THÉVENIN, Nicole-Édith. Ideologia Jurídica e Ideologia Burguesa
Espetáculo e Ideologia Um Estudo Sobre o Papel Da Ideologia
-
Upload
paulo-rocha -
Category
Documents
-
view
18 -
download
1
Transcript of Espetáculo e Ideologia Um Estudo Sobre o Papel Da Ideologia
-
3
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR
CENTRO DE HUMANIDADES
MESTRADO ACADMICO EM FILOSOFIA
Espetculo & Ideologia: um estudo sobre o papel da Ideologia nA sociedade do
espetculo de Guy Debord
Fortaleza
Maio/2013
-
4
Fabiano Jos Arajo dos Santos
Espetculo & Ideologia: um estudo sobre o papel da Ideologia nA sociedade do
espetculo de Guy Debord
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado
Acadmico em Filosofia do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Cear como requisito parcial
para a obteno do grau de mestre em filosofia
Orientador: Prof. Dr. Joo Emiliano Fortaleza de
Aquino
Fortaleza
Maio/2013
-
5
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao
Universidade Estadual do Cear
Biblioteca Central Prof. Antnio Martins Filho
Bibliotecrio Responsvel Francisco Welton Silva Rios CRB-3/919
S237e Santos, Fabiano Jos Arajo dos
Espetculo & ideologia: um estudo sobre o papel da ideologia na
sociedade do espetculo de Guy Dedord / Fabiano Jos Arajo dos Santos. -
- 2013.
CD-ROM. 120 f. : il. ; 4 pol.
CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).
Dissertao (mestrado) Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades, Curso de Mestrado Acadmico em Filosofia, Fortaleza,
2013.
rea de Concentrao: tica.
Orientao: Prof. Dr. Joo Emiliano Fortaleza de Aquino.
1. Ideologia. 2. Sociedade do espetculo. 3. Linguagem. 4. Crtica da
representao. I. Ttulo.
CDD: 145
-
6
Dedicatria e Agradecimentos
Dedico esse trabalho a meus pais e minha famlia. Os motivos so to bvios que
se fazem desnecessrios aqui.
Dedico ainda aos amigos e pessoas queridas que tiveram de alguma forma sua
contribuio na realizao desse projeto. No so poucos e alguns sequer tm ideia de
sua importncia, portanto, citar nomes seria uma tarefa difcil.
Em agradecimento, gostaria de citar os professores Acio Oliveira, Fbio Sobral e
Emiliano Aquino, os dois primeiros por se tratarem de figuras com papel to
fundamental na minha formao durante a graduao e o ltimo por sua generosssima
contribuio e orientao em todas as etapas dessa jornada de dois anos no curso do
mestrado. Dele, posso ainda afirmar que fico muito feliz de ter podido superar a barreira
do contato profissional e dizer que somei mais um amigo.
-
7
Resumo
A compreenso da ideologia ocupa papel central na crtica de Debord ao que ele chama
de espetculo moderno. Este, por sua vez, seria o estgio mais desenvolvido, e por ns
conhecido, da sociedade de classes, no momento em que por seu desenvolvimento as
foras econmicas ganham autonomia ao estenderem por todo o mundo o domnio da
mercadoria. Tal fato, todavia, no poderia ter sido possvel se no fossem as derrotas
dos principais movimentos revolucionrios do sculo XX em dois momentos cruciais, o
primeiro quarto do sculo e o perodo que vai de cerca de meados dos anos 60 a fins de
anos dos anos 70. Essas lutas, portanto, assistiram ao nascimento e o fortalecimento do
regime espetacular do capital, inicialmente na diviso entre espetculo difuso e
concentrado e depois na fuso desses dois no espetculo integrado, podendo ser dito do
espetculo como um todo que ele no trata apenas da gesto econmica, mas do prprio
controle de seus dominados. Entend-lo , portanto, entender como se d essa
dominao na complexidade de suas tcnicas de controle, tanto pelo aspecto objetivo da
fora armada do Estado, quanto no domnio objetivo e subjetivo das imagens do capital
ali onde a sociedade da mercadoria se encontra mais desenvolvida. No que diz respeito
a esse aspecto subjetivo, a crtica de Debord retoma sob nova perspectiva a relao
proposta pelo filsofo e socilogo hngaro Joseph Gabel das diferentes formas de
formas de conscincia antidialtica, em especial a relao das formas social e clnica
(para ele, a esquizofrenia). De fato, acreditamos estar aqui o fundamental da proposta
desse trabalho, tendo em vista no se tratar de um aspecto muito explorado da crtica de
Debord, alm de se basear em um dilogo deste com um autor pouco conhecido no
Brasil at mesmo em sua rea. Quanto ao conjunto do trabalho, diramos que pela crtica
da ideologia possvel entender no apenas aspectos fundamentais desse elemento
subjetivo tanto da perspectiva clnica, quanto em sua relao com a economia que
retoma ainda o Lukcs de Histria e conscincia de classe e logicamente com a
prpria poltica, onde ganham destaque a crtica da representao e o projeto de
superao da sociedade de classes por meio da revoluo, discusso que, por sua vez, se
mostra original ao destacar a anlise dos Conselhos e o aspecto da linguagem nas lutas
prticas, em exata oposio ao dilogo unilateral do espetculo.
Palavras-chave: Ideologia, Sociedade do espetculo, Estado, Linguagem, Crtica da
representao.
-
8
Abstract
The understanding of ideology is central to the critique of Debord to what he calls the
modern spectacle. This, in turn, would be the most developed, and for us known, stage
of the class society, by the time of its development when the economic forces gain
autonomy to extend worldwide the mastery of merchandise. This, however, could not
have been possible if not for the defeats of the main revolutionary movements of the
twentieth century in two crucial moments, the first quarter of the century and the period
from about the mid-60s to late 70s. These struggles, therefore, attended the birth and
strengthening of the capitals spectacular regime initially in the division between the
forms diffuse and concentrated and then in the fusion of these two in the integrated
spectacle, therefore allowing to be said of the spectacle as a whole that it is not just
about the economic management but the actual control of the proletarians. To
understand it is therefore to understand how is this domination in the complexity of its
control techniques, both the objective aspect of the armed force of the state, as in the
field of objective and subjective images of the capital's where the commodity society is
more developed. Regarding to this subjective aspect, Debord's critique resumes under
new perspective the relation proposed by the Hungarian philosopher and sociologist
Joseph Gabel of the different forms of anti-dialectical consciousness, in particular the
relation between social and clinical form (for him, schizophrenia). In fact, we believe
that here we have the fundamental purpose of this study, noting that this has not being a
very exploited aspect of Debords critic, besides be based on a dialogue with an author
very little known in Brazil even in his field of study. Regarding this study as a whole,
we would say that by the critique of ideology is not only possible to understand
fundamental aspects of this subjective element by the clinical perspective, but also in its
relationship with the economy - which also resumes the Lukcs of History and Class
Consciousness - and logically with politics itself, discussion highlighted by criticism of
representation and the project to overcome class society through revolution, discussion,
in turn, that brings the original analysis of the Councils and the aspect of language in
practical struggles, in exact opposition to unilateral dialogue of the spectacle.
Keywords: Ideology, Society of the Spectacle, State, Language, Critique of
representation.
-
9
Sumrio
Apresentao.............................................................................................................pg. 10
Captulo 1. Ideologia e Espetculo............................................................................pg. 15
1.1. Economia e Espetculo.......................................................................................pg. 16
1.2. Espetculo e Ideologia........................................................................................pg. 28
1.3. Espetculo e Esquizofrenia.................................................................................pg. 41
Captulo 2. Espetculo e Ideologia............................................................................pg. 51
2.1. O Espetacular Concentrado................................................................................pg. 56
2.2. O Espetacular Difuso..........................................................................................pg. 66
2.3. O Espetacular Integrado.....................................................................................pg. 77
Captulo 3. Ideologia e Teoria Revolucionria..........................................................pg. 88
3.1. Dialtica e Teoria Revolucionria......................................................................pg. 89
3.2. Desvio e Crtica da Ideologia...........................................................................pg. 102
3.3. Revoluo e Dissoluo da Ideologia..............................................................pg. 105
Consideraes Finais...............................................................................................pg. 114
Bibliografia..............................................................................................................pg. 117
-
10
Apresentao
A Sociedade do Espetculo tem sua importncia como expresso de concluso
de um perodo de dez anos, entre fins das dcadas de 50 e fins da dcada de 60 do
sculo passado, em que a Internacional Situacionista, organizao que tem em Debord
um de seus fundadores, se estabeleceu como o principal protagonista no terreno da
crtica revolucionria, no apenas na Frana. Como tal, e junto com os Comentrios
sociedade do espetculo (1988), essa obra se constitui ainda hoje na crtica mais concisa
da ordem do capital em sua fase superdesenvolvida desde seu lanamento em dezembro
de 1967.
Surgida em 1957 a partir da unio de grupos artsticos de vanguarda que tinham
por comum interesse uma preocupao tanto terica quanto prtica acerca das
possibilidades de superao da arte, a IS, nos anos que se seguiram, enriqueceu
progressivamente sua crtica a ponto de estend-la a um pensamento crtico sistemtico
da sociedade capitalista moderna, o que Debord, por sua vez, acabou por nomear o
espetculo. O termo, na verdade, surge primeiramente como simples oposio da
noo de espectador elemento passivo, mas no solitrio ao pensamento crtico da
poca, que, dado o esgotamento poltico dos movimentos revolucionrios de ento,
concentrava-se na dimenso subjetiva da alienao.1 No entanto, ele vai ganhar como
categoria crtica cada vez maior dimenso, at finalmente se estabelecer como crtica da
sociedade capitalista superdesenvolvida na complexa relao que essa manifesta entre o
mundo prtico e a economia autnoma. nesse sentido que a ideologia aparece no
apenas como corolrio de uma prxis invertida no plano da conscincia, mas como ao
prtica efetiva das foras de sujeio da vida em toda sua complexidade. E exatamente
desse problema que trata essa dissertao, do interesse acerca do papel da ideologia no
conjunto da crtica da SdE partindo da afirmao de Debord de que o espetculo a
ideologia por excelncia (SdE, 215).
Para analisarmos a questo, apresentamos a discusso em trs captulos. O
primeiro se dedica exposio da crtica do espetculo na sua relao com a ideologia
buscando a relao entre espetculo, ideologia e esquizofrenia. Fazemos isso no intuito
1 Martos, J. F., Histoire de lInternationale situationniste, Paris : Ivrea, 1995, p. 62.
-
11
de explicar o fundamento da teoria da conscincia reificada como base para a crtica da
representao ideolgica, que melhor exploramos no captulo seguinte. Neste, por sua
vez, a preocupao tambm compreender o espetculo em sua gnese histrica no
apenas como resultado do superdesenvolvimento das foras produtivas sociais, mas na
consolidao e fortalecimento desse poder econmico tambm a partir das derrotas dos
movimentos contestatrios do sculo XX em dois momentos decisivos: os anos de 1920
e 1930 e o perodo compreendido entre fins dos anos de 1960 e fins da dcada de 1970,
o primeiro referente ao espetculo em suas formas difuso e concentrado e o segundo
dizendo respeito origem da forma mais contempornea do espetculo, o espetacular
integrado; resultado da fuso das duas anteriores. No terceiro captulo, por fim,
refletindo acerca do aspecto unitrio da teoria revolucionria, ou seja, sua concepo
como inseparvel relao entre pensamento e prtica, discutindo ainda o mtodo do
desvio como o mtodo dialtico revolucionrio por excelncia e o objetivo da
revoluo: a instaurao da sociedade sem classes e com ela a superao da ideologia.
Na tarefa que nos propomos no primeiro captulo, contudo, acreditamos estar
realmente o elemento central do trabalho. Isso porque nele se evidencia um aspecto da
recepo da teoria psicanaltica por Debord at ento pouco examinado. De fato, no se
trata aqui do dilogo com Freud, mas da maneira como as conquistas da psicanlise so
exploradas em sua relao com a crtica social. assim, portanto, que o livro A falsa
conscincia (1962) do filsofo e socilogo Joseph Gabel joga papel fundamental. Aqui,
se bem entendido, se encontram os elementos essenciais da crtica de Debord s formas
de conscincia do espetculo na forma da crtica da conscincia reificada tanto como
ideologia quanto como falsa conscincia, distino conceitual aceita por Debord em
suas diversas manifestaes, especialmente na relao entre a conscincia reificada de
tipo social e a de tipo clnico, que Gabel acredita ter sua expresso na esquizofrenia. Por
sua vez, Gabel toma como ponto de partida para o estudo da falsa conscincia e da
ideologia, a prpria categoria de conscincia reificada, apresentada pela primeira vez
num importante momento do estudo da dialtica marxista: a clssica obra Histria e
conscincia de classe, de Gyrgy Lukcs.
Mas, todavia, h de se precisar a distino entre as duas obras: Lukcs apresenta
seu conceito de conscincia reificada, isto , a conscincia em sua manifestao
-
12
antidialtica, a partir da crtica da economia poltica, colocando essa forma de
conscincia como expresso direta das relaes impessoais mercantis tanto no mbito
da produo (o cho de fbrica) quanto da distribuio para o consumo mercantil
(relaes de compra e venda). Gabel, por outro lado, tenta alargar o conceito de
conscincia antidialtica colocando como denominador comum s diferentes formas
desta conscincia a prpria noo de dialtica proposta por Lukcs em sua HCC. Assim,
Gabel reconhece os mritos de HCC como primeira aproximao, em certo sentido, da
crtica da economia poltica aos desenvolvimentos da psicanlise. Ele acredita com isso
poder explicar no s a conscincia social reificada de tipo econmico, mas tambm,
por exemplo, suas expresses polticas e ideolgicas, como a conscincia racista, e a
conscincia antidialtica de tipo clnico, a esquizofrenia, podendo, a partir da, tambm
relacion-las, no que ele chama de paralelismo sociopatolgico.
precisamente esse paralelismo que interessa a Debord em sua explicao das
formas de conscincia do espetculo como em perfeita sintonia com a esquizofrenia,
notadamente em sua caracterstica contemplativa face ao domnio da mercadoria sobre o
mundo. O que tentamos mostrar que o desvio feito por Debord das conquistas de A
falsa conscincia e Histria e conscincia de classe no se constituem em simples
repeties, ou, no caso do paralelismo proposto por Gabel, de um retorno ao
reducionismo de Lukcs, mas concebe tanto a falsa conscincia quanto a ideologia
como formas de conscincia reificada precisamente por seu carter esquizofrnico de
contemplao j mencionada , entendendo essa caracterstica como expresso da
prxis invertida do espetculo. Ora, no mundo da separao, construdo pelo domnio
objetivo da mercadoria, no s os proletrios no tem o controle de suas vidas, mas a
prpria classe dirigente ideolgica em todas as suas manifestaes s dominante
medida que se encontra submissa ao desenvolvimento cego das foras econmicas. Em
outras palavras, todas as formas de ideologia em suas diversas manifestaes, no
espetculo so entendidas por Debord como uma nica ideologia, a que se afirma como
monlogo laudatrio (SdE, 24) da ordem, da prpria mercadoria que no apenas
controla o mundo, mas o constri sua imagem, como reflexo fiel da produo das
coisas, e a confirmao infiel dos produtores (SdE, 16).
-
13
No segundo captulo, as formas do espetculo so apresentadas em sua relao
indissocivel com as principais lutas negadoras da ordem vigente no sculo passado,
esclarecendo que o espetculo no se constitui, portanto, como j anunciamos, nica e
exclusivamente como resultado do desenvolvimento histrico das foras produtivas,
mas tambm na adoo de tcnicas de controle (das quais a ideologia se constitui como
o ncleo fundamental) cada vez mais virulentas sempre que o poder do capital se v
ameaado historicamente. Com base nisso, as duas formas iniciais do espetculo,
concentrado e difuso, so apresentadas aqui como consequncia das derrotas do
movimento operrio dos anos de 1920 em sua estreita relao com o pensamento de
esquerda tradicional dominante de ento: a socialdemocracia alem e o bolchevismo
russo; enquanto a fuso destas duas formas aqui aduzida, a partir dos Comentrios
sobre a sociedade do espetculo, como consequncia das lutas dos anos de 1960,
movimentos em relao aos quais a SdE de Debord se constitui tambm como tentativa
de expresso.
Esclarecemos que contrariamente interpretao de autores como Anselm Jappe
e Celso Frederico, que veem nos Comentrios uma exposio pessimista e mesmo
fatalista dos desenvolvimentos do espetculo posteriores s lutas dos anos 70, ou seja,
a partir do surgimento do espetacular de tipo integrado, procuraremos demonstrar no
terceiro e ltimo captulo (a saber, Ideologia e teoria revolucionria) o carter
revolucionrio (dialtico) da teoria crtica de Debord essencialmente com base na
relao entre teoria e comentrios.
Debord explica na Advertncia da edio francesa de 1992 que uma teoria
crtica como esta no se altera, pelo menos enquanto forem destrudas as condies
gerais do longo perodo histrico que ela foi a primeira a definir com preciso.2 Como
reatulizao da teoria crtica, a teoria da sobrevida [survie] e do espetculo , antes de
mais nada, a tentativa de recolocar em jogo a contestao da sociedade mercantil, posto
que das ltimas derrotas dos movimentos de negao da ordem at o aparecimento da
IS, nunca essa causa havia sofrido derrota to completa nem havia deixado o campo de
batalha to vazio.3 Os acontecimentos de 1967, ele explica, foram resultado do fato de
2 Advertncia da edio francesa de 1992. In: Debord, G., A sociedade do espetculo, Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997, p. 9. 3 Prefcio 4 edio italiana de A sociedade do espetculo. In: Debord, G., op. cit., p. 151-152.
-
14
que as velhas linhas de defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores da revoluo
social estava descontroladas e corrompidas,4 o que lhes deu a ocasio de se tentar
mais uma.5 De fato, a teoria crtica de Debord tem como pressupostos de sua fora dois
aspectos fundamentais: a unio dialtica entre teoria e prtica e seu reconhecimento
como luta histrica, o que a coloca muito prxima do messianismo de Benjamin, este
que compreende cada tentativa revolucionria como momento nico que rene em si a
fora de todas as lutas anteriores, devendo, dessa forma, redimi-las no momento de sua
vitria. A derrota de qualquer tentativa no deve, portanto, representar seu fracasso,
seno fortalecer a conscincia da luta e das prticas futuras.
Quanto ao fato de os Comentrios parecerem a negao das possibilidades de
ao aps as ltimas investidas revolucionrias nos anos 60 e 70, me parece que se trata
exatamente do contrrio. O que o espetacular integrado quer o fim da historia por
meio da organizao da ignorncia, justamente para manter o esquecimento do que,
apesar de tudo, conseguiu ser conhecido (Coment., VI). justamente essa a razo da
existncia dos comentrios: eles so ao mesmo tempo denncia dos tempos em que
foram escritos e memria de um tempo sem memria. Ou, como Debord explica logo
no primeiro comentrio: se lhes forem intercaladas umas pginas c, outras acol, o
sentido completo pode aparecer: o que muitas aconteceu quando artigos secretos
foram acrescentados quilo que os tratados diziam abertamente; da mesma forma, h
agentes qumicos que s revelam uma parte de suas propriedades quando se combinam
com outros.
Esse aspecto, na verdade, ganha uma maior ateno no ltimo captulo, quando
discutimos a teoria revolucionria em sua histria e em seus aspectos mais essenciais,
de acordo com a anlise de Debord. assim que trazemos discusso o mtodo do
desvio [dtournement] como mtodo fundamental da teoria, sem desconsiderar que, por
sua vez, este no se distingue de uma considerao acerca da linguagem e da memria.
Por fim, conclumos com uma pequena discusso sobre o objetivo ltimo da teoria de
Debord, a dissoluo da ordem burguesa e com ela de toda ideologia. Passemos ento s
questes fundamentais.
4 Ibidem, p. 151.
5 Ibidem.
-
15
Captulo I
Ideologia e Espetculo
Perseu precisava de um capacete da invisibilidade para
perseguir os monstros. Ns puxamos o capacete mgico
a fundo sobre nossos olhos e orelhas, para podermos
negar a existncia de monstros.
(Marx. Prefcio dO capital)
Espetculo ideologia, esta afirmativa que norteia o desenvolvimento deste
trabalho. Dito de forma mais clara, o que se quer aqui explorar a relao feita pelo
autor de A sociedade do espetculo entre esses dois conceitos, discusso que embora
perpasse toda a obra na prpria exposio terica do espetculo, ganha ateno especial
em seu captulo final (a saber, A ideologia materializada). Neste captulo, a crtica da
ideologia ganha ainda como componente a retomada da analogia entre conscincia
reificada (antidialtica) e a categoria clnica da esquizofrenia, apresentada
primeiramente pelo filsofo e socilogo hngaro Joseph Gabel, mais precisamente em
sua obra A falsa conscincia, publicada em 1962. Para Gabel, a esquizofrenia
fundamentalmente uma forma de conscincia antidialtica, de maneira que o
paralelismo que ele apresenta entre ideologia e esquizofrenia o ilustrativo da proposta
de sua obra; oferecer um denominador comum entre as diversas formas de conscincia
desse tipo. Esse denominador, uma concepo de mundo antidialtica abrangente, tem,
por sua vez, como referncia a teoria dialtica apresentada por Gyrgy Lukcs na sua
clssica obra Histria e conscincia de classe (1923), esta que, em certo sentido, se
constitui num primeiro esboo desse paralelismo proposto e desenvolvido por Gabel.
Debord, contudo, no est diretamente interessado em apenas retomar o projeto
inicial de Gabel, mas, em vez disso, em utilizar-se de seus resultados e tambm
daqueles do Lukcs de HCC para explicar como a conscincia dos indivduos pode
assumir um carter socialmente contemplativo a partir de determinadas condies
histrico-socialmente produzidas. esse carter contemplativo um dos elementos que o
levam a definir o momento histrico-social particular do modo de produo mercantil
-
16
iniciado a partir do perodo compreendido entre as duas guerras mundiais como o
espetculo.
O interesse de Debord pela questo deve ser entendido a partir da prpria anlise
crtica do capitalismo superdesenvolvido, tendo em vista que a considerao dessas
categorias se faz fundamental tanto para a compreenso do espetculo como tcnica de
poder (um dos aspectos da ideologia materializada), quanto na considerao do conjunto
das formas de conscincia prprias a essa sociedade (a falsa conscincia geral) em
vistas da tentativa de elaborao de uma teoria revolucionria que a supere.
Dito isso, podemos passar investigao da ligao entre espetculo, ideologia e
esquizofrenia, a relao trplice que procuraremos apresentar neste primeiro captulo.
Mas tendo em vista que as ideologias no so simples quimeras, como afirma Debord
em referncia a Marx logo no incio de A ideologia materializada, e muito menos
esto desligadas da realidade, j que sobre esta exercem uma real ao deformante
(SdE, 212), seguiremos um pequeno roteiro lgico de exposio que tem como ponto
de partida a prpria base material do espetculo: a economia em seu estgio de
superdesenvolvimento.
1.1. Economia e espetculo
Espetculo economia. A primeira e mais imediata considerao que se possa
ter acerca do mesmo a de que se trata do momento histrico que nos contm (SdE,
11), bem como sua prtica social e o sentido dessa prtica. Mas ainda que no se possa
reduzir a anlise e a crtica do espetculo a uma determinao da base econmica da
sociedade, de extrema importncia entender a funo que ela exerce no conjunto do
que Debord entende como o espetculo, e como exerce esse papel. Dessa forma, neste
tpico especificamente, nos interessa mostrar os desdobramentos das relaes de
produo capitalistas (ou seja, produo e reproduo de mercadorias e, portanto, num
sentido mais amplo, de capital) em relao ao conjunto da atividade social. Em outras
palavras, nos ocuparemos da dupla tarefa de mostrar: primeiro, como no modo de
produo mercantil o fundamento abstrato (valor) acaba por dominar a atividade
sensvel e, por seguinte, inverte-la em uma relao entre coisas relao, portanto,
regida com base nas leis dessas coisas. Tomamos ento como ponto de partida a clssica
anlise de Marx presente em O capital acerca da mercadoria. Isto porque tambm
-
17
levamos em considerao que a adoo do mtodo histrico-dialtico se faz
determinante para a compreenso no apenas da essncia do sistema capitalista o que
a economia poltica clssica j havia alcanado , mas o todo das relaes que da
decorre. Sendo assim, antes ainda de adentrarmos a discusso sobre os fundamentos
econmicos do espetculo, nos interessa fazer uma pequena considerao acerca deste
mtodo.
A relao entre anlise e sntese pode ser entendida precisamente como o ponto
de diferenciao do mtodo de Marx e o sistema filosfico de Hegel, sua referncia.
Hegel, em seu idealismo consequente, parte da identidade entre ser e pensar para
afirmar a igualdade entre mtodo e realidade, ao passo que em Marx anlise e sntese
dizem respeito a momentos isolados da pesquisa e da apresentao de seus resultados.
Enquanto Marx considera que essa apresentao no reproduz um desenvolvimento
histrico, mas se constitui de uma exposio lgica das categorias apreendidas pelo
intelecto atravs da anlise , capaz de diferenciar por ordem de importncia as
categorias do objeto de estudo,6 em Hegel, a exposio diz respeito ao prprio
movimento do objeto de que se ocupa a anlise, o que pode ser entendido quando ele
afirma, por exemplo, que a razo lgica o substancial ou o real, que mantm unidas
todas as determinaes abstratas e sua unidade consistente, absolutamente concreta.7
H de se observar, todavia, acerca dessa identidade proposta por Hegel que
exatamente a partir dela que seu mtodo no consegue superar a determinao infinitista
e idealista que, como em Adam Smith, de quem foi leitor, condena todo seu projeto a
uma perspectiva a-histrica no importando quo irnica seja sua busca por apresentar
um mtodo de compreenso da histria que seja ao mesmo tempo justificao do novo
modo de organizao social que ele tenta entender em sua totalidade.
Em Smith, essa perspectiva a-histrica se manifesta na clebre teoria da mo
invisvel, que compreende o mercado em perfeita autorregulao e tendendo sempre ao
equilbrio o que a anlise da economia poltica clssica como um todo interpreta, por
sua vez, como a imutabilidade das leis histricas do capital. O erro da economia poltica
clssica, como Marx explicita em sua crtica, o de tentar explicar as leis do novo modo
6 Para um estudo mais detalhado sobre esse ponto, conferir Crtica das formas jurdicas em Marx de
Estnio Azevedo, especialmente o captulo 3: A exposio crtica das formas jurdicas enquanto
exposio da crtica da economia poltica. 7 Hegel, W. F., Cincia da lgica [excertos], So Paulo: Barcarolla, 2011, p. 27.
-
18
de produo baseados em suas categorias elementares (propriedade privada, salrio etc)
tomando-os como dados, e no compreendendo que, ao contrrio, essas categorias
decorrem da prpria essncia do sistema. assim que para Smith, por exemplo, ao
definir a relao do salrio com o lucro do capital, aparece-lhe como ltimo fundamento
o interesse dos capitalistas,8 e ele acaba assim por conjeturar o que deveria de fato ser
explicado. Ora, exatamente essa a perspectiva invertida sobre a sociedade burguesa
moderna que Hegel traduz como o prprio movimento de desdobramento do Absoluto
no mundo.
Marx vai ento denunciar o erro metodolgico de Hegel atacando diretamente
seu fundamento idealista (identidade pensamento e ser), absoluto. Alm disso, a
identificao do elemento central do idealismo hegeliano no lhe permite apenas a
crtica, mas sua correo, superando-o e resgatando o que esse mtodo j traz em si de
revolucionrio: a negatividade dialtica, em referncia histria, e a perspectiva da
totalidade. Significa exatamente dizer que ainda que se afaste da determinao idealista
e infinitista do sistema de Hegel, no qual pensamento e ser, mtodo e realidade se
confundem, Marx retoma, contudo, a concepo hegeliana de cincia como
apresentao (Darstellung).9
No mtodo de Marx, a realidade concreta, ainda que seja o ponto de partida
efetivo, encarada como sntese, como resultado da relao dialtica de uma srie de
determinaes abstratas que em sua individualidade so fundamentais para a
compreenso da totalidade. E sob essa nova perspectiva, da inaugurao do mtodo
cientificamente exato, como definido pelo prprio Marx, que a uma s vez ele pode se
apoderar das conquistas da filosofia hegeliana e da economia poltica clssica inglesa,
superando-as.
Debord, por sua vez, tem em mente o materialismo dialtico em sua exposio
crtica do espetculo. ciente dos recursos do mtodo que ele pode apresentar, logo nos
primeiros captulos da SdE, as determinaes mais abstratas de seu objeto de
investigao a mercadoria dentre elas em referncia e constante relao com a
totalidade do mesmo. Segundo ele:
8 Marx, K., Manuscritos econmico-filosficos, So Paulo: Martin Claret, 2003, p. 110.
9 Azevedo, E. E. B., A crtica das formas jurdicas de Marx. 2008. 136 f. Dissertao (mestrado em
filosofia) Centro de Humanidades, Universidade Estadual do Cear UECE, Fortaleza. p. 92.
-
19
Para descrever o espetculo, sua formao, suas funes e as foras que tendem a
dissolv-lo, preciso fazer uma distino artificial de elementos inseparveis. Ao
analisar o espetculo, fala-se de certa forma a prpria linguagem do espetacular,
ou seja, passa-se para o terreno metodolgico dessa sociedade que se expressa pelo
espetculo (SdE, 11).
Ao fazer referncia ao processo analtico do mtodo, ele, no entanto, apresenta a
determinao que se pe como o ncleo fundante do espetculo: a separao, cuja
expresso no processo produtivo da sociedade mercantil superdesenvolvida
precisamente a especializao das tarefas. De fato, o espetculo sob o ponto de vista de
sua anlise econmica precisamente o processo de especializao do trabalho e de
especializao do poder, de maneira correspondente em seu nvel historicamente mais
apurado. Sob este aspecto, a primeira concluso a que podemos chegar a de que seu
poder decorre do fato de, estando fundado na especializao, no isolamento, o
espetculo como um todo ser tambm a produo circular do isolamento (SdE, 28),
ou seja, enquanto o isolamento fundamenta a tcnica; reciprocamente, o processo
tcnico isola (idem). O espetculo ento trata da fabricao concreta da alienao
(SdE, 32), no momento em que o homem separado de seu produto produz, cada vez
mais e com mais fora, todos os detalhes de seu mundo (SdE, 33).
Portanto, retomando a anlise de Marx acerca da mercadoria, acabaremos por
compreender as relaes que se fundamentam sobre essa separao fundamental,
precisamente essa qual todo o sistema capitalista faz referncia. Estaremos ento em
condies de entender as categorias da alienao e da reificao, que muito nos
interessam nessa exposio. Passemos ento anlise da mercadoria.
Marx atribui mercadoria, logo nas primeiras linhas de O capital, o status de
forma elementar do modo de produo capitalista. Segundo ele, uma mercadoria ,
antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz as
necessidades humanas de qualquer espcie10. Como objeto externo, portanto, ainda
segundo ele, em nada influencia no prprio objeto a natureza das necessidades que este
deve atender; se so provenientes do estmago ou da fantasia. Sendo assim, para a
satisfao de necessidades, encaramos a utilidade das coisas sob o aspecto da qualidade
e da quantidade, advindo do primeiro aspecto a considerao de seu valor de uso, e do
segundo, seu valor. Valores de uso enquanto tais, Marx nos explica que as sociedades
10
Marx, K. O capital, So Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 45.
-
20
os descobrem como atos histricos, atravs do desenvolvimento de suas foras
produtivas e ampliao de sua diviso do trabalho. Por outro lado, esse valor de uso
portador de um valor intrnseco mercadoria11 que se desvela primeiramente pela
troca dos resultados do excedente da produo de um grupo social e, como tal, casual
e sujeito relatividade no processo de troca com outras comunidades. este duplo
carter da mercadoria (valor de uso e valor) que nos permite entender que o dinheiro
aparece precisamente como o resultado da especializao histrica do processo de troca
privada, afirmando-se como a mais perfeita especializao da prpria mercadoria, o
equivalente geral no qual todas se veem representadas. Ele ainda o que nos permite
entender como a sociedade capitalista orienta os prprios rumos da atividade produtiva,
voltando-a por completo para a produo de valor.
Afirmar, todavia, o dinheiro como equivalente geral no esgota a exposio,
mas de fato nos leva indagao acerca do que fundamenta sua equivalncia
mercadoria. Se o dinheiro pode ser entendido tambm como uma mercadoria, cabe-nos
buscar na relao entre mercadorias diferentes esse algo em comum que nos permite
coloc-las em perspectiva de igualdade em alguma medida (expressa, para todas, pelo
dinheiro). Ora, explica Marx, no so as propriedades externas das mercadorias
(geomtricas, fsicas etc.) o que as colocam em posio de serem comparadas, mas, ao
contrrio, algo comum a que possam ser reduzidas. Decorre da a concluso de que, se
abstrairmos as propriedades corpreas das mercadorias, entendemos que seu elemento
comum precisamente a abstrao dos prprios trabalhos que as criam. Nas palavras de
Marx:
Ao desaparecer o carter til dos produtos do trabalho, desaparece o carter til dos
trabalhos neles representados, e desaparecem tambm, portanto, as diferentes
formas concretas desses trabalhos, que deixam de diferenciar-se um do outro para
reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano
abstrato.12
Essa massa de trabalho humano indiferenciado precisamente o que constitui
e confere valor s mercadorias. Apenas como cristalizaes desse valor que elas,
numa relao social (de compra e venda), podem ser consideradas valores mercantis. Na
considerao de igualdade entre os diferentes tempos de trabalho necessrios para a
11
Ibidem, p. 46. 12
Ibidem, p. 47. Itlico nosso.
-
21
produo de diferentes tipos de mercadoria, bem como das diferenas tcnicas e
materiais entre os produtores, vale, por sua vez, uma considerao mdia entre esses
tempos, ou seja, o tempo requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas
condies dadas de produo socialmente normais, e com o grau mdio de habilidade e
de intensidade de trabalho,13 o que Marx chamou de tempo de trabalho socialmente
necessrio.
Eis que entram ento as seguintes importantes consideraes acerca desse
processo: primeiramente, a de que, em geral, quanto maior a fora produtiva do trabalho
considerada em sua totalidade, ou seja, a relao entre trabalho vivo (humano) e
trabalho morto (mquinas) menor o tempo de trabalho exigido para a produo de um
item de determinada mercadoria. Segundo, contraditoriamente, a grandeza de valor de
uma mercadoria aumenta em relao direta quantidade de trabalho vivo incorporada
em sua produo, e em razo inversa fora produtiva (trabalho morto) que nela se
realiza. E, por ltimo, como resumo geral do processo, constata-se que a produo de
mercadorias no trata, em essncia, da produo de valores de uso no para o
produtor, pelo menos , mas da produo de valores de uso para outros; o que lhes
confere a qualidade de valores de troca. Em outras palavras, nenhuma coisa pode ser
valor, sem ser objeto de uso. Sendo intil, do mesmo modo intil o trabalho nela
contido, no conta como trabalho e no constitui qualquer valor.14
Temos a, portanto, o mecanismo geral da produo de valor. Se indagarmos
acerca das consequncias dessas trs caractersticas, entendemos ento os fundamentos
do desenvolvimento tcnico indefinido do sistema, bem como, a partir de determinado
ponto de sua evoluo, a fuso entre Economia e Estado que caracterstica do
espetculo moderno: a explorao da fora de trabalho assalariada (trabalho-
mercadoria) em contradio com o desenvolvimento tcnico e a produo de valor
orientando todo o processo, isto , a constatao de que todo o sistema se fundamenta
na produo puramente quantitativa de mercadorias, o que Debord denuncia, dentre
outras coisas, com a constatao da baixa tendencial do valor de uso e na autonomia do
valor:
13
Ibidem, p. 48. 14
Ibidem, p. 49.
-
22
O valor de troca s pde se formar como agente do valor de uso, mas as armas de
sua vitria criaram as condies de sua dominao autnoma. Ao mobilizar todo
uso humano e ao assumir o monoplio da satisfao, ele conseguiu dirigir o uso. O
processo de troca identificou-se com os usos possveis, os sujeitou. O valor de
troca, condottiere do valor de uso, acaba guerreando por conta prpria (SdE, 46).
Em relao aos resultados da produo do capitalismo superdesenvolvido, a
crtica de Debord inovadora ao explicar como o sistema capitalista em sua etapa
histrica atual resolve a aparente contradio entre a produo de mercadorias baseada
na incorporao de trabalho vivo e a cada vez menor necessidade desse trabalho vivo no
processo. Segundo ele, isso se d com uma readequadao do uso do tempo, tendo em
vista que o espetculo realiza por completo, a partir de seus imperativos, seu sentido
como prtica social total. Se em sua forma mais desenvolvida o espetculo j no impe
como necessria a produo baseada na superexplorao dos trabalhadores, porque
agora o uso do tempo fora do trabalho ganha nova considerao. Trata-se, pois, de se
consumir todo o trabalho vendido que se afirma globalmente como mercadoria total
(SdE, 40). Como nos explica Debord:
Forma e contedo do espetculo so, de modo idntico, a justificativa total das
condies e dos fins do sistema existente. O espetculo tambm a presena
permanente dessa justificativa, como ocupao da maior parte do tempo vivido
fora da produo moderna (SdE, 6).
O espetculo se apresenta, portanto, como resultado histrico dessa afirmao
onipresente da escolha j feita na produo, e o consumo que decorre dessa escolha
(idem). O assim chamado setor tercirio acaba ento por ganhar nova dimenso na
organizao do sistema: agora a partir de sua crescente especializao que depende o
escoamento da produo em escala cada vez mais supercondicionada. Decorre da, com
isso, a necessidade tambm crescente de criao de pseudonecessidades (Debord) que
sejam condizentes com a prpria banalidade dessas mercadorias. O que fundamenta tal
produo no poderia ser outra coisa que o conhecido carter fantasmagrico da
mercadoria, resultado histrico da inverso que ela opera na sociedade:
O principio do fetichismo da mercadoria, a dominao da sociedade por coisas suprassensveis embora sensveis, se realiza completamente no espetculo, no qual o mundo sensvel substitudo por uma seleo de imagens que existe acima
dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensvel por excelncia
(SdE, 36).
-
23
Mas o fetichismo no deriva de outra coisa que do prprio carter peculiar do
trabalho abstrato que d origem s mercadorias, o trabalho voltado produo de valor.
Por sua determinao fundamental de estar orientado para a troca, no para a satisfao
de necessidades, o trabalho assalariado em larga escala acaba por realizar uma inverso
que confere mercadoria as caractersticas sociais dos trabalhos individuais que lhes
do origem. Nas palavras de Marx:
A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade
de valor dos produtos de trabalho, a medida do dispndio de fora de trabalho do
homem, por meio da durao, assume a forma da grandeza de valor dos produtos
de trabalho, finalmente, as relaes entre os produtores, em que aquelas
caractersticas sociais de seus trabalhos so ativadas, assumem a forma de uma
relao social entre os produtos de trabalho.15
O fetichismo, assim, pode ser entendido como expresso abstrata e elemento do
domnio das coisas sobre os homens, e o espetculo, por sua vez, o realiza de forma
plena, se colocando como perfeita expresso dessa abstrao que se verifica tanto em
cada trabalho particular quanto na esfera total da produo. Ele realiza a abstrao como
seu modo de ser concreto (SdE, 29) e pode ser entendido, com base nisso, como a
reconstruo material da iluso religiosa (SdE, 20). O espetculo assim se mostra
como a outra face do dinheiro, o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias
(SdE, 47), pois por meio dele a totalidade do uso se troca com a totalidade da
representao abstrata (idem).
Em Marx, a crtica do fetichismo pode ser entendida como uma verso mais
aprimorada da teoria da alienao que ele j havia esboado em seus Manuscritos de
1844. No que isso queira dizer que esta se encontra invalidada pela crtica presente em
O capital, mas, ao contrrio, de fato a confirma e a aprofunda. Ambas, de fato, acabam
por se complementar. Se o fetichismo o que confere s mercadorias autonomia em
relao aos prprios produtores que lhes deram origem, a teoria da alienao, por sua
vez, explica a objetividade opressora do mundo criado por essas mercadorias. Em
acordo com essa anlise, Debord explica da seguinte forma o fundamento do
espetculo:
O trabalhador no se produz a si mesmo, produz uma fora independente. O
sucesso dessa produo, sua abundncia, volta para o produtor como abundncia
15
Marx, K. O capital, So Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 71.
-
24
da despossesso. Com a acumulao de seus produtos alienados, o tempo e o
espao de seu mundo se tornam estranhos para ele. O espetculo o mapa desse
novo mundo, mapa que corresponde exatamente a seu territrio. As foras que nos
escapam mostram-se a ns em todo o seu vigor (SdE, 31).
Portanto, na raiz dessa abstrao social total est a essncia do modo de
produo mercantil: o conjunto de sua atividade voltada para a produo de valor, da
qual a diviso do trabalho correspondente tende cada vez mais em suas particularidades
racionalizao logo, reforo e manuteno de sua lgica de abstrao.
Certamente a diviso social do trabalho no surgiu com o modo de produo
capitalista, mas correto afirmar que nele essa diviso quantitativamente desenvolvida
a ponto de atingir outro nvel qualitativo, o que se manifesta tanto em consequncias
objetivas quanto subjetivas; a primeira tratando, logicamente, de realizaes materiais,
ao passo que a segunda, pela forma social mercantil da produo, diz respeito falsa
conscincia dos produtores acerca de sua relao com o processo produtivo e seus
resultados.
Na base dessa concluso est a importante afirmao de Marx de que as
diferentes propores, nas quais as diferentes espcies de trabalho so reduzidas a
trabalhos simples como unidade de medida, so fixadas, por meio de um processo
social por trs das costas dos produtores,16 lhes parecendo com isso dado pela
tradio. Mas para melhor entendermos o conjunto desse processo a que Marx faz
referncia, cabe ainda apresentar as categorias de aparncia e apario, presentes
primeiramente em Hegel, e que ele, Marx, retoma sobre bases materialistas em sua
crtica totalidade do sistema.
Aparncia e apario so categorias inseparveis do prprio mtodo dialtico,
portanto, fundamentais sua compreenso. Elas aparecem primeiramente em Hegel
na Cincia da lgica como momentos constituintes da Doutrina da essncia, ou seja,
do processo de autossuperao da razo absoluta em sua imediatidade, como Ser em si
(Doutrina do ser), para se efetivar como Ser em si e para si (Doutrina do conceito).
Sendo assim, nossa exposio dessa passagem visa a explicitar como se d esse
processo no prprio automovimento do absoluto, pela negatividade intrnseca essncia
do Ser, esta sem a qual no se pode pensar a categoria do devir, tendo em vista que
16
Ibidem, p. 52. Itlico nosso.
-
25
somente com base no jogo de foras que se d no interior do Ser mesmo que se pode
pensar sua autossuperao.
Portanto na Doutrina da essncia, livro segundo da Cincia da Lgica, que
encontramos os elementos que nos servem aos propsitos desse trabalho. Nela, Hegel
nos explica d seguinte forma as etapas desse desenvolvimento:
A essncia aparece [scheint] primeiramente em si mesma ou reflexo; em
segundo lugar ela aparece [erscheint]; em terceiro lugar ela se manifesta. Ela pe
em seu movimento nas seguintes determinaes:
como essncia simples, existente em si em suas determinaes no interior de si;
como saindo na existncia [Dasein] ou segundo sua existncia [Existenz] e
fenmeno [Erscheinung];
como essncia que uma com seu fenmeno, como efetividade [Wirklichkeit].17
Ao sair da imediatidade a essncia pe um outro diante de si, por meio da qual
se reflete, ou seja, se reconhece como essncia e em referncia ao qual pode afastar-se
para realizar as determinaes que j trazia em si. Mas estando a essncia inseparvel de
si mesma, esse outro que se coloca diante dela s pode ser uma inessncia, uma
iluso, ou precisamente o que Hegel chama de aparncia. Esta , portanto, o que
sobra como resultado desse primeiro momento de autossuperao da essncia.
Apario (ou fenmeno), por sua vez, seria a essncia ao afirmar-se como existncia.
Para Hegel, portanto, a apario (Erscheinung) e, como resultado dela, a aparncia
(Schein) no finito so na verdade a forma de realizao do infinito, a forma em que
este vem aparncia (ou seja, erscheint) tendo em vista que buscar compreender um
separado do outro seria impor limites ao conhecimento de ambos. essa relao de
igualdade entre ser e pensar, ou seja, o mundo como um conjunto de determinaes da
razo universal como princpio infinito criador e autoconsciente, que permite
compreender a finitude como dotada de verdade, no como finitude, mas somente nessa
relao; o que se expressa no clebre aforisma presente em seus Princpios da filosofia
do Direito em que ele afirma que o que racional real e o que real racional.18
Marx, por outro lado, ainda que entendendo o domnio da mercadoria sobre o
mundo com a perspectiva materialista diametralmente oposta ao idealismo hegeliano,
essa que tenta explicar a nova sociedade como momento histrico de realizao da
17
Hegel, W. F. Cincia da Lgica [excertos], So Paulo: Barcarolla, 2011, p. 106. 18
Hegel, W. F. Princpios da Filosofia do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2003, Prefcio, p. xxvi.
-
26
razo lgica no mundo, ao retomar essas categorias numa perspectiva crtica, no
diferencia os traos gerais da compreenso destas de modo to radical. Ressignificando
o mesmo esquema de desenvolvimento apresentado por Hegel, para ele, a essncia
agora diz respeito esfera da produo de capital, enquanto aparncia e apario so
entendidas como correspondentes respectivamente circulao mercantil e aos
resultados do processo como um todo. Por essa perspectiva, ele vai avanar a exposio
do carter fetichista da mercadoria ao mostrar como, no processo de circulao de
mercadorias, o dinheiro ganha a autonomia face aos envolvidos no processo de compra
e venda. Segundo Marx, o duplo carter do dinheiro reflexo do duplo carter da
mercadoria , ou seja, o de ser meio circulante (na circulao simples de mercadoria, M
D M) e o de ser capital (na circulao do dinheiro como capital, D M D), o
elemento por meio do qual se oculta a prpria funo das mercadorias como valores de
uso. Podemos ver pelos esquemas ilustrativos que do ponto de vista do produtor o
dinheiro apenas meio para satisfao de necessidades (M D M), enquanto que,
tomado como ponto de partida, s faz sentido que ele seja colocado no circuito se em
retorno obtiver uma quantidade maior que a empregada incialmente (D M D). E
precisamente aqui onde se percebe que a circulao de mercadorias distingue-se no s
formalmente, mas tambm essencialmente, do intercambio direto de produtos,19 pois,
de fato, o dinheiro no desaparece ao realizar sua funo de meio circulante, como
mostra o primeiro esquema. Como nos mostra Marx:
Por exemplo, na metamorfose total do linho: linho dinheiro Bblia, primeiro sai o linho da circulao e o dinheiro ocupa seu lugar; depois sai a Bblia e o dinheiro
ocupa seu lugar. A substituio de mercadoria por mercadoria deixa, ao mesmo
tempo, a mercadoria monetria nas mos de um terceiro. A circulao exsuda,
constantemente, dinheiro.20
Constata-se assim a distino entre a circulao capitalista e a troca simples:
enquanto esta se realiza efetivamente como uma relao entre dois envolvidos
diretamente, a circulao de mercadorias, ao contrrio, se mostra como circulao de
capital, o que acaba por evidenciar o circuito de um nmero incalculvel e cada vez
mais abrangente de vnculos criados em mbito social cujos atores envolvidos no
podem controlar. Marx pode ento afirmar que dessa forma bilateral das mercadorias o
dinheiro possa se evidenciar como elemento autnomo a partir de sua forma unilateral
19
Marx. K., O capital, So Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 99. 20
Ibidem.
-
27
no processo de circulao, o que precisamente caracteriza uma aparncia contrria que
de fato esconde a real essncia do processo. De fato, o que demonstra a comparao
entre os dois esquemas acima, tendo em vista que na iluso do dinheiro como simples
meio circulante se esconde o fato de ser ele capital, portanto, meio de acumulao do
prprio capital, ou seja, valor que se valoriza. Nas palavras dele:
Fixadas as particularidades de apario, que o valor que se valoriza assume
alternativamente no ciclo de sua vida, ento se obtm as explicaes: capital
dinheiro, capital mercadoria. De fato, porm, o valor se torna aqui o sujeito de
um processo em que ele, por meio de uma mudana constante das formas de
dinheiro e mercadoria, modifica a sua prpria grandeza, enquanto mais-valia se
repele de si mesmo enquanto valor original, se autovaloriza. Pois o movimento,
pelo qual ele adiciona mais-valia, seu prprio movimento, sua valorizao,
portanto autovalorizao. Ele recebeu a qualidade oculta de gerar valor porque ele
valor. Ele pare filhotes vivos ou ao menos pe ovos de ouro.21
Como resultado da autovalorizao do valor, o dinheiro, em suas
particularidades prprias a seu pertencimento circulao capitalista, revela-se ento
no resumido sua funo de meio circulante, mas como a primeira forma de apario
do capital.22 Em contrapartida, o resultado concentrado do trabalho social, no
momento da abundncia econmica, torna-se aparente e submete toda realidade
aparncia, que agora o seu produto (SdE, 50). Como aparncia, o espetculo a
presena permanente da justificativa total das condies e dos fins do sistema
existente (SdE, 6); seu produtor e seu produto. Ele no legitima apenas esse modo
de produo, mas seu modo de consumo. Assim, no domina os homens apenas quando
estes assumem o papel de vendedores da prpria mo de obra nas condies irracionais
do mercado, mas em sua prpria vida cotidiana, por meio das imagens do capital.
Mas o espetculo no um conjunto de imagens, um conjunto de relaes
sociais mediado por imagens (SdE, 4). De fato, somente como tal que ele pode
afirmar sua autonomia e submeter toda realidade aparncia, que agora o seu
produto (SdE, 50), tornando-se ele mesmo aparncia do capital. O espetculo,
portanto, como resultado da superabundncia artificial, mais que a humanidade a
servio do pseudo-uso da mercadoria, ele o dinheiro que apenas se olha (SdE, 49),
ou seja, a afirmao da passividade que acompanha todo o processo de abstrao da
atividade produtora e que a refora. Em outras palavras, ele a afirmao da aparncia
21
Ibidem, p. 130. Itlico nosso. 22
Ibidem, p. 125.
-
28
e a afirmao de toda vida humana isto , social como simples aparncia (SdE,
10), ou ainda, o capital em tal grau de acumulao que se torna imagem (SdE, 34).
Mas ora, como sentido do domnio da mercadoria, o espetculo pode ser ainda
entendido como o arcasmo tecnicamente-equipado, arcasmo este expresso na
reintroduo formal e aparente de modos de experincia tradicionais, ps-modernos na
prpria experincia moderna.23 Dessa reintroduo se pode afirmar que formal e
aparente na medida em que ela determinada sobre novas bases histricas, mas nem
por isso menos concreta e real,24 e isso que nos permite compreender, por exemplo, o
aspecto mais manifesto desse domnio isto , o tempo pseudocclico do consumo ,
pois por meio do reuso do tempo e, num sentido mais amplo, do controle da vida
cotidiana operado pela mercadoria, a compreenso crtica do espetculo tambm a
compreenso de que na sociedade moderna o mais moderno a tambm o mais
arcaico (SdE, 23).
Essa explicao, todavia, no contradiz a retomada da perspectiva de Lukcs
que, explicando a diferena entre uma sociedade onde a forma mercadoria aparece de
forma espordica e outra em que ela j se encontra completamente desenvolvida, afirma
que o conjunto dos fenmenos, subjetivos e objetivos, das sociedades em questo
adquire, de acordo com essa diferena, formas de objetividade qualitativamente
diferentes.25 Isso porque o espetculo como efetivao histrica do domnio da
mercadoria sobre o mundo se afirma sobre esse mundo efetivamente como ideologia. E
so as exatas formas de manifestao dessa ideologia, objetivas e subjetivas, tal qual
Debord as compreende, de que nos ocuparemos no tpico seguinte.
1.2. Espetculo e ideologia
Da mesma forma que se pode afirmar que espetculo economia, possvel
dizer tambm que o espetculo ideologia. Mas antes de qualquer concluso
precipitada, necessrio investigar como isso ocorre, fugindo de qualquer simplificao
que essa afirmao possa aparentemente aduzir. De fato, no momento histrico da
autonomia das foras produtivas sobre o conjunto do mundo prtico, o espetculo s
pode justificar seu domnio no momento em que se entende que ele tambm
23
Aquino, E. F., Reificao e linguagem em Guy Debord, Fortaleza: Editora da UECE, 2006, p. 67. 24
Ibidem. 25
Lukcs, G. Histria e conscincia de classe. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 195.
-
29
fundamentalmente um conjunto de tcnicas de poder, dentre as quais a ideologia assume
papel central. Equivale, portanto, a dizer que o conjunto dessas tcnicas de poder
(objetivas e subjetivas) no pode ser pensado fora de sua relao com a economia
inicialmente por duas razes: primeiro, porque as formas de conscincia que podemos
associar ao espetculo no so apenas seu resultado, mas tambm jogam papel decisivo
na sua manuteno; segundo, porque as tcnicas de poder espetacular, podendo ser
entendidas tambm como caractersticas do(s) modelo(s) de Estado que lhe (so)
prprio(s), tm origem no resultado das lutas de contestao dessa ordem, que no so
outra coisa que o conjunto das lutas de classes mais significativas de uma poca
histrica decisiva.26
Uma vez entendido que a produo da conscincia, tanto em seu carter geral
quanto individual, no pode ser pensada seno como uma nica coisa em conjunto com
a totalidade da produo do mundo prtico de uma sociedade, no h obstculos para
que possamos afirmar que no espetculo, imagem da economia reinante (SdE, 14),
esta onde o fim no nada, o desenrolar tudo (idem), quer dizer, onde a economia
pde de maneira efetiva se alienar completamente do conjunto da sociedade, a(s)
ideologia(s) que lhe serve(m) de suporte ganha(m) contornos que no podem de
maneira alguma ser ignoradas por uma teoria seriamente crtica. Atento a esse fato,
Debord busca em sua reviso da teoria revolucionria dedicar a este elemento a devida
importncia, o que podemos atestar de maneira evidente quando ele chega a definir o
espetculo como a ideologia por excelncia (SdE, 215).
Mas afirmar h tambm de se ter em vista que falar do espetculo como
ideologia no apenas tratar das formas de conscincia que o caracterizam, pois o
espetculo como ideologia tambm o conjunto de determinaes por meio das quais
essa ideologia aparece, ou seja, se afirma sobre o real ao se fazer real. Dito isso,
tomamos como nosso ponto de partida para a crtica da ideologia a categoria da
separao to fundamental a Debord em sua referncia mais direta, o pensamento de
Marx, sendo interessante considerar que ainda que na Ideologia alem a crtica aos
jovens hegelianos, entendidos como grupo ideolgico, seja de ordem diferente daquela
que o autor de A sociedade do espetculo procura desenvolver com relao ao sistema
26
desse assunto que trataremos no captulo seguinte.
-
30
capitalista, pode-se dizer que elas se assemelham enormemente. Prova disso que ainda
que no se encontre em Marx (e, na verdade, nem em Debord) uma elaborao
definitiva do conceito de ideologia, observamos que o entendimento dessa categoria est
fundamentalmente baseada na separao entre teoria e prxis, que Marx explica, j em
A ideologia alem, nos seguintes termos: a diviso do trabalho torna-se realmente
diviso apenas a partir do momento em que surge uma diviso entre o trabalho material
e o espiritual.27 Com isso, ele conclui que, somente a partir dessa dissociao, a
conscincia pode realmente imaginar ser algo diferente da conscincia da prxis
existente, representar realmente algo sem representar algo real.28
De fato, como conscincia deformada, a ideologia em Debord tambm traz
de A ideologia alem trs elementos que no se separam. Primeiro, a concepo crtica
negativa de ideologia, ou seja, de esta ser para o idelogo uma apreenso invertida da
realidade; segundo, que esse modo invertido de ver o mundo guarda fortes relaes com
o idealismo;29
e, por ltimo, que a ideologia na verdade se explica e se constitui na e
pela prxis invertida que se encontra em sua base. Mais ainda, na verdade: ideologia que
como prxis, se faz prxis o que Debord entende como a ideologia materializada do
espetculo.
Em Marx podemos entender perfeitamente a correlao entre essas duas
categorias fundamentais, separao e inverso, por exemplo, quando ele afirma em sua
Introduo contribuio crtica da filosofia do direito de Hegel que no apenas a
religio no faz o homem, mas, sendo o homem o mundo do homem e o Estado sua
coletividade, este Estado e esta sociedade produzem a religio, uma conscincia
invertida do mundo, porque eles so um mundo invertido.30 Ora, o mundo da prxis
efetivamente invertida, como Marx o entende, o mundo do trabalho alienado, da
separao entre o produtor e seu mundo pela alienao. Mas no apenas isso. A
ideologia como expresso do mundo invertido no se isola desse mundo, e age sobre
ele, o que o mesmo que dizer que a conscincia que se emancipa e est em
contradio com o modo de produo existente no constitui somente religies e
27
Marx, K. O capital, So Paulo: Nova Cultural, 1983, p. 44-45. 28
Ibidem, p. 45. 29
O espetculo no realiza a filosofia, ele filosofia a realidade. A vida concreta de todos se degradou em universo especulativo (SdE, 19). 30
Marx, K. Contribuio crtica da filosofia do direito de Hegel, introduo. In: Manuscritos
econmico-filosficos, So Paulo: Martin Claret, 2005, p. 45.
-
31
filosofias, mas tambm Estados.31 desta constatao que decorre o carter radical da
teoria de Marx, tambm presente em Debord: a crtica da ideologia no apenas se limita
s formas de conscincia em si e ao mundo que elas legitimam e constroem, mas antes
de tudo, ela a crtica do mundo do qual essas formas de conscincia so reflexo, o
mundo invertido que elas espelham. A crtica, consequente, entende que s com o fim
do mundo da separao possvel pr fim ideologia.
importante ressaltar e isso tambm est de acordo com a teoria de Debord
que, contrariamente s interpretaes simplistas da obra de Marx (e Engels), este nunca
reduziu sua concepo de ideologia ideologia econmica fundamental da sociedade
burguesa. Para a crtica de Marx valem apenas as formas de conscincia filosficas,
jurdicas, polticas, religiosas e estticas em determinadas condies, como nos explica
Korsch. Segundo este:
A ideologia somente a conscincia invertida (verkehrte), particularmente aquela
que atribui a um fenmeno parcial da vida social uma existncia autnoma por exemplo, as relaes jurdicas e polticas que consideram o direito e o Estado como
poderes autnomos que pairam acima da sociedade.32
Podemos ento apontar como diferena fundamental entre os dois pensadores o
fato de que embora Marx tenha lanado as bases para uma crtica abrangente da
ideologia, bem sabido que com ele, no entanto, essa crtica direcionada quele grupo
de pensadores idealistas que passa histria como a esquerda hegeliana.33
Deste modo,
cabe a Debord a tarefa de lev-la as suas derradeiras consequncias, como crtica tanto
de uma forma global de compreenso e ao sobre o mundo, quanto do prprio
movimento autnomo do no-vivo (SdE, 2), isto , seu retorno como ideologia
materializada, que se expressa na mais cruel das verdades como a absurda e desumana
inverso concreta da vida (idem). Dito de outra forma, afirmar o mundo como
construo derradeira da separao na figura do espetculo o mesmo que dizer que a
ideologia est em casa (SdE, 217), pois o mundo do espetculo o mundo que a
31
Ibidem, p. 46. Itlico nosso. 32
Korsch, K. Marxismo e filosofia, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008, p. 55. 33
Todavia esclarecendo que em Marx a crtica da ideologia no se limita a isso, pois Marx e Engels a
explicam com base na prxis social invertida. Ademais, ainda que dentro do limite de sua crtica da
ideologia, isto , de no t-la desenvolvido posteriormente de modo sistematizado, podemos ver a
importncia deste momento da obra de Marx em termos das possibilidades a partir de ento abertas na
afirmao de Gabel de que ele, Marx, aparece no s como um dos fundadores da psicologia poltica, mas como precursor num outro domnio: o do estudo do pensamento de-realista, fenmeno geral onde o
pensamento delirante em psicopatologia constitui um aspecto (GABEL, 1979, p. 83).
-
32
ideologia faz ver (SdE, 37).34 A ideologia, portanto, como expresso e instrumento
de poder prpria a este mundo invertido em sua totalidade que o espetculo, deve ser
entendida tambm como algo qualitativamente diferente. Se o espetculo a realizao
sistemtica da separao, da perda da unidade do mundo, a ideologia agora uma viso
de mundo objetivada, ou, segundo Debord, uma Weltanschauung que se tornou efetiva,
materialmente traduzida (SdE, 5). Essa afirmao nos evidencia mais uma vez a
relao indissocivel entre espetculo e economia, pois este pensado para alm de suas
caractersticas materiais, ou seja, agora referido em seu aspecto abstrato, no um
suplemento do mundo real, uma decorao que lhe acrescentada (SdE, 6), mas
precisamente o mago do irrealismo da sociedade real (idem).
Mas sigamos adiante. Considerando que tratamos at aqui de explicitar a base
material da ideologia e as bases tericas de sua crtica na compreenso de Debord, nos
interessa ainda apresentar as caractersticas particulares dessa concepo de ideologia e
as referncias para tal.
Sabemos que Debord est de acordo com os traos gerais da anlise de Lukcs
acerca do problema da conscincia reificada, da forma que este a apresenta
precisamente na primeira das trs partes de seu ensaio Reificao e conscincia do
proletariado (a saber, O problema da reificao), presente em Histria e conscincia
de classe. Ali, Lukcs no apenas explora os aspectos econmicos do capitalismo
moderno, mas vai alm ao explicitar as caractersticas que, segundo ele, so prprias
(s) forma(s) de falsa conscincia a ele correspondente(s), a conscincia reificada. O
ponto de partida de Lukcs que as transformaes que o domnio da mercadoria
condiciona em escala universal, a partir de sua lgica expressa no trabalho alienado, no
se refletem apenas como materializaes objetivas, mas tem tambm no aspecto
subjetivo um papel importante. Isto se explica pelo fato, que j apontamos mais acima,
de que esses condicionamentos na ordem da percepo tendem a reforar os
mecanismos que foram sua causa num momento anterior. Ou como ele nos explica:
A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto
objetivo quanto sob o subjetivo, uma abstrao do trabalho humano que se objetiva
34
O espetculo como tendncia a fazer ver (por diferentes mediaes especializadas) o mundo que j no se pode tocar diretamente, serve-se da viso como sentido privilegiado da pessoa humana o que em outras pocas fora o tato; o sentido mais abstrato, e mais sujeito mistificao, corresponde abstrao
generalizada da sociedade atual (SdE, 18).
-
33
nas mercadorias. (Por outro lado, sua possibilidade histrica mais vez (sic)
condicionada pela realizao real desse processo de abstrao.)35
Mas de que trata a conscincia reificada, a qual se refere Lukcs? Ou melhor,
quais so suas caractersticas? Segundo ele, essa conscincia reificada aquela de tipo
no dialtico, o que implica uma considerao fundamental: a perda da perspectiva da
totalidade. E isto pode ser entendido sob dois aspectos: pensada no espao da produo
ela tanto a perda da totalidade do processo produtivo quanto perda da perspectiva
histrica, o que configura, como resultado, uma conscincia essencialmente
contemplativa face ao mundo ao qual ela pertence. Por sua vez, a contemplao,
compreendida como categoria, deve ser entendida no (apenas) como a incapacidade de
perceber o desenrolar do movimento social na qual se est inserido, mas a prpria
impossibilidade de se guiar os rumos desse processo.36
Trata-se, portanto, de uma
posio prtica frente objetividade opressora do mundo da mercadoria e suas leis
autnomas, e essa perspectiva que permite a Debord afirmar que a conscincia
espectadora, prisioneira de um universo achatado, limitado pela tela do espetculo, para
trs da qual sua prpria vida foi deportada (SdE, 218) esta que s capaz de
reconhece os interlocutores fictcios (idem) que a entretm num falso dilogo que em
essncia apenas o discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma,
seu monlogo laudatrio (SdE, 24).
Para Lukcs, o trabalho assalariado, a atividade prtica separada por e nessa
estrutura alienante do capital se realiza como qualquer outra mercadoria, ou seja, por
meio de sua venda, o que garante a possibilidade de acesso a outros bens destinados a
35
Lukcs, G. Histria e conscincia de classe, So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 200. 36
Celso Frederico considera como equvoco que Debord compartilhe com Lukcs essa concepo de
conscincia contemplativa, afirmando que a atividade prtica da burguesia no tem nada de contemplativa, como atestam, por exemplo, o planejamento na economia; os experimentos no interior da
indstria; e a ao ideolgica programada pelos meios de comunicao (2010, p. 241). Por outro lado, afirma que a conscincia operria permanece separada da conscincia emprica dos operrios, tratando-
se, portanto, de uma conscincia atribuda, imposta, que existe quase como idealidade. De fato, quanto
conscincia burguesa, todas estas observaes esto corretas e em nada se ope a distino entre
ideologia e falsa conscincia, expresso da separao na sociedade espetacular. Porm, ainda que ativa, a conscincia burguesa no consegue pensar alm dos limites da sociedade que a origina e condiciona, o
que equivale a dizer que continuam a reproduzir a histria de forma inconsciente, determinada por leis que ela, a conscincia burguesa, cria, no momento de sua atividade prtica, mas no consegue controlar;
ou seja, permanece, no sentido mais profundo que a tematizam Lukcs e Debord, contemplativa. Quanto
conscincia operria em carter separado, esta tema da prpria autocrtica posterior de Lukcs e
certamente Debord no a retoma. Se o fizesse, contradiria toda sua crtica fundada nessa mesma
separao. Para ele, a conscincia revolucionria s pode surgir em unidade com a luta, o que pressupe a
negao das prprias formas de organizao tradicionais, dentre as quais o partido, este que Lukcs se
esfora em defender em HCC.
-
34
satisfao de necessidades. Mas somente como mercadoria que essa atividade pode
estar inteiramente submissa s leis sociais objetivas do mundo que ela mesma construiu
em sua contemplao. S a esto dadas as condies para a realizao da verdadeira
metafsica: o domnio das criaes deformadas do intelecto sobre o mundo humano
sensvel.
Portanto, com a consolidao do trabalho assalariado em nvel mundial que se
pode pensar tambm a efetivao no mundo da abstrao que est em sua origem e
que tambm seu resultado. Equivale a dizer que no e pelo movimento indefinido do
capital, na imediatidade das relaes mercantis como aparncias do capital, que a
conscincia capaz de perder a capacidade de apreender todo o aspecto fluido da vida, a
prpria caracterstica dialtica do tempo. Sem essa compreenso, a conscincia cativa
das armadilhas histrico-sociais que ela mesma criou atua reforando os mecanismos
que a aprisionam e assim incapaz de se configurar como conscincia histrica, esta
que permita vislumbrar a superao da sociedade burguesa ao compreend-la como
criao histrica determinada capaz, portanto, de ser superada como ltimo horizonte
possvel.
Podemos ento concluir o seguinte a respeito da teoria da mente reificada de
Lukcs: em primeiro lugar, sob sua perspectiva, fica claro que uma teoria crtica
revolucionria no pode de maneira nenhuma desconsiderar o aspecto da conscincia,
como ele de fato no ignora em HCC. Por conseguinte, podemos dizer ainda, com base
nos estudos de Joseph Gabel autor de A falsa conscincia , que Lukcs representa
uma primeira aproximao entre a crtica da sociedade mercantil e as conquistas no
campo da investigao psicanaltica. A contribuio de Lukcs neste campo no poderia
passar despercebida por algum pesquisador da rea clnica que estivesse tambm atento
aos avanos no campo da crtica social e foi exatamente o que ocorreu cerca de quatro
dcadas depois do lanamento de Histria e conscincia de classe justamente com a
publicao, em 1962, de A falsa conscincia. Nesta obra, o filsofo e socilogo hngaro
se prope a avanar as anlises iniciadas por Lukcs em HCC ao relacionar a
conscincia reificada em nvel social, particularmente no estudo do racismo e do duplo
ideologia/utopia, com o que o prprio Gabel define como o caso particular clnico dessa
conscincia reificada: a esquizofrenia. Para tal, Gabel acredita encontrar na dialtica de
-
35
Lukcs os elementos que a habilitam a atuar como denominador comum para isto que
ele define como paralelismo sociopatolgico,37 retomando uma expresso de H.
Aubin. A concepo de dialtica do autor de HCC atende, portanto, s seguintes
exigncias da proposta de Gabel:
(a) de servir de denominador comum s diferentes formas de ideologia; (b) permitir
uma definio e uma delimitao precisas dos conceitos de ideologia e falsa
conscincia, e (c) de definir um setor comum alienao individual (clnica) e
alienao social.38
Sob a perspectiva da crtica da conscincia antidialtica, o que interessa a Gabel
abarcar uma gama maior de problemas que aqueles assinalados por Lukcs em HCC.
Para Gabel, portanto, interessam, alm da conscincia dialtica de tipo econmico e de
tipo clnico, os diferentes aspectos da alienao poltica e, em certa medida, do
desenvolvimento psicolgico da criana. Contrariamente, para Lukcs a estrutura
reificada da conscincia que ganha status de categoria fundamental da sociedade.39
Isso, segundo ele, se d justamente pelo fato da conscincia estar em especial relao
com o campo da produo econmica, de modo que a estrutura reificada seria em
grande medida determinada pelos aspectos quantitativo e abstrato da calculabilidade,
estes que encontram nas relaes mercantis suas formas mais genunas40
e que
dificultam conscincia a capacidade de apreenso do movimento geral do mundo
(conferindo-lhe, portanto, a caracterstica antidialtica), levando-a no apenas a
desconsiderar a possibilidade de superao do sistema produtor de mercadorias, mas,
alm disso, eternizando o imediatismo das relaes mercantis cotidianamente a partir
da busca de sua sintetizao num sistema de leis que possam ser apreendidas por esta
conscincia em suas limitaes.
Gabel procura demarcar de maneira bastante precisa os conceitos de falsa
conscincia e ideologia, definindo primeiramente o que elas tm em comum, ou seja, o
fato de serem duas formas de apreenso no dialtica (reificada) de realidades
dialticas; ou, dito com outras palavras, dois aspectos (melhor ainda: dois graus) da
recusa da dialtica41. Com base nisso, determina ainda que, apesar desse elemento
37
Gabel, J. A falsa conscincia, Lisboa: Guimares & Cia, 1979, p. 70. 38
Ibidem, p. 95. 39
Lukcs, G. Histria e conscincia de classe, So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221. 40
Ibidem, p. 211. 41
Gabel, J. A falsa conscincia, Lisboa: Guimares & Cia, 1979, p. 88.
-
36
comum, a falsa conscincia se constitui de um estado de esprito difuso,42 ao passo
que ideologia uma cristalizao terica.43 Podemos tomar o nazismo como exemplo,
como o faz o prprio Gabel, para entender essa distino conceitual. Vejamos: a
Alemanha do perodo imediatamente posterior primeira guerra mundial tinha, de um
lado, sua economia devastada pelos resultados da guerra (desemprego; hiperinflao no
binio 1922/1923, perda de territrio e dvida externa, de acordo com os termos do
Tratado de Versalhes etc). De outro, a socialdemocracia, maior representao da
esquerda oficial, encontrava-se desmoralizada dentre outras coisas por ter ela mesma
sido um dos elementos fundamentais para a entrada do pas no combate e ter sido
responsvel tambm pelo sufocamento do movimento revolucionrio espartaquista,
envolvendo-se no assassinato de seus principais lderes, Rosa Luxemburg e Karl
Liebknecht. Em tal situao catica, a sociedade encontrava-se em posio de completa
fragilidade e em tal perspectiva de falsa conscincia extremada, de total incapacidade de
se colocar em autoanlise de maneira racional, que daria como de fato deu quele(s)
que melhor representasse(m) os anseios coletivos a posio privilegiada de controle
ou, de acordo com a perspectiva de Gabel, a imposio de sua ideologia. Foi assim que
os alemes viram o Partido Nacional Socialista eleger Adolf Hitler como seu chanceler
em 1933, depois de uma escalada de alguns anos saindo da completa inexpressividade
poltica.
A ideologia nazista, por sua vez, tinha no seu discurso a imagem de uma
Alemanha forte e unida rumo recuperao dos horrores da guerra com base nos
valores da famlia e da tradio germnica. Na prtica, todavia, no passava de um
esforo de recuperao do capital nacional, tendo o partido nazista chegado ao poder
muito graas ao apoio das foras polticas e econmicas conservadoras do pas. Hitler,
assumindo o papel de figura capaz de canalizar as angstias e anseios do povo alemo
com seu projeto conservador, deveria estar frente apenas na medida em que pudesse
ser um elemento facilmente controlvel por tais foras, quando eleito chanceler, tendo
ainda um gabinete ministerial acima dele em atribuies. A ideia inicial era lgico, que
os nazistas fossem tambm minoria nesse rgo. Mas, pelo que nos conta a histria, as
42
Ibidem. 43
Ibidem.
-
37
coisas no saram como planejado... No se esperava que os nazistas fossem to
consequentes em seus objetivos...44
Mas, voltando nossa questo anterior, no podemos perder de vista que Gabel
se recusa a entender o problema da ideologia como uma questo de razes econmicas
(o que permite na verdade seu paralelo entre conscincia antidialtica de mbito social e
esquizofrenia). Seu interesse abarcar um conjunto de problemas que ele acredita
escaparem anlise de Lukcs, e preciso ter isso em mente para entender o desvio de
Debord dessas duas perspectivas, tendo em vista que o que est em questo para ele no
exatamente uma crtica da ideologia em primeiro plano, mas desta como um aspecto
que no se separa da crtica sistemtica da sociedade mercantil superdesenvolvida. Ou
seja, se a crtica desta sociedade a crtica de seus fundamentos, a anlise crtica da
ideologia que aqui entra em jogo deve ser entendida sob esta perspectiva, como estando
diretamente relacionada a esse aspecto. Assim, ainda que aceite a distino entre falsa
conscincia e ideologia nos mesmos termos de Gabel, Debord pode falar em ideologia
total (esta em sentido similar ao assinalado por Manheim45) do espetculo, ou seja,
ideologia como despotismo deste fragmento que se impe como pseudo-saber de um
44
O nazismo como exemplo de ideologia social tomado aqui em referncia obra de Gabel, tendo em
vista que uma de suas preocupaes entender as condies para ascenso do pensamento ideolgico
autoritrio. Na perspectiva de Debord, no entanto, a ideologia fascista (o exemplo italiano incluso) no se
configura como exemplo do que ele entende como o espetacular concentrado, a face autoritria da
ideologia do espetculo e da qual falaremos no prximo captulo. Segundo ele, ainda que copie dos
bolcheviques a forma de organizao totalitria do partido, o fenmeno fascista, no entanto, no
fundamentalmente ideolgico. As condies em que surge so seu ponto de diferenciao. Sua funo
no promover o desenvolvimento econmico com base em uma mentira ideolgica, mas colocar-se
como um elemento de racionalizao de emergncia (SdE, 109) de um polo antes desenvolvido. Assim, sua ideologia se constitui na verdade de uma ressureio violenta do mito, configurando-o como o arcasmo tecnicamente equipado, j que se apoia em valores tradicionais burgueses desmentindo a prpria histria na negao do fato de que a mercadoria em sua expanso geral j havia promovido a
derrubada da organizao mtica de valores da sociedade. Todavia no se pode desconsiderar a
importncia do fenmeno fascista como fundamental prpria constituio do espetculo, notadamente
em seu papel de destruio dos restos do antigo movimento operrio no perodo entreguerras. 45
Aqui nos referimos ideologia de uma poca, de um grupo histrico-social concreto por exemplo, de uma classe quando queremos falar das caractersticas e da estrutura total do esprito dessa poca ou desse grupo (MANHEIM, 1954, p. 51-52). Gabel nos apresenta ainda a distino entre os conceitos parcial e total de ideologia, com base em
Manheim. Segundo ele: 1) o conceito parcial visa uma parte das convices do adversrio, enquanto o conceito total visa a totalidade da sua concepo de mundo (Weltanschauung); 2) o conceito parcial
analisa a ideologia adversa no plano psicolgico, o conceito total no plano terico ou nosolgico; 3) o
conceito parcial tributrio de uma psicolgica de interesses, o conceito total opera com a ajuda de uma
anlise funcional (do meu ponto de vista estrutural) (GABEL, 1979, p. 94). Com base nisto, Gabel afirma que o conceito de ideologia total o nico que pode ser corolrio da falsa conscincia e com o
prprio materialismo histrico dialtico, mas aponta a crtica ideolgica de Marx como muito mais
prxima do conceito de ideologia parcial, tendo em vista que muitas vezes pressupe certa mistificao
voluntria.
-
38
todo esttico, viso totalitria que se realiza no espetculo imobilizado da no-
histria (SdE, 214); a ideologia em sua forma materializada.
A contrapartida da ideologia como pensamento separado da prtica
precisamente sua afirmao como pensamento totalitrio separado. O espetculo pode
ento ser entendido em seu duplo movimento: como produto e como produtor do mundo
vigente. Ora, o espetculo entendido como enorme positividade, indiscutvel e
inacessvel (SdE, 12) no pode ser algo esttico. Seu modo de ser a abstrao, mas
seu domnio objetivo. No por acaso, a ideologia que ele mostra em sua verso mais
rude no se separa de seu poder de polcia, sua violncia legtima com fins de controle.
Por outro lado, onde o espetculo se mostra mais desenvolvido, a forma genuna de
materializao de sua ideologia precisamente o seu poder de se fazer ver, o mundo
da mercadoria em todo seu esplendor.
Como resultado da realizao da mercadoria em nvel global, toda realidade
individual se torna social sob a condio de ser diretamente dependente da fora social,
moldada por ela (SdE, 17). Assim se estabelece a dupla relao: a realidade surge
do espetculo, e o espetculo real (SdE, 11) e compreendemos, portanto, porque
para Debord, a ideologia se confunde com o prprio espetculo. Se este o autorretrato
do poder na poca de sua gesto totalitria das condies de existncia (SdE, 24), a
ideologia , sob todas as suas manifestaes, a prpria objetivao desse poder de
controle. Ela pode tanto se manifestar como aparncia fetichista, escondendo a
verdadeira natureza da relao social dos homens e classes em que se encontra cindida a
sociedade (imagens), quanto pode ser a fora de coao junto queles que ousam
questionar sua gerncia.
Mas a ideologia espetacular encontra sua coeso precisamente onde ela j no
mais existe, entre os homens. Como Debord nos explica:
O espetculo a conservao da inconscincia na mudana prtica das condies
de existncia. Ele seu prprio produt