entrevista a marcola e o efeito bumerangue da violência
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ENTREVISTA A MARCOLA E O EFEITO BUMERANGUE DA VIOLÊNCIA
Rocio Castro Kaustener∗ RESUMO: Este trabalho, inspirado no texto, amplamente difundido pela internet, do cineasta Arnaldo Jabor , simulando entrevista ao líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) Marcola, tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a violência na sociedade brasileira em particular, mas também na sociedade globalizada em geral. A reflexão é feita à luz das teorias que falam da construção das identidades como negação das diferenças que ameaçam a normalidade fictícia sobre a qual têm se assentado, ao longo da história, os diferentes sistemas de dominação - patriarcado, colonialismo e capitalismo. PALAVRAS-CHAVE : violência, identidades coletivas, patriarcado, colonialismo e capitalismo ABSTRACT: This work is inspired on Arnaldo Jabor’s text, widely heralded in the media . In it , Jabor simulates an interview with Marcola, leader of the criminal group known as The First Command of the Capital (PCC). The aim of this work is to discuss violence in Brazilian society as well as in contemporary society in general. In doing so, we try to use the theories that deals with the construction of identities, in such way that negates the differences which seem to threat the ficticious normality built, along the history, by the systems of domination such as patriarchalism, capitalism and colonialism. KEYWORDS: violence, colective identities, patriarcalism, colonialism and capitalism
1. INTRODUÇÃO
Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade (Entrevista a Marcola, JABOR, 2006).
Este trabalho, inspirado no texto do cineasta Arnaldo Jabor (2006) que simula,
num exercício de alteridade, entrevista ao líder do Primeiro Comando da Capital
(PCC) Marcola, e analisado à luz do estudo que Cabaço e Chaves (2004) fazem sobre
∗ Doutora em Antropologia Social pela Universidade Complutense de Madri (UCM).
o colonialismo, a violência e a identidade cultural em Frantz Fanon, apresenta uma
reflexão sobre a violência na sociedade brasileira em particular, mas também na
sociedade globalizada em geral, a partir das teorias que falam da construção das
identidades como negação das diferenças que ameaçam a normalidade fictícia sobre a
que têm se assentado, ao longo da historia, os diferentes sistemas de
dominação(patriarcado, colonialismo e capitalismo) que conformam o imperialismo
da globalização.
As diversas ondas de violência que o crime organizado executou na cidade de
São Paulo durante o inverno de 2006 aparecem aos olhos da maioria, como assim é
colocado pela mídia, como um fenômeno novo surgido do nada e motivado por um
instinto selvagem vulgarmente considerado como inerente à população das favelas. De
costas a historia de todo um complexo processo de exclusão que se remonta à época
da escravidão e que gerou a massa de favelados assentados junto a modernas e
luxuosas edificações nas cidades brasileiras, a elite brasileira, formada também por
nos, intelectuais de esquerda, tem se confinado nas áreas nobres das cidades que
oferecem segurança e acesso a todo tipo de consumo - desde hospitais e escolas
privadas para nossos filhos até shoppings centers e grandes supermercados – sem
imaginar - não queríamos imaginar - que o sangue do presunto diário desovado numa
vala (JABOR, 2006) na favela iria um dia atingir nosso cinema de shopping, nosso
supermercado e nosso condomínio fechado.
A realidade é que Brasil, segundo dados do Ministério de Justiça de 2003, ocupa
o terceiro lugar no mundo em homicídios vitimizando jovens, sendo que estados como
Rio de Janeiro e Pernambuco, e cidades como Recife, Vitória, São Paulo, Rio de
Janeiro, Cuaibá e Macapá, superam o primeiro lugar da Colômbia, com destaque para
Recife, com uma taxa mais do que duas vezes maior. Segundo dados do IBGE, nas
décadas de 1980 e 1990, 598.567 brasileiros foram assassinados, na sua maioria
jovens entre 15 e 24 anos. Nos últimos cinco anos, apresença da violência juvenil
cresceu nada menos que 1.300% nos 50 maiores jornais do país (DE OLIVEIRA C.,
2005). Segundo estudo da ONG Viva Rio, entre 1987 e 2000 morreram mais
adolescentes por ferimento à bala no rio de Janeiro do que em países de guerra civil
declarada – só entre 1994 e 1998 morreram 12 mil (KEIL, 2005). Dados do BID de
1999 mostram que as regiões que possuem maiores taxas de crescimento da
criminalidade são as que apresentam as menores taxas de desenvolvimento
econômico, o que supõe uma perca do 10.5% do PIB em razão da falta de segurança.
Segundo levantamento do Ministério de Justiça de 1995 a 1997 houve um aumento de
presos por ano da ordem de 11.500, um total de 46 mil presos a mais, ascendendo a
um total de 194.074, Com esse ritmo seria necessário construir 14 presídios por ano
para abrigar os novos condenados (GOMES, 2005).
Contudo, a elite continua apostando pela “normalidade” trazida pelo progresso,
um progresso baseado cada vez mais na aparência e nos bens materiais que reduz as
condições de cidadania - da que tanto nos intelectuais gostamos de falar - à potência
consumidora. Nossos favelados no podem ir a escolas privadas, menos ainda a
universidades públicas, mas também querem ser cidadãos, querem consumir. Esse
desejo está internalizado numa nova geração que sabe que é cada vez mais difícil,
inclusive para os instruídos e diplomados, se inserir no mercado de trabalho. Assim é
como, atendendo a suas demandas, surge o etos do guerreiro (ZALUAR, 2004) do
tráfico de drogas - as multinacionais do pó (JABOR, 2006), que afeta preferentemente
aos jovens homens. Considerando este fato, concordamos com Oliveira quando diz
que
A violência juvenil é um pedido de socorro, e se este não é escutado ou, até mesmo evoca represálias em resposta, há mais chances do agravamento da situação, ampliada pelos ressentimentos mútuos e desejos de vingança que se perpetuam, sem cessar, na paisagem brasileira (OLIVEIRA C., 2005: 23).
O objetivo das reflexões que trazem este trabalho é alertar sobre a gravedade de
convivir com uma cultura que termina se habituando à violência, aceitando-la como
normal e, seguindo os conselhos que Jabor coloca na voz de Marcola, enfatizar sobre a
necessidade de nos, intelectuais, desistir de defender a “normalidade”, pois não há
mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria
incompetência. (JABOR, 2006).
Como metodologia para nossa análise estabelecemos uma relação entre as
diversas teorias da filosofia, psicologia, sociologia e antropologia que têm estudado a
formação da identidade em sua dialética com a diferença e a violência como efeito
bumerangue dos sistemas de dominação baseados na construção de identidades
coletivas – de gênero, etnia e classe - na base de anulação das diferenças individuais.
Basicamente este trabalho é um exercício de alteridade tal e como nos aconselha a
metodologia de antropólogos como Clifford Geertz e Roberto da Matta, tentando
cruzar os caminhos da empatia e a humildade. É preciso sentir a marginalidade, a
solidão e a saudade, admitir que o homem não se enxerga sozinho, que precisa de
outro como seu espelho e seu guia (DA MATTA, 1987: 173).
2. IDENTIDADE, DIFERENÇA, ALTERIDADE E VIOLÊNCIA
Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços ...A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala (Entrevista a marcola, JABOR, 2006)
Desde que nascemos somos capturados por imagens que dizem de nós e olhares que nos fazem marca...transitamos no mundo sempre à procura de responder àquilo que se espera de nós (LANIUS,2005: 143).
A identidade é resultado de um processo discursivo com o outro em
constante transformação de tal forma que Hall (1992) nós diz que não podemos falar
de identidade mas de identificação. O processo de identificação se inicia nos primeiros
anos de vida no seio da família quando a criança sai da fase egocêntrica na qual ela é o
centro do mundo e começa a diferenciar seu eu separadamente do de seus
progenitores. É a fase do espelho de Lacan, na qual, segundo interpretação de
Woodword (2000:64), o sentimento de identidade surge da internalização das visões
exteriores que ela tem de si própria. Assim é como se forma a subjetividade, da
objetivação do mundo exterior que, pela sua vez, constitui o outro, o outro que não sou
eu, que é diferente a mim, o diferente. Nesse processo de subjetivação pela
objetivação se inicia todo um ciclo dialético com a diferença no qual, como fala
Rolnik (1999:160) o outro nos arranca permanentemente de nós mesmos e cada vez
que encarnamos uma diferença nos tornamos outros. De tal forma que nossa natureza
é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de devir-outro.
O outro, diferente, representa para o eu o desconhecido, o caos e, num mundo
exterior, que apresenta a realidade como estável, imóvel, predecível e controlada por
normas para a integração e a ordem social tal e como foi formulada pelo pensamento
positivista ainda predominante na atualidade, o caos é uma ameaça porque
desestabiliza, desequilibra. Assim é como Rolnik (1999) explica como é formada a
visão negativa do diferente, porque representa o caos que desequilibra e nos aterroriza,
e a identidade sofre o impacto do embate com o outro, como o diferente caótico que
quer nos desequilibrar. Então o eu passa a desenvolver mecanismos de defesa que lhe
proteja do caos desequilibrador que para ele representa o outro, o diferente, fechando-
se em seu próprio eu, transformando-se de sujeito produtor de diferenças por natureza,
em sujeito marginalizador dessas diferenças.
Nossa consciência torna-se totalitária e, segundo Rolnik (1999:168), essa
consciência está na base de nossa moral moderna que se nega a compreender que o
caos é só fatal exatamente quando nos recusamos a admiti-lo em sua positividade,
obstruindo qualquer movimento de criação. Mas, da mesma forma que a física
quântica demonstrou que o mundo está movido pelo caos permanente, a realidade
social não é estável nem imutável, é um processo de constante mudança motivada pela
interação social, que é sempre uma interação com a diferença. Se nossa moral e nossa
consciência totalitária não permitem a criação porque obstruem qualquer movimento
na sua direção, ela vai criar destruição - quantas guerras tem se declarado em nome da
única verdade religiosa, em nome da ordem democrática, quanta violência tem se
gerado em nome da ordem e o progresso?
Impossibilitados pelo terror de construir nossa identidade no caos positivo e
criativo do ser – porque o ser sempre está se criando e re-criando na dialética com a
interação social, a mesma dialética pela qual o outro nos faz a nós – tentamos construí-
la na base aparentemente sólida e estável do material, do ter. Assim também viramos
de sujeitos criativos da diferença a sujeitos produtivos e consumidores do consumo
standarizado num mundo em que os ricos, cada vez menos e mais ricos, vivem com
medo da concorrência e os pobres, cada vez mais e mais pobres, vivem a violência de
estar compelidos ao consumo sem recursos para consumir. Como nos fala Kurz
(1998), não é mais um tempo de esperança, mas um tempo de medo. Os trabalhadores
vivem com o terror de ser demitidos, os professores com o terror de ser ameaçados
pelos estudantes, os pais com a incerteza de dar um futuro para seus filhos e os filhos
com a repulsa do horror no qual têm crescido e o desejo ardente do “ser no ter” que
tem mamado desde crianças.
A diferença nos aterroriza, e o sujeito da moral é envolvido por este terror às
mudanças e ao caos que representa o diferente. O sujeito “normal” vive num constante
terror que o nível de destruição e a violência atual estão evidenciando na forma de
carros blindados e cercas elétricas. É o mesmo terror de nos enfrentar com o caos de
nossa própria identidade, reafirmada na base fictícia da estabilidade material num
mundo cada vez mais inestável, que nos leva ao desencontro inclusive com nossos
pares, ao desentendimento com nossos filhos e finalmente em muitos casos, ao
terapeuta. Como diz Clifford Geertz (1998), vivemos vidas padronizadas de desespero
que tentamos resolver através de expertos estrategistas, e estrategistas expertos, que
com “fórmulas mágicas” pretendem dar sentido a nossas vidas, principalmente para
administrar melhor nosso medo, medo ao caos que enxergarmos como negativo – o
produtor principal do estresse que a maioria de nos sofre.
A análise que nos oferece Rolnik da construção da identidade na base da
anulação da diferença – fato definido por Geertz (2001:117) como a tragédia
antropológica motivada pela lastimável confusão que assalta os homens quando eles
não compreendem a fala uns dos outros e julgam mais fácil transformá-los em
monstros conhecidos do que reconhecê-los como diferentes - no é nova na história do
conhecimento e está na base da construção de uma cultura de dominação através da
violência. Assim, na dialética hegeliana o senhor reconstrói o escravo como objeto; na
Tª da legitimação de Weber (1972), existem dominantes porque existem dominados;
para Sartre (1975), no seu Retrato do colonizador, a impossível desumanização do
oprimido transforma-se em alienação do opressor; levando a raciocínio a nível
psicológico, Simone de Beauvoir (1987) diz que nos afirmamos como sujeito
constituindo ao outro como objeto; para Fanon (1983), o homem é humano na medida
que se impõe a outro homem para ser reconhecido por ele; no Manifesto Antropófago
de Oswald de Andrade (1972), a identidade brasileira foi feita de tudo quanto o
colonizador “devorou”; o elo perdido de Oliveira (1987), quando se refere á carência
para o negro de una identidade de classe em um sistema de classes, se deve à falta de
identificação do um frente ao outro. Como observa Hall (1999:63), a identidade
nacional foi construída sobre a base de culturas separadas que só foram unificadas
por um longo processo de conquista violenta, isto é, pela supressão forçada da
diferença cultural.
Assim, as identidades coletivas – de gênero, etnia e classe - culturalmente tem
sempre se construído na base de normas e valores impostos pela força, pela violência
exercida pelos diferentes sistemas de dominação que apresentam as diferenças como
ameaçadoras da ordem por eles estabelecidos. Esse fato tem sido uma constante na
história da humanidade, como analisaremos através dos três grandes sistemas de
dominação – patriarcado, colonialismo e capitalismo – que têm estabelecido as
diferenças socioculturais em torno as três grandes categorias de desigualdade: gênero,
etnia e classe. A reflexão sobre o desenvolvimento histórico destes sistemas de
dominação nos leva à observação de que a dominação está relacionada com a negação
do direito à diferença biológica, cultural ou religiosa e à negação ao direito da
igualdade social sob a criação de diferenças sociais que estimam as condições dos uns
(homens, brancos e ricos) em base ao detrimento, inferiorização e subjugação dos
outros (mulheres, minorias étnicas ou não- brancos e pobres). Partimos do fato de que,
mesmo que os sistemas democráticos tenham evolucionado muito, as relações
hierárquicas continuam sendo consideradas como formas naturais e necessárias de
organização social. Este pensamento é muito mais facilmente “racionalizado” quando
existem diferencias biológicas, como as de sexo e raça, na medida em que se utilizam
para justificar a naturalização das diferenças sociais (STOLKE,1990).
3.4. A GLOBALIZAÇÃO IMPERIALISTA CRIA AO OUTRO, O E XCLUÍDO, COMO VIOLENTO
Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em “seja marginal, seja herói”? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? (Entrevista a Marcola ,JABOR, 2006).
Campo privilegiado para semear condutas compulsivas como o consumo e a
violência do eto do guerreiro na procura desenfreada por uma identidade, a juventude
é o lugar onde se materializam os conflitos de uma sociedade (DA ROSA, 2005, p.
123) que cada vez faz mais apologia da violência através da mídia:
Uma criança nos Estados Unidos está exposta a uma média de 41 mortes ou atos de violência para cada hora de desenho animado. Chegando ao sétimo ano do primeiro grau terá visto oito mil assassinatos e cem mil atos de violência. Assim, a mídia produz a reproduz a cultura de consumo, da violência e do sexo, a fim de assegurar para as corporações o mercado de que necessitam (ROUANET, 2000:67).
Esta nova geração, que cresce com a crise de desemprego conseqüente dos
processos de globalização, forma parte do contingente dos excluídos: já não servem
nem como mão de obra a ser explorada. Sempre vistos pela oligarquia como a massa
preguiçosa incapaz de produzir (OLIVEIRA, 1987), passam a ser identificados como
marginais e, potencialmente, protagonistas da delinqüência e violência urbanas. A
história da construção das identidades coletivas tem lhe conduzido aos momentos nos
quais a nova geração, o futuro do planeta, sofre toda esta realidade globalizada que
reforça a identidade do outro, o excluído, como violento, sob o etos do guerreiro:
A recusa em aceitar que novas formas de associação entre criminosos tivessem mudado o cenário não só da criminalidade, mas também da economia e da política no país (...) deixou livre o caminho para oprogressivo desmantelamento nos bairros pobres daquilo que havia de rica vida associativa, tão importante no direcionamento de suas demandas coletivas e da sua sociabilidade positiva, civilizada. Deixou espalhar-se entre alguns jovens pobres um etos guerreiro que os tornou insensíveis ao sofrimento alheio (...) e permitiu abalar a civilidade dos moradores do Rio de Janeiro, que fora construída ao longo de décadas, principalmente pelos seus artistas populares, os sambistas (ZALUAR, 2004: 8)
Este jovem excluído da modernidade que procura sua identidade no etos do
guerreiro concentra-se nas grandes metrópoles que, só nos últimos 50 anos na
América Latina e no Caribe, têm se expandido horizontalmente ocupando territórios
que são mais de 10 vezes dos que foram ocupados nos 400 anos anteriores a seu
desenvolvimento (ROJAS, 2000). Considerando que América Latina abriga as
maiores metrópoles do mundo, a região se coloca também na vanguarda de suas
grandes contradições. São Paulo é vivo exemplo disso: setores da cidade similares a
Boston convivem com bairros de favelas do nível de Haiti. As grandes metrópoles
brasileiras, ao assimilar com grande capacidade de adaptação, flexibilidade e
criatividade os condicionantes da modernidade sem ter aniquilado seu passado
histórico colonial-escravocrata, reproduzem, em escala menor, o fenômeno da
distribuição da riqueza que caracterizou ao Brasil com o nome de Belindia (CASTRO,
2004). Constituem-se em palco predileto e campo fértil para a reprodução da exclusão
social.
Alba Zaluar (2004) tem observado que, apesar da escolaridade dos jovens da
periferia das grandes cidades ter aumentado significativamente em relação a períodos
anteriores, sua integração na sociedade é muito mais difícil. Segundo pesquisa de
Menezes e Carrera-Fernandez (2001), sobretudo a partir da década de 1990 se
fortalece a exclusão social ao reduzir-se também as oportunidades ocupacionais dos
jovens, não só nos setores tradicionais da economia, mas também nos tecnicamente
mais modernos, ao mesmo tempo que aumenta a exploração do trabalho realizado por
jovens, por tratar-se de uma mão de obra ainda pouco qualificada em relação ao
níveis exigidos pelo mercado de trabalho (MENEZES eCARRERA-FERNANDEZ,
2001: 80).
A exclusão gera violência, porque o excluído não se sente como cidadão na
sociedade. Não só não têm direitos, mas também está sobrando, está incomodando, já
não serve nem como escravo. É convertido em lixo, essa é a maior agressão que se
pode cometer contra o ser humano. Indiretamente, a sociedade está desejando a sua
eliminação, mentalmente sempre está executando um assassinato. Assim a violência
chega ao seu clímax produzindo, como efeito bumerangue, os assassinatos, entre
outros muitos, do crime organizado que aterroriza o Brasil inteiro.
5. IDENTIDADE E VIOLÊNCIA COMO EFEITOS BUMERANGUE D O CAOS COMO NEGATIVO
Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo (Entrevista a Marcola ,JABOR, 2006).
Foi Sartre, em seu “Retrato do colonizado” (1975), o primeiro em descrever o
efeito bumerangue da violência que estava surgindo durante o processo de
descolonização dos territórios africanos pelos europeus na décado dos 50 do século
pasado. Assim, refletia que
Basta que (...) os recém-nascidos (dos países do Terceiro Mundo) tenham que temer a vida um pouco mais que a morte, e a torrente da violência rompe todas a barreiras (...) é o momento do bumerangue, o terceiro tempo de violência; volta-se contra nós, atinge-nos e, como de costume, não compreendemos que é nossa (SARTRE, apud CABAÇOS e CHAVES, 2004:68).
Podemos dizer que o efeito bumerangue se globaliza ao tempo que se
globalizão as populações com as migrações, se espalham condutas de consumo e se
explicitam os conflitos interculturais – religiosos, étnicos e nacionalistas - que afetam
primordialmente e uma vez mais às “minorias étnicas” do Terceiro Mundo, em
sociedades em que a superioridade do homem sobre a mulher continua sendo
socialmente aceita.
Na globalização, o poder se faz muito perigoso, devido à dificuldade para ser
combatido, pois está em todos lados, mas não é visível. É o poder disciplinar de
Foucault (1992), que aparentemente não usa a força física, mas a escravidão das
mentes através do consumismo e da exclusão, sendo que hoje, apesar do crescimento
econômico mundial e do progresso tecnológico, a fome mata mais que as guerras -
como presenciamos no caso dramático da África. Na realidade, poderíamos falar que o
poder de nossos dias se serve da fome para continuar fazendo a guerra, declarada,
enquanto uma guerra não declarada ha surgido, já de forma organizada em São Paulo,
com as multinacionais do pó do crime organizado querendo se inserir como
consumidores.
É uma guerra não declarada de fome de ser alguém, ter identidade. É a fome das
marcas, do consumo, porque as novas gerações já interiorizaram a identidade da
mordenidade: ser e ter. Mencionamos os conflitos não explícitos entre o amo e o
escravo de Hegel, o branco e o negro de Fanon, o homem e a mulher, de Beauvoir. E
agora, é o conflito explícito em forma de guerra não declarada do crime organizado no
Brasil, que poderia ser interpretado como resposta ao poder disciplinar cujo
instrumento de dominação tem sido sempre, usando a visão metafórica de Foucault
(1992), uma guerra entre raças (ou tribos, como nas antigas hordas primitivas) –a
super-raça branca e a sub-raça não branca- que o social-darwinismo a legitimou com
argumentos biológicos e o marxismo a traduziu em termos de classe. Só falta lembrar
a Foucault que a guerra historicamente tem sido instrumento de supremacia masculina
e que os líderes da super-raça sempre tem sido homens.
No mundo atual continua, pois, predominando os valores masculinos, a cultura
da globalização continua sendo regida em “Nome do Pai”, sob uma nova aparência: do
grande patriarca progenitor da espécie e chefe de sua tribo, evoluiu ao executivo da
cultura ocidental – homem branco e proprietário, com formação altamente
especializada nas melhores universidades da Europa e Estados Unidos, que traspassa
os estados como se foram tribos, avalado pelo sucesso econômico que lhe garante a
sua eficácia competitiva para alimentar a fantasia da normalidade sob a ordem e
progresso conforme prega a bandeira brasileira. Mas, esquecendo que a identidade se
forma na relação com o outro, ao excluir ao outro está se excluíndo a sim mesmo.
Assim o olhar do vitimado desestabiliza o mundo dos satisfeitos e aponta para a
busca necessária de alternativas (RUIZ, 2003: 260). As identidades precisam ser
reajustadas e reconstruidas.
6. ALTERNATIVAS: IDENTIDADE CONTRUÍDA NO SENSO DE ALTERIDADE E A TOLERÂNCIA À DIVERSIDADE COMO EFEITO S BUMERANGUE DO CAOS POSITIVO
Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão... (Entrevista a Marcola, JABOR, 2006)
Apelando ao inconsciente coletivo de Jung, qualquer europeu deve poder
responder pelos crimes cometidos pela barbárie nazista, como pela barbárie colonial, e
a barbárie do crime organizado. A alteridade nos coloca frente à responsabilidade
coletiva. Por isso a necessidade de uma educação voltada para o desenvolvimento do
senso de alteridade, ja que a violência pode ser interpretada como um grito de
identidade, de dizer - estamos aqui!, não nos ignorem porque somos diferentes.
Para compreender quando começa o processo de senso de alteridade precisamos
lembrar que nossa identidade se inicia na alteridade no seio da família. Entendemos
que as relações de parentesco, mesmo que para a maioria da população permanecem
importantes, especialmente no interior da família nuclear, já não são os veículos de
laços sociais intensamente organizados através do espaço e o tempo. Como observa
Giddens (1991) cada vez mais são as organizações desencaixadas que ligam práticas
locais com relações sociais globalizadas as que organizam nossa vida cotidiana. Com
tudo, continua nos pesando o passado comum, os valores transmitidos de geração em
geração, a história construída coletivamente. A família, qualquer que seja, continua
sendo o primeiro âmbito social onde se desenvolve a identidade do eu, o qual, desde
que nasce vê espelhada nela as regras e contradições da sociedade. Em função desta
interação sente suas potencialidades como possíveis realidades ou possíveis
frustrações. Assim, concordamos com Szymanski (1990:23) quando diz que
a descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como o lócus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento.
Mas, como analisa Heller (1998), a maioria das famílias burguesas não
fomentam o espirito de coletividade entre as crianças. E se paramos a pensar, é porque
não há tempo – a sensação de urgência estudada pelos teóricos da contemporaneidade
como Giddens e Foucault, entre outros. Nosso tempo está dominado pela produção
para o consumo de uma forma compulsiva, e os valores de compartilha e vida
comunitária que, de certa forma, umas vezes bem e outras mal, fornecia a família,
ficam esquecidos, esquecendo também que é a família que educa à nova geração, é a
base de operações de toda nossa vida cotidiana, o lugar de partida e o ponto de
retorno (HELLER, 1998: 36). Por isso nossa análise começou pela família e termina
por ela, porque as mudanças começam dentro dela.
Esta análise pretende contribuir para a reflexão autocrítica, desde que nós
intelectuais, com medo ao caos criativo que se alimenta das diferenças, sustentamos a
normalidade fictícia através de nossas práticas normalizantes tanto na família como
nas instituições reproduzendo dentro delas o mundo hierárquico exterior, e
alimentando os sistemas de dominação que sustentam a exclusão como conseqüência e
a violência como resposta, ao mesmo tempo em que construímos teorias sobre a
necessidade de mudar essa realidade. Alimentamos também, pois, a esquizofrenia
entre o discurso e a prática, fenômeno que incorporamos como inerente a nossa
identidade de intelectuais.
Ressaltamos a importância de policiar estas atitudes e condutas na medida que,
ao estarem tão inseridas em nosso cotidiano, invisivelmente perpetuam praticas de
poder-dominação sobre nossos diferentes: nossos técnicos, estudantes, funcionários e
empregados domésticos, porque, tal e como observa Nunes (1999, p. 121),
Os sinais portadores de diferencição intrínsecos à vivência cultural dos membros da elite, como a atitude corporal confiante, a desenvoltura no falar, o olhar direto, a capacidade de pedir um serviço e mesmo de mandar, exercida desde a infância na relação com os empregados domésticos, são captados pelas pessoas, e negá-los seria falsear a realidade
Precisamos nós, intelectuais, tomar consciência de que não estamos acima das
teorias que construímos. Também nós, analistas críticos da dominação, somos
escravos de nossa superioridade/inferioridade e desenvolvemos condutas neuróticas
através das quais, para reafirmar nossa identidade, negamos ao outro. Precisamos de
compreender que essa violência que se volta contra nós é também nossa.
Recebido em maio de 2009
Aprovado em julho de 2009
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ANEXO Entrevista a Marcola (simulacro). Arnaldo Jabor. Jornal O Globo, segundo caderno, maio de 2006 ‘Você é do PCC?” — Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão... — Mas... a solução seria... Solução? Não há mais solução, cara... A própria idéia de “solução” já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma “tirania esclarecida”, que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios...) E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução. — Você não têm medo de morrer? Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala... Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em “seja marginal, seja herói”? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas “com autorização da Justiça”? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo. — O que mudou nas periferias? Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no “microondas”... ha, ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por
amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência. — Mas o que devemos fazer? Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, “Sobre a guerra”. Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também “umazinha”, daquelas bombas sujas mesmo... Já pensou? Ipanema radioativa? --- Mas... não haveria solução? Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a “normalidade”. Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco... na boa... na moral... Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: “Lasciate ogna speranza voi che entrate!” Percam as esperanças. Estamos todos no inferno.