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ENTRE HOMENS, PIGMEUS E MACACOS: O ESTRANGEIRO
MONSTRUOSO COMO TEMA COMUM AO CONHECIMENTO
GEOGRÁFICO E À ESCOLÁSTICA DURANTE A BAIXA IDADE MÉDIA
FERNANDO PONZI FERRARI
Mestre em História - UFRGS
Os habitantes das terras distantes formaram uma grande incógnita para o
pensamento medieval. Os estrangeiros perdiam-se nas brechas do amálgama cultural
entre gregos, romanos, hebraicos e “bárbaros” que formaram o horizonte imaginativo da
cristandade romana. Contando com características de homens, animais e monstros, estes
seres exóticos eram receptáculo de tantos significados conjugados que só eram
comparáveis aos mistérios de suas terras originais. Entretanto, ao fim da Idade Média,
os projetos de expansão de várias culturas (incluindo da própria latinidade) geraram
uma tensão entre as populações imaginadas e aquelas que se apresentavam
empiricamente.
O presente artigo procura os cruzamentos das formas com as quais se
apresentavam os habitantes das terras distantes durante os séculos finais da Idade
Média, especialmente nos últimos momentos das Cruzadas e na chamada pax
mongólica (sec. XIII-XIV), quando os domínios estabelecidos pelos povos das estepes
possibilitaram um maior intercâmbio entre os dois opostos da Eurásia. Nesta época em
que a escolástica florescia nas universidades, comerciantes e evangelizadores “viam
com os próprios olhos” povos que abalavam os preceitos do conhecimento
compartilhado do Ocidente europeu e obras de síntese eram produzidas no norte da
península italiana procurando equilibrar os alicerces da latinidade com a enxurrada de
novos conhecimentos.
Diferentes meios e formas de escrita demonstravam o esforço em estabelecer um
para essas nações que fosse compatível com a cosmovisão latina.Para verificarmos a
permeabilidade do tópico dos estrangeiros monstruosos, abordaremos aqui os relatos de
2 2
viagens ao Extremo Oriente, as reflexões escolásticas de Alberto Magno e Tomás de
Aquino, e do humanista bolonhês Domenico Silvestri.
1. O esperado e o vivido: encontros com viajantes medievais1
Como ferramentas de síntese e tópico popular, os bestiários exerceram sua
influência sobre os viajantes. Le Goff propõe que a alegorização e moralização das
maravilhas permitem que a ordem divina e a natureza se mesclem neste tipo de livro de
monstros (1993, p. 280). Mas, ainda que os relatos resgatem grande parte dos animais
fabulosos, dificilmente podemos concordar com o historiador francês em sua afirmação
de que esta seria uma “recuperação científica” (LE GOFF, 1983, p. 27), ou seja, visando
uma “observação objetiva”, sem recairmos em um anacronismo.
Ainda assim, uma das consequências mais notáveis dos relatos das viagens ao
território mongol foi o questionamento do saber tradicional sobre as raças monstruosas,
especialmente àquelas vinculadas ao Extremo Oriente. O interesse suscitado pelo tema
através de fontes da Antiguidade (clássica e tardia) e escritos medievais (sobretudo os
de cunho moralizante ou satírico) fez com que a indagação sobre estas criaturas fosse
obrigatória por parte dos narradores, e o ceticismo radical causado por sua inexistência é
constantemente amparado por uma enunciação de investigação presencial. Rubrouck diz
que questionou os mongóis sobre a existência das criaturas citadas por Isidoro e Solano,
e, recebendo negativa, diz que não vê motivos para perguntar se alguma coisa que os
autores disseram seria verdade (p. 184). Giovanni di Marignolli procura mostrar uma
base racional sobre os "monstros que e a história fabula" residentes na Índia. Apoiando-
se em santo Agostinho, afirma que não existem e não poderiam existir, pois somente os
descendentes de Adão têm o dom do raciocínio, portanto são da mesma raça deste. No
máximo seriam homens comuns que possuíam algum prodígio natural, como uma
deformidade ou seis dedos, sendo que estas aberrações ocorrem em todos os lugares,
como ressalta sua descrição da Itália (Sinica Franciscana, T. 1, p. 342).
1 Aqui nos focaremos no embate das expectativas nutridas pelos viajantes sobre os orientais com a
realidade presenciada. Para uma análise da retórica da diferença tecida pelos relatos ao elaborar suas
descrições dos habitantes do alhures, veja FERRARI, 2014, pp. 61-99; GUÉRET-LAFERTÉ, 1994, pp.
211-283; HARTOG, 1999, pp. 229-271; O’DOHERTY, 1999, pp. 143-174.
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Além de negar estas lendas, Marignolli propõe um exemplo de sua origem: os
ciápodes não seriam seres de uma raça com apenas um enorme pé, mas observações
incompletas sobre o hábito dos indianos de usarem guarda-chuvas (papilionem) ao se
protegerem da chuva e do sol (p. 546). A observação direta permitiu a Giovanni não
somente discernir lenda de realidade, como estabelecer sua autoridade ao formular suas
explicações e demonstrar a integração destas ao conhecimento compartilhado por seu
meio2.
Peter Jackson mostra que o senso crítico presente no relato de Rubrouck era
muito apurado, mesmo ao compararmos seu relatório a outros:
Onde o relatório de Pian Carpini havia sobriamente listado raças fabulosas
como os parossitae e os cynocephali entre as nações da Ásia subjugadas
pelos mongóis, Rubrouck perguntou aos seus anfitriões mongóis sobre esses
monstros citados por Isidoro e Solino: ele foi informado de que tais criaturas
nunca haviam sido avistadas, ‘que nos faz duvidar muito se é verdade’, ele
diz. Apenas em uma ou duas vezes ele parece ter engolido alguma história
improvável, como quando fala de uma cidade no Cathay com paredes e
ameias de ouro e prata, sem dar maiores informações; por outro lado, rejeitou
uma lenda sobre um país para além do Cathay onde as pessoas mantinham
para sempre a idade que estavam ao nela entrar (JACKSON, 1994, p. 57).
Ainda que os viajantes falem muito das autoridades antigas ao revisitarem os
monstros e topoi atribuídos ao Oriente, sua visão e seus anseios não se afastam tanto
dos debates mais escolásticos de seu próprio tempo. Imersos em uma época de alto
desenvolvimento do pensamento escolástico, a preocupação com as faculdades racionais
e a liberdade de escolha permeiam indiretamente estes relatos.
Ainda que o olho do observador contrarie as lendas das criaturas encontradas em
bestiários, specula e obras descritivas, estes seres possuem destaque em um relato de
viagem. Desmistificadas, renomeadas ou (ainda que raramente) simplesmente negadas,
são parte da visão de mundo e ordenamento divino para a latinidade. Como vimos,
mesmo quando se tenta esvaziar tais mitos, o autor procura incorporar outros elementos
2Os animais fabulosos são alvo da mesma crítica dos monstros humanoides por outros viajantes. Ao citar
Isidoro de Sevilha para falar dos grandes cães do norte, Guilherme de Rubrouck corrige substancialmente
as informações do santo, substituindo um teor maravilhoso por uma descrição mais minuciosa:“Isidoro
diz que lá vivem cães tão grandes e de ferocidade tal que eles conseguem matar touros e mesmo leões. O
que é verdade tanto quanto eu pude me informar é o que segue: em direção ao Mar do Norte eles
aproveitam cães para puxar seus carros como bois, dado seu tamanho e força” (RUBROUCK, 1993, p.
184).
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conhecidos à sua obra: Marco Polo fala de homens com feições e dentes de cães na ilha
Agaman (p. 547), Pian Carpine fala de criaturas muito semelhantes aos cinocéfalos dos
mitos gregos nas regiões conquistadas pelos tártaros (cap. 12), e mesmo Jordanus
Catalani, que muitas vezes se assemelha a um naturalista em suas observações3, fala de
dragões cuspidores de fogo que têm seus carbúnculos levados como oferenda para o
“Imperador Preste João da Ætiopia”, na mesma India Tertia em que aves rocas
carregam elefantes em suas garras e onde passeiam os unicórnios (p. 42), e ainda faz
questão de diferenciá-los dos rinocerontes (p. 18). Em vez de contrariar estas lendas
como o faz no início de sua narrativa com os unicórnios-rinocerontes, as ratifica.
Isto combina com o caráter de recepção das obras de viagens da Idade Média: a
proposta dos narradores não é apresentar um mundo radicalmente novo à sua plateia
(fato impossível por si, dado as estruturas imaginativas dos autores e pela própria
linguagem), qualquer tentativa nesse sentido soaria como delírios de um lunático
desconectado com a realidade (WITTKOWER, 1942, p. 159-97). O compromisso de
causar espanto entre seus receptores exige que não ocorra uma simples repetição de
topoi, o que tornaria a narrativa redundante e enfadonha, mas também requisita que não
se rompa com um horizonte de expectativa. Mesmo os autores mais engajados em uma
descrição “factual” oferecem as surpresas do maravilhoso para seus leitores; como
Wittkower demonstra, os “monstros” irão residir nas obras geográficas, etnológicas,
biológicas e geológicas pelo menos até o século XVIII, pois a apreensão do
desconhecido pela linguagem faz com que todos os detalhes soem como teratológicos
(idem, p. 183).
2. Quais são homens aos olhos de Deus? Os cruzamentos da escolástica com os
viajantes.
Alberto Magno disseca sobre a natureza única do ser humano em De
Animalibus, um livro cujo título promete falar sobre animais, que acabam figurando
3Suas descrições dos cupins e do modo que as vespas colocam larvas em aranhas e depois as enterram é
especialmente perceptiva para um homem de sua época. YULE, 1929, p. 35-36.
5 5
apenas como alegoria dos predicados do homem. No entanto, entre as feras e os filhos
de Adão existem pelo menos dois intermediários4: os pigmeus
5, assim como os símios
6.
Tal como os homens, estas criaturas são capazes de disciplinabilia7, ou seja,
manter o controle da mente sobre o corpo que toda ação com proposto requisita, sendo
portanto capazes de aprender (Albertus Magnus, lib. 21, 1920, p.1329). Mas lhes falta
algo essencial:
(...) O pigmeu é o mais perfeito dos animais (...). Entre todos outros, ele
parece ser o que mais faz uso da memória e melhor entende os sinais
auditivos. Nesse sentido, ele imita ter a razão [intelecto], mas carece dela. A
razão é o poder da alma de aprender através de suas experiências do passado,
relacionando princípios ou deduzindo, de inferir [constantes] universais e
meditar sobre a aplicação destes princípios nas artes e nas ciências: e isto um
pigmeu não faz (idem, p.1329-1932).
A falta da ratio priva o pigmeu da civilidade e de seus elementos, que são: a
experiência da vergonha e a capacidade de diferenciar vício de virtude, o uso da
linguagem e das figuras retóricas, um sistema político e legal, e não ser um habitante
das florestas (idem, p.1329-1932). Em Ethica, Alberto Magno se afasta do contraste
com os animais para definir o bárbaro propriamente dito:
4 Como lembra a raiz etnológica comum entre “símio” e “semelhante”.
5 A relevância dos pigmeus em escritos medievais demonstra a perenidade de tópicos monstruosos greco-
latinos no pensamento medieval. Frequentemente evocado como aporte para debates sobre as qualidades
da alma, racionalidade e multiplicidade de criaturas do mundus, este povo diminuto aparece em grande
parte dos autores da patrística. Para um debate muito mais aprofundado sobre as transformações da
imagem e função destes pequenos seres na história, da Antiguidade à atualidade, vide: BAHUCHET,
1993, pp. 153-181. 6 Tido como a primeira história de detetives e um dos contos mais lidos do mundo Assassinatos na Rue
Morgue, de Edgar Alan Poe, faz constante referência às classificações do processo racional presentes na
obra de Alberto Magno – inclusive colocando um símio adestrado como antagonista. Entretanto, até onde
pudemos verificar esta conexão jamais foi feita, mesmo com sua introdução copiando sequências inteiras
de frases presentes nos livros do dominicano, como vemos em sua introdução: “O poder analítico não
deve confundir-se com a simples engenhosidade porque, se bem que seja o analista necessariamente
engenhoso, muitas vezes acontece que o homem engenhoso é notavelmente incapaz de análise. A
capacidade de construtividade e de combinação, por meio da qual usualmente se manifesta a
engenhosidade, e à qual os frenólogos (a meu ver, erroneamente) atribuem um órgão separado, supondo-a
uma faculdade primordial, tem sido tão frequentemente encontrada naqueles cujo intelecto está quase nos
limites da idiotia, que atraiu a atenção geral dos tratadistas de moral social. Entre o engenho e a
habilidade analítica existe uma diferença muito maior, na verdade, do que entre a fantasia e a imaginação,
mas de caráter estritamente análogo.” O processo analítico medieval também é magistralmente
demonstrado por Umberto Eco em seu O Nome da Rosa, onde o autor retrata este impulso investigativo
em um protagonista que até em seu nome funde Sherlock Holmes com Guilherme de Ockham. 7 Como o capítulo 3 anuncia em seu título: “Qualiter animalia sunt disciplinabilia ex aliqua partieipatione
virtutum animae et praeeipue qualiter hoc fit in generibus symiarum.” SADLER (org.), 1916, p. XVII.
6 6
Os [homens] bestiais são raros, pois é raro um homem que não possui nada
de humano. E quando isto ocorre, advém de duas razões: por lesão ou por
perda [privação]. Chamamos de bárbaros aqueles que não possuem leis, ou
uma civilização com ordem, ou uma estrutura de poder que os discipline.
Túlio [Cícero] chama de bárbaros os homens selvagens que levam a vida
como animais (...). Ou, da mesma forma, homens bestiais que comem carne
crua e bebem sangue humano, e se deliciam ao comer e beber em crânios
humanos (Albertus Magnus, 1651, vol. 4, lib.7, p.263).
Seu mais renomado aluno, Tomás de Aquino, aprofunda e contradiz em grande
parte estas ideias, adicionando um bom grau de relativismo. Se afastando das
características físicas que definiriam um homem monstruoso, a clareza do dominicano
ao expor seus argumentos é impressionante mesmo atualmente:
Mas pode haver dúvidas aqui sobre quem são os chamados bárbaros. Dizem
que se não entendo a língua de ninguém, chamarei todos de bárbaros. Para
outros, bárbaros são aqueles que não possuem sua língua vernácula escrita.
(...) E para alguns, bárbaros são aqueles que não são regidos por nenhuma lei
que os civilize.
E todas estas coisas chegam perto da verdade de diversas formas: chamamos
de “bárbaro” algo estranho para compreendê-lo. Um homem pode parecer
estranho em termos absolutos ou em comparação com outros. É
simplesmente tido como intruso aquele que é visto com um déficit de razão
entre os homens em termos absolutos; então simplesmente são chamados
bárbaros aqueles que carecem de intelecto, seja pela sorte de viverem em uma
região destemperada abaixo do céu, que torna sua disposição letárgica, ou
ainda por maus costumes que prevalecem em sua terra; estes homens se
tornam irracionais e quase brutais. Se o poder da razão prevalecer entre estes
povos, eles serão regidos por leis, portanto terão o dom da escrita
desenvolvida. Logo, a barbárie se manifesta claramente nestes sinais: ou
vivem sem lei, ou fazem um uso irracional delas, e, igualmente, entre alguns
povos, não se exercita a escrita. Mas chamamos de forasteiros aqueles com
quem não conseguimos nos comunicar. Ressalto, os homens foram feitos
para que palestrem entre si; segundo este princípio, se aqueles [povos] não
conseguirem se entender no que dizem, poderão chamar uns aos outros de
bárbaros (Thomas Aquinas, 1971, lib. 1, lect.1, par. 22-23).
Este relativismo não é inédito ou exclusivo do Doctor Angelicus, como mostra o
teólogo, cronista, bispo e viajante Jacques de Vitry, que escreve alguns anos antes de
Alberto Magno:
Para os ciclopes, todos possuem um olho, e, talvez, seja espantoso para eles
quem possui dois olhos, como nós ficaríamos admirados com quem é dotado
de três olhos. Assim como pensamos nos pigmeus como anões, estes nos
consideram gigantes ao compararem-se conosco. No entanto, na terra dos
gigantes, que são maiores que nós, teríamos fama de anões (Iacobi de
Vitriaco, 1597, lib. 2, p. 215).
7 7
Vitry foi o exemplo vivo da conexão que opera entre cronistas, teóricos e
viajantes8. Ao lermos as obras de cunho descritivo-educacional da Idade Média, é difícil
pensarmos que existe uma separação clara entre culturas escolástica e popular, pois os
vocabulários que hoje atribuímos a uma ou outra se infiltram constantemente
(KAHNMOHAMADI, 2013, p. 22-23). Ao compararmos viajantes de um mesmo meio
(frades por um lado, mercadores do norte da península italiana por outro), mas de graus
de educação formal diferentes, os termos que usam são praticamente os mesmos
(entretanto, seus julgamentos morais e religiosos mudam como veremos).
Não apenas estes viajantes compartilham de um mesmo vocabulário, como
dialogam entre si e com conhecimentos além de sua especificidade. Alberto Magno era
um dos principais intelectuais de seu tempo, uma voz que sintetizava e reformulava as
principais heranças antigas no pensamento cristão ao mesmo tempo em que inseria
elementos de escolha racional em sua obra, causando certo alarde nos meios
universitários e escolásticos. Odorico de Pordenone era um frade que mal conhecia as
referências toponímias do Oriente ao lançar-se em suas jornadas; e, se acreditarmos nos
resquícios biográficos que chegam até nós, tinha aversão a uma vida livresca, vivendo
grande parte de sua vida em um eremitério. Com isso em mente, vejamos esta passagem
onde descreve a cidade Chanthan, no nordeste da atual China:
E este rio passa pelo meio da terra dos pigmeus, cuja cidade é chamada de
Chanthan, que é uma das melhores e mais bonitas cidades do mundo; estes
pigmeus9 possuem três palmos de altura, e fazem as melhores obras em
Goton - que é [como chamam o] algodão - do mundo. Mais da metade dos
homens grandes [de tamanho normal] que vivem lá geram filhos de tamanho
diminuto como os pigmeus, que são tão pequenos. E por essa razão há muitos
destes pequeninos lá, e são incontáveis em seu número. Tanto homens quanto
mulheres pigmeus são conhecidos por seu pequeno tamanho; mas eles
possuem alma racional, como nós (capítulo 34; grifo nosso).
Yule, como a maioria dos tradutores e comentadores de Odorico, considera a
passagem acima destacada “confusa” (p. 209, nota 1). Se retornarmos ao pensamento de
Alberto Magno sobre os pigmeus, vemos esta frase surgir quase como uma resposta à
8 Inclusive sendo componente destas três categorias e nos lembrando como nós historiadores apoiamo-nos
em ferramentas analíticas alheias ao problema proposto e ressaltando o perigo de sobrepormos elas à
realidade. 9"(...) isto é, beduínos, (…)" na versão de Rammusio.
8 8
sua declaração de que seriam nada mais que animais que apenas aparentam a
humanidade; afinal, vivem em uma bela cidade, podem ser gerados de uma relação
entre duas pessoas normais e realizam (habilmente) ofícios têxteis. Não andam nus
(subentende-se, especialmente por serem tecelões), não vivem nas florestas, não há
indícios que comam carne humana ou que bebam sangue. Em suas comparações, Vitry
ressalta que a monstruosidade é relativa aos olhos de quem vê, e em momento algum
fala que eles são menos humanos por serem simplesmente diferentes de nós.
Finalmente, concordando com o que Aquino escreveu sobre os bárbaros, seu tamanho
diminuto parece mais atrelado a um nascimento em uma zona pouco propícia, mas não
lhes priva a humanidade – e consequentemente de uma alma humana.
Por outro lado, ainda encontramos frequentemente entre os viajantes os critérios
antigos e medievais sintetizados por Alberto Magno. Jordanus Catalani resume sua
condição de vida ao descrever os que vivem na floresta da Índia Menor e Maior: “não
comem, não bebem nem cooperam com aqueles que vivem à beira-mar” (p. 114) 10
.
Marignolli, que insiste na recusa da existência dos seres fantásticos, nos conta com ares
sombrios sobre homines silvestres que vivem nas florestas sem contato com outros
povos (Sinica Franciscana, Tomo 1, p. 548)11
. Marco Polo fala destes povos nas
montanhas de Pamir (p. 365), na planície ao norte de Karakorum (p. 393) e na ilha de
Agaman (p. 549), e Ricoldo de Montecroce apresenta os turcomanos e os curdos como
homines bestiales (p. 114 e p. 123).
Como toda figura histórica, os viajantes imprimem em suas narrativas debates de
seu tempo. Ainda que os hominídeos monstruosos sejam majoritariamente
desacreditados, um novo tipo de criatura assustadora surge em seu lugar: o selvagem.
Estes grupos são apresentados como habitantes de montanhas, florestas e lugares
isolados, que tendiam a viver nus ou em trapos e desconheceriam uma “cultura” como
os viajantes a reconhecem. Traços como ferocidade, crueldade, estupidez e mesmo
canibalismo são comumente associados a eles. São retratados como existindo de restos
10
“(…) non edentes, non bibenter, nec se cooperientessicut alii quihabitantjuxta mare.” 11
“Sunt homines silvestres in silvis cum filiis et uxoribusnudi et pilosi habitantes; inter homines non
apparent et raro potuiciderealiquem, quiaabscondut se in silvis quando senciunt homines transeuntes”.
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de carcaças e comendo carne crua; poucos aram a terra ou mantém animais domésticos.
Suas descrições são recheadas de enumerações, e, principalmente, de negações.
3. Tradutori, traitori – o homem monstruoso como intermediário entre a patrística
e os viajantes em Domenico Silvestri
Domenico Silvestri foi um escritor florentino, e uma figura frequente nos
ambientes mais refinados de sua cidade. Foi notário em sua cidade, sendo
posteriormente eleito consigliere, console, sindaco, e camarlingo duas vezes no distrito
de Santo Spirito VANHALEN, WARD, 2013, p. 105). Começou a composição de seu
De insulis et earum proprietatibus12
(ca. 1985), com pretensões de continuar o De
montibus, obra de Boccacio que procura a harmonia entre as oekumene e imago mundi
clássicos com referências contemporâneas.
Em sua introdução, Silvestri mantém a tradição de humildade dos
volgarizzatoris, ao mesmo tempo em que oferece a obra como um instrumento tanto do
ócio como para os negócios13
, mas não cumpre com a promessa de manter a redação em
“palavras simples e populares”. Seu comentário inicial destaca também a necessidade de
“preencher os vazios” do espaço, suprindo uma corporeidade imaginável para terras
pouco conhecidas.
Se conseguimos ver os debates das esferas mais intelectuais nos escritos de
viagem, os escritores do humanismo italiano14
não repercutiam o mesmo anseio em
valer-se de informações recentes, como Silvestri explicita na introdução de De Insula:
12
Recentemente, José Manuel Montesdeoca Medina traduziu a obra para o espanhol mantendo o texto
latino original com suas correções; uma breve comparação com as versões de Pecoraro e fragmentos das
de Ricci usados por O’Doherty revelou um texto mais limpo e coerente internamente, e será a edição
seguida aqui, referenciada como De insulis. 13
“Quapropter, ut sicut montes fontesque stagna et paludes diversis autorum libris sparsa in unum ad
usum legentium coiliguntur, ita de insulis, quantum capere ruditas mea posset, quedam in eis gesta,
quedam visu credituque mira quove mari locoque sint posita, popularibus et usitatis verbis et non quieti
otioque pallentibus, sed negotiis convenientibus transclripturus”. De insulis, fol. 6v. 14
Utilizamos aqui o termo “humanismo italiano” de forma intercambiável com “vulgarizadores”,
seguindo os estudos de VANHALEN, WARD, e especialmente CORNISH.
1
0 10
Dizem-nos cinco mil ilhas sob o domínio dos tártaros, se acreditarmos em
Odorico. Ele descreveu algumas destas, mas não devia misturar fábulas e
histórias de autores antigos com novas, que ainda não foram comprovadas em
nosso tempo, não fazendo nada mais que minar nossa confiança na verdade
com falsidades. E, ainda que o que Odorico escreveu seja verossímil, seria
prudente tomar como guia e imitar aquilo que escrevem os autores cuja
antiguidade e autoridade inspiram mais confiança, ou encontrar um
testemunho em voz viva, e meditar sobre este contraste. Pois sabemos quão
grande é a inveja de homens que odeiam a virtude e nobreza de outros. Não o
teria inserido aqui neste livro, assim como com Marco Polo, sem [compará-
los] com prudência com Dionísio, conhecido como Iohannis Nigrus, que
havia escutado ao mesmo tempo de Fantino, soldado veneziano e homem
valoroso, que assegurou que nas Índias há muito do que disseram. Em todo
caso, muito do que Marco Polo escreveu não está em desacordo com o que
dizem muitos autores ilustres (MEDINA, 2000, p. 85).
A clareza com que Domenico Silvestri expõe nesse parágrafo o contraste entre a
novitas e a autoritas para os medievais é impressionante. A noção de veritas é um
enquadramento entre autoridade sedimentada, testemunho e verossimilhança, nesta
ordem. O florentino não nega diretamente o relato de Odorico, mas sugere a seus
leitores cautela com informações que ainda não foram testadas – e, mesmo se forem
comprovadas por um relato “ao vivo”, ainda devemos meditar (e mediar) sobre aquilo
que é aceito amplamente como verdade.
Coloca seu próprio caso como exemplo: não teria colocado estes “novatos” no
livro se uma terceira parte (“Dionísio”) não tivesse confirmado suas informações; ainda
assim, só inseriu aquilo que não entrava em conflito as autoridades, sem confirmar os
viajantes diretamente. Se crer nestas narrativas sobre o Oriente incorresse em erro, este
seria de responsabilidade do leitor, pois o autor acautelou-os dos perigos de contrariar
aquilo que já está estabelecido. A inserção de Marco Polo pode ser explicada por uma
maior reprodução da “matéria do Oriente” no veneziano que no franciscano15
, mas
ainda precisa justificar este aporte usando os testemunhos que encontrou. Ainda assim,
15
Ou pelo menos uma adequação que evite conflitos com as fontes estabelecidas. A passagem em que
fala de fala da ilha de Pentalyn é muito ilustrativa neste sentido; nela, Silvestri fala da tribo dos Astami,
seres sem boca que se alimentam apenas do cheiro das maçãs que Isidoro descreve, relacionado este povo
com a ilha indonésia descrita por Polo, mas fala que não sabe se realmente são desta ilha, se isentando:
“Pentayn insula in Indico mari sita versus meridiemdicit Marcus venetus a
continentiquingentorummiliariorumintervallodistare. Hec satis silvestris est regio, arborumnemora sunt
ibidistillanteexhis odore mire suavitatis ut forte solo odore vivunt. NarratYsidorus in
IndiapropefontemGangisgentem esse qui solo odore cuiusdampomivivunt, qui si
longiuseuntpomumsecumferunt, moriunturenim si pravum odorem inveniunt. Si exhac insula essent
ignoro. Inter hanc et Laohe, de qua supra, per miliariasexagintaaltitudomaris non
ampliusquattuorpassuumreperitur, undetemonisope uti nequient in navigando.”. SILVESTRI, fol. 110f.
1
1 11
os dois viajantes (Polo e Odorico) que faz referência são perpassados pelo crivo
eclesiástico16
.
Silvestri insere os viajantes medievais justamente nos momentos em que
pretende embasar a existência dos hominídeos monstruosos descritos pela patrística
(ainda que estejam grandemente “fora de voga” dentro dos muros das universidades,
como vimos anteriormente), chegando a pedir a mesma flexibilidade de seus leitores ao
interpretar Marco Polo que ao ler Isidoro:
Agaman é uma grande ilha situada no Mar Índico, distante cento e cinquenta
milhas da ilha de Java. Conta Marco Polo que seus habitantes são selvagens e
ferozes, têm a cabeça e os olhos como os de cães e se alimentam igualmente
de arroz, leite e todo tipo de carnes, inclusive da humana. É uma ilha rica em
especiarias e em vários tipos de frutos, todos diferentes dos nossos. Não
havia Isidoro descrito em seu De ymagine mundi que na Índia há pessoas
com cabeça de cão e que latem em vez de possuírem uma voz como a nossa?
Se acreditamos nisso, por que não crer em Marco, o veneziano?
(SILVESTRI, fol. 11r)
Curiosamente, o canibalismo dos cinocéfalos não causa tanto horror à Silvestri
como em outras instâncias em que os habitantes das ilhas se apresentam como humanos
normais com hábitos bestiais (como nos casos expostos em FERRARI, pp. 179-185); o
humanista florentino prefere focar na semelhança entre as descrições de Polo e de
Isidoro do que no teor moralista de seus hábitos. Talvez esta opção reflita no caráter
relativamente positivo que estas criaturas possuíam na antiguidade e mesmo nas versões
em que são Cristóvão é retratado como um gigante com cabeça de cachorro
(VIGNOLO, 2007). O espanto parece surgir dos maus exemplos e práticas que de uma
forma física monstruosa - aparentemente se distanciando da paridade entre beleza e
virtude quando pensamos sobre a Idade Média.
4. Conclusão
16
No caso de Polo, através da tradução latina de seu Libro pelo dominicano bolonhês Francesco Pepino,
que exalta sua utilidade para futuros missionários e para a reflexão exegética através dos bons e maus
exemplos da variedade dos povos no mundo.
1
2 12
Fruto da distância e da rede de significados cumulativos do pensamento
medieval, o homem monstruoso se mostra um objeto popular e suscetível de
reinterpretações. Esta situação se torna ainda mais complexa quando este ser é um
habitante do Oriente – local ao mesmo tempo de uma Origem sagrada (da melancolia de
um Paraíso Perdido e da Jerusalém Celeste; DELUMEAU, 1992, cap. 1) e dos povos
infernais (aprisionados por Alexandre, o Vale de Gog e Magog; O’DOHERTY, 1999,
pp. 27-42).
Com os viajantes e as invasões mongóis, estes seres ganham uma corporeidade
que transcende os mitos fundadores da latinidade, gerando uma tensão entre o sabido e
o visto. Esta angústia é especialmente impactante em um mundo onde os significados se
agregam, e o vácuo de sentido é abominado. É buscando preencher este vazio que o
estrangeiro monstruoso se torna uma personagem presente em diversos meios de
comunicação escrita, possibilitando aos historiadores contemporâneos um meio fértil
para o estudo dos contatos entre as esferas de conhecimento durante a Idade Média.
Mas seria este um fenômeno exclusivo da latinidade medieval? Evidentemente
não, como Hartog desenvolve com maestria ao explicar como Heródoto criou uma série
de monstros para definir o que não seria monstruoso – os gregos (1999, Parte 2). Mas,
para além do mundo ocidental, Serge Bahuchet aponta dois dados interessantes. Grande
herdeiro da cultura helênica, o mundo islâmico também demonstra forte contato com o
mito dos pigmeus. Abul Al-Masudi, um viajante, cronista e naturalista, relata em seu
Muruj-al-Thahabwa al-Ma'adin al-Jawahir ("Searas de ouro e minas de pedras
preciosas", escrito em de 947) seres humanos chamados alqzam, que são “turcos
diminutos”. Para termos uma ideia da universalidade do fenômeno de “tornar monstro”
os residentes dos confins do mundo, uma “enciclopédia” chinesa do século VII (Kuo ti
chin) descreve gigantes de três pés que vivem ao sul do Império Romano, e homens da
Turquia que de tão pequenos chegam a ser comidos por garças (BAHUCHET, p. 157).
Não importa se um povo se veja como anões nos ombros de gigantes ou como os
próprios colossos - a visão se torna turva quando se olha para além do horizonte,
deixando que a imaginação preencha os vazios com seus próprios significados.
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