Espelhos Sem Imagens Mimesis e Reconhecimento Em Lacan e Adorno - Vladmir Safatle
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Espelhos sem imagens: mimesis e reconhecimento em Lacan e Adorno1
Mirrors without images: Lacan and Adorno on mimesisand
recognition
Vladimir Safatle2
RESUMO
Trata-se de analisar os usos da racionalidade mimtica em Jacques Lacan e Theodor
Adorno, isto a fim de mostrar como, nos dois casos, encontramos uma estratgia de
reflexo sobre a mimesis que a eleva condio de elemento fundamental para uma
teoria do reconhecimento que no se esgote na temtica da intersubjetividade. Neste
sentido, este estudo insere-se em uma pesquisa mais ampla a respeito dos modos de
aproximao entre psicanlise lacaniana e Escola de Frankfurt no que diz respeito ao problema dos destinos da categoria de sujeito e dos processos de reconhecimento.
Palavras-chave: mimesis, reconhecimento, intersubjetividade, natureza, sujeito, objeto.
ABSTRACT
This article aims to understand the uses of mimetic rationality in Jacques Lacan and
Theodor Adorno. Its try to shows that we have, in both cases, a endeavor to
transform mimesis in the ground for a theory of recognition that is beyond
intersubjectivitys motives. This article is a part of a most global study about the
relationships between lacanian psychoanalysis and Frankfurt School concerning the destiny of concepts like: subject and recognition.
Keywords: Mimesis, recognition, intersubjectivity, nature, subject, object.
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Mne-moi vers la vie
Au-del de la grille basse
Qui me spare de moi mme
Qui divise tout sauf mes cendres
Sauf la terreur que j'ai de moi.
Paul luard
A histria da relao entre filosofia e psicanlise conheceu, na Frana e na Alemanha,
seus dois momentos maiores. Aceita-se normalmente que tais experincias intelectuais
engendraram destinos absolutamente distintos e sem dispositivos comuns de anlise.
Na Alemanha, a confrontao entre filosofia e psicanlise foi levada a cabo pela Escola
de Frankfurt, com sua estratgia de reintroduo das descobertas freudianas no
interior da histria das idias. Na Frana, o recurso filosfico psicanlise foi uma
constante que atravessou vrios momentos do pensamento francs contemporneo.
No entanto, o principal operador de tal confrontao foi fornecido pela reconstruo lacaniana da metapsicologia freudiana com suas importaes massivas da filosofia.
A princpio aceita-se pois que no existiria nenhum campo dialgico de partilha entre
as experincias intelectuais da Escola de Frankfurt e de Jacques Lacan. A histria no
registrou nenhum debate manifesto entre os dois plos, nenhum signo visvel de uma
leitura lacaniana da Escola de Frankfurt, e vice-versa. Poderamos fornecer uma
primeira razo a este desconhecimento mtuo de empreendimentos to
contemporneos. Grosso modo, a Escola de Frankfurt privilegiou inicialmente a
tentativa de construir uma espcie de arqueologia dos vnculos sociais e dos processos
de socializao a partir de leituras, muitas vezes divergentes, da teoria freudiana das
pulses. Uma arqueologia capaz de orientar tanto a renovao das aspiraes de
emancipao da prxis social quanto as modalidades de sua crtica. No entanto, a via
de Jacques Lacan parecia obedecer a uma outra cartografia. verdade que podemos
encontrar uma certa arqueologia lacaniana dos vnculos sociais, sobretudo se
pensarmos na teoria dos "cinco" discursos (o discurso da histrica, do universitrio, do
mestre, do analista e do capitalista) e nas suas releituras de textos freudianos
"sociolgicos" como Totem e tabu e Moiss e o monotesmo. Mas, apesar deste
interesse pela produo de uma teoria do discurso, Lacan teria desenvolvido uma
clnica fundada sobretudo no reconhecimento da irredutibilidade do bloqueio produzido
pelo campo do inconsciente, do sexual e do pulsional aos processos de auto-reflexo.
Neste sentido, a psicanlise lacaniana no admitiria noo alguma de sntese positiva
capaz de tecer a reconciliao entre as aspiraes de emancipao da conscincia e a
negatividade radical do inconsciente. Discurso da clivagem e da discordncia, ela
pregaria a descontinuidade radical entre o saber da conscincia e a verdade do
inconsciente. Uma descontinuidade cuja figura maior seria a compreenso do final de
anlise como um processo de destituio subjetiva que situaria a psicanlise na contra-
corrente de todo alargamento possvel do horizonte de compreenso da conscincia e
de toda desalienao possvel do sujeito, o que bloquearia o dilogo entre Lacan e as aspiraes de emancipao da Escola de Frankfurt.
Mas talvez nosso tempo j tenha o direito de criticar esta maneira de dispor os dados
do problema, pois uma anlise atenta pode nos mostrar a existncia de quiasmas
importantes entre a psicanlise lacaniana e certos desenvolvimentos da Escola de
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Frankfurt, em especial aqueles levados a cabo por Theodor Adorno. Histria de
convergncias no reconhecidas que revela a existncia de semelhanas de famlia
entre experincias intelectuais na Frana e na Alemanha na segunda metade do sculo XX.
Permanecer diante do sujeito ... atravs do objeto
verdade que a noo de cura prpria clnica lacaniana no compatvel com os
processos de desenvolvimento individual e com o culturalismo de Erich Fromm ou com
o horizonte utpico de reconciliao social proposto por Marcuse. Por outro lado, a
clnica lacaniana parece muito distante das tentativas de Habermas e de Honneth de
fundar uma teoria da inter-subjetividade atravs do recurso s elaboraes
psicanalticas.3 Mas com Lacan e Adorno, estamos diante de dois momentos da histria
contempornea das idias muito prximos um do outro. No se trata de fazer aqui um
simples catlogo de interfaces possveis, mas de aprofundar certas conseqncias
produzidas pelo reconhecimento desta convergncia entre programas aparentemente to distantes.
Primeiramente, sabemos que tanto Adorno quanto Lacan elaboraram suas experincias
intelectuais atravs de um projeto de retorno a Freud. Se este movimento claro em
Lacan, devemos lembrar tambm do papel determinante do dilogo de Adorno com o
pensamento freudiano. Dilogo que no se reduz a textos pontuais sobre problemas
metapsicolgicos, mas que influenciou de maneira decisiva o projeto filosfico
adorniano e a estrutura de seu conceito de autocrtica da razo.4 Pois o vis
materialista prprio a Adorno fica simplesmente incompreensvel se negligenciarmos
aquilo que a psicanlise lhe forneceu a propsito da gentica do eu, da relao entre
pulso (Impuls) e estruturao do pensamento, do papel das identificaes na
determinao da auto-identidade e da fora do narcisismo na colonizao das formas
de vida social. Tal centralidade do recurso psicanlise na teoria adorniana to
evidente que alguns comentadores, como Honneth, chegaram a ver nisto a causa de
um certo "dficit sociolgico" visvel na impossibilidade de Adorno fornecer uma verdadeira reflexo sobre os modos sociais de organizao da sociedade.5
Por outro lado, esta filiao ao esprito das descobertas freudianas levou Adorno a
criticar muito cedo o revisionismo da psicologia do ego, tema caro a Lacan. Para
Adorno, a psicologia do ego, com sua noo de cura como realizao social dissolve a
natureza da experincia negativa prpria ao inconsciente. Da mesma forma, para
Lacan, tratava-se ento de fazer a crtica do eu como construo do Imaginrio e de
recuperar a irredutibilidade do conceito de inconsciente aos procedimentos de simbolizao reflexiva.
Mas no que diz respeito ao encontro possvel entre Lacan e Adorno, podemos dizer que
seu ncleo central ganha visibilidade quando lembramos que, contrariamente s
tendncias maiores da histria contempornea das idias, tanto Lacan quanto Adorno
tentaram renovar os modos de sustentao do princpio de subjetividade a partir de
uma estratgia absolutamente convergente. Em vez de assumirem o discurso da morte
do sujeito ou do retorno imanncia do ser, ao arcaico, ao inefvel, todos os dois
estiveram dispostos a sustentar o princpio de subjetividade, embora desprovendo-o de um pensamento da identidade.
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Nas mos dos dois, o sujeito deixa de ser uma entidade substancial que fundamenta
os processos de autodeterminao para transformar-se no locus da no-identidade e
da clivagem. Operao que ganha legibilidade se lembrarmos que a raiz hegeliana
comum dos pensamentos de Lacan e de Adorno lhes permitiu desenvolver uma
articulao fundamental entre sujeito e negao capaz de nos indicar uma estratgia
maior para sustentar a figura do sujeito na contemporaneidade.6 Assim, a no-
identidade, ou seja, uma negatividade no-recupervel fundamental para a
estruturao de uma subjetividade que no se perde no meio universal da linguagem
poder constituir o horizonte utpico adorniano da mesma maneira com que ela
representar aquilo que deve ser reconhecido pelo sujeito ao fim do processo
psicanaltico lacaniano. No caso do sujeito, esta no-identidade encontra seu espao
privilegiado de manifestao atravs da experincia do corpo, da pulso (ou impulso) e
de seus modos de subjetivao. Regimes de experincia que colocam o sujeito diante da irredutibilidade do sensvel s aspiraes reflexivas do pensamento conceitual.
Este ponto sobre o sujeito como locus da no-identidade pode ficar mais claro se
lembrarmos como os dois, contrariando novamente as tendncias maiores do
pensamento do final do sculo XX, sustentaram a centralidade de experincias de
confrontao entre sujeito e objeto para a determinao de um pensamento da no-
identidade. Lacan e Adorno no abandonam a dialtica sujeito/objeto, e isto por razes
claras. Desta maneira haveria uma experincia de descentramento, fundamental para
a determinao da subjetividade, que s se daria atravs de um certo regime de identificao entre sujeito e objeto.
Tal regime de identificaes no poderia ser compreendido a partir dos mecanismos
de projeo do eu sobre o mundo dos objetos ou de assimilao do objeto atravs de
uma rememorao (Erinnerung) capaz de internalizar as cises que a prpria
conscincia teria produzido. Ao contrrio, trata-se de levar o sujeito a reconhecer, no
interior do si mesmo, algo da ordem da opacidade do que se determina
como obstante (Gegenstande). Vale dizer, reconhecer que todo sujeito porta em si
mesmo "um ncleo do objeto (ein kern von Objekt)" (ADORNO, 1990, p. 747)
normalmente vinculado a dimenses do corpo no redutveis aos processos de
individuao e de apropriao reflexiva. Por isto, a subjetividade deveria ser
reconhecida no mais exclusivamente atravs da sua remisso ao terreno
intersubjetivo que estrutura o campo dos processos de socializao e de interaes
sociais simbolicamente estruturadas, mas em uma recuperao de confrontaes
prprias dialtica entre sujeito e objeto. Pois se trata fundamentalmente de mostrar
que: "o sujeito no totalmente sujeito, nem o objeto totalmente objeto, mas os dois
no so, por sua vez, estilhaos de um terceiro que os transcenderia" (ADORNO, 1975,
p. 177). Gostaria de insistir que isto implica em uma estrutura de reconhecimento de
dimenses da subjetividade que no se esgotam na auto-objetivao do sujeito no
campo intersubjetivo da linguagem.
A este modo de reconhecimento fundamentalmente vinculado a uma figura do sujeito
pensada enquanto locusda no-identidade, Adorno forneceu um nome: mimesis. Este
artigo visa a mostrar como o problema adorniano da mimesis no simples sintoma
de uma tendncia recalcada do texto adorniano em "entificar" um recurso
Naturphilosophie. Na verdade, a mimesis seria pea fundamental para a reorientao
das discusses a respeito dos modos de reconhecimento disponveis aos sujeitos.
neste sentido que devemos compreender as tentativas adornianas de fornecer um
modelo de comunicao no mais pensado a partir da comunicao entre sujeitos, tal
como encontramos na afirmao central:
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Se fosse possvel especular sobre o estado de reconciliao (Vershnung), no seria
questo de pens-lo sob a forma de unidade indiferenciada entre sujeito e objeto ou
sob a forma de uma anttese hostil, mas como uma comunicao do diferenciado
(Kommunikation des Unterschiedenen). O conceito atual [de comunicao]
vergonhoso porque trai o melhor, a fora de um entendimento (Einverstndnisses)
entre homens e coisas, e nos oferece em seu lugar a comunicao (Mitteilung) entre sujeitos tal como a razo subjetiva requer. (ADORNO 1990, p. 743)
Normalmente, v-se nesta afirmao de Adorno o sintoma de uma filosofia que
persiste em pensar a relao do sujeito ao mundo exclusivamente como confrontao
entre sujeito e objeto, confrontao prpria ao quadro da filosofia da conscincia, isto
enquanto negligenciaria a estrutura inter-subjetiva que determinaria a relao ao
objeto. De onde viria, por exemplo, a necessidade de recuperar um conceito nebuloso
de mimesis como promessa de entendimento entre homens e coisas, isto a despeito
dos processos reflexivos de compreenso j presentes na comunicao cotidiana.
No entanto, devemos insistir no fato de que tal leitura inverte os plos e v como
"negligncia" o que , na verdade, o resultado de uma crtica. Ademais, estamos
diante de uma crtica anulao de toda dignidade ontolgica do que aparece
como resistncia e opacidade do objeto ao esquema intersubjetivo de significao. Por
outro lado, crtica tambm anulao de toda dignidade ontolgica da irredutibilidade
daquilo que, no sujeito, no acede s determinaes positivas da palavra partilhada
nos usos da linguagem da vida ordinria. Assim, uma comunicao do diferenciado que
no queira nos conduzir unidade indiferenciada deve ser sensvel a este quiasma,
atravs do qual o sujeito encontra no objeto a mesma opacidade que poder constituir
relaes no-narcsicas a si mesmo. Tal procura por um conceito alternativo de
comunicao moldado a partir da confrontao entre sujeito e objeto aproxima Adorno
e Lacan.
Clnica e reconhecimento
No que diz respeito a Lacan, aceita-se normalmente que a temtica do reconhecimento
estaria vinculada a um momento inicial de seu pensamento, ainda muito marcado por
um certo hegelianismo francs (Kojve, Hyppolite) com seus temas de luta por
reconhecimento que se daria atravs das vias do reconhecimento intersubjetivo do
desejo. Esta tentativa de reconstruir a racionalidade da prxis analtica por intermdio
da centralidade de processos de reconhecimento intersubjetivo do desejo teria sido
claramente abandonada pelo prprio Lacan a partir do momento de maturidade da sua
experincia intelectual. Em seu lugar, o psicanalista teria se enveredado por uma certa
tentativa de defesa das singularidades puras e de "entificao" da imediaticidade do
individual para alm de toda exigncia universalista de reconhecimento, razo o que
teria levado a afirmaes como: "No h universal que no deva conter uma existncia
que o nega" (LACAN 2001, p. 451). Neste sentido, tudo se passava como se Lacan
estivesse operando uma guinada tipicamente ps-estruturalista no interior de sua
experincia intelectual, isto se lembrarmos como as temticas da irredutibilidade da
diferena pura ou das multiplicidades no-estruturadas nortearam as discusses de filsofos como Derrida e Deleuze.
Na verdade, esta defesa das singularidades puras a despeito da sustentao da
centralidade dos processos de reconhecimento na clnica parecia pr a psicanlise
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lacaniana na rota de uma lgica de retorno pr-reflexivo imanncia do ser. A
construo tardia, na teoria lacaniana, de uma palavravalise como parltre a fim de designar o lugar do enunciador parecia evidenciar este novo caminho. E, de fato, como
Lacan parecia ter abandonado a aspirao universalizante do reconhecimento, esta
imanncia do ser conjugava-se no particular e admitia apenas um gozo mudo,
monolgico, que no escondia sua proximidade com a psicose. Um pouco como se
Lacan sucumbisse a uma tentao de "fechar o individual sobre si mesmo", a respeito da qual j apontara Gilles Gaston-Granger (1960, p. 192).
No entanto, devemos insistir que, a partir do momento em que a psicanlise tenta
afastar-se da reflexividade prpria a um sujeito marcado pelo desejo de se fazer
reconhecer, ela perde todo critrio para estabelecer a verdade do que se apresenta no
campo da experincia. Salvo se, de uma maneira subterrnea, voltarmos a uma noo
no-problematizada de certeza subjetiva que no tem necessidade do Outro para se
legitimar. Faz-se necessrio assim mostrar que a cura na clnica lacaniana
indissocivel de um movimento de subjetivaoque necessariamente auto-
objetivao do sujeito em um campo estruturado o que nos demonstra a impossibilidade de pensar uma clnica desprovida de procedimentos de
reconhecimento. A verdadeira questo gira em torno do regime de reconhecimento
capaz de responder aos imperativos de auto-objetivao especficos ao sujeito descentrado lacaniano e opacidade da pulso, do sexual e do corpo.
Lembremos que a psicanlise deve dar conta de um imperativo duplo. Ela deve
aparecer como crtica do conhecimento atravs da compreenso da conscincia como
sinnimo de alienao, porquanto, admitindo o carter auto-ilusrio da conscincia, a
psicanlise poderia criticar sua capacidade cognitiva. Nisto, ela discurso da
discordncia e da clivagem entre saber e verdade. Clivagem que demonstra como ela
no tem parte com as temticas prprias da filosofia da conscincia.
Mas ao se opor auto-identidade imediata da conscincia, a psicanlise no pode
transformar-se na hipstase da diferena, do no-saber e de um discurso da
desintegrao do sujeito. No interior do quadro analtico, a desintegrao do sujeito
com suas aspiraes de reconhecimento s pode produzir psicose e forcluso do
Nome-do-Pai, ou seja, uma fragmentao da identidade prpria dos delrios paranicos
do presidente Schreber.7 O verdadeiro desafio da psicanlise lacaniana no postular
a desintegrao do sujeito, mas encontrar a fora de cura prpria a estas experincias
de noidentidade e de descentramento que quebram tanto o crculo de certezas
narcsicas do eu quanto o quadro controlado de trocas intersubjetivas previamente
estruturado. No entanto, quando falamos de uma experincia que no ascese
espiritual, pressupomos necessariamente um horizonte formal de reconhecimento
disponvel ao sujeito. No caso lacaniano, este reconhecimento. que no segue a lgica
comunicacional, no se d totalmente no campo intersubjetivo da linguagem (campo
que Lacan chama de Outro). Ao contrrio, ele dependente da confrontao do sujeito
com a opacidade de um objeto que causa seu desejo e que no totalmente assimilvel inscrio simblica no campo intersubjetivo.
Podemos compreender melhor este ponto se lembrarmos que, para socializar-se no
campo intersubjetivo da linguagem, o sujeito inicialmente deve perder seus vnculos
simbiticos com os objetos das pulses parciais auto-erticas (objetos que Lacan
chama de objeto a). Trata-se de um tema maior da literatura psicanaltica:
inicialmente, o beb vive em um estado de indiferenciao simbitica que deve ser
rompido para que os processos de socializao possam operar. Contudo, este
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rompimento implica a perda da confrontao com aquilo que, no sujeito, no se
submete individuao atravs da insero no campo de socializao da linguagem,
assim como no se submete imagem individuada do corpo prprio. Uma das
peculiaridades da clnica lacaniana consistir em defender a necessidade de o sujeito
confrontar-se novamente com estes objetos (que continuaro causando seu desejo), e
assim recuperar o que "no-subjetivo no sujeito" por ter o estatuto epistemolgico
de um objeto opaco aos processos de reflexo. Assim, a auto-objetivao do sujeito,
segundo Lacan, no estaria vinculada posio de dimenses expressivas das aptides
de indivduos socializados. Ela estaria vinculada ao reconhecimento do sujeito em um objeto que no porta sua imagem, que no porta as marcas da sua individuao.
A razo da necessidade de tal estratgia, que poderia parecer alguma forma de retorno
espontaneidade pr-discursiva de um corpo ainda no individualizado, encontra-se
no fato de Lacan ter convergido, de maneira absoluta, mecanismos de socializao e
processos de alienao. Sem dvida, uma proposio temerria e que traz vrias
questes complexas, mas ela se encontra no cerne da orientao lacaniana devido a uma razo absolutamente clara.
Crticas da intersubjetividade
Esta convergncia estrita entre mecanismos de socializao e processos de alienao
patrocinada por uma certa "crtica totalizante da reificao da linguagem ordinria",
que pode ser encontrada em Lacan e Adorno devido a razes relativamente
convergentes. Nos dois casos, trata-se pois de compreender a linguagem ordinria
como espao maior dos processos de reificao e de alienao. Fato que levar tanto
Lacan quanto Adorno a sustentarem uma tenso irredutvel entre certas dimenses da
subjetividade e o campo lingstico intersubjetivo. Certamente, este um
desdobramento da afirmao da impossibilidade de auto-objetivao do sujeito no
interior da realidade alienada das sociedades modernas.
Neste sentido, Lacan claro. Ele chega a esboar uma crtica racionalidade
instrumental ao mostrar que a palavra vazia da linguagem reificada produz uma
comunicao submetida: " enorme objetivao constituda pela cincia que permitir
ao sujeito esquecer sua subjetividade" (LACAN, 1966, p. 282). Discurso instrumental
cujas objetivaes nos conduzem a: "alienao mais profunda do sujeito da civilizao
cientfica" (LACAN, 1966, p. 281) com suas coordenadas scio-histricas. Isto leva
Lacan a falar da linguagem, nesta dimenso e neste contexto instrumental, como um
"muro" que impede o sujeito de estabelecer "relaes autenticamente inter-subjetivas"
(LACAN, 1978, p. 285), estas que seriam articuladas no interior de uma linguagem
capaz de expressar o processo estrutural de funcionamento do universo simblico e que estaria pretensamente liberada do peso da reificao.
Todavia, mais frente, Lacan ir ampliar sua crtica reificao da linguagem
elevando-a a uma questo prpria ao funcionamento mesmo das estruturas simblicas
em seu sentido mais geral. Isto fica claro quando Lacan abandona suas constataes scio-histricas para simplesmente afirmar:
O significante se produzindo no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua
significao. Mas ele s funciona como significante ao reduzir o sujeito em ltima
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instncia a ser apenas um significante, a petrific-lo atravs do mesmo movimento que
o chama a funcionar, a falar como sujeito. (LACAN, 1973, pp. 188-189)
Ou melhor, mesmo o campo intersubjetivo da cadeia significante s pode fazer o
sujeito falar ao petrific-lo e ao dividi-lo, pois: "se ele aparece de um lado como
sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como aphanisis" (LACAN,
1973, p. 191). Que o sujeito deva aparecer do outro lado como aquilo que no se
objetiva, como aphanisis, isto indica uma relao fundamental de inadequao entre
subjetividade e intersubjetividade. Lembremos que Lacan ser sempre sensvel ao que
o sujeito deve perder para constituir-se como instncia de auto-referncia atravs dos
processos de socializao e de formao do eu.
De seu lado, Adorno insistir que o sujeito de nossa poca estaria diante de uma
realidade mutilada pelo pensamento identitrio da lgica de equivalentes prpria
forma-mercadoria. Este pensamento identitrio resvalado condio instrumental nos
leva necessariamente em direo a uma linguagem reificada no interior da qual: "No
apenas as qualidades so dissolvidas, mas os homens so forados real
conformidade" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 26). Esta submisso do existente
objetividade fantasmtica da abstrao fetichista instaura uma inadequao entre as
aspiraes de singularidade da subjetividade e o campo intersubjetivo da linguagem.
De onde se seguem afirmaes como:
(..) se a opinio pblica atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se
converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, ento a tentativa de
por a nu semelhante depravao tem que recusar lealdade s convenes lingsticas e
conceituais em vigor, antes que suas conseqncias para a histria universal frustrem completamente essa tentativa. (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 12)
Resta, pois, subjetividade entrar na procura de uma linguagem capaz de pr o que
da ordem do no-idntico. Ela ser encontrada principalmente no recurso filosfico arte.
Lembremos ainda que esta crtica reificao da linguagem ordinria talvez nos
explique porque, tanto em Adorno quanto em Lacan, encontramos uma recusa clara
em vincular a procura de um conceito positivo de razo a uma pretensa racionalidade
comunicacional que se esboaria no horizonte das relaes entre sujeitos. Neste
sentido, certo que: "o conceito adorniano de experincia no inclua e sequer
supunha uma teoria da intersubjetividade" (BUCK-MORSS, 1981, p. 182). Mas esta
excluso ancora-se em uma crtica da linguagem que segue moldes idnticos queles
que levaram Lacan a afirmar que a experincia freudiana petrifica-se desde que a
intersubjetividade aparece. Nos dois casos, trata-se de compreender que a expresso
no interior do campo intersubjetivo est necessariamente submetida a processos de
reificao e de objetificao. A auto-objetivao do sujeito s pode se dar como
alguma forma de negao de determinaes intersubjetivas, negao dialtica que, por
sua vez, no seja retorno ao inefvel ou ao arcaico.
No entanto, a princpio tudo indicaria que os encaminhamentos de Lacan e de Adorno
no so totalmente convergentes, j que o diagnstico adorniano da reificao da
linguagem seria o resultado de uma constatao histrica vinculada aos modos de
desenvolvimento do capitalismo, enquanto o diagnstico lacaniano seria de ordem
estrutural. Mas devemos insistir em um certo historicismo problemtico prprio da
crtica adorniana da reificao da linguagem que se desdobra como crtica da
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intersubjetividade. Adorno o primeiro a sustentar que a desqualificao do sensvel
que aparece como resultado maior de uma linguagem reificada e submetida
racionalidade instrumental um fenmeno que se confunde com a razo ocidental:
"De Parmnides a Russell, a divisa continua: Unidade. O que continuamos a exigir a
destruio dos deuses e das qualidades" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 182).
Conhecemos as pginas da Dialtica do esclarecimento consagradas a este gnero de
considerao. Axel Honneth j tinha insistido em uma certa "inverso" da perspectiva
marxista clssica em Adorno e Horkheimer j que, na Dialtica do esclarecimento: "a
troca de mercadorias simplesmente a forma histrica desenvolvida da razo
instrumental" (HONNETH, 1991, p. 38). Uma razo instrumental cujas fontes devem
ser procuradas (e aqui Adorno no poderia ser mais freudiano) no processo humano de
autopreservao diante dos perigos da natureza e de humanizao dos impulsos. Ou
seja, as coordenadas histricas da crtica da economia poltica vo se submeter a uma
filosofia da histria de larga escala.
Mas no parece incorreto insistir em algumas coordenadas propriamente
ontolgicas desta filosofia adorniana da histria. Tal como na filosofia hegeliana da
histria e na crtica da tcnica em Heidegger, o diagnstico adorniano da histria devido a seu carter geral - pressupe um conjunto de posies, que ganham peso de
consideraes ontolgicas sobre os modos de apresentao da essncia.8 Isto pode nos
indicar como o problema da reificao da linguagem no se esgota em uma
considerao histrica regional (o que nos explicaria porque a crtica adorniana deve
passar da crtica "restrita" da economia poltica crtica "geral" da racionalidade
instrumental), mas tem o peso de uma considerao de ordem estrutural, tal como em
Lacan. claro que esta aproximao entre considerao estrutural e considerao
ontolgica no , por si, evidente, o que no nos impede de pensarmos em uma certa
convergncia.
Mimesis, natureza e estranhamento
Ns conhecemos uma certa interpretao "hegemnica" a respeito do problema
da mimesis em Adorno. Ela foi sintetizada sobretudo por Habermas, Wellmer e
Honneth. Como recuperao de uma afinidade no-conceitual que escaparia
concepo de uma relao entre sujeito e objeto determinada a partir do modo
cognitivo-instrumental, o recurso adorniano mimesis prometeria um modo possvel
de reconciliao entre o sujeito e a natureza. Uma reconciliao capaz de operar
aberturas para alm da submisso do diverso da experincia sensvel estrutura
categorial de uma razo que teria hipostasiado seu prprio conceito, submisso que,
segundo Adorno, indica o processo de imbricao entre racionalizao e dominao.
Mas, a princpio, esta maneira de pensar reconciliaes fundada sobre afinidades no-
conceituais parece se inscrever em uma perspectiva de retorno a um conceito de natureza como plano positivo de doao de sentido.
Habermas, por exemplo, afirma que a lgica da mimesis aparece como: "um retorno
s origens atravs do qual tenta-se retornar aqum da ruptura entre a cultura e a
natureza" (HABERMAS, 1995, p. 513). Uma orientao de retorno origem que
colocaria Adorno ao lado, por exemplo, de Heidegger.
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Da a afirmao: "a memria (Eingendenken) da natureza adquire uma proximidade
chocante com a reminiscncia (Andenken) do ser" (HABERMAS, 1995, p. 516). E nos
dois casos, este pensamento da origem e do arcaico nos levaria necessariamente a
uma certo abandono da linguagem conceitual em prol do recurso filosfico arte, j
que a potncia mimtica da arte poderia nos indicar aquilo que sempre escapa ao
movimento do conceito. No caso da mimesis em Adorno, poderamos mesmo pensar
em uma certaNaturphilosophie que no teria coragem de dizer seu nome. Basta
compreender este desvelamento mimtico das "mltiplas afinidades entre o que
existe" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 28) como figura de recuperao de uma potncia cognitiva da analogia e da semelhana.
Mas possvel que tais interpretaes, com suas modulaes inumerveis,
pressuponham um conceito de natureza, em Adorno, pensada como horizonte de
doao positiva de sentido. A natureza apareceria assim como um signo de
autenticidade. O que vai contra toda possibilidade de um pensamento dialtico da
natureza, pensamento no qual esta no posta nem como horizonte de doao
positiva de sentido, nem como simples construo discursiva reificada. No entanto,
em direo a tal pensamento que Adorno parece caminhar. Basta lembrarmos que,
sendo a mediao posta como um processo universal, simplesmente impossvel
natureza aparecer como locus do originrio ou do arcaico. Ao contrrio, se "a natureza
da qual a arte persegue a imagem no existe ainda" no porque Adorno est
entrando em uma teologia negativa, mas porque a natureza definida exatamente
como aquilo que impede a indexao integral dos existentes pelo conceito. A natureza
uma figura do negativo, o que no estranho a algum como Adorno que sempre
articula natureza externa e natureza interna9 e sempre l o problema da natureza
interna a partir da teoria freudiana das pulses teoria que desnaturaliza toda base instintual ao no reconhecer objeto natural algum pulso insistindo, com isto,
nainadequao fundamental entre a negatividade da pulso e a dimenso dos objetos
empricos.
Esta idia da natureza como figura do negativo pode nos explicar afirmaes como: "A
arte s fiel natureza fenomenal (erscheinenden Natur) quando ela representa a
paisagem na expresso de sua prpria negatividade" (ADORNO, 1973, p. 106). E se
lembrarmos da afirmao adorniana segundo a qual os tempos carregados de sentido
que o jovem Lukcs ansiava o retorno tambm eram produtos da reificao, ento
devemos nos perguntar se o bloqueio de apresentao da natureza na realidade um
problema de ordem histrica ou ontolgica. Pois se for um problema de ordem
ontolgica, ento o acesso natureza no uma aporia, mas marca a manifestao de
uma essncia que s pode pr-se como negao dialtica da aparncia.
a partir deste contexto que podemos compreender a configurao do recurso
adorniano mimesis. No entanto, para apreender a especificidade de tal conceito, faz-
se necessrio lembrar que sua construo visa a dar conta de quatro problemas
diferentes, porm complementares, a saber: o problema do contedo de verdade do
pensamento analgico que sustenta prticas mgicas e rituais; a tendncia pulsional a
regressar a um estado de natureza marcado pela despersonalizao; o mimetismo
animal, e sobretudo as experincias estticas contemporneas de confrontao com
materiais reificados. Teoria antropolgica da magia, teoria psicanaltica das pulses,
mimetismo animal, e o problema esttico da representao: eis os eixos da problemtica adorniana do mimetismo.
-
Ns sabemos como o pensamento que marca a razo moderna recusa todo contedo
cognitivo mimesis, analogia e semelhana, j que o pensamento "mgico" seria
exatamente este ainda aprisionado s cadeias da simpatia e da participao. Contudo
Adorno acredita que o carter mimtico do pensamento mgico tem um contedo de
verdade, o que no significa em absoluto ignorar a ruptura entre natureza e cultura.
Isto significa apenas que o pensamento mgico capaz de pr certos processos
identificatrios recalcados pela razo reduzida sua condio instrumental. Tais
processos concernem especialmente maneira com que a auto-identidade se
reconhece como momento da posio da diferena. Lacan mostrou isto claramente ao comentar a natureza da "identificao iterativa" do boror que diz "Eu sou uma arara":
Apenas a mentalidade antidialtica que, por ser dominada por fins objetivantes, tende
a reduzir ao ser do eu toda atividade subjetiva, pode justificar a surpresa produzida
em um Van den Steiner pelo Boror que diz "Eu sou uma arara". E todos os socilogos
da "mentalidade primitiva" esfalfam-se em torno dessa profisso de identidade, a qual,
no entanto, nada tem de mais surpreendente para a reflexo do que afirmar: "Eu sou
mdico", ou "eu sou cidado da repblica francesa", e com certeza apresenta menos
dificuldades lgicas do que promulgar "Eu sou um homem", o que, em seu pleno valor,
s pode significar: " Eu sou semelhante quele em quem, ao reconhec-lo como
homem, baseio-me para me reconhecer como tal." Estas diversas frmulas s so
compreensveis, no final das contas, em referncia verdade do: "Eu um outro",
menos fulgurante na intuio do poeta do que evidente aos olhos do psicanalista. (LACAN, 1966, p. 117)
Esta longa citao mostra que a afirmao boror da auto-identidade atravs de uma
identificao com o outro que, neste contexto, necessariamente uma identificao
mimtica, revela o que da ordem das individuaes modernas. Se "Eu sou uma
arara" tem o mesmo valor que "Eu sou cidado da Repblica Francesa" e "Eu um
outro" porque, nos trs casos, a referncia-a-si s se constitui atravs da mediao
pelo que posto como marca de alteridade. Mas se a "mentalidade antidialtica" se
surpreende com as afinidades postas entre o sujeito e um objeto do mundo porque a
identidade do eu moderno funda-se exatamente na denegao do papel constitutivo da
identificao mimtica com a alteridade. De um ponto de vista prprio da lgica
dialtica, podemos dizer que o eu do homem moderno funda-se na negao simples do
papel constitutivo da oposio na determinao da identidade, j que a delimitao da auto-identidade do eu fazse atravs da excluso para fora de si de toda alteridade.
Neste sentido, lembremos como, j na sua tese de doutorado, Lacan havia insistido na
relao entre a lgica do dito pensamento mgico e a estruturao da auto-identidade
do eu (LACAN, 1975b, pp. 294-298). Se, nesta poca, Lacan afirmava que a ausncia
aparente de princpios lgicos de contradio, de localizao espao-temporal e de
identidade no pensamento mgico podia indicar uma proximidade com a psicose, era
para lembrar que a estrutura mesma das individuaes na modernidade seguiria uma
lgica paranica que leva os sujeitos a assumirem o papel constitutivo das
identificaes apenas atravs de exploses de rivalidade e de agresso contra a
imagem do outro. De onde se seguia a necessidade de pensar a psicose paranica nas suas relaes com o processo de formao do sujeito enquanto pessoa.
Tais idias so absolutamente convergentes com os problemas maiores do
encaminhamento adorniano. Primeiramente, lembremos da maneira com que a
problemtica do contedo de verdade do pensamento mgico se apresenta para
Adorno. Se o pensamento racional deve denegar toda fora cognitiva da mimesis,
-
porque se trata de sustentar: "a identidade do eu que no pode perder-se na
identificao com um outro, mas [que] toma possesso de si de uma vez por todas
como mscara impenetrvel" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 24). A identidade do
eu seria, pois, dependente da "entificao" de um sistema fixo de identidades e
diferenas categoriais. A projeo de tal sistema sobre o mundo exatamente aquilo
que Adorno e Horkheimer chamam de "falsa projeo" ligada dinmica do narcisismo e aos processos de categorizao do sujeito cognoscente.10
Mas, por outro lado, se a racionalidade mimtica do pensamento mgico pode pr as
mltiplas afinidades entre o que existe, porque ele seria mais aberto ao
reconhecimento da natureza constitutiva da identificao. Poderamos mesmo dizer
que o pensamento mgico nos permite ver como a fixidez da identidade dos objetos
dissolvida quando o pensamento leva em conta a natureza constitutiva das relaes de
oposio (e neste contexto a oposio tem o valor de uma identificao que ainda no
foi posta).11 Isto pode nos explicar a importncia de consideraes como: "o esprito
que se dedicava magia no era um e idntico: ele mudava igual s mscaras do
culto, que deviam se assemelhar aos mltiplos espritos" (ADORNO e HORKHEIMER,
1985, p. 24).
Mas se Adorno procura no pensamento mgico a posio da estrutura de identificaes
que suporta a determinao de identidades e a produo de individuaes, ele saber
abandonar todo conceito positivo de natureza a presente. Assim, devemos sempre
insistir neste ponto: a assimilao de si ao objeto no mimetismo no pode ser
compreendida como promessa de retorno imanncia do arcaico. Isto pode nos
explicar porque Adorno ir pensar o conceito de natureza a partir, entre outros, da
teoria pulsional freudiana. Neste sentido, sigamos, por exemplo, uma afirmao
cannica sobre o mimetismo. Ele seria o ndex de uma: "(..) tendncia a perder-se no
meio ambiente (Unwelt) ao invs de desempenhar a um papel ativo, da propenso a
se deixar levar, a regredir natureza. Freud denominou-a pulso de morte (Todestrieb), Caillois le mimetisme" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 212).
Se a pulso de morte indica, para Adorno, as coordenadas da reconciliao com a
natureza, ento devemos admitir vrias conseqncias. Pois a pulso de morte
freudiana expe a economia libidinal que leva o sujeito a vincular-se a uma natureza
compreendida como espao do inorgnico, figura maior da opacidade material aos
processos de reflexo. Esta "tendncia a perder-se no meio ambiente" da qual fala
Adorno, pensando na pulso de morte, o resultado do reconhecimento de si no que desprovido de inscrio simblica.
De fato, Freud falava de uma autodestruio da pessoa prpria da satisfao da pulso
de morte. Mas pessoadeve ser entendida aqui como a identidade do sujeito no interior
de um universo simblico estruturado. Esta morte prpria da pulso pois o operador
fenomenolgico que nomeia a suspenso do regime simblico de produo de
identidades. Ela marca a dissoluo do poder organizador das estruturas de
socializao e que, no limite, nos leva ruptura do eu como formao sinttica. Neste
ponto, Adorno est muito prximo de Deleuze, outro que procurou compreender a
pulso de morte para alm da repetio compulsiva do instinto bruto de destruio,
uma vez que de Deleuze a afirmao, absolutamente central para aceitarmos a
estratgia adorniana, de que a morte procurada pela pulso : "(..) o estado de
diferenas livres quando elas no so mais submetidas forma que lhes era dada por
um Eu; quando elas excluem minha prpria coerncia, assim como de outra identidade
-
qualquer. H sempre um 'morre-se' mais profundo do que um 'morro'" (DELEUZE,
2000, p. 149).
Desta forma, o negativo da morte pode aparecer como figura do noidntico. Descontando o discurso a respeito das diferenas livres que guia Deleuze
nesta observao e que continua estranho a Adorno, temos aqui a mesma
compreenso de que as funes sintticas de Eus socializados no do conta daquilo
que aparece como experincia para um sujeito.
Isto fica ainda mais claro se levarmos a srio o recurso feito por Adorno a Roger
Caillois. Operao extremamente esclarecedora pois nos ajuda a compreender melhor
o que significa esta "tendncia a perder-se no meio ambiente" da qual fala Adorno.
Deste modo, lembremos que, com seu conceito de psicastenia lendria,Caillois tentava
demonstrar como o mimetismo animal no deveria ser compreendido como um
sistema de defesa, mas como uma "tendncia a transformar-se em espao", que
implicava distrbios do "sentimento de personalidade enquanto sentimento de
distino do organismo no meio ambiente" (2002, pp. 110-111).12Falando a respeito
desta tendncia, prpria do mimetismo, de perder-se no meio ambiente, Caillois afirma:
O espao parece ser uma potncia devoradora para estes espritos despossudos. O
espao os persegue, os apreende, os digere em uma fagocitose gigante. Ao fim, ele os
substitui. O corpo ento se dessolidariza do pensamento, o indivduo atravessa a
fronteira de sua pele e habita do outro lado de seus sentidos. Ele procura verse de um
ponto qualquer do espao, do espao negro, l onde no se pode colocar coisas. Ele
semelhante, no semelhante a algo, mas simplesmente semelhante. (CAILLOIS, 2002, p. 111)
Este espao negro no interior do qual no podemos colocar coisas (j que ele no
espao categorizvel, condio transcendental para a constituio de um estado de
coisas) um espao que nos impede de ser semelhantes a algo de determinado. Por
outro lado, tal como na noo freudiana de tendncia de retorno a um estado
inorgnico, Caillois lembra que o animal geralmente mimetiza no apenas o vegetal ou
a matria, mas o vegetal corrompido e a matria decomposta. "A vida recua em um
degrau", dir Caillois (2002, p. 113). Podemos perceber como que, ao pensar o
mimetismo como identificao com um meio ambiente que obedece a tais
coordenadas, Adorno livrou o conceito de mimetismo da sua subordinao natureza como plano imanente e positivo de doao de sentido.
Desta forma, o imperativo mimtico de reconhecimento de si na morte como negao
da potncia de organizao das estruturas de socializao (Freud) e no exterior vazio
de conceito (Caillois) nos indica onde o sujeito deve se reconhecer para afirmar-se em
sua no-identidade. Josef Frchtl compreendeu claramente este ponto ao afirmar: "A
ambivalncia em relao mimesis que possvel identificar em Adorno deve ser
explicada atravs do seu reconhecimento do carter absolutamente solidrio entre reconciliao e destruio (FRCHTL, 1986, p. 43).
Ou seja, reconciliao com o objeto e destruio do eu como auto-identidade esttica no interior de um universo simblico estruturado.
Vemos assim como tal articulao entre Freud e Caillois implica a identificao com
uma negatividade que vem do objeto como motor de descentramento. Por
-
conseguinte, o problema da mimesis nos mostra como, para Adorno, o objeto aquilo
que marca o ponto no qual o eu no reconhece mais sua imagem, ponto no qual o
sujeito se v diante de um sensvel que "materialidade sem imagem" (ADORNO,
1975, p. 204), cuja confrontao implica um perptuo descentramento.
A mimesis aparece assim sob o aspecto de reconhecimento de si na opacidade do que
s se oferece como negao. ela que, com isto, pode nos indicar como realizar esta
promessa de reconhecimento posta de maneira to surpreendente por Adorno nos seguintes termos:
Os homens s so humanos quando no agem e no se pem (setzen) mais como
pessoas; esta parte difusa da natureza na qual os homens no so pessoas assemelha-
se ao delineamento de uma essncia (Wesen) inteligvel, a um Si que seria desprovido
de eu (jenes Selbst, das vom Ich erlst wre). A arte contempornea sugere algo disto. (ADORNO, 1975, p. 274)
Ou seja, o reconhecimento dos homens como sujeitos dependente da capacidade de
eles se porem ou, ainda, de se identificarem com o que no se submete mais aos
contornos auto-idnticos de um eu com seus protocolos de individuao. Se
lembrarmos da mimesis como operao de identificao com uma natureza pensada
como figura do negativo, podemos compreender a maneira em que tal reconhecimento
se articula. neste ponto que devemos introduzir algumas consideraes sobre o
recurso mimesis na Teoria esttica de Adorno. Isto pode nos explicar como a arte contempornea pode sugerir algo deste Si desprovido de eu.
Uma anlise exaustiva do problema da mimesis na esttica adorniana, e
principalmente na sua filosofia da msica, exigiria outro artigo que desse espao a
complexidade do debate.13 Aqui, vale a pena simplesmente insistir em uma
peculiaridade maior do recurso adorniano mimesis no campo da esttica, que explica
a peculiaridade do regime de recurso filosfico arte proposto por Adorno. Na esttica
adorniana, a mimesis no est diretamente ligada ao imperativo de reconciliao com
a imagem positiva da natureza, como poderamos esperar em uma reflexo tradicional
sobre a mimesis na arte. Adorno extremamente crtico em relao aos projetos que
procuraram recuperar algo desta reflexo tradicional como, por exemplo, o programa
de reconstituio da racionalidade musical a partir da tentativa de posio de
protocolos de afinidade mimtica com a faticidade imanente e no-estruturada do
sonoro. Neste sentido, a anlise da crtica adorniana a John Cage extremamente
instrutiva.
Na verdade, a exigncia adorniana passa pela necessidade de a arte pr sua afinidade
mimtica com o que h de mais morto e arruinado na realidade social. Devemos levar
s ltimas conseqncias afirmaes como: "A arte s consegue opor-se atravs da
identificao (Identifikation) com aquilo contra o qual ela se insurge." Adorno
extremamente claro neste ponto. Basta lembrar ainda que: "as obras de arte
modernas abandonam-se mimeticamente reificao, a seu princpio de morte"
(ADORNO, 1973, p. 201).14 Uma afirmao aparentemente estranha, j que a
tendncia hegemnica tende a definir a arte moderna, ao contrrio, atravs da recusa
a toda afinidade mimtica com a sociedade reificada, isto atravs, por exemplo, da crtica representao e figurao.
Mas se Adorno insiste neste ponto porque a fora da mimesis no vem exatamente
da sua promessa de reconciliao com a imanncia da natureza, mas do
descentramento provocado pela identificao com materiais postos como
-
absolutamente mortificados pela abstrao, desprovidos de tudo o que pertence
dinmica do vivente, petrificados como matria opaca.
De fato, elevar a programa esttico a exigncia de que o sujeito ponha aquilo que da
ordem da expresso subjetiva atravs da confrontao com materiais reificados pode
parecer uma exigncia absolutamente estranha de reconciliao. Mas ela que anima
aquilo que um dia Adorno chamou de "comunicao do diferenciado", base para o
entendimento entre homens e coisas. Pois: "Se o sujeito no tem mais possibilidade de
falar, ele deve segundo a idia da arte moderna no fundada na construo absoluta falar atravs das Coisas (Dinge), de sua forma (Gestalt) alienada e mutilada" (ADORNO, 1973, p. 179).
Mas o sujeito s pode falar atravs da forma alienada e mutilada das coisas porque as
coisas portam, como marcas da mutilao, a inadequao irredutvel entre suas
realidades sensveis e a submisso forma mercadoria. Falar atravs das coisas s
possvel quando a mudez do sensvel aparece como resistncia do material
reificao. Isto nada tem a ver com alguma forma de retorno ao arcaico ou ao
originrio, como se houvesse uma experincia da espontaneidade pr-discursiva do
sensvel ainda no marcada pela abstrao fetichista. Trata-se apenas de explorar o
potencial disruptivo de experincias nas quais o sujeito se v investindo libidinalmente
runas, ou seja, identificando-se com objetos que, para alm de sua condio de
suporte da forma mercadoria, so apenas materialidade opaca na qual o eu no mais
capaz de projetar sua imagem. Isto talvez nos explique por que: "este para quem o
coisificado o mal radical, tende hostilidade em relao ao outro, ao estranho
(Fremde), cujo nome no ressoa por acaso na alienao (Entfremdung)" (ADORNO, 1975, p. 191).
Especularidade e opacidade
Mas se voltarmos a Lacan, toda esta discusso sobre a mimesis parecer muito
distante. Primeiro, simplesmente no h em Lacan qualquer discusso conceitual
visvel a respeito do conceito de "natureza", No entanto, se seguirmos a intuio de
Adorno e procurarmos derivar um conceito negativo de natureza (a natureza como
aquilo que resiste reflexividade do conceito) a partir da teoria das pulses, teremos
um caminho a trilhar no interior do texto lacaniano.
De qualquer forma, uma abordagem inicial do pensamento lacaniano nos levaria
constatao de que ele seria antimimtico por excelncia. Lembremos que o domnio
da mimesis em Lacan parece estar vinculado necessariamente dimenso das relaes
duais e transitivas que so, na verdade, sintomas de estruturas narcsicas de
apreenso dos objetos. primeira vista, Lacan simplesmente no operaria com a distino adorniana entre falsa projeo narcsica e mimesis.
Exemplo maior aqui seria aquilo que Lacan chama de "estdio do espelho". Podemos
compreender tal fase de desenvolvimento da seguinte maneira: antes de aceder ao
pensamento conceitual, o beb se guia atravs de operaes mimticas. Para orientar
seu desejo, o beb mimetiza um outro na posio de tipo ideal. Tais operaes no so
apenas vinculadas orientao do desejo, mas tm valor fundamental na constituio
do eu como centro funcional e instncia de auto-referncia: o beb introjeta a imagem
de um outro beb a fim de constituir seu prprio eu ainda no formado, servindo-se do
-
outro como quem se serve de um espelho. A introjeo de tal imagem o ltimo
estgio no interior de um processo de ruptura do beb com a indiferenciao
simbitica com a me e com objetos parciais. Ao romper com tais objetos parciais
(seios, fezes, olhar, voz) dispostos em uma zona de interao com a me, o beb
poder enfim ter uma imagem do corpo prprio responsvel pela organizao de um esquema corporal.
Esta operao mimtica de assuno de papis e imagens ideais no significa, no
entanto, consolidao de uma relao comunicacional entre sujeitos. Lacan procurou
demonstrar como as mltiplas figuras da agressividade e da rivalidade na relao com
o outro eram sintomas estruturais da impossibilidade do eu em assumir o papel
constitutivo do outro na determinao interna da sua prpria identidade. Assim, o
resultado das operaes mimticas de assuno de papis e imagens ideais seria a
confuso narcsica entre eu e outro, confuso atravs da qual o eu constitui processos
de referncia-a-si a partir dos moldes da referncia-ao-outro, isto ao mesmo tempo
em que denega tal dependncia. Da porque Lacan dir: "Ns consideramos o
narcisismo como a relao imaginria central para a relao interhumana" (LACAN,
1981, p. 107). Como vimos anteriormente, tanto Adorno quanto Lacan aceitam que a
identidade do eu moderno funda-se exatamente na denegao do papel constitutivo da identificao mimtica com a alteridade.
Mas se este for o problema, poderamos pensar que a simples posio da centralidade
da identificao mimtica com o outro poderia livrar o sujeito das iluses identitrias
do eu, e lev-lo a assumir a anterioridade das relaes intersubjetivas na constituio
de sujeitos socializados. Como se as expectativas postas na mimesis j fossem
realizadas quando compreendemos de maneira correta o que so afinal relaes intersubjetivas.
No entanto, deveramos lembrar que, se os processos de socializao e de individuao
so tal como Lacan os pensa, ou seja, operados inicialmente atravs da introjeo da
imagem de um outro que d forma ao eu e ao corpo prprio, ento a revelao das
dinmicas de introjeo e projeo apenas levaria o sujeito a compreender
a socializao como alienao necessria de si na imagem de um outro. Compreenso
de que as relaes a si, as dinmicas do desejo, assim como as expectativas mais
amplas do eu como sujeito de conhecimento so formadas a partir do outro. Fato
resumido por Lacan atravs da afirmao cannica: "O desejo do homem o desejo do
outro" (ainda com a minscula).
Postos os mecanismos de socializao como processos de alienao, haveria, grosso
modo, duas maneiras de levar o sujeito para alm da confuso narcsica com o outro.
A primeira consistiria em insistir em uma funo de transcendncia constitutiva das
posies dos sujeitos. Transcendncia que implicaria a ausncia de toda e qualquer
afinidade mimtica entre o sujeito e aquilo que aparece no campo emprico. Tal
estratgia aparece em Lacan atravs da temtica do desejo como pura negatividade,
como "falta-aser" primordial que pe a no-adequao entre o sujeito e aquilo que aparece no campo emprico. Levar o sujeito a se reconhecer na pura negatividade do
desejo seria, de uma certa forma, a maneira de cur-lo das iluses do narcisismo e da
alienao. Neste sentido, vale para Lacan o que Sartre havia dito a respeito do desejo
como funo intencional constitutiva do sujeito: "O homem fundamentalmente
desejo de ser e a existncia deste desejo no deve ser estabelecida por uma induo
emprica; ela resulta de uma descrio a priori do ser do para-si, j que o desejo
-
falta e que o para-si o ser que para si mesmo sua prpria falta de ser" (SARTRE,
1943, p. 610).
Muito haveria a se dizer a respeito de certas proximidades entre Sartre e Lacan sobre
a teoria do desejo. Entretanto, vale a pena aqui simplesmente lembrar que este apelo
a uma funo de transcendncia constitutiva das posies dos sujeitos ser
relativizado por Lacan. Aos poucos, ele reconhecer que o verdadeiro potencial de no-
identidade no vir de uma certa transcendncia negativa do desejo, at porque Lacan
compreender que o desejo, longe de ser uma falta primordial, ser causado por estes
objetos parciais que haviam sido perdidos nos processos de socializao e formao do
corpo prprio. Como se a formao da auto-identidade nunca deixasse de produzir um resto que insiste para alm do desejo socializado.
A princpio, esta estratgia poderia parecer alguma forma astuta de retorno ao arcaico
e ao informe como protocolo de cura. Retorno animado pela nostalgia de um estado de
indiferenciao pr-discursiva irremediavelmente perdido. Afinal, no o prprio Lacan
quem fala s vezes de "objeto perdido" para se referir quilo que permanece como
"resto" dos processos de socializao? Neste ponto, devemos apenas lembrar que o
que est realmente em jogo aqui a constatao de que sujeitos podem se posicionar
naquilo que no se submete integralmente individuao. Esta operao
fundamental para que possamos: "com a fora do sujeito, quebrar a iluso da
subjetividade constitutiva" (ADORNO, 1975, p. 10). No se trata de operao alguma
de retorno, mas de compreenso do sujeito como espao de tenso entre exigncias
de socializao (submetidas a protocolos de alienao) e reconhecimento da
irredutibilidade da opacidade de objetos pulsionais que no se conformam imagem de si. Ou seja, sujeito como espao de no-identidade.
Um exemplo esclarecedor aqui talvez seja a maneira com que Lacan retoma uma certa "fenomenologia do olhar" apresentada por Sartre em O ser e o nada.
Levando em conta a longa tradio da filosofia da conscincia que se serve de
metforas escpicas para dar conta dos processos auto-reflexivos da conscincia,
Lacan insiste que o olhar um objeto especial, porquanto sempre elidido no interior de
relaes intersubjetivas. "O olhar especifica-se como sendo inapreensvel", dir Lacan
(1973, p. 79). Maneira de insistir que algo fundamental do sujeito no encontra lugar
no campo intersubjetivo.
Para tanto, Lacan faz apelo a fenomenologia do olhar em Sartre, a saber, a este
impasse intersubjetivo que, para Sartre aparece principalmente nas relaes
amorosas. O amante quer ser o olhar no qual a liberdade do outro aceita perder-se,
olhar sob o qual o outro aceita estar transformando-se em objeto. Pois o que o amante
exige : "uma liberdade que, enquanto liberdade, reclama sua alienao" (SARTRE,
1943, p. 415). Desta forma, enquanto me colocar na posio de sujeito, nunca terei
diante de mim um outro olhar "desejante", olhar que presentifica o outro. Terei apenas
um olhar reificado, transformado em objeto narcsico no qual vejo apenas minha
prpria imagem. S posso ter diante de mim um olhar na condio de me colocar
como objeto. Pois: "identifico-me totalmente a meu ser-olhado a fim de manter diante
de mim a liberdade "olhante" (libert regardante) do outro; apenas este ser-objeto
que pode servir-me de instrumento para operar a assimilao, a mim, da outra
liberdade" (SARTRE, 1943, p. 404). Desta forma, o reconhecimento intersubjetivo de
um ser que em Sartre fundamentalmente transcendncia, estaria assim fadado ao
fracasso. O olhar (da conscincia) sempre reduz o outro condio de objeto. "Jamais
-
voc me olha l de onde te vejo, inversamente, o que olho nunca o que quero ver",
dir Lacan (1973, p. 95).
Mas, em vez de entrar neste impasse vinculado a operaes de uma filosofia da
conscincia, Lacan insiste na possibilidade daquilo que no encontra lugar na relao
entre sujeitos poder ser posto atravs da confrontao entre sujeito e objeto. Para
tanto, o sujeito deve ter a experincia de que: "do lado das coisas, h o olhar"
(LACAN, 1973, p. 100). O que implica o abandono de uma concepo do ser do sujeito
pensada fundamentalmente em termos de transcendncia em prol de um conceito de
subjetividade vinculada ao reconhecimento de que o sujeito porta, em si mesmo e de
maneira essencial, algo da ordem da opacidade dos objetos. Pois dizer que h um
olhar que vem das coisas significa insistir que o sujeito pode se reconhecer na
dimenso do objeto. Tal posio ainda mais fcil para Lacan na medida em que o
olhar aparece, em sua metapsicologia, como um destes objetos aos quais o sujeito
estava ligado em relaes de indiferenciao simbitica antes dos processos de socializao.
H vrias maneiras de compreender esta transformao da natureza em um "Argos de
mil olhos", como diria Hegel, mas h uma que, neste contexto, merece uma ateno
especial. Ela nos recoloca nas vias do problema do mimetismo, tal como vimos em
Adorno. E no por acaso que tambm Lacan convocar Roger Caillois a fim de nos
lembrar, tal como fora o caso no texto de Adorno, que o mimetismo animal nos explica
como um sujeito pode se reconhecer l onde as representaes, com seus sistemas
fixos de identidades, vacilam. Momento que nos permite dizer, com Merleau-Ponty:
O vidente, estando pego nisto que ele v, ainda ele mesmo que ele v: h um
narcisismo fundamental de toda viso; e que, pela mesma razo, a viso que ele
exerce, ele a recebe tambm das coisas, que, como dizem vrios pintores, eu me sinto
olhado pelas coisas, minha atividade identicamente passividade o que o sentido segundo e mais profundo do narcisismo (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 145).
Ao me sentir olhado pelas coisas que anteriormente pareciam totalmente submetidas
aos protocolos narcsicos, encontro-me diante de algo de mim que me impede de
hipostasiar o conceito de identidade. Muito h ainda a se dizer a respeito do sentido de
tais experincias, mas certo que foi a partir delas que Lacan e Adorno tentaram, com
a fora do sujeito, quebrar a iluso da subjetividade constitutiva.
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1 Artigo recebido em 03/2005; aprovado para publicao em 05/2005.
2 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de So Paulo, doutor em
-
filosofia pela Universidade de Paris VIII; [email protected]
3 Para uma posio contrria, ver DEWS (1987)
4 Por exemplo, lembremos da importncia da noo adorniana de impulso (Impuls,
Trieb, Drang) na preparao de um "conceito positivo de razo que possa liber-la do
emaranhado que a prende a uma dominao cega" (ADORNO e HORKHEIMER, 1991, p.
18). Pois um conceito positivo de razo deve ser capaz de reconhecer que "as
motivaes mais distantes do pensamento alimentamse dos impulsos", j que: "se os
impulsos (Trieb) no so superados (aufgehoben) pelo pensamento, o conhecimento
advm impossvel e o pensamento que mata o desejo, seu pai, v-se surpreendido
pela vingana da estupidez" (ADORNO, 1993, p. 107). Eis proposies que nos
lembram claramente como as performances cognitivas do sujeito do conhecimento e
suas aes na dimenso prtica so afetadas pelo pulsional. Pois o conceito de impulso
radicalmente dependente da leitura adorniana da teoria psicanaltica das pulses,
haja vista a utilizao de conceitos pesados de ressonncia psicanaltica,
como Drang e Trieb, na formao da constelao semntica prpria ao impulso. Que a
construo do conceito adorniano de impulso seja guiada pelas consideraes
psicanalticas sobre a pulso, isto fica absolutamente claro se lembrarmos de
afirmaes como: "A conscincia nascente da liberdade alimenta-se da memria
(Erinnerung) do impulso (Impuls) arcaico, no ainda guiado por um eu slido"
(ADORNO, 1975, p. 221). Na verdade, vemos aqui como Adorno tem em vista as
moes pulsionais auto-erticas satisfeitas por objetos parciais.
5 "No lugar da questo sociolgica a respeito dos modos de integrao social e de
conflito social aparece [em Adorno] a questo referente influncia recproca entre
pulses individuais e reproduo econmica ou seja, a aproximao possvel entre psicanlise e anlise do sistema econmico" (HONNETH, 1991, p. 101).
6 Esta raiz hegeliana comum no deve ser desprezada, j que Hegel referncia maior
e conflituosa tanto para Adorno quanto para Lacan, e trata-se de um erro maior
acreditar que a influncia de Hegel sobre Lacan resume-se ao peso de Kojve e de
Hyppolite nos primeiros seminrios e escritos lacanianos.
7 Devemos lembrar do que Lacan diz a respeito de Schreber: "H literalmente
fragmentao de identidade (..) Encontram-se, de um lado, identidades mltiplas de
um mesmo personagem, de outro, estas pequenas identidades enigmticas no interior
do si mesmo, diversamente nocivas e que chama, por exemplo, de pequenos homens"
(LACAN, 1981, pp. 112-113).
8 Devemos compreender assim a afirmao de Bubner, segundo a qual a teoria crtica
exige: "uma teoria da histria que aspira a um estatuto ontolgico" (BUBNER, 1989).
verdade que esta insistncia em uma dimenso ontolgica do pensamento adorniano
parece ir contra o proprio Adorno. Pois ele que afirma: "a crtica da ontologia no
tem por objetivo fornecer uma outra ontologia, nem mesmo uma ontologia do no-
ontolgico (Nichtontologischen). Seno, ela apenas por um outro como
absolutamente primeiro; desta vez no a identidade absoluta, o ser, o conceito, mas o
no-idntico, o ente, a faticidade. Ela hipostasiaria assim o conceito do no-conceitual
e iria contra aquilo que ela significa"(ADORNO, 1975, p. 140). A afirmao astuta por
mostrar os riscos que corre qualquer tentativa de recuperao de uma dimenso
ontolgica para o pensamento. Mas creio que afirmaes como estas s so
compreensveis se lembrarmos :"que h uma ontologia que permanece ao longo da
histria: a ontologia do desespero (Verzweiflung). Mas se se trata de uma ontologia da
perenidade, ento o pensamento ver cada poca, e sobretudo a sua, que ele conhece
de maneira imediata, como a mais terrvel de todas" (ADORNO, 1999, p. 598). Ou
seja, esta ontologia do desepero no pode ser ontologia do no-conceitual, da
faticidade irredutvel e, acima de tudo, no pode ser uma ontologizao da diferena.
O que no devemos fazer pr um "absolutamente primeiro" como discurso do ser
como ser. O risco consiste em cair em uma posio da imanncia que apaga a no-
-
identidade que deveria ser salva. Para no se auto-anular, uma ontologia negativa s
pode ser pressuposta como "background" do discurso sobre os domnios da dimenso
prtica. Ela s pode aparecer na latncia do horizonte que orienta as aspiraes de
racionalidade e insiste sob discursos nticos. Quer dizer, as figuras desta ontologia s
se desenham no interior dos campos da empiria e da prxis, mas elas no se reduzem
a meras prescries sobre a prxis.
9 Neste sentido, devemos lembrar que o programa adorniano de uma "sntese no
violenta" deve concernir: "o reconhecimento do no-idntico na compreenso da
realidade e na relao do sujeito a si mesmo" (WELLMER, 1986, p. 25).
10 Neste sentido, sigamos a afirmao: "Sempre que as energias intelectuais esto
intencionalmente concentradas no mundo exterior (..) tendemos a ignorar o processo
subjetivo imanente esquematizao e a colocar o sistema como a coisa mesma.
Como o pensamento patolgico, o pensamento objetivador contm a arbitrariedade do
fim subjetivo que estranho coisa" (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 180).
11 Martin Jay nos lembra que, em Adorno, o comportamento mimtico no imitao
do objeto, mas aproximao (anschmiegen) de si com o objeto ( Cf. JAY, 1999, p.
30).
12 O termo "psicastenia" refere-se nosografia de Pierre Janet, que compreendia a
psicatenia como afeco mental caracterizada por rebaixamento da tenso psicolgica
entre o eu e o meio, sendo responsvel por desordens como sentimentos de
incompletude, perda do sentido da realidade, fenmenos ansiosos, entre outros.
13 Neste sentido, tomo a liberdade de remeter a SAFATLE, 2005
14 H vrias passagens na Teoria Esttica que repetem tal imperativo; por exemplo:
"a arte deve absorver seu inimigo mortfero, a formaequivalente (Vertauschbarkeit) e deve, atravs da sua concretude, apresentar (darstellen) a totalidade das relaes abstratas e desta forma resistir a ela" (ADORNO, 1973, p. 203).