Entrevista Marcus Tardelli

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44 • Julho / 2006 Decidido a se lançar em carreira solo, Tar- delli deixou de lado o violão requinto que tocava no Maogani e aceitou o convite de Guinga para gravar um CD só com músicas do compositor carioca. O fruto dessa parce- ria intérprete/compositor pode ser conferido no impressionante CD Unha e Carne, lan- çado recentemente pela gravadora Biscoito Fino. Nele, Tardelli mostra seus arranjos de violão solo para as músicas de Guinga – que inclusive produziu o álbum – e esbanja mu- sicalidade nas suas interpretações, com um fraseado limpíssimo, muito suingue e pro- fundidade nas faixas mais introspectivas. A Violão PRO entrevistou Marcus Tardelli, que falou sobre esse lançamento e também sobre a maneira como encara a música e o violão de um modo geral. > Como surgiu a idéia de gravar um CD de violão solo inteiramente com músicas de Guinga? Acho que minha sina sempre foi a de tocar Entrevista Marcus Tardelli V iolonista raro, de senso musical apurado e total domínio técnico sobre o instrumento, Marcus Tardelli é uma das grandes surpresas do violão brasileiro. Talvez, para alguns, o seu talento não seja uma novidade porque, durante quatro anos, ele fez parte do ótimo Quarteto Maogani, grupo carioca que faz um belíssimo trabalho desenvolvendo arranjos e explorando sonoridades do violão. violão solo mesmo. Eu vinha tocando em outros trabalhos e há algum tempo estava procurando idéias e um repertório para um CD meu. Conheci o Guinga em 2001, por meio do Maogani. Ele percebeu alguma coi- sa diferente no meu jeito de tocar e quis me ver tocando sozinho. Toquei alguns arranjos meus de músicas dele e ele gostou muito, fi- cou emocionado mesmo. Ele me disse então que tinha a idéia de gravar um CD de violão solo, interpretando suas músicas, mas que abriria mão de fazer esse álbum se eu topas- se gravá-lo. Um tempo depois, esse convite Unha e Carne: Marcus Tardelli e a musica de Guinga “Acho que nem tudo tem de ser diferente para ser bom. O arranjador tem de ter essa preocupação e respeitar a música do compositor.” acabou se concretizando e eu aceitei na hora. O Guinga é considerado o maior composi- tor do Brasil dos últimos 20 anos. Inclusive, acho que ele é mais compositor do que vio- lonista, e olha que ele toca muito bem. Ele também tinha sido muito pouco gravado em violão, embora tudo o que componha sem- pre passe por esse instrumento. > O que a música do Guinga significa para você? É uma das coisas mais originais da música brasileira. Ele consegue sintetizar na sua música todas as tendências, como o choro e a valsa brasileira, e tem uma influência nordestina, tudo isso em uma linguagem harmônica muito própria e com um pou- co de influência até de Villa-Lobos. Sinto até mais influência da música erudita – que é mais forte na música brasileira – do que do jazz. Além dessa originalidade, há três coisas que acho fundamentais na música dele: a beleza das melodias, intui- Por Fábio Carrilho

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Decidido a se lançar em carreira solo, Tar-delli deixou de lado o violão requinto que tocava no Maogani e aceitou o convite de Guinga para gravar um CD só com músicas do compositor carioca. O fruto dessa parce-ria intérprete/compositor pode ser conferido no impressionante CD Unha e Carne, lan-çado recentemente pela gravadora Biscoito Fino. Nele, Tardelli mostra seus arranjos de violão solo para as músicas de Guinga – que inclusive produziu o álbum – e esbanja mu-sicalidade nas suas interpretações, com um fraseado limpíssimo, muito suingue e pro-fundidade nas faixas mais introspectivas. A Violão PRO entrevistou Marcus Tardelli, que falou sobre esse lançamento e também sobre a maneira como encara a música e o violão de um modo geral.

> Como surgiu a idéia de gravar um CD de violão solo inteiramente com músicas de Guinga?Acho que minha sina sempre foi a de tocar

Entrevista

Marcus TardelliViolonista raro, de senso

musical apurado e total domínio técnico sobre o

instrumento, Marcus Tardelli é uma das grandes surpresas do violão brasileiro. Talvez, para alguns, o seu talento não seja uma novidade porque, durante quatro anos, ele fez parte do ótimo Quarteto Maogani, grupo carioca que faz um belíssimo trabalho desenvolvendo arranjos e explorando sonoridades do violão.

violão solo mesmo. Eu vinha tocando em outros trabalhos e há algum tempo estava procurando idéias e um repertório para um CD meu. Conheci o Guinga em 2001, por

meio do Maogani. Ele percebeu alguma coi-sa diferente no meu jeito de tocar e quis me ver tocando sozinho. Toquei alguns arranjos meus de músicas dele e ele gostou muito, fi -cou emocionado mesmo. Ele me disse então que tinha a idéia de gravar um CD de violão solo, interpretando suas músicas, mas que abriria mão de fazer esse álbum se eu topas-se gravá-lo. Um tempo depois, esse convite

Unha e Carne:Marcus Tardelli ea musica de Guinga

“Acho que nem tudo tem de

ser diferente para ser bom.

O arranjador tem de ter essa

preocupação e respeitar a

música do compositor.”

acabou se concretizando e eu aceitei na hora. O Guinga é considerado o maior composi-tor do Brasil dos últimos 20 anos. Inclusive, acho que ele é mais compositor do que vio-lonista, e olha que ele toca muito bem. Ele também tinha sido muito pouco gravado em violão, embora tudo o que componha sem-pre passe por esse instrumento.

> O que a música do Guinga signifi ca para você?É uma das coisas mais originais da música brasileira. Ele consegue sintetizar na sua música todas as tendências, como o choro e a valsa brasileira, e tem uma influência nordestina, tudo isso em uma linguagem harmônica muito própria e com um pou-co de influência até de Villa-Lobos. Sinto até mais influência da música erudita – que é mais forte na música brasileira – do que do jazz. Além dessa originalidade, há três coisas que acho fundamentais na música dele: a beleza das melodias, intui-

Por Fábio Carrilho

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tivas e muito inspiradas, a profundidade da música e o seu significado, que são os lugares para onde ela te leva.

> Como foi ter o Guinga como produtor?Ele me disse o seguinte: “Faça o disco do jeito que a sua alma pedir. Faça os seus arranjos, es-colha o repertório que você quiser”. Fiz questão de que ele estivesse presente nas gravações. Esse disco representa bem a relação do intérprete com o compositor. Às vezes, os intérpretes não têm a sorte ou a oportunidade de ter o com-positor ao seu lado na hora de fazer o disco. Imagine fazer um disco de Villa-Lobos tendo o próprio ao seu lado, acompanhando tudo. Fiz os meus arranjos, mas sempre acompanhado por ele e isso somou muito. O Guinga diz que, quando estamos juntos, um acaba incentivan-do o outro. As composições dele me incenti-vam a tocar violão e a fazer arranjos. Ele diz que o meu violão o incentiva a compor. Até apare-ceu uma música quando estávamos acabando de gravar o disco fruto dessa relação.

> Essa música foi Unha e Carne. Como você recebeu esse presente?O Guinga esteve presente nas gravações, mas não acompanhou detalhadamente todos os takes. No dia em que ele ouviu o disco intei-ro, fi cou muito emocionado. Foi para casa, compôs essa música de madrugada e levou no dia seguinte ao estúdio. Ele me deu dois presentes ao mesmo tempo: a música Unha e Carne, que eu acabei gravando e serviu de nome para o CD, e o violão dele, que eu ti-nha usado nas gravações. Era o violão de que ele mais gostava. Ele me disse: “Depois que você gravou este disco com o meu violão, esse violão é seu. Não posso mais fi car com ele”. Só ganhei presentes neste CD!

> Como você pensou os arranjos das músicas?Procurei dar à música do Guinga uma ver-são orquestral no violão solo, de modo que o violão pudesse dar conta de tudo. Nunca me enquadrei em uma escola de violão. Comecei de maneira autodidata e sempre gostei muito

Os Equipamentos usados em “Unha e Carne”

• Violão Lineu Bravo – luthier de Conceição do Mato Dentro (MG).“Foi esse o violão que ganhei de Guinga”, diz Tardelli.

• Violão Manuel Contreras –Edição especial de 1999

• Cordas Augustine Imperial• Unhas: “Não as deixo muito grandes.

Tenho um som mais de polpa e gosto de sentir o dedo nas cordas. Ela é apenas para acabamento final. Muitas vezes, dobro o polegar para evitar a unha e conseguir sons mais graves e abafados. Uso unhas arredondadas”.

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“Guinga me deu dois presentes ao

mesmo tempo: a música Unha e Carne,

que eu acabei gravando e serviu de

nome para o CD, e o violão dele,

que eu tinha usado nas gravações.”

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mais de música do que de violão, apesar de amar o instrumento. Ouvia mais discos de orquestras e de outras formações do que dis-cos de violão. De modo geral, tive poucas infl uências das escolas de violonistas. Para produzir deter-minados sons, as minhas mãos foram se desenvolvendo de uma forma que eu sabia que não era permitida pela técnica tradicio-nal de violão. Por exemplo, uso o polegar da mão esquerda o tem-po todo para fazer algumas har-monias e também melodias que, com a técnica tradicional, eu não conseguiria fazer. Às vezes, você quer deixar um acorde parado com a mão esquerda, de quatro notas, e o dedo polegar pode ser usado para mover outras notas, sem aquele acorde parar de soar. É como se você pegasse o pedal do piano e continuasse tocando outras notas. Penso sempre em usar uma técnica em favor da mú-sica. Nunca coloquei barreiras do tipo: “Isso é impossível de tocar”.

> Como você fez para manter a essência das músicas e ainda assim mostrar o seu lado de ar-ranjador?Acho que nem tudo tem de ser diferente para ser bom. O difícil é não ser redundante tocando uma coisa igual e, ao mesmo tem-po, não fi car em uma invencionice, indo para um outro lado. Sempre me perguntava, quando estava criando uma introdução para as músicas dele, se eu estava sendo o Guinga também. O arranjador tem que ter a preocu-pação e respeitar a música do compositor.

> O CD conta com dois ‘medleys’, um de baiões e outro de frevos. Por que optou por esse formato? Em relação aos baiões, sempre senti uma in-fl uência nordestina muito forte na música do Guinga, principalmente dos baiões. Os

motivos musicais dos baiões são muito in-teressantes. Separei alguns deles, acrescentei algumas coisas na perspectiva desses temas e quis transformá-los em uma coisa violonísti-ca, explorando uma ‘cama’ percussiva no ins-trumento, o suingue, a mão direita. Busquei insinuar uma orquestra de sopros, principal-mente nos frevos, com as vozes entrando uma após a outra, um tema que começa com duas notinhas e termina com várias vozes. Apesar dessa intenção rítmica, também trabalhei bas-tante as harmonias nesses ‘medleys’.

> Você é um autodidata e mesmo assim pos-sui um som muito limpo e uma grande técni-ca. Como desenvolveu a sua técnica?Sempre ouvi muitos discos de orquestras.

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Quando a orquestra é boa, a afi nação e a execução são muito limpas, assim como o acaba-mento da música. Isso infl uen-ciou muito a minha sonoridade no instrumento. Ouvi também alguns instrumentistas – não ouvi demais – e gostava do som deles, como o Julian Bream. Também gostava do Raphael Rabello, pela naturalidade com que ele tocava os sambas e pelo seu suingue. Para mim, depois do Baden Powell, o Raphael foi o grande violonista solo da música popular em sua época. Quando ouvia algum violonis-ta, sempre me ligava mais no lado da expressão e não no da técnica. A técnica e a velocidade são maravilhosas. A pessoa que tem facilidade com o instru-mento possui um dom divino e isso deve ser respeitado. Mas o cara também não pode virar escravo da técnica. As minhas infl uências são mais musicais do que violonísticas.

> Você tem alguma rotina de estudos?

Nunca fui um cara muito disci-plinado. Quando comecei a tocar, cheguei a ter aulas com um professor erudito, mas sabia que o meu caminho era o da música popular. Sempre tirei muita coisa de ouvi-do. Eu morava em Petrópolis (RJ) e não lia muita partitura – e lá, também, não havia muitas partituras. Tirava muita coisa de discos e fi tas e das rádios e depois tocava junto. Mais tarde, quando fi z faculdade de música, aí sim fui começando a ler parti-turas. Mas eu tinha uma fome para tocar que acabava tirando tudo de ouvido. Os professores não gostavam muito. Quan-do tinha uns 9 anos, ganhei um disco do Dilermando Reis. Meu pai diz que minha fome era tanta que eu tirei o disco inteiro em apenas duas semanas.

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Sites: www.orkut.com/Community.aspx?cmm=10864314

www.marcustardelli.com.br

Marcus Tardelli nunca se encaixou em esco-la alguma de violão. Talvez por isso ele seja tão genial. A seguir, Tardelli comenta alguns trechos de seus arranjos de violão do CD Unha e Carne. Um bom desafi o para o leitor é tentar realizar as aberturas em que Tardelli usa o dedo polegar para tocar os baixos dos acordes. Boa sorte, você vai precisar!

“O Ex.1 é um trecho do meu arranjo

Dedilhando com

MarcusTardelli Marcus Tardelli e sua

técnica de polegar parafazer os baixos dos acordes

para Cine Baronesa. Nele, eu apresento um dos novos recursos da minha técnica de tocar: o uso do polegar da mão esquerda. Neste exemplo, o polegar foi usado para um maior alcance na extensão do acorde e ao mesmo tempo para compor a harmonia completa deste F#m6. Eu uso o polegar na frente do braço do violão junto com os ou-tros dedos (veja a foto). No segundo com-

passo, o polegar fi ca os três tempos no baixo (Si bemol) e logo depois o polegar cai parar o Fá sustenido do próximo acorde.”

“O Ex.2 é um trecho do meu arranjo para a música Dichavado. Nele, eu aplico uma téc-nica de mão direita para causar a sensação de dois violões tocando ao mesmo tempo, um so-lando a melodia e outro acompanhando com uma levada sobre a melodia sem prejudicá-la.”