em um segundo
momento ao inclinar em certa medida o crculo para transform-lo em oval - desenhar,
na metade inferior da pgina, a vista perspectiva voo de pssaro, uma vista da cidade
de Milo que provavelmente nenhum homem sonhou em conhecer antes que Leonardo
da Vinci a tivesse construdo sobre a base de uma transformao geomtrica.
Se, a partir de 1500, os cartgrafos representam regularmente as cidades europeias
voo de pssaro - em princpio apoiados em procedimentos semelhantes queles em-
pregados por Leonardo (a planta de Vilnius datada de 1581 no uma exceo, segue
pelo contrrio a regra) -, fazem-no sem dvida para obter um efeito de sentido especfico,
que resta estudar.
Mas retornemos primeiramente o conceito de vista voo de pssaro. O termo alemo
Vogelschau - que parece ter sido, no incio do sculo XX, a base das experincias do far-
macutico Neubronner com os seus pombos-correio fotgrafos - assim como as expresses
correspondentes de outras lnguas europeias, so de data relativamente recente. Vogelschau
atestado somente depois da poca de Goethe. Trata-se de um emprstimo do francs,
no qual o termo vue vista ou perspective vol doiseau ( voo de pssaro) parece
ter sido conhecido por volta de 1750 no contexto da escola militar. A expresso birds eye
view do ingls igualmente atestada depois da metade do sculo XVIII. Todas as outras
lnguas europeias parecem se servir de origem semelhante s designaes inglesa, francesa
ou alem, como atestam, entre outras, as expresses10 a volo de uccello em italiano, a
vista de pjaro em espanhol, i paukcio skrydio em lituano, etc..
Se examinarmos os ttulos mais antigos dos mapas que, para ns hoje, so da com-
petncia da vista voo de pssaro, constata-se que no existiu, durante vrios sculos,
nenhum termo especfico para designar esse tipo particular de discurso cartogrfico. O
vocbulo mais preciso que foi empregado - pelo menos para a cidade de Roma - parece ser aquele de prospectus, termo construdo em relao s denominaes genricas tais como descriptio, imago e disegno. necessrio, portanto, fazer o seguinte questionamento: de maneira anacrnica que empregamos o conceito de vista voo de pssaro quando o utilizamos para designar, por exemplo, o desenho de Leonardo (fig. 5) ou o famoso mapa de Veneza de Jacopo de Barbari datado do ano 1500?
claro, qualquer pessoa que tenha tido uma educao que fosse um pouco clssica conhece a histria do voo de caro, esse jovem que se elevou aos ares com o auxlio de asas artificiais. Mas a releitura da passagem em Ovdio (Mt. VIII. 183ss11), surpreende-nos o papel pouco importante que a tem o olhar dirigido para o baixo, na direo da terra.
10 - [N. do T.] Em portugus, voo de pssaro.11 - [N. do T.] Em portugus h traduo e publicao de Memorfoses de Ovidio feita por Bocage, Editora Hedra:
So Paulo, 2007.
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O olhar de caro orientado para o alto, na direo do sol, que terminar por queimar
as asas que seu pai lhe havia fabricado. Isso que chamamos atualmente vista voo de
pssaro foi compreendido, na origem, sobretudo como o olhar que Deus, ou os anjos,
lanam sobre a Terra?
Certos indcios levam a pensar que esse no era necessariamente o caso. Desde o
incio do sculo XV, alguns pintores de vanguarda j simulam as vistas areas sobre a
terra. Esse tipo de construo pictrica do espao projetado repercutir um sculo mais
tarde na cartografia com imenso sucesso. Essas vistas areas esto muito regularmente
vinculadas por metonmia pssaros em voo. Penso sobretudo na famosa Madone du
chancelier Rolin de Jan Van Eyck, com a sua vista extraordinria sobre o mundo a partir
do lugar de reencontro do chanceler e da virgem (Fig. 6):
Fig.6. Jan van Eyck, A Virgem do Chanceler Rolin, 1435.
Este lugar, completamente artificial pela sua arquitetura, construdo - pode-se dizer
- pelo pintor, precisamente para tornar possvel uma vista dominante sobre o mundo.
H, contudo, um indcio que tende a provar que Van Eyck considerou esta vista no
apenas como reservada s personagens admitidas no belvedere12 que ele construiu em
seu quadro, mas tambm como uma vista voo de pssaro, uma vista sobre a terra que,
na maioria das vezes, no acessvel aos humanos, mas somente aos habitantes do cu:
este indcio o voo dos pssaros, certamente quase imperceptvel, mais que se desenham
em forma de tringulo, no alto, em uma das janelas no meio do arco da abbada (Fig. 7).
12 - [N. do T.] Lugar elevado de onde se tem vista panormica (sin. Mirante).
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Fig. 7. Jan van Eyck, A Virgem do Chanceler Rolin, detalhe.
Ao inserir as aves, Van Eyck parece indicar que a perspectiva escolhida, embora
artificial, objeto de um olhar natural, um olhar possvel.
Como espectadores do quadro, somos colocados no lugar dos pssaros para perceber
aquilo que eles veem quando planam acima da terra. A escolha da perspectiva adotada
por Jan van Eyck e seus sucessores permite ao enunciatrio o acesso a uma viso sobre o
mundo que ao mesmo tempo impossvel e verdadeira.
Isto para o conceito de vista voo de pssaro. Puro conceito cartogrfico perma-
neceu como j dito, sem meio de expresso lingustico nas diferentes lnguas europeias
durante sculos inteiros. unicamente a presena regular de construes a vista a voo de
pssaro nas obras construdas a partir de um ponto de viso elevado, acima do horizonte,
que nos indica que o homem pelo menos desde o incio do sculo XV, se ps a imaginar
mais uma vista sobre o mundo no qual, poca, s eram capazes os pssaros - e, certa-
mente, Deus, a virgem e os anjos.
A leitura do texto cartogrfico
Antes de passar ao exame das plantas de cidades voo de pssaro, til verificar
por um momento a classe de textos visuais que constituem os mapas cartogrficos e as
plantas das cidades em geral. Eles oferecem uma estrutura de enunciao particular.
Para explicar o processo de enunciao do mapa cartogrfico, escolhi um exemplo
datado da metade do sculo XVI, extrado do famoso mapa xilogrfico de Roma que o
arquiteto, engenheiro e entalhador de madeira Leonardo Bufalini publicou em 1551.
Trata-se da primeira planta da cidade de Roma construda em escala (Fig. 8):
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Fig.8. Leonardo Bufalini, planta de Roma, 1551 (detalhe).
A leitura habitual de um mapa, aquela que visa projetar os percursos na poro de mundo representada sobre a folha de papel ou sobre a tela do computador, recorre simultaneamente a dois tipos de olhares. O leitor do mapa aplica-lhe primeiro um olhar sinptico. Mas este olhar que totaliza serve em certa medida apenas de pano de fundo para uma atividade complexa de focalizao, de projeo e de ancoragem.
Desde o incio, o enunciatrio do mapa se desdobra, se posso dizer, em dois sujeitos. Trata-se de dois sujeitos situados em nveis hierrquicos diferentes: o sujeito 1, ou sujeito sinptico; e um sujeito 2, sujeito viajante cujos percursos constituiro a leitura do mapa. Esta leitura comea pela instalao do sujeito 2 por meio de um ato de ancoragem em um ponto livremente escolhido no interior do mapa, chamado ponto de partida.
Ilustremos este procedimento por meio de um exemplo: imaginem que o enunciatrio do mapa habite uma casa na Trastevere, que d sobre Via Transtiberim, atual rua da Lunga-retta, Via della Lungaretta. Este lugar, marcado em verde, ser seu ponto de partida (Fig. 9):
Fig. 9. Bufalini (com o ponto de partida em verde).
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O enunciatrio quer, por exemplo, ir ver a esttua equestre de Marco Aurlio que foi
instalada, em 1538, sobre o Capitlio. (Observem que nico objeto do mapa de Bufalini
que foi representado em perspectiva.) A este lugar, o enunciatrio coloca um segundo
ponto, o ponto de chegada, marcado em vermelho (Fig. 10):
Fig.10. Bufalini (com ponto de partida em verde e ponto de chegada em vermelho).
A leitura propriamente do mapa consiste em ligar os dois pontos, o ponto de partida (ver-
de) e o ponto de chegada (vermelho), ou seja, imaginar itinerrios possveis para o viajante.
Estes caminhos no so aleatrios, mas regulados por imperativos variveis. Por
exemplo: ser o mais curto possvel, ser cmodo, ser seguro, etc. Isso permite dizer que o
enunciatrio instale vetores de carter especfico entre o ponto de partida, ocupado pelo
viajante a um momento dado, e o ponto de chegada que o mesmo viajante considera
ocupar em um momento posterior (Fig. 11):
Fig.11. Bufalini (com itinerrio 1 em alaranjado).
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O caminho indicado em alaranjado calculado de maneira a possibilitar que ele
se aproxime da esttua equestre pela frente. Para fazer isto, o viajante dever atravessar,
primeiro, a Ilha Tiberina Isola Tiberina com as suas duas pontes, para se aproximar em
seguida, sem se desviar do roteiro da Via Capitolina que conduz ao Capitlio.
Mas um grande nmero de outros percursos seriam igualmente possveis entre os
dois pontos, o ponto de partida e o ponto de chegada postulado. Por exemplo, o cami-
nho marcado em lils tem a vantagem de ser o mais curto, mas obrigar o viajante a se
aproximar da esttua equestre por trs (Fig. 12):
Fig. 12. Bufalini (com itinerrio 1 em alaranjado e itinerrio 2 em lils).
importante notar que os caminhos projetados pelo enunciatrio do mapa tm
um estatuto virtual. A questo, para saber se a leitura de um mapa ser seguida de uma
viagem real ou no , do ponto de vista semitico, indiferente. Ler um mapa primeiro
- e necessariamente - uma atividade mental. Esta atividade mental pode, mas no deve
sempre conduzir a uma atividade do tipo somtica.
Um mapa de Roma voo de pssaro
Em 1558, portanto, quatro anos aps Bufalini, um certo Hugues Pinard pertencen-
do ao crculo romano do cardeal Georges dArmagnac publica por sua vez, pelo editor
francs Antoine Lafrry, ativo em Roma, um mapa da cidade eterna. Esta planta, gravada
em cobre, distingue-se radicalmente daquela de Bufalini (Fig. 13):
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Fig. 13. Hugues Pinard, Planta da cidade de Roma, 155813.
As duas plantas no se distinguem somente do ponto de vista tcnico entalhada
em madeira (Bufalini), gravada sobre cobre (Pinard) -, mas tambm, e sobretudo, do ponto
de vista da concepo cartogrfica. Se o mapa de Bufalini corresponde, com a projeo
ortogonal e o desenho em escala que o caracteriza, a uma concepo moderna de um
mapa, aquele de Pinard parece constituir um retrocesso na evoluo da cartografia.
Isso, no entanto, no era sentido dessa maneira pelos contemporneos. O conceito
aparentemente reacionrio de Pinard revelado como grande sucesso. Foi necessrio
ento esperar quase dois sculos para que em 1748, com o famoso mapa de Roma elabo-
rado por Gian Battista Nolli, um plano ortogonal comparvel quele de Bufalini, tivesse
de novo sucesso editorial em Roma.
primeira vista, a obra de Pinard (Fig. 13) se apresenta como uma veduta14, uma
vista sobre Roma, tomada a partir da colina do Janicule15. Mas todos aqueles que co-
nhecem Roma sabem que a vista a partir do Janicule no permite apreender a rede das
ruas da cidade. Se a veduta em Pinard refere-se apenas parte inferior do mapa, a zona
que vai do Janicule at o Tibre, logo podemos supor que o resto precisamente o que se
chama uma vista voo de pssaro, uma representao construda a partir de um ponto
de vista elevado artificial. Assim, para poder ser produzido, o mapa de Pinard pressupe
a existncia de um mapa do tipo ortogonal como aquele de Bufalini.
Em princpio, a vista voo de pssaro de Pinard permite o mesmo emprego que
o plano ortogonal de Bufalini. E pode igualmente servir para se imaginar os percursos
para atravessar a cidade de Roma (ver Fig. 14a e 14b nas quais se inscrevem os mesmos
percursos):
13 - PINARD, H. (CXII). Le piante di Roma. pp. 171/2; Roma Veduta p. 142/3, 8; Huelsen 17; Planta de Roma, coleo privada pp. 142/3, 39; Mapas raros p. 118, 110; Tooley 486. Dimenso 890x550. In: FRUTAZ, A. P.; et all. Le piante di Roma. Roma: Istituto di Studi Romani, 3 vols, 1962.
14 - [N. do T.] Em portugus, vista.15 - [N. do T.] O Janicule uma colina na parte ocidental de Roma, e um dos melhores locais para se ter uma
vista deslumbrante da capital da Itlia.
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Fig. 14a. Pinard, detalhe. Fig. 14b. Bufalini, detalhe.
Mas resta a questo: a que se deve o sucesso do mapa de Pinard, que tinha sido copiado muito rapidamente e que servia ainda de modelo para diferentes plantas de Roma at o sculo XVII? qualidade de um Anschaulichkeit, da sugestividade pictrica, que distingue o plano de Pinard ( esquerda) do de Bufalini ( direita). Em Pinard, as casas e os monumentos antigos no foram reduzidos a suas fundaes, mas representados como figuras tridimensionais. Para os contemporneos, essa propriedade do mapa de Pinard, a verdade mimtica de ordem figurativa, parece ter sido mais importante que a verdade projetiva que da competncia da geometria que caracteriza a planta mais moderna de Bufalini.
As vistas voo de pssaro tm as qualidades particulares que desempenham um papel importante no processo de recepo. Por estar condicionado perspectiva, o mapa que chamamos at hoje vista voo de pssaro orientado. Em outros termos, contrariamente ao que se passa nos mapas na projeo ortogonal como aquele de Bufalini, naqueles voo de pssaro a poro do mundo representado pelo mapa est presentificada de maneira que esse metassujeito, ou sujeito sinptico, encontra-se atribudo a um lugar determina-do em relao poro do mundo representado. Isso provoca uma figurativizao, um enriquecimento semntico do enunciatrio, mas tambm do enunciado:
por um lado, o que dado a ver no mapa voo de pssaro depende em certa medida, na sua condio mesma, da existncia do metassujeito, colocado em um lugar determinado. O que apresentado pelo mapa do tipo vista voo de pssaro possui assim a marca visto por algum;
por outro lado, se consideramos a relao com o enunciatrio o mapa em outro sentido, constatamos que o enunciatrio dotado, pelo mesmo mapa, de um poder especfico: aparece como aquele que submete o mundo a seu olhar, que o controla visualmente. Em termos gerais, a vista voo de pssaro estabelece
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sempre, por construo, uma relao de dominao entre o enunciatrio e o mundo visto. Nas inscries que aparecem nos mapas do tipo examinado, essa relao de dominao frequentemente feita de modo explcito. Assim, em 1676, em sua dedicao ao papa Inocente XI, o editor do famoso mapa gravado por Giovanni Battista Falda utiliza a seguinte frase: O citt di Roma [] adombrata nelle mie stampe io porto alli piedi della santit vostra. (a cidade de Roma [], esboada nos meus desenhos, eu a coloco aos ps de vossa santidade). No somente o papa, mas qualquer enunciatrio do mapa tem efetivamente o sentimento de que a cidade est sob seus ps. Com uma diferena: no caso do papa, o sentimento de dominao produzido pelo sistema de representao especfico do mapa e o poder de dominao real coincidem.
Os efeitos de sentidos prprios ao discurso cartogrfico no explicam, no entanto, completamente a utilizao da metfora ornitolgica. Por que temos o sentimento de ver o mundo com os olhos dos pssaros, ao olhar um mapa como aquele de Hugues Pinard (fig. 13)? Certamente, os pssaros poca seriam os nicos - parte, uma vez mais, os seres sobrenaturais - a possuir o poder de olhar o mundo do alto. Mas existem boas razes para pensar que isso tambm a relao especfica entre o sujeito sinptico e o sujeito viajante que, nesse tipo de mapa, conduz ao emprego da metfora ornitolgica. O olhar projetado sobre o mapa pelo enunciatrio um olhar em movimento, voltil por assim dizer. Como fazem os pssaros, ns podemos - lendo o mapa nos deter sobre um lugar preciso, para em seguida dirigir, nossa escolha, para um outro lugar. Aplicada aos discursos cartogrficos estudados, a expresso vista voo de pssaro mais que uma metfora superficial. Conduz ao centro da estrutura da enunciao desse tipo de texto visual. essa estrutura que explica porque a expresso vista voo de pssaro difundiu-se com tanto sucesso nas diferentes lnguas europeias desde a sua introduo em meados do sculo XVIII16.
A relao entre a vista area grande distncia e a presena de pssaros em Jan Van Eyck no uma exceo. O autor annimo do Tavola Strozzi (Museu Nacional de San Martino, Npoles) que representa a cidade de Npoles em 1470 no litoral, mas a partir de um ponto de vista elevado, claramente acima do nvel do mar, no deixa de colocar, tambm, dois bandos de pssaros no cu azul, um ao meio, esquerda do rochedo que tem
vista para o mosteiro de San Martino, e outro na mesa de canto na lateral superior direita17.
16 - O documento estudado em Franziska Brons, facsimile Bildwelten des Wissens. (2006), p. 58-63. Durante a discusso desta apresentao, um participante da conferncia de M. Arunas Sverdiolas chamou a ateno para a natureza ambgua do texto cartogrfico em questo: enquanto os principais edifcios podem ser considerados representaes relativamente fiis, a rede de ruas parece corresponder muito aproximadamente aos dados arqueolgicos. Este paradoxo ressalta a artificialidade do mapa, o resultado de uma verdadeira bricolage de vrias fontes, incluindo a variabilidade do grau de credibilidade. Ver A. Gombert, ber Richard M. Meyers Vierhundert Schlagworte Zeitschrift fr Deutsche Wortforschung (1902), p. 307-318, especialmente p. 312. Ver Catalogo Armando P. Frutaz, Piante di Roma, 3 vols., Roma, 1962.
17 - Ver GUIDONI, E. (2002). Leonardo da Vinci e le prospettive di citt. Le vedute quattrocentesche di Firenze, Roma, Napoli, Genova, Milano e Venezia. Roma: Museo delle citt e del territrio.
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THRLEMANN, Felix. Olhar como os pssaros. Sobre a estrutura de enunciao de um tipo de mapa cartogrfico
Revista Galxia, So Paulo, n. 22, p. 118-132, dez. 2011.132
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FELIX THRLEMANN professor de histria da arte
na Universidade de Constance, Suia. Estudou em Zurique,
Paris (Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales), Nova
York e Roma. membro do Swiss Institute. Foi aluno e
colaborador de Algirdas Julien Greimas. Publicou: Paul
Klee: Analyse smiotique de trois peintures e Como definir
a arquitetura barroca no livro Semitica Plstica.
Texto recebido em agosto e aprovado em setembro de 2011