Enid blyton [gemeas 05] claudina no colégio de st clara (1)
-
Upload
carinaantuneslobo -
Category
Entertainment & Humor
-
view
96 -
download
0
Transcript of Enid blyton [gemeas 05] claudina no colégio de st clara (1)
Enid Blyton
Claudina no Colégio de Santa Clara
http://groups.google.com/group/digitalsource
Título: Gémeas
- Volume V:
CLAUDINA NO COLÉGIO DE SANTA CLARA.
Autora: Enid Blyton.
Dados da Edição: Editorial Notícias, Lisboa, 1978.
Título original: CLAUDINE AT ST. CLARE'S.
Tradução de MARIA ANTÓNIA CORREIA LEAL
Género: Juvenil.
by Methuen and Cª, Ltd. 1965
Reservados todos os direitos para Portugal
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente à
leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos
de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em
parte, ainda que gratuitamente.
1
1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
I Novo regresso ao Colégio
Patrícia e Isabel O'Sullivan entraram na sala do quarto ano no Colégio de
Santa Clara, e olharam para todos os lados.
- Quarto ano - disse Patrícia. - Meu Deus, como estamos adiantadas,
Isabel!
- É verdade. O quarto ano parece muito distante do primeiro - concordou
Isabel. - Lembras-te, quando estávamos no primeiro ano, há sete séculos?
Chamavam-nos as Gémeas Emproadas nessa altura, porque detestávamos o
Colégio de Santa Clara, e não queríamos cá estar.
As gémeas recordaram o seu tempo de caloiras, a sua instalação no
Colégio de Santa Clara, e como a aversão que a princípio sentiam se
transformara em orgulho e admiração. E agora ali estavam, já no quarto ano, no
começo do ano lectivo!
- Não achas que as caloiras parecem agora bebés - disse Patrícia. - Quando
para aqui viemos, pela primeira vez, achávamo-nos muito crescidas, mas ao ver
agora as caloiras parecem-me umas miúdas! Eu vou gostar muito de estar no
quarto ano, e tu Isabel?
- Eu também - disse Isabel. - Espero ficar aqui até ao último ano, e que as
nossas amigas fiquem também.
- Bem, algumas já saíram - disse Patrícia. - A Pamela não volta, nem a
Sheila. A Lúcia Oriell também se foi embora para uma Escola de Belas-Artes.
Ela tencionava ficar aqui, mas é muito artista e conseguiu uma bolsa de estudo
para a melhor Escola de Belas-Artes do país.
- Foi óptimo para a Lúcia! - disse Isabel. - Vamos ter saudades dela.
Haverá algumas alunas novas este ano?
- Há com certeza - disse Patrícia, olhando à roda da grande sala. - É uma
rica sala, não achas? É a mais bonita de todas as que temos tido até agora.
Desfruta-se uma linda vista da janela.
E assim era. As gémeas viam quilómetros duma paisagem encantadora.
Era uma paisagem já muito sua conhecida, e que ambas adoravam. Ao fundo,
nos terrenos do colégio, havia os campos de ténis e de outros jogos, e uma
grande piscina. Também viam os jardins do colégio, e a grande horta cheia de
frescos vegetais.
- Eu fico ao pé da janela - disse Patrícia. - Olá, lá vem a Roberta e a Joana!
A Roberta e a Joana entraram na sala a rir. A cara sardenta da Roberta
tinha um ar arrapazado, e as suas maneiras eram arrapazadas também. Era
muito brincalhona e gostava muito de fazer partidas.
- Olé! - disse ela. - Vieram ver a nossa nova sala? É bonita, não é?
- Como é a nossa nova professora? - perguntou Patrícia. - A miss Ellis...
dizem que é muito simpática, será?
- É muito calma, delicada e digna. É uma professora como deve ser - disse
Roberta.
- Tens algumas partidas novas para pregar, Joana - perguntou Isabel.
Todos os períodos a Joana tinha uma quantidade de partidas, a maior
parte das quais eram fornecidas pelo irmão, que também andava no colégio e
devia ser muito travesso. A Joana riu-se.
- Esperem e verão - disse ela. - De qualquer modo, agora que estou no
quarto ano, tenho que me portar com juízo. Quando se está nos últimos anos da
escola não se pode fazer tanta brincadeira. E também tenho que trabalhar para o
meu exame, por isso não vou ter muito tempo para partidas.
- Mesmo assim, desconfio que vais ter... - disse Patrícia. - Sabes se há
algumas alunas novas?
- Há duas ou três - respondeu Roberta. - Olá, Lida! Boas férias?
A Lida Wentworth entrou na sala, morena e sorridente.
Estava no Colégio de Santa Clara há mais tempo do que as gémeas.
- Olá! - disse ela. - Tive umas férias esplêndidas. Montei a cavalo todos os
dias, e joguei ténis todos os dias também. Olhem lá, quem é o anjo?
- O que é isso? - perguntaram as gémeas à Roberta.
- Ah, vocês ainda a não viram? - disse a Lida. - Acaba de chegar, completa,
com uma mala nova toda moderna, três raquetas de ténis, e uma carteira com as
suas iniciais em ouro! Até aposto que a vossa prima Adelina a considera uma
das sete maravilhas do mundo! Tem o cabelo dum louro claro, cortado como
geralmente se vê nos anjos das gravuras, um rosto oval como o das fadas, e uma
voz de princesa.
- Safa! Onde está ela? exclamaram as outras muito interessadas. - Será do
nosso ano?
- Está lá em baixo no vestíbulo - disse a Lida. - Chegou no maior carro que
eu já vi nos dias da minha vida, com dois motoristas!
- Vamos vê-la - disse Patrícia. E lá foram as cinco para o corredor,
debruçaram-se no balaústre das escadas para ver a recém-chegada.
Ainda lá estava, e era absolutamente verdade. Parecia mesmo um anjo, se
se pode imaginar um anjo de uniforme, com três lindas raquetas de ténis na
mão!
- É encantadora, não é? - disse Roberta que, não sendo nada bonita,
apreciava sempre a beleza das outras.
- Sim, também aposto que a Adelina vai andar atrás dela como um
cãozinho. A Adelina só se sente feliz na presença duma beleza tão
extraordinária que se não pode descrever!
A Adelina subia naquele momento. Era prima das gémeas. Uma bonita
rapariga, mas frívola e de cabeça oca.
- Olá! - disse ela. - Estavam a falar de mim?
- Estávamos! - concordou a Lida. - Estávamos a dizer que com certeza
gostavas daquela rapariga tipo anjo que lá está em baixo. Já viste alguma coisa
assim?
A Adelina debruçou-se no balaústre, e, de acordo com o prognóstico das
outras, ficou imediatamente de cabeça perdida.
- Parece uma princesa dum. conto de fadas! - disse ela. - vou ter com ela e
perguntar-lhe se quer que a acompanhe.
Foi a correr para baixo. As companheiras riram-se umas para as outras.
- A Adelina já perdeu a cabeça - comentou Patrícia.
- Pobre Adelina! A quantidade de amigas formidáveis que tem arranjado e
perdido! Lembram-se da Sara, a rapariga americana, e dela estar sempre a dizer
“A Sara diz...”, e de termos feito uma cantiga por causa disso, e de a cantarmos?
Como ela se zangava!
- Lembro-me perfeitamente. E quando estava no segundo ano, que achava
a nossa ensaiadora um assombro, e quando estava no terceiro perdia a cabeça
com a chefe de turma, a ponto de se tornar maçadora - disse Joana. - Realmente,
as vezes que a Adelina tem perdido a cabeça por pessoas que nunca lhe ligam
meia!
- É muito frívola - disse Patrícia. - Olhem para ela a pegar no braço do
anjo, já toda em cima dela!
- Há outra aluna nova lá em baixo - disse Roberta.
- Tem o ar de quem se sente abandonada. Acho que a Adelina devia levá-
la também. Hee! Adelina!
Mas Adelina havia desaparecido com o anjo dourado. As gémeas
desceram as escadas e dirigiram-se à outra aluna nova.
- Olá! Estás cá de novo, não estás? É melhor ires cumprimentar a Vigilante.
Nós levamos-te lá.
- Como te chamas - perguntou Patrícia, olhando para a recém-chegada,
que procurava mostrar que não se sentia nova nem perdida.
- Chamo-me Paulina Bingham-Jones - disse a nova aluna, numa voz um
tanto afectada. - Sim, gostaria que me dissessem o que devo fazer.
- Geralmente a Vigilante está aqui a receber as novas alunas - disse a Lida
um pouco intrigada. - Onde estará ela?
- Também ainda a não vi - disse Patrícia. - Também aqui não estava
quando nós chegámos.
- É estranho - comentou a Isabel. - Vamos à procura dela. Assim como
assim, temos que a cumprimentar.
Foram todas à procura da Vigilante e levaram Paulina. Bateram à porta.
Todas as alunas gostavam da Vigilante apesar de a temerem bastante. Havia
muitos anos que estava no Colégio de Santa Clara, e algumas das mães das
alunas, que também ali tinham estado no colégio, a tinham conhecido também.
Uma voz respondeu:
- Entrem!
- Não é a voz da Vigilante - disse Patrícia, muito admirada. Abriu a porta e
entrou, seguida pelas outras.
Uma senhora, com o uniforme da Vigilante, cosia junto da janela. Não era
a Vigilante que elas conheciam tão bem. As raparigas olharam para ela,
surpreendidas.
- Ah! - exclamou Patrícia - vínhamos à procura da Vigilante.
- Neste período sou eu a Vigilante - esclareceu ela.
- A vossa antiga Vigilante adoeceu durante as férias, e por isso vim.
substituí-la. Tenho a certeza de que nos vamos dar muito bem.
As raparigas ficaram a olhar para ela. Não estavam muito seguras disso. A
antiga Vigilante era gorda e alegre, com uma cara redonda que inspirava
confiança. Esta Vigilante era magra e tinha um ar azedo. Os lábios eram muito
delgados e com a boca fechada pareciam uma linha recta. Sorria às alunas, mas
o seu sorriso não ia além da boca, nunca chegava aos olhos.
- Viemos à sua procura - disse Roberta. - A antiga Vigilante costumava ir
esperar as alunas novas. Esta é uma delas. Vem trazer-lhe a lista das suas
roupas, toalhas, etc.
- Bem sei, obrigada - disse a Vigilante, cortando com os dentes a linha com
que estava a coser. - Mandem-me todas as alunas novas, sim? Quantas
chegaram?
As raparigas não sabiam. Achavam que a Vigilante é que devia sabê-lo e
não elas. Lembraram-se da antiga Vigilante, que andava dum lado para o outro
à procura das alunas novas para lhes dar as boas-vindas, apresentá-las às
respectivas professoras, ou arranjar antigas alunas que olhassem por elas.
- Esta é Paulina Bingham-Jones - disse Patrícia por fim. - Há outra aluna
nova algures, que nós já vimos. Parece que a nossa prima Adelina anda com ela.
As raparigas abandonaram a sala, deixando a Paulina com a nova
Vigilante. Olharam umas para as outras e torceram o nariz.
- Não gosto dela - comentou Isabel. - Parece uma garrafa de vinagre!
As outras riram-se.
- Deus queira que a antiga Vigilante volte - disse Roberta. - O Colégio de
Santa Clara não parece o mesmo sem ela. Gostava de saber para onde é que a
Adelina levou o “anjo”.
Adelina apareceu naquele momento, muito corada e radiante. Era mais
que evidente que arranjara uma amiga. Vinha acompanhada do “anjo”.
- Oh! - disse Adelina. - Patrícia, Isabel, Roberta, Lida... esta é a fidalga
Ângela Favorleigh.
A fidalga Ângela baixou ligeiramente a cabeça, como se estivesse a
cumprimentar os seus súbditos. Roberta riu-se.
- Tive em tempos uma boneca que se chamava Ângela - disse ela. - Era
parecida contigo! Espero que gostes do Colégio de Santa Clara. Adelina, leva-a
à Vigilante.
- Onde está a Vigilante? - perguntou Adelina
- Tenho andado à procura dela.
- Neste período há uma Vigilante nova - disse Roberta. - Não vais gostar
dela.
A fidalga Ângela Favorleigh não gostou de Roberta. Olhou para ela como
se fosse qualquer coisa que lhe não cheirasse bem. Voltou-se para a Adelina e
disse numa voz bonita e altiva:
- Bem, vamos à Vigilante. Quero tirar as minhas coisas da mala.
Saíram juntas. A Lida desatou a rir.
- Todas nós sabemos onde a Adelina vai passar a maior parte do tempo... -
disse ela. - No bolso da fidalga!
- Olhem - disse Roberta -, há outra aluna nova. Já desemalou também as
coisas dela. Acho que tem cara de ser do quarto ano.
A nova aluna subiu, com passos rápidos, como se se dirigisse para algum
sítio.
- Olá! - disse Roberta. - Tu és nova aqui, não és? Em que ano ficas, sabes?
- No quarto - respondeu a rapariga. - Chamo-me Helena Paterson.
- Nós também somos do quarto ano - disse Patrícia, apresentando-se a si e
às outras. - Queres que te levemos a dar uma volta pelo colégio? A Vigilante
costuma estar aqui para receber as alunas, mas este período há uma Vigilante
nova que ainda não está dentro dos hábitos.
De repente, a rapariga mostrou-se aborrecida.
- Sei muito bem o meu caminho, obrigada - disse, muito empertigada. - Já
aqui estou há uma semana.
Foi-se embora sem dizer mais nada. As outras ficaram a olhar para ela.
- Que bicho lhe teria mordido - disse Roberta. Não precisava de ser
malcriada daquela maneira. E diz que está aqui há uma semana... o que é que
isto quer dizer? Ninguém volta para o colégio antes do dia da abertura.
Marília subiu com a sua amiga Glória.
- Olá! Olá! - disseram as outras. - Ainda bem que voltamos a ver-nos. Já
falaram com aquela rapariga que saiu agora mesmo daqui, uma aluna nova
chamada Helena Paterson? Parece julgar que o colégio lhe pertence!
- Não, ainda não lhe falei - disse Marília. - Mas sei que a mãe dela é a nova
Vigilante. A antiga está doente, não sei se sabem. Helena é a filha da nova
Vigilante e vai ser educada aqui. Veio com a mãe há uma semana, quando a
mãe veio tomar conta do seu cargo, tratar das roupas e do resto.
Roberta assobiou.
- Oh, não admira que tenha ficado aborrecida ao ouvir-nos dizer que a
nova Vigilante devia dar as boas-vindas às novas alunas, e que ainda não está
dentro dos hábitos! - disse ela. - E não admira que conheça os cantos à casa,
visto que já cá está há uma semana. Não gostei lá muito dela.
- Por enquanto nada se pode dizer - comentou a Lida. - Sabes muito bem
que quando se chega a qualquer parte pela primeira vez e encontramos
raparigas que já lá estão há muito tempo, toda a gente se põe na defensiva. A
princípio sentimo-nos como que umas intrusas.
Havia alunas novas nos anos inferiores, mas isso não interessava
grandemente às alunas do quarto. Estavam satisfeitas por se voltarem a ver: as
gémeas, Roberta, Lida, Catarina, Dora, Carlota, e as outras. Iam todas juntas
para o quarto ano. Havia algumas do ano anterior que continuavam no quarto
ano, a maior parte das quais era muito estimada pelas gémeas. Susana Howes
era a chefe de turma, uma rapariga simpática e boa, com um elevado sentido de
responsabilidade e de justiça.
O quarto ano ficava sob a direcção de miss Ellis. Era uma pessoa calma e
firme, raras vezes elevava a voz, queria bom trabalho e procurava consegui-lo.
Interessava-se pelas alunas, gostava muito delas, e estas, em compensação,
estimavam-na muitíssimo.
Ângela Favorleigh, quando estava na aula, com os cabelos caídos sobre os
ombros, ligeiramente voltados para dentro nas pontas, parecia mais um anjo do
que nunca. Todas as suas roupas escolares, embora cortadas nos mesmos
moldes dos das outras, eram na verdade lindas.
- Sabem uma coisa? Os sapatos dela são todos feitos por medida - disse
Adelina ao ouvido das gémeas. - E tem uma carteira a condizer com cada
vestido, todas com as suas iniciais em ouro.
- Cala-te! - disse Patrícia. - Quem é que se importa com essas coisas? A tua
querida Ângela é uma snob.
- E por que não há-de ser snob - respondeu a Adelina, sempre pronta a
defender a sua nova amiga. - A família dela é uma das mais antigas do país, tem
uma prima em terceiro grau que é princesa, e só Deus sabe quantos parentes
titulares ela terá!
- E tu és outra snob, Adelina - disse Isabel, com desdém. - Por que andas
sempre atrelada a pessoas desta natureza? Não sabes que a pessoa vale pelo
que é e não pelo que tem?
- Eu não sou snob - ripostou Adelina. - Claro que estou satisfeita por a
Ângela me ter escolhido para sua amiga. Acho-a encantadora.
- Só é pena que não tenha mais miolo... - disse Roberta. - Sinceramente, dá-
me a impressão de que não tem as medidas bem aferidas!
Ângela Favorleigh era na verdade uma snob. Tinha um grande orgulho na
sua família, na sua riqueza, nos seus carros, e no seu ar de menina bem. Era
muito esquisita com as amigas. Gostava da Adelina porque era bonita e
delicada, tinha bonitas maneiras e era evidente que a adorava de todo o seu
coração.
Ângela gostava de muito poucas raparigas do seu ano. Detestava a
Roberta porque lhe dissera que parecia uma boneca. com a Carlota não queria
mesmo nada.
Carlota não se ralava nem um bocadinho. A rapariga de olhos e cabelos
escuros tinha sido em tempos uma rapariguinha de circo, do que nada se
envergonhava. A mãe fora amazona de circo, mas o pai era um verdadeiro
senhor, e a Carlota vivia agora com o pai e com a avó, quando estava em férias,
porque a mãe tinha morrido. Tinha aprendido a ser uma senhora, a ter boas
maneiras, e era muito estimada, mas não havia esquecido os dias emocionantes
do circo, e muitas vezes divertia as outras andando à roda da casa a dar
cambalhotas como se fosse a roda dum carro, ou dançando à espanhola, o que
muito divertia as companheiras.
Adelina tinha contado à Ângela a história de todas as raparigas, incluindo
a da Carlota, e a Ângela torcera o seu delicado nariz ao saber que a Carlota
tinha realmente andado a cavalo num circo.
- Como podem tê-la aqui, num colégio destes - exclamou ela. - Tenho a
certeza que a minha família não me mandaria para aqui se tivesse tido
conhecimento disso.
- Por que vieste para Santa Clara - perguntou Adelina, cheia de
curiosidade. - É um colégio considerado sensato, que não admite disparates
nem ostentações.
- Eu não queria vir - confessou Ângela. - A minha mãe queria mandar-me
para um colégio muito melhor, mas o meu pai é de ideias esquisitas, e disse que
eu precisava que me tirassem as peneiras.
- Oh, Ângela! Tu não tens nenhumas peneiras! - exclamou Adelina. -
Sinceramente, acho que não tens nenhum defeito.
Era justamente aquilo que Ângela gostava de ouvir, e era uma das razões
por que gostava de ter Adelina como amiga. Olhou para a Adelina com os seus
inocentes olhos azuis, e sorriu-lhe com um ar angelical.
- Dizes coisas agradáveis, Adelina - disse ela. - És de longe, a rapariga
mais simpática da turma. Não posso suportar aquela medíocre Helena, nem a
horrível Carlota, nem a medonha Paulina Bingham-Jones.
A Paulina não era nenhum sucesso. Parecia tão snob como a Ângela, mas
não fazia tanta vista porque as suas roupas não eram tão bem feitas, e não
possuía tantas maravilhas como ela. Mas também virava as costas à Carlota, e
não gostava de Roberta, porque tinha a resposta sempre pronta. Quanto a
Helena, mal lhe falava.
- Não percebo por que é que a Helena pode vir para este colégio lá porque
é filha da Vigilante - disse Paulina com a sua voz afectada. - Santo Deus! Daqui
a nada vem a filha da cozinheira e a do jardineiro também! A Carlota já chega
bem. Tem um ar tão selvagem e tão desmazelado!
A Carlota no princípio do período, na verdade, tinha sempre um ar um
pouco selvagem, em parte porque já não estava sob a severa vigilância da avó.
Mas ninguém se importava com o seu ar selvagem nem com o seu desmazelo.
Tudo isso fazia parte da animada e divertida rapariga. Carlota sabia que nem a
Ângela nem a Paulina gostavam dela, e sentia até prazer em falar em calão,
fazer caretas e andar com as mãos no chão na frente delas.
Contudo miss Ellis não gostava que as alunas do quarto ano fizessem
coisas do género. Achava que o seu ano era uma espécie de meio caminho
andado, em que as raparigas tinham que aprender a perder as suas maneiras
estouvadas, a tornarem-se membros da escola mais sérios, e em quem se pode
confiar. Assim que chegavam ao quinto e ao sexto ano tinham salas de estudo
pessoais, em vez de salas comuns, e exigia-se-lhes uma boa parte de
responsabilidade.
Por isso a Carlota era muitas vezes chamada à ordem pela miss Ellis, na
sua voz baixa e firme, e então a Ângela e a Paulina olhavam desdenhosamente
para a antiga rapariga de circo, e segredavam coisas trocistas à aluna que se
encontrava junto delas.
Havia uma rivalidade presunçosa entre a Paulina e a Ângela. Por vezes as
companheiras gozavam à custa delas.
- O meu terceiro primo, aquele que é príncipe - dizia a Ângela - tem um
avião mesmo dele, e prometeu levar-me a passear nele.
- Ainda não andaste de avião - dizia Paulina com afectada surpresa. -
Santo Deus! Eu já andei três vezes. Foi quando estive em casa dos Lacy-
Wrights. Imaginem que eles têm dezasseis casas de banho... claro que se trata
dum solar.
- Tenho a certeza que tu não tens mais que uma casa de banho - disse
Ângela, com certo desprezo. - Nós temos sete.
- Nós temos nove, se contarmos as duas das criadas - ripostou Paulina.
As colegas olharam para ela com espanto. Acreditavam perfeitamente que
a Ângela tivesse montes de casas de banho, porque a riqueza estava patente em
toda aquela snob... mas a Paulina não tinha cara de possuir muitas casas de
banho, um comboio de automóveis caros e outras coisas do género.
- Bem - disse Roberta - deixem-me contar as minhas casas de banho. Três
para mim, quatro para a mãe, cinco para o pai, duas para as visitas... quantas
são?
- Palerma! - disse Patrícia, rindo.
A Ângela e a Paulina não acharam graça nenhuma.
- Não me lembro se temos casa de banho lá em casa ou não... - disse a
Lida, entrando na brincadeira. - Deixem-me pensar bem!
Mas por muito que as outras troçassem, nada demovia a Ângela e a
Paulina da sua mútua rivalidade. Se não eram as casas de banho, eram os
automóveis; se não eram os automóveis era a beleza e as dispendiosas toilettes
das respectivas mães; se não eram as mães era qualquer outra coisa. As colegas
estavam fartas daquilo.
A Helena Paterson não parecia ligar muita importância ao desprezo que a
Ângela e a Paulina lhe votavam. Só falava com entusiasmo duma coisa: do
irmão. Trabalhava algures, na cidade mais próxima, e era mais que evidente
que tinha por ele uma verdadeira adoração.
- Chama-se Edgar - dizia ela - mas nós chamamos-lhe Eddie.
- Claro - disse a Ângela com ar de gata assanhada - e se o nome dele fosse
Alfredo chamar-lhe-iam Alf. Se fosse Alberto chamar-lhe-iam Alb... ou talvez
Beto.
Helena corou.
- Ângela - disse ela. - Vais ver quando o Eddie cá vier, isto é, o Edgar. É
estupendo! Tem o cabelo encaracolado e o sorriso mais bonito do mundo, e o
melhor irmão que já se viu. Trabalha muito no emprego. Estás a ver, a mãe
perdeu uma data de dinheiro e foi por isso que teve que se empregar como
Vigilante, e que o Eddie... o Edgar teve que ir trabalhar.
- Olha Helena, a história da tua família não me interessa nada - disse
Ângela friamente, e foi-se embora com a Adelina.
A Helena encolheu os ombros e comentou:
- Snob! Precisavas duma valente bofetada.
Carlota concordou com ela.
- Sim, às vezes a minha mão vibra com desejos de a esbofetear forte e feio.
Mas agora estou no quarto ano... que pena! Tenho que esquecer como se dá
uma bofetada em quem está mesmo a pedi-la!
- Ah, não esqueces! - disse Roberta, rindo-se para a solene Carlota. - Se o
sangue te sobe à cabeça nunca mais te lembras do quarto ano... e voltas a ser a
Carlota exaltada que sempre foste!
III A chegada de Claudina
Antes do fim da primeira semana chegou uma quarta aluna. A própria
mademoiselle anunciou a sua vinda.
- Tenho uma surpresa para as meninas - disse ela uma manhã ao chegar
para dar uma lição de Francês, com um sorriso de grande satisfação. - Vão ter
mais uma companheira no quarto ano. Chega hoje.
- Por que vem tão tarde - perguntou Patrícia, muito admirada.
- Esteve a convalescer da bexiga - explicou mam’zelle que falava sempre
das bexigas no singular em vez de empregar o plural. - A bexiga é uma doença
muito maçadora. A Claudina teve uma bexiga muito má, e não pôde vir mais
cedo.
- Claudina - disse Isabel. - Que nome tão bonito! Gosto muito.
- Ah, e também vão gostar da Claudina! - disse mam’zelle. - É francesa. É
minha sobrinha.
Foi uma grande novidade para todas. Nem mesmo sabiam que
Mademoiselletinha uma sobrinha, e que vinha para o Colégio de Santa Clara,
também.
- Deus queira que ela goste do colégio - disse a Lida, que achava que
alguém devia dizer qualquer coisa.
- Vai gostar muito - disse mam’zelle. - A Claudina sente-se bem em toda a
parte. Nunca se viu criança mais feliz. Sempre satisfeita, sempre a rir, sempre a
fazer partidas e a dizer graças.
Parecia-lhes que devia ser uma rapariga formidável. Estavam ansiosas
pela sua chegada, e olhavam para mam’zelle na esperança de que lhes contasse
mais coisas.
Mas mam’zelle tomou uns ares solenes. Firmou bem os óculos no nariz, e
olhou para as alunas que a escutavam, através das grossas lentes dos seus
óculos.
- Eu fiz força para que a Claudina viesse para este colégio - acrescentou. -
Primeiro esteve num colégio de freiras, mas era muito rigoroso, e as freiras
achavam que a pobre Claudina só fazia disparates. Diziam que não fazia caso
de nada nem de ninguém, nem das regras e costumes do colégio. E eu disse
para comigo: “Ah! A boa e estudiosa Roberta também era assim, e vejam o que
o Colégio de Santa Clara fez dela! Está a trabalhar para o seu exame, e hojeé o
que se chama um triguinho sem joio! Talvez que com a minha Claudina
aconteça o mesmo.” Roberta ficou atrapalhada aoouvir este discurso da
mam’zelle. Ficou sem saber se gostava que se lhe referissem como “triguinho
sem joio”. Mas mam’zelle estava tão entusiasmada, que Roberta não protestou.
Também não servia de nada! Mam’zelle prosseguiu no seu discurso.
- E assim a Claudina vem hoje, completamente refeita da bexiga, e vocês
vão recebê-la muito bem, não é verdade? Em atenção à vossa velha mam’zelle.
- Com certeza! Vamos recebê-la o melhor que pudermos - disse Susana
Howes, e a maior parte das alunas disse o mesmo, com excepção da Ângela, da
Adelina e da Paulina, que mostraram todas má cara, como se uma sobrinha
pertencendo à mam’zelle não fosse digna dum pensamento seu.
- Ah, vocês são muito boas raparigas - disse mam’zelle -; assim que a
Claudina chegar vou logo apresentá-la a todas. Vai gostar muito de vocês. É boa
rapariga, embora pareça não ligar importância ao que é bom e conveniente. Mas
vocês vão modificar tudo isso, nest-ce pás?
As raparigas pensaram que a Claudina devia ser divertidíssima. Ia ser
engraçado ter uma colega francesa na aula! Olharam, umas para as outras,
pensando que de todas as alunas novas, esta parecia ser a que mais prometia.
Cerca de cinco minutos antes de acabar a lição, a porta abriu-se, e uma
rapariga desconhecida entrou. Era baixa, morena e elegante. Tinha um ar muito
descarado, e olhou rapidamente para todas antes de se dirigir à mam’zelle.
Mam’zelle estremeceu, e correu para a rapariga que chegava. Beijou-a
diversas vezes em ambas as faces, acariciou-lhe o cabelo negro, e despejou uma
torrente de francês de que ninguém percebeu nada.
A rapariga respondeu num francês calmo e delicado, e beijou mam’zelle
em ambas as faces. Parecia não ligar meia ao entusiasmo da tia.
- Ah! Finalmente chegaste, minha querida Claudina! - exclamou
mam’zelle. Fez rodar a sobrinha até ficar virada para as alunas. - Aqui têm a
Claudina - disse mam’zelle deixando escorregar os óculos do nariz com a
violência do entusiasmo. - Claudina, cumprimenta as tuas novas amigas.
- Olá, cridíssimas! - disse Claudina amavelmente.
As raparigas olharam para ela surpreendidas, e riram-se. Era engraçado
ouvir aquela expressão na boca da nova condiscípula.
- O que é que tu disseste? - perguntou mam’zelle que não percebera bem o
que a sobrinha dissera. - Disseste “olá cridíssimas”'? Isso não é correcto. Devias
ter dito “olá queridíssimas.
As alunas desataram à gargalhada. Claudina riu-se também. Mam’zelle
estava radiante. Via-se claramente que tinha um grande orgulho em Claudina, e
que a adorava.
A campainha anunciou o fim da aula. Mam’zelle chamou a Lida:
- Lida, leva a Claudina contigo e mostra-lhe o colégio. Vai sentir-se
estranha e pouco à vontade, coitadinha.
Mas mam’zelle estava totalmente enganada. Claudina estava à vontade e
não parecia sentir-se nada estranha. Na verdade procedia como se tivesse
conhecido as colegas desde sempre! Falava-lhes com naturalidade e
simplicidade.
O seu inglês era bom, embora, como mam’zelle, se expressasse por vezes
duma maneira fora do vulgar.
Tinha frequentado a escola em França, e depois tinha estado um período
num colégio de freiras em Inglaterra. Parece que nem a Claudina quis continuar
no colégio das freiras, nem elas o desejavam...
- Sabem, foi uma desgraça! A professora de Ciências subiu uma escada
para ir a uma árvore apanhar um fungo especial que ali existia - explicou
Claudina na sua vòzinha francesa - e eu fui e tirei a escada... por isso não houve
lição de Ciências naquele dia.
- Pai da vida! Quer dizer que deixaste a professora empoleirada na árvore?
- exclamou Roberta. - Olha que tiveste coragem! Não admira que a mam’zelle
diga que o Colégio de Santa Clara te fará bem. Aqui não podes fazer uma coisa
dessas.
- Não? - disse Claudina. - Mas que pena! Contudo talvez vocês aqui se
divirtam. Lamento não ter vindo para o colégio no primeiro dia. Mas tinha
apanhado uma bexiga.
As raparigas riram-se. Todas gostavam da Claudina menos a Ângela. Até
a Paulina escutava a nova aluna, e a Adelina estava muito divertida a ouvi-la.
Mas a Ângela, como de costume, olhava para ela com desdém.
- O que é que eu te disse? - observou ela à Adelina.
- Primeiro temos que aturar a filha da Vigilante, agora a sobrinha da
mam’zelle! Não percebo que graça achas tu à Claudina, Adelina. Estou
espantada contigo.
- Olha, gosto da voz dela e das suas maneiras - disse Adelina. - Gosto dos
gestos que faz com as mãos quando fala, que são exactamente iguais aos da tia.
Tem paciência, mas é muito engraçada.
Ângela não gostava que a Adelina discordasse fosse do que fosse. Olhou
friamente para a amiga, e foi-se embora amuada. O sistema que empregava
para castigar alguém era ir-se embora e amuar. A Adelina não podia suportar
tal atitude, e assim procurou desfazer a má impressão que causara à sua amiga.
Foi atrás dela, pegou-lhe na mão, gabou-a, lisonjeou-a, e por fim Ângela
condescendeu em sorrir novamente à sua escrava voluntária.
Então Adelina mostrou-se feliz.
- Não julgues que faço algum caso da Claudina. Na verdade não passa
duma rapariguinha vulgar.
- Não tão vulgar como a Carlota - disse Ângela com desprezo.
A Adelina não gostou deste comentário. Era sinceramente amiga da
Carlota, que era honestíssima, muito direita, nunca dizia uma mentira, além de
ser uma companheira divertida. Até o seu temperamento exaltado fazia parte
da sua personalidade. Adelina achava que a Carlota tinha mais personalidade e
era mais natural do que qualquer das outras. E ser natural era ter
personalidade.
Claudina instalou-se de seguida. Ficou numa carteira ao fundo da aula, e
arrumou as suas coisas numa gaveta da cómoda, no cimo da qual colocou uma
fotografia da mãe. Tinha trazido um grande bolo que generosamente repartiu
por todas, mas a Ângela não aceitou nenhuma fatia. A Adelina fez o mesmo,
depois duma ligeira hesitação. Teve medo que a Ângela amuasse novamente se
a visse comer uma fatia do bolo.
A princípio as raparigas divertiram-se muito com a Claudina, mas em
breve descobriram que não procedia como uma inglesa. Por exemplo, achava
que copiar pelas outras não tinha importância nenhuma! Era esperta, mas
muitas vezes tinha preguiça, e então copiava as respostas dadas pela
condiscípula do lado. Esta era a Marília, cuja inteligência deixava um pouco a
desejar. Por isso, muitas eram as vezes em que Claudina copiava disparates.
Mas não se ralava nada com isso.
- Olhem lá, nós não devíamos deixar a Claudina cabular desta maneira -
disse Patrícia. - Copia tudo pela Marília. A Marília diz que a Claudina não está
para se maçar a fazer uma única conta, e copia tudo por ela!
- O que tem piada é que faz isso absolutamente às claras - comentou Isabel
- o que me leva a crer que não vê nisso qualquer mal!
Claudina ficou atónita quando a Susana Howes, a chefe de turma, lhe
falou no assunto.
- Isso é batota, Claudina, e com certeza tu bem o sabes! - disse Susana,
fazendo-se muito vermelha, pois detestava acusar alguém de fazer batota.
- Não acho nada - exclamou Claudina. - Vocês todas me vêem copiar.
Batota é uma coisa que se faz às escondidas.
- Estás enganada - disse Susana. - Batota é sempre batota, quer seja feita às
claras ou às escondidas. Além disso é estúpido da tua parte copiar pela Marília.
Responde tanta coisa mal! Se a miss Ellis descobre, metes-te em sarilhos.
- Então achas que é melhor copiar pela Lida - perguntou Claudina muito a
sério. Susana suspirou.
- Olha Claudina, não deves copiar por ninguém. Eu sei que os franceses
têm uma maneira de ser, diferente da nossa, como por exemplo, a mam’zelle.
Mas tens que procurar modificar-te, se queres sentir-te bem entre nós.
- Eu sinto-me bem em toda a parte... - respondeu Claudina. - Mas está
bem, daqui em diante só copiarei quando não tiver estudado nada...
Outra coisa que elas achavam irritante na Claudina era a maneira como
pedia coisas emprestadas. Pedia lápis, borrachas, réguas, livros... tudo quanto
precisava de momento. E noventa por cento das vezes não devolvia nada!
- Esqueço-me... - explicava ela. - Peço um lápis emprestado, sirvo-me dele,
fico muito grata por mo terem emprestado, depois nunca mais me lembro, e aí
anda a pobre Lida a dizer “onde está o meu lápis, perdi o meu lápis”, enquanto
ele está na minha carteira, e não está nada perdido.
- Sim, mas tens que procurar lembrar-te de devolver aquilo que pedes
emprestado - recomendou a Lida.
- No fim de contas foi uma lapiseira de prata que te emprestei, e da qual
muito gosto. E devias pedir licença antes de levar as nossas coisas.
- Oh, os ingleses! - suspirou Claudina. - Agora vou portar-me bem, e direi
sempre: “querida Lida, por favor, por favor, empresta-me a tua linda lapiseira
de prata! “
A Lida riu-se. Ninguém podia deixar de achar graça à Claudina. Fazia
girar os seus expressivos olhos pretos, e fazia com as mãos uns gestos iguais aos
da mademoiselle. Pensando bem, havia pouco tempo que regressara da
Inglaterra. Era natural que aprendesse os hábitos ingleses antes do período
acabar.
IV Cuidado com a vigilante!
As primeiras semanas depressa passaram, e em breve as alunas que
tinham transitado do terceiro ano se sentiam como se sempre ali tivessem
estado! Olhavam um pouco desdenhosamente para as do terceiro ano, e quanto
às do segundo, era como se não existissem. Nenhuma aluna do quarto ano se
lembraria de lhes ligar qualquer importância.
O período do Verão era sempre muito agradável. Havia ténis e natação.
Ângela mostrava ser uma boa nadadora, perfeita e ágil. Adelina, que não
gostava da água, esforçava-se por se evidenciar para conservar a amizade da
sua querida Ângela.
Claudina detestava francamente a água. Recusava-se terminantemente a
meter-se nela, com grande arrelia da professora de desportos.
- Claudina! De que serve vir para um colégio inglês, se não queres
aprender o que ele tem de bom! - exclamava a professora.
- Nadar não é nada bom - dizia Claudina -, é até uma coisa horrível! Uma
pessoa molha-se, tem frio, treme! Não gosto da vossa mania de jogar tantos
jogos. O ténis também é muito estúpido.
Como ninguém podia despir a Claudina à força, não entrava na água. As
colegas arreliavam-na, salpicando-a o mais que podiam. A professora estava a
ver que daí a nada alguma a empurrava, vestida e tudo, para dentro da piscina,
e então mandou-a para dentro de casa.
Claudina jogava o ténis ainda pior do que a Carlota, que nunca conseguira
jogar bem, e que continuava um gato selvagem e descontrolada em todos os
jogos. A bola de ténis tanto podia ir parar ao meio da piscina como passar por
cima da rede! Mas a Claudina nem sequer tentava tocar na bola!
- É um jogo tão estúpido! - dizia, pousando a raqueta e indo-se embora.
- Oh, Claudina, mas é a hora de jogar o ténis, tens que vir - dizia a Lida.
- Não tenho nada que ir! - era a sua resposta, e não havia nada a fazer.
Ângela jogava muito bem. Levava sempre as suas três lindas raquetas,
apesar da troça das companheiras. Paulina invejava aquelas raquetas, e
procurava vingar-se da dona, sendo màzinha.
- Eu tenho mais duas ou três raquetas em casa - comentou em voz alta. -
Mas não é de boa educação trazer mais do que uma para o colégio. A minha
mãe diz que isso é dar nas vistas, e que as pessoas bem educadas nunca dão nas
vistas.
Ninguém gostava do orgulho da Ângela, mas também ninguém gostava
da maldade da Paulina. Realmente poucas pessoas gostavam da Paulina,
porque, fazendo ver que descendia duma família importante e rica, era
desprovida de qualquer atractivo, enquanto que a Ângela era na verdade
encantadora. Ninguém podia deixar de olhar para o seu rosto angelical sem
admiração e prazer. Adelina pensava que era a mais formosa rapariga que ela
jamais tinha visto.
Helena era razoável tanto no ténis como na natação. Também era razoável
nos estudos. Simpatizava muito com a Adelina, por qualquer razão, e ficava
desolada quando esta lhe mostrava, com excessiva clareza, que não tinha tempo
para a aturar.
- Por que não andas comigo quando saímos de tarde - perguntou ela à
Adelina. - Não podes andar sempre com a Ângela. E por que não aceitas nunca
as guloseimas que te ofereço? Não têm veneno!
- Bem sei - respondeu Adelina friamente. - É só porque me não apetecem.
E também não tenho nenhum interesse especial em passear contigo. -.
Desconfio que a Ângela te disse para o não fazeres! - disse Helena, de mau
humor. - Não tens vontade própria. Pensas pela cabeça da Ângela, fazes tudo
quanto ela faz! Até estás a deixar crescer o cabelo como o dela, caído nos
ombros, com as pontas voltadas para dentro. Chegas a ser ridícula!
Adelina ficou toda ofendida. Olhou para a Helena com frieza.
- Pois bem, se queres que te diga, a Ângela não simpatiza contigo, e como
é minha amiga, respeito a sua vontade. De qualquer modo, eu também não
simpatizo contigo. És uma alcoviteira.
Helena foi-se embora, vermelha de raiva. A última insinuação da Adelina
acertara em cheio. Foi ter com a mãe, com grandes histórias, e não havia nada
que o quarto ano fizesse que a nova Vigilante não soubesse.
Pior do que isso. Se a Helena dizia à mãe que alguém havia sido antipático
com ela, em breve a Vigilante tratava de mandar chamar esse alguém e dava-
lhe um lençol com um enorme rasgão para coser, meias para passajar, ou botões
para pregar.
- Eu acho que ela faz os buracos de propósito e ela própria arranca os
botões! - disse a Ângela furiosa, a quem tinham dado três meias para passajar
nas horas livres.
- Nunca passajei uma meia na minha vida. Para que serve a Vigilante, se
não tem as nossas coisas em ordem?
- É que faz parte do regulamento do Colégio de Santa Clara o cosermos
partes das nossas coisas - elucidou Patrícia. - Mas devo dizer-te que me não
parece que tenhas feito todos esses buracos nas tuas meias! Nunca te vi com um
buraco.
- Eu bem sei que os não fiz - disse a Ângela, tentando em vão enfiar uma
agulha com um fio de lã. - Como é que vocês conseguem passar a lã pelo fundo
da agulha? Há sete séculos que estou aqui a enfiar esta!
As colegas riram-se. Ângela não fazia a mínima ideia de que era preciso
dobrar a ponta do fio para se enfiar a agulha. Adelina tirou-lhe a agulha e a
meia.
- Eu passajo isso - disse ela. - Não te preocupes. Até aposto que foi a
alcoviteira de Helena que foi contar à mãe alguma coisa que disseste ou fizeste,
e ela deu-te esse trabalho para te castigar.
A Adelina passajou as três meias. Não ficaram muito bem, isso é verdade,
porque passajar não fazia parte dos seus dons. Mas Ângela ficou-lhe muito
grata, e mostrou-lhe tanta ternura, que a Adelina estava nas suas sete quintas. A
seguir foi Paulina que se viu azul com a Vigilante. Tal e qual como a Ângela,
tambémela olhava Helena com um certo desdém, e só lhe falava quando o não
podia evitar. Quando uma manhã estava a dizer à Roberta que lhe doía a
garganta, a Helena ouviu, saiu a correr, e dentro de poucos minutos a Vigilante
mandou-a chamar.
- Sei que estás com dores de garganta, Paulina - disse a Vigilante com um
sorriso. - Devias ter-me dito imediatamente. A Helena ficou preocupada
contigo, e disse-mo. Foi muito simpático da parte dela. Tenho aqui uns
gargarejos para fazeres agora, e um medicamento para tomares.
- Oh, a minha garganta está muito melhor - disse Paulina, alarmada. E na
verdade estava, mas a Vigilante não a deixou sair. Obrigou-a a gargarejar
durante dez minutos com uma droga horrível, e deu-lhe um remédio
igualmente horroroso para tomar.
Paulina foi ter com as colegas, furiosa e cheia de medo. Olhou para todos
os lados para se certificar de que a Helena não estava presente.
- A Helena continua com as suas coscuvilhices - segredou ela. - Foi dizer à
mãe que eu tinha dores de garganta, e acabo de passar um mau bocado. Até me
sinto doente. Sei que a Helena disse à mãe que eu não gostava dela, e foi por
isso que a Vigilante tanto me fez sofrer.
- Temos que ter muito cuidado com aquilo que dizemos e fazemos à
Helena - disse Adelina cheia de medo, pois detestava toda a espécie de
remédios. - Talvez fosse melhor fazermo-nos amigas dela.
- Eu não faço - disse logo Claudina. - É uma rapariga de quem não gosto.
E, longe de se tornar sua amiga, excedia-se em más-criações para com ela!
O resultado foi que a Vigilante a castigou duramente, dando-lhe um cesto cheio
de roupa para coser!
- Rompeste a bainha dos teus dois lençóis - disse ela à Claudina -, tens as
meias cheias de buracos, e precisas de pôr um remendo numa das tuas batas. És
muito travessa e muito descuidada. Vais coser tudo isto de castigo.
Claudina não disse nada. Pegou no cesto da costura e pô-lo em cima da
cómoda. A princípio, as colegas pensaram que ela nunca mais se lembraria
daquilo, que se recusaria a coser a roupa assim como se recusava a fazer outras
coisas. Porém, com grande surpresa sua, Claudina pegou no cesto e sentou-se
num canto da sala a coser.
Roberta via a agulha de Claudina entrar e sair com todo o desembaraço.
- Que bem que tu coses! - exclamou. - Mas que bem! As tuas passagens até
parecem bordados! Estão lindas!
- Gosto de coser e de passajar - confessou Claudina.
- Em França todas nós sabemos coser. Vocês, inglesas, atrapalham-se com
uma agulha na mão. Percebem muito de desportos, mas não sabem fazer uma
passagem!
- Deixa a costura agora, Claudina, e vem nadar - disse Susana. - Está um
lindo dia de sol. Mas os lindos dias de sol não atraíam Claudina.
- Posso ver o sol da janela - disse ela continuando a coser com todo o
desembaraço. - Deixa-me. Gosto de coser.
Roberta olhou atentamente para a cabeça inclinada da rapariguinha
francesa, e deu uma gargalhada, dizendo:
- Oh, Claudina! Tu gostas muito mais de coser um mundo de roupa do
que de nadar ou jogar seja o que for...
- É isso mesmo - concordou Claudina. - Acho que coser e bestial.
Todas se riram. Achavam sempre graça à Claudina quando falava em
calão.
- Desconfio que isto não passa duma manha da Claudina - disse Roberta. -
Quer ter uma desculpa de peso para escapar aos jogos! Todas nós sabemos que
não podemos jogar quando temos coisas para coser. E a Claudina fez com que a
Vigilante lhe desse aquele castigo para se libertar dos jogos e ficar a fazer aquilo
que lhe dá verdadeiro prazer!
Miss Ellis entrou na sala.
- Despachem-se meninas, vão-se embora. Não percam um minuto deste
lindo dia de sol. Claudina, deixa a costura.
- Desculpe, miss Ellis, mas a Vigilante disse-me que tinha que coser as
minhas coisas, e que não podia jogar com as outras enquanto a costura não
estivesse pronta
- respondeu Claudina, levantando os seus enormes e inocentes olhos
pretos. - É muito aborrecido, mas acho que tenho que coser isto, miss Ellis.
- “Humm”... - fez miss Ellis, que se não deixava enganar com a inocência
daqueles olhos. - vou falar à Vigilante.
Mas a Vigilante insistiu em que a Claudina havia sido muito descuidada, e
tinha que coser tudo, e miss Ellis deixou-a entregue à sua costura. E Claudina
teve uns momentos muito agradáveis, cosendo toda contente num canto da sala
cheia de sol, ouvindo os gritos das colegas na piscina. Não tinha o mais leve
desejo de ir ter com elas!
“Que horrível água fria!”, estava ela a pensar, mas ergueu os olhos ao
ouvir passos que entravam na sala. Era a tia, a mam’zelle.
- Oh, ma petite! - disse mam’zelle toda enternecida.
- Então tu estás aqui? Deixa-me ver a tua costura. Está linda! Por que será
que as raparigas inglesas não sabem coser? Onde estão as outras?
- Na água - respondeu Claudina em francês. - Estão sempre na água, ou a
bater numa bola, estas inglesas! Eu cá por mim prefiro coser, ma tante.
- Muito bem, Claudina! - concordou mam’zelle, que, apesar de estar em
Inglaterra há muitos anos, nunca compreendera como as inglesas tanto
gostavam da água fria, de bater em bolas, e de correr dum lado para o outro,
feitas tontas. - Estás contente, minha filha?
- Estou sim, ma tante - respondeu Claudina pensativamente. - Mas estou
um bocado triste. Nunca acontece nada nestes colégios ingleses?
- Nunca - disse mam’zelle.
Mas estava enganada. Na verdade aconteceram coisas... e dentro de muito
pouco tempo!
V Ângela tem uma surpresa
Por volta da terceira semana do período, quando todas estavam instaladas
e compenetradas dos seus trabalhos, Ângela teve uma surpresa.
Estivera a jogar ténis, e uma das bolas tinha-se perdido.
- Não te maces à procura dela agora - disse Roberta, que detestava
interromper um jogo. - Aparece com certeza. As bolas do ténis aparecem
sempre. E se não aparecer, procuramo-la no fim.
A bola não apareceu, e Ângela ofereceu-se para a procurar. As outras
tinham que ir para a lição de música, ou para o treino de dicção, e Ângela era a
única que estava livre.
- Está bem - disse a Lida. - Obrigada, Ângela. Procura a bola e guarda-a na
caixa juntamente com as outras, se a encontrares.
As companheiras correram todas para o colégio, e Ângela começou à
procura da bola perdida. Não a viu em sítio nenhum. O campo de ténis onde
tinham estado a jogar era junto duma parede muito alta, e Ângela lembrou-se
que talvez a bola tivesse passado para o outro lado.
“De uma vez a Roberta bateu uma bola muito alto pensou consigo
própria. - Não me parece que a bola esteja deste lado da parede. vou abrir a
cancela e ver do outro lado”.
Abriu a cancela e entrou na azinhaga. Procurou a bola e por fim
encontrou-a. Quando ia a apanhá-la, teve um estremeção de surpresa. Um
rapaz alto e magro estava por trás do arbusto, perto da bola.
Ângela apanhou a bola e ia a voltar para o colégio, quando o rapaz lhe
dirigiu a palavra.
- Pertence ao Colégio de Santa Clara?
Ângela olhou para ele e não gostou do seu aspecto. Tinha cabelo
encaracolado e comprido de mais. Tinha uns olhos pequenos e empapuçados na
parte inferior, e era muito pálido.
- O que é que você tem que saber se pertenço ao Colégio de Santa Clara,
ou não - respondeu Ângela com o seu ar altivo.
- Oiça lá! Não se exalte nem seja estúpida - exclamou o rapaz saindo de
trás do arbusto. - Só lhe quero dizer uma palavrinha.
- Mas eu é que não quero nenhuma palavrinha consigo - respondeu
Ângela, e abriu a cancela do colégio. O rapaz tentou não a deixar passar.
- Espere um momento - disse ele, e o tom da sua voz era tão implorador,
que Ângela voltou-se, surpreendida. - Desejava que me levasse um recado para
uma das alunas.
- Claro que não levo - respondeu Ângela. - Deixe-me passar, por favor.
Merecia que eu apresentasse queixa!
- Escute. Diga à Helena que o Eddie precisa de lhe falar - murmurou o
rapaz. - Tenho aqui um bilhete para ela. Quer fazer o favor de lho entregar?
- Ah, então você é o irmão da Helena, não é verdade?
- disse Ângela. - Muito bem. Entregar-lhe-ei o bilhete. Mas não percebo
por que é que não entra para ver a sua mãe, e falar com a Helena, se assim o
deseja. A sua mãe é a Vigilante, não é?
- É - respondeu Eddie. - Mas pelo amor de Deus não lhe diga que me viu.
Ela não sabe que estou aqui, e havia um grande sarilho se o soubesse.
- A sua mãe arranja sarilhos a muita gente, não é só a si! - comentou
Ângela, pegando no bilhete.
Passou a cancela e fechou-a, depois enfiou o bilhete no bolso da bata,
tencionando dá-lo à Helena quando a visse.
A Helena não estava à vista quando Ângela entrou no vestiário para
mudar de sapatos. Viu ali a Adelina e começou a contar-lhe o que tinha
acontecido.
- Queres saber, Adelina! Aconteceu uma coisa muito engraçada agora
mesmo. Fui à azinhaga à procura duma bola de ténis, e estava lá um rapaz
escondido.
- Deus do Céu! - exclamou Adelina, cheia de espanto.
- E tu o que fizeste?
- Era horrível - disse Ângela, começando a exagerar, como fazia sempre
que contava qualquer coisa. - Palavrinha que parecia o rapaz que traz aqui o
peixe todos os dias, sabes, aquele rapaz horroroso, com o cabelo muito
comprido, e que assobia duma maneira muito aguda! Estava mesmo à espera
que ele dissesse “trago pescada, pregado e pargo, menina”, como disse o rapaz
do peixe à Vigilante noutro dia, julgando que era a cozinheira!
Adelina riu-se. O mesmo fizeram mais umas raparigas que estavam no
vestiário. Ângela adorava ter um auditório que a admirasse. Continuou a sua
história, sem ver que a Helena tinha entrado para tirar os sapatos da ginástica.
- Perguntou-me se eu pertencia ao Colégio de Santa Clara, e eu meti-o na
ordem, podem ter a certeza! Mas nisto ele disse-me quem era. Vocês não são
capazes de adivinhar!
As colegas apinharam-se à roda dela, cheias de interesse.
- Quem era - perguntou Adelina. - Como é que tu queres que a gente
saiba?
- Pois era o querido, o amado, o maravilhoso Eddie, o grande irmão da
Helena! - disse Ângela. - O mais ordinário que possam imaginar! Estive quase
para lhe perguntar por que é que não cortava o cabelo!
Alguém abriu caminho desabridamente através do grupo que rodeava a
Ângela. Era a Helena, com as faces cor-de-cereja. Fixou os olhos em Ângela e
disse:
- Aldrabona! O meu irmão ao pé do Colégio de Santa Clara! Como te
atreves a inventar uma história dessas? vou imediatamente dizer à minha mãe,
minha horrível e detestável snob!
Desatou a chorar e foi-se embora. Ficaram todas a olhar para ela.
- Jesus! - exclamou Adelina. - Ela vai realmente contar à Vigilante, e de
certeza vai haver grande sarilho. Tu não inventaste, pois não, Ângela?
Ângela ergueu a voz e gritou atrás da Helena.
- Se queres dizer, diz, mas o teu adorado Eddie pediu-me por tudo que
não dissesse à mãe que ele estava aqui. Por isso, se me metes num sarilho,
também o metes a ele.
Helena voltou-se muito assustada. Era evidente que acreditava agora no
que a Ângela dizia. Tinha sido o Eddie!
- O que é que ele te disse - perguntou à Ângela numa voz sufocada. -
Queria ver-me?
- Não te digo - respondeu Ângela, irritante. - Ia fazer-te um grande favor e
entregar-te o bilhete dele, mas como te portas dessa maneira, não estou para
servir de intermediária entre ti e o teu querido, adorado Eddie!
Neste emocionante momento aparece miss Ellis com uma cara muito
aborrecida.
- Meninas! Não ouviram a sineta? O que estão a fazer aqui no vestiário, em
grande conversa? Sabem muito bem que isso não é permitido. Na verdade era
muito bom que se compenetrassem de que estão no quarto ano e não no
primeiro! Estou muito aborrecida por ter que as vir buscar.
- Desculpe, miss Ellis - disseram todas, saindo a correr do vestiário para
voltarem para a sala de estudo e preparar as lições. Evidentemente que tinham
ouvido a sineta... mas quem as arrancava dali, quando uma discussão de alta
categoria se travava entre a angelical Ângela e a detestada Helena?
Ângela sentia-se radiante, sentada na sua carteira. Agora tinha a Helena
como queria, ou seja, na mão! E se Helena voltasse a contar à mãe alguma coisa
a seu respeito, e esta lhe desse montes de coisas para coser, ela, Ângela, ameaçá-
la-ia de contar à Vigilante tudo acerca do querido Eddie! Ângela sorriu
intimamente, o que lhe dava um ar ainda mais angelical. Era extraordinário
como Ângela podia apresentar um ar tão inocentemente belo, quando os seus
pensamentos eram tão maus!
Helena observou o seu íntimo sorriso. Apertou os lábios e rangeu os
dentes. Naquele momento detestava a Ângela com um ódio tão profundo como
o amor que tinha pelo irmão. Como podia a Ângela chamar ordinário ao Eddie?
Como se atrevia a dizer que parecia aquele horrível rapaz do peixe, com os seus
longos e engordurados cabelos, mais o seu agudo assobiar?
Para Helena o seu irmão Edgar era o ser mais maravilhoso do mundo. O
pai deles tinha morrido quando eram ambos muito novos, e a mãe era uma
mulher dura e severa. O irmão era tudo para ela, e o Edgar tinha pela irmã uma
imensa ternura.
- Quando for homem, hei-de arranjar um bom emprego e ganhar rios de
dinheiro para ti e para a mãe - dizia ele à Helena. - Depois a mãe já não precisa
de trabalhar tanto, nem de se cansar, nem de se zangar, e tu terás imensos
presentes, todos formidáveis. Vais ver as coisas maravilhosas que eu hei-de
fazer!
E agora Ângela havia troçado do seu adorado e bom Eddie. Helena
parecia que rebentava de fúria e dor. Também estava muito preocupada. Por
que é que Eddie tinha saído de Woolaton, onde trabalhava, para a vir procurar
secretamente? O que teria acontecido? Oh, ao menos se aquela idiota da Ângela
lhe dissesse!
Helena pensava no irmão, lá fora, na azinhaga. Há algumas semanas que o
não via, e estava desejosa de falar com ele e contar-lhe tudo. Talvez que ele
tivesse tido o mesmo pensamento e tivesse arranjado uns momentos para a vir
visitar. Talvez não quisesse vir ao colégio, porque assim teria que ver a mãe
também, o que estragaria a conversa amigável que poderiam ter juntos.
Helena olhou para a Ângela, que estava a estudar Francês, com um ar
sereno e encantador. Helena voltou a ranger os dentes, sabendo que em breve
teria que fazer qualquer coisa de muito difícil, que muito detestava, e que
contudo teria que fazer com toda a delicadeza.
“Tenho que ir ter com a Ângela, pedir-lhe perdão, e pedir-lhe para me
dizer o que o Eddie lhe disse - pensava Helena. - Idiota! Detesto-a, mesmo cá de
dentro! “
Deu um grande suspiro. Miss Ellis olhou para ela. Já tinha reparado que a
Helena não estava a prestar qualquer atenção ao estudo.
- Não te sentes bem, Helena - inquiriu ela. - Tenho estado a observar que
não fazes coisa nenhuma.
- Sinto-me bem, muito obrigada, miss Ellis - respondeu Helena muito
depressa. - Este... este Francês é um bocado difícil hoje, mais nada.
- Na verdade acho que deve ser muito difícil aprender Francês num livro
de Geografia... - disse miss Ellis com a sua voz calma.
Helena olhou logo para o livro... bolas! Era a Geografia que tinha na sua
frente! Os olhos perspicazes de miss Ellis deram logo por isso!
Não disse nada, mas tirou imediatamente o livro de Francês. Ângela olhou
e fez um sorrizinho de troça. Sabia muito bem a razão por que Helena
confundia os livros naquele momento... estava preocupada por causa do seu
querido, adorado Eddie. Pois bem, deixá-la estar preocupada!
Adelina estava sentada junto de Helena, e não podia deixar de ter pena
dela. Apesar de ser uma cabeça de avelã, Adelina era sensível aos sentimentos
dos outros, e sabia que a Helena estava ansiosíssima por saber o que se passava
com Eddie. Por isso, assim que o estudo acabou, foi ter com a Ângela para lhe
falar.
- Olha lá, Ângela, não é melhor dar à Helena o recado do irmão? Ela está
num estado desgraçado. Dava tais suspiros durante a aula de estudo, que quase
fazia voar os papéis que eu tinha sobre a minha carteira!
Ângela não achou graça nenhuma à graça da Adelina, nem gostava que
ela lhe desse conselhos. Foi-se embora, e o coração da Adelina deu-lhe um
baque. Lá se foi a Ângela novamente, muito fria e amuada! O seu bonito rosto
tomou uma expressão dura e altiva, e a Adelina sabia que levaria uma
eternidade para conseguir que ela voltasse a sorrir-lhe.
Ia justamente atrás dela quando a Helena apareceu, dizendo com um
sorriso forçado:
- Ângela! Posso falar-te um momento a sós, por favor?
VI Ângela e Helena
- Tenho que fazer - disse Ângela secamente.
- Não, não tens - disse Helena, tentando falar calmamente, e sorrindo. - É
muito importante, Ângela.
- Espero que me peças desculpa pela tua má-criação para comigo - disse
Ângela com altivez. - Só te falarei se o fizeres. Não posso consentir que pessoas
como tu me chamem horrível e detestável snob.
Helena engoliu em seco, e esforçou-se por falar, apesar das palavras quase
a sufocarem.
- Peço-te que me perdoes, Ângela. Eu... eu perdi a cabeça!
Carlota ouviu esta conversa, por acaso e inesperadamente veio em auxílio
da Helena.
- Se me pedirem a minha opinião, acho que a Ângela também te deve
pedir desculpa a ti, Helena, pelas suas observações! - disse Carlota, na sua voz
fresca e sincera. - Eu por mim nunca pediria desculpa àquela gata!
Ângela voltou-se para a Carlota numa fúria, com os seus olhos azuis
brilhando de raiva.
- Nem pela cabeça te passa que liguemos importância a pessoas de circo,
pois não? - gritou ela. Mas em vez de ficar humilhada, Carlota deu uma das
suas gargalhadas.
- Se não estivesse no quarto ano dava-te a mais valente bofetada que já
apanhaste nos dias da tua vida - disse ela com afabilidade. - Uma valente
bofetada era a melhor coisa que te podiam dar.
- Nunca na minha vida me tocaram nem com um dedo! - ripostou Ângela,
sentindo um desejo enorme de esbofetear o rosto vivo de Carlota.
- Vê-se! - exclamou Carlota. - Serias um pouco mais simpática se o
tivessem feito. Anda daí Helena, deixa a Ângela mais os seus ares altivos e vem
jogar as cartas comigo na nossa sala.
Helena sentia-se muito grata para com a Carlota pela sua inesperada
intervenção, mas abanou a cabeça. Tinha que descobrir o que se passava com o
Eddie. Que pouca sorte ter sido a Ângela, no meio de tantas raparigas, com
quem ele tinha falado! Qualquer das outras teria sido decente, menos a
Paulina... talvez.
Carlota encolheu os ombros e foi ter com a Roberta e as gémeas. Não
gostava lá muito da Helena, porque pensava, bem como as outras, que era uma
alcoviteira; mas mesmo assim a Ângela estava a comportar-se como uma gata,
deitando as garras de fora e arranhando com quanta força tinha!
Ângela voltou-se para Helena.
- Bem, tu pediste-me desculpa, e eu aceito as tuas desculpas. O que me
queres dizer?
- Ângela, por favor, diz-me o que te disse o Eddie. Entregou-te algum
bilhete para mim?
- Entregou-me uma carta respondeu Ângela. Helena corou de nervosa que
estava, e olhou para a colega com ansiedade.
- Dá-ma, por favor - implorou ela.
- Não sei por que é que ta hei-de dar - disse Ângela.
- Parece-me que não devia pegar em bilhetes e entregá-los desta maneira.
Helena sabia que Ângela dizia aquilo para a irritar. Ficou furiosa, mas
manteve-se calma.
- Nunca mais terás que o fazer - afirmou Helena
- porque vou dizer ao Edgar para não voltar a mandar bilhetes por este
sistema. Para a outra vez mandará pelo correio. Por favor, dá-me o bilhete.
- Agora ouve - disse Ângela, pensando repentinamente nos seus interesses
pessoais. - Se eu te der este bilhete e não disser à tua mãe que vi o teu precioso
Eddie, tens que me prometer qualquer coisa.
- O quê? - perguntou Helena surpreendida. - Prometo o que quiseres!
- Óptimo - disse Ângela. - Tens que prometer que nunca dirás nada à tua
mãe a meu respeito, estás a perceber? Não quero voltar a ter montes de coisas
para coser, com buracos que eu nunca fiz!
- Não deves dizer essas coisas da minha mãe - disse Helena.
- Mas digo! - continuou Ângela. - Todas nós sabemos que lhe contas tudo a
nosso respeito. Fala das outras todas, se quiseres, mas nunca mais lhe fales de
mim. Terás que te arrepender se o fizeres.
Não havia nada a fazer senão prometer, e Helena prometeu, numa voz
que tremia.
- Nunca direi nada de ti. Eu não faço queixas. Se a mãe vos dá coisas para
coser, a culpa não é minha.
- Humm... - fez a Ângela, como quem não acredita.
- O que se sabe é que sempre que alguém se atreve a dizer alguma coisa de
ti, a Vigilante despeja sobre esse alguém um monte de roupa para coser, de
forma que o tal alguém fica privado de nadar ou praticar outro desporto. De
qualquer modo, Helena, previno-te que tens que dizer à tua mãe coisas
agradáveis a meu respeito, se não queres que eu lhe fale de ti, e lhe diga que vi
o Eddie e que ele não quer que a mãe saiba disso!
Helena mordeu o lábio. Era muito custoso ter que se conservar calma
durante este longo discurso. Mas sabia que tinha que ser assim, por causa do
Eddie.
- Já pedi desculpa, Ângela, e prometi o que me pediste - murmurou
Helena em voz baixa. - Agora por favor dá-me o bilhete.
Ângela pôs-se à procura do bilhete na algibeira. Levou imenso tempo,
fingindo tê-lo perdido, procurando na blusa e em todas as algibeiras. Helena
estava furiosa com tanta demora, mas esperou com toda a paciência enquanto
Ângela procurava.
Por fim, Ângela apresentou o bilhete. Helena arrancou-lho da mão, e sem
mais qualquer palavra foi-se embora sozinha para o ler. Era muito curto. Dizia
o bilhete:
Minha querida irmã
Preciso de falar contigo. Não digas nada à mãe. Precisamos de ter
uma conversa. Podes ir ter comigo do lado de fora do muro do jardim,
junto da porta, esta noite a qualquer hora? Esperarei por ti por trás dum
arbusto até tu chegares.
Teu irmão muito amigo,
Eddie
Helena leu o bilhete três vezes e depois rasgou-o. Receava que a mãe o
visse, e depois zangar-se-ia com o Eddie. Demais a mais a mãe não era uma
pessoa compreensiva. Não tinha o Eddie em grande conta, e estava sempre a
dizer-lhe que o pai tinha sido um homem formidável, que era muito estranho
que o Eddie não tivesse feito na escola nada de feito, nem ganho uma única
bolsa de estudo, nem feito nada de que a mãe pudesse orgulhar-se.
“Irei à procura do Eddie, junto da porta do jardim, logo que as outras
estejam seguras na nossa sala - pensava Helena. - Pobre Eddie, há quanto tempo
ele está à espera! Não podia mandar uma carta pelo correio, porque a mãe tê-la-
ia visto de certeza, e já se vê que a queria ler.”
Helena esperou até se certificar de que estavam todas as alunas do quarto
ano reunidas na sala. Sentou-se perto da porta e observou-as. Dora e Carlota
estavam a fazer palhaçadas e as outras estavam a vê-las e riam-se. Claudina
levantou-se para se juntar às que estavam a fazer as palhaçadas, e Helena
verificou que era naquele momento a melhor altura. Saiu sorrateiramente.
Mas houve uma pessoa que a viu sair. Foi Ângela, que estava à espera que
ela fosse até à azinhaga. As alunas estavam proibidas de sair do colégio, sem
licença, depois da aula de estudo, e Ângela sorriu para dentro, malignamente.
“Se a Helena se põe no hábito de se encontrar com o seu querido irmão
Eddie fora de horas, poderei também pegar-lhe por isso”, pensou Ângela. Saiu
da sala e entrou na salinha de música que dava para os pátios do colégio. Era
difícil ver alguém por causa das árvores e dos arbustos, mas como ela sabia
muito bem para onde havia de olhar, conseguiu ver a Helena de vez em
quando, correndo entre as árvores até à cancela do jardim.
Voltou para a sala. Dora, Carlota e Claudina ainda estavam a fazer
palhaçadas, mantendo toda a gente a rir à gargalhada. Dora era formidável em
mímica, Carlota fazia imensas habilidades, e Claudina imitava mam’zelle, a tia,
na perfeição.
Ângela não achava graça nenhuma, nem percebia de que se riam. “Será
que realmente acham engraçado fazer caretas, e ficarem com aquele ar feio e
estúpido “, pensava ela, ao olhar para a Dora que imitava uma velha mulher a
dias, e Claudina a representar o papel duma criada francesa. Acariciava o seu
lindo cabelo louro claro, comparando-o com a trunfa selvagem da Carlota. A
sua face encantadora iluminou-se com um estranho sorriso. Sabia que era mais
bonita do que qualquer outra rapariga do colégio! De que servem os dotes e a
inteligência? Toda a gente olhava para ela na rua, toda a gente achava que ela
podia ser pelo menos uma princesa! E quem sabe se um dia casaria com um
príncipe e seria uma autêntica princesa! Ângela sonhava acordada, sem ouvir
nada do que se passava à sua volta.
Havia duas pessoas a observá-la, uma com inveja, outra com uma grande
admiração. A primeira era Paulina que, feia e sem graça, invejava a beleza da
outra, e desejava ardentemente ser como ela. Mas o seu cabelo absolutamente
liso, apesar de bem escovado, nunca teria o brilho do da Ângela, nem nunca se
voltaria para dentro nas pontas como acontecia ao da Ângela, e que tão bonito
ficava. Os olhos da Ângela eram dum azul lindo e brilhante enquanto os da
Paulina eram mortos. As faces da Ângela eram dum rosado perfeito, e as da
Paulina raras vezes tinham qualquer cor. Não era justo que a Ângela tivesse
tanto, e ela, Paulina, fosse tão desprovida, no que se refere a aparência.
A outra pessoa que observava Ângela era, evidentemente, a sua dedicada
escrava Adelina. Perguntava a si própria se Ângela lhe teria perdoado por a ter
aconselhado acerca da Helena. Procurou atrair o olhar da Ângela, mas ela
estava perdida no meio dos seus belos sonhos.
- Estás tão bonita, Ângela! - murmurou Adelina por fim.
Ângela ouviu e sorriu docemente. Esquecera-se de que estava zangada
com a Adelina. Esta falou-lhe em voz baixa, louvando-a pela conquista que
fizera da Helena.
- Disse-lhe das boas, por ser uma alcoviteira - contou ela à Adelina. -
Proibi-a de voltar a falar de mim, e ela prometeu não voltar a fazê-lo.
- Oh!, Ângela, na verdade conseguiste que ela fizesse essa promessa? -
perguntou Adelina. - Tu és formidável, realmente! - olhou à roda da sala. - Olha
lá, onde está a Helena?
- Gostavas de saber? - perguntou Ângela, olhando para o valioso relógio
de ouro que tinha no pulso; e ao ver que havia apenas cinco minutos até à hora
de irem para a cama, disse: - Então vem comigo, que eu vou ver se te posso
mostrar onde está a nossa querida Helena.
Levou a Adelina até à salinha de música.
- Vês o muro do colégio, lá em baixo? - perguntou Ângela. - Sabes da porta
que existe por trás do campo de ténis? penso que a Helena saiu essa porta para
ir à azinhaga falar com o seu querido, adorado Eddie!
- Olha, lá vem ela - disse Adelina. - Santo Deus! Meteu-se num bom
sarilho se a apanham!
- É a Helena, sim senhor - confirmou Ângela, ao avistar uma figura entre
as árvores, e desaparecer outra vez. - Vamos esperar do lado de fora da sala, e
apanhá-la ao entrar.
E as duas ali esperaram. Helena subiu o corredor rapidamente até à sala, e
Ângela dirigiu-lhe a palavra.
- Então, como está o querido, adorado Eddie? Helena olhou para ela,
quase sem a ver. Estava pálida e parecia preocupada. Empurrou a porta da sala,
tencionando ir buscar a camisa de noite que tinha estado a coser. Mas Ângela
obrigou-a a parar.
- Não respondeste à minha pergunta - observou ela, numa vòzinha meiga.
- Como está o querido, adorado Eddie?
Helena olhou a direito para aquela rapariga tão má, e disse numa voz que
tremia:
- Eddie está óptimo. Tinha uma quantidade de boas notícias para me dar.
Vai lindamente.
Helena entrou na sala. Adelina voltou a não se sentir à vontade. Não
gostava que a Ângela arreliasse assim a outra, porque atingia as raias da
maldade. Mas como podia atrever-se a discordar da fidalga Ângela?
VII Claudina consegue o que quer
- Este período é muito agradável - disse Patrícia a Isabel enquanto se
enxugavam depois da natação na piscina. - Eu adoro toda esta vida ao ar livre.
Ténis... natação... andar a cavalo... jardinagem... e hoje até tivemos lições ao ar
livre. Estava tanto calor!
Isabel riu-se.
- A pobre Claudina é que não gosta tanto do ar livre como nós! - observou
ela. - Não teve piada na aula de Matemática.
Na verdade Claudina tinha tido piada. Para começar, ficara horrorizada ao
ouvir dizer que a miss Ellis propunha dar as lições ao ar livre, debaixo das
árvores. Nos colégios onde tinha estado nunca ouvira falar em tal coisa.
- Lições ao ar livre - admirou-se a rapariguinha francesa. - Mas porquê?
Passa-se alguma coisa cá dentro de casa? Não gosto de dar lições na rua. O sol
está muito quente, fico queimada.
- Que pena que não te queimes um bocadinho mais - comentou a rir,
Roberta, que era da cor das bolotas.
- Olha para nós, todas morenas e queimadas, enquanto tu pareces uma
açucena pálida e branca!
Claudina olhou para as suas mãos, brancas como uma açucena, cheia de
satisfação.
- Aí está outra coisa que eu não compreendo em vocês, raparigas inglesas.
Não é bonito ficar queimada, é feio encher-se uma pessoa de sardas, e contudo
vocês procuram queimar-se o mais que podem, durante o dia inteiro! Eu cá por
mim gosto de ter uma pele branca. É mais natural e fica melhor. E que ideia é
essa da miss Ellis querer dar as lições na rua? Eu levo um guarda-sol comigo,
pois não quero apanhar nem uma sarda!
Mas miss Ellis não consentiu que se levassem guarda-sóis para a lição de
Matemática. Olhou para Claudina e repreendeu-a.
- Não sei se te estás a fazer engraçada, ou se realmente achas que precisas
dum guarda-sol debaixo das árvores, onde não há sol... mas seja como for, o
guarda-sol volta para o colégio imediatamente. Nem posso imaginar onde é que
o arranjaste!
Aquele guarda-sol tinha sido usado numa peça, e era enormíssimo.
Claudina desaparecia debaixo dele. Olhou para miss Ellis com um ar
absolutamente patético.
- Por favor, chère miss Ellis, eu não estou a brincar; e porque não quero
ficar com sardas no nariz - disse ela com uns olhos imploradores. - Uma
rapariga francesa não fica bem com sardas. As sardas são inglesas, miss Ellis, e
eu não quero ter sardas.
- Oh!, as sardas são tão francesas como inglesas!
- disse miss Ellis. - A tua cara pálida só tem a lucrar com umas sardas
castanho-escuro aqui e além. Fazes favor de levar o guarda-sol para o colégio e
não voltar a trazê-lo.
- Oh!, por favor miss Ellis, deixe ficar o guarda-sol para mim e para a
Claudina - suplicou Ângela, que também receava fortemente as sardas. A sua
face estava queimada, dum castanho-rosado, e não tinha sardas nenhumas.
Tinha muito cuidado para não se deixar queimar excessivamente, porque sabia
que isso estragaria a sua delicada beleza. Deitou à cara da Roberta uma
olhadela trocista. Estava completamente cheia de sardas castanho-escuro até à
pontinha do nariz arrebitado.
- Tinha um grande desgosto se ficasse sardenta como Roberta - disse
Ângela, sem que a sua voz mostrasse qualquer sombra de maldade. - Este sol é
tão quente, miss Ellis... veja como ficou a pobre Roberta!
- Estás enganada - disse Roberta, que não tinha paciência para disparates
daquele género. - A minha cara é tão sardenta no Verão como no Inverno. O sol
do Verão não tem nada a ver com isso! Já nasci sardenta!
Todas as alunas se riram, e Roberta abriu a boca para continuar. Mas miss
Ellis, que conhecia os discursos de Roberta, falou primeiro.
- Já chega, Roberta. Não quero nem mais um minuto da lição de
Matemática perdido a falar de sardas. Claudina, leva o guarda-sol para trás.
Ângela, não fiques com essa cara de quem vai perder os sentidos. Fazia-te
muito bem a ti, eà Claudina, se ficassem com umas sardazinhas. À Claudina,
porque está tempo demasiado dentro de casa, e a ti, porque não pensas noutra
coisa senão na tua aparência. Era melhor que pensasses um pouco mais nos
estudos. Podes achar engraçado ser a última todas as semanas, como tens sido
até aqui, mas devo dizer-te que não percebo onde está a graça.
Ângela corou. Que horrível era a miss Ellis! Viu um sorriso de satisfação
na face de Paulina. Paulina era mais inteligente do que ela. Aliás, era a única
coisa em que Paulina lhe era superior. Ângela ficou triste, e olhou para Adelina
como que a pedir consolação. Adelina deu-lha, sorrindo com adoração, e
fazendo uma careta a miss Ellis.
As lições ao ar livre não eram nada bem sucedidas com a presença da
Claudina. Gritava quando um insecto voava junto dela, e se um pássaro se
atrevia a sair dum arbusto esvoaçando, fazia com que toda a gente desse um
pulo, com os seus gritos. Miss Ellis estava muito aborrecida com ela.
- O que se passa agora, Claudina? - perguntou quando uma abelha passou
perto dela e lhe zumbiu ao ouvido. Claudina gritou, saltou e correu para o
outro extremo da comprida mesa onde estavam a trabalhar.
- É um animal que faz “Zzzz” e tem um ferrão, miiss Ellis - gritou,
verdadeiramente assustada.
- É uma abelha - esclareceu miss Ellis com tristeza.
- Descansa que não te ferra. Senta-te. Estás a perturbar todas as outras.
O que a seguir afligiu Claudina foi uma formiga. Trepou-lhe pela perna, e
ela de repente deu por isso. Soltou um grito tão aflito, que todas as colegas
deram um violento salto.
- CLAUDINA! Mando-te lá para dentro se voltas a gritar! - disse miss Ellis
exasperada. - O que aconteceu agora.
Claudina estava a tirar a liga com as mãos a tremer, dando gritinhos
acompanhados de exclamações em francês. A formiga tinha explorado o
interior da parte superior da meia. As colegas desataram a rir, e miss Ellis batia
na mesa, muito zangada.
- O que estás a fazer, Claudina? com certeza não vais tirar as meias!
Claudina era surda a tudo quanto miss Ellis dizia. Quando finalmente viu
a formiga, dentro da meia, não se atreveu a tocar-lhe, e olhava à roda com uma
expressão tão aflita, que Roberta teve pena dela, e atirou, com toda a destreza, a
formiga para o chão.
- Ah! - suspirou Claudina - trés bien, Robertazinha! Que coisa horrível me
havia de acontecer!
- Coisas muito mais terríveis te acontecerão se voltares a perturbar a aula -
disse miss Ellis com uma voz tão severa, que Claudina estava admirada. Voltou
a sentar-se, apertando a liga.
- Se dás mais um grito, vais para dentro - acrescentou miss Ellis.
Claudina ficou a olhar para ela pensativamente. Se alguma coisa havia que
ela desejasse naquele momento, era justamente ir para casa, onde não havia
animais que voavam e outros que rastejavam, para a molestar.
Esperou que miss Ellis baixasse a cabeça para corrigir o trabalho da Lida, e
então deu tamanho grito, que fez com que a companheira mais próxima,
Paulina, saltasse com tanta violência que entornou o tinteiro em cima da mesa.
Miss Ellis levantou-se dum salto, perdendo por completo a sua calma habitual.
- Claudina! O teu comportamento é intolerável. Vai para dentro
imediatamente, procura na sala das professoras aquela que estiver livre de
momento, e diz-lhe que te mandei para casa de castigo. Diz-lhe também que lhe
peço para ficar junto de ti enquanto fazes os teus trabalhos de Matemática. E se
fizeres um único erro, muito terás que me ouvir. Estou muito aborrecida
contigo.
com a maior alegria e entusiasmo, Claudina obedeceu a miss Ellis,
correndo para casa com os livros, antes que a professora mudasse de ideias.
Dora deu uma das suas gargalhadas. Miss Ellis olhou para ela asperamente, e a
Dora parou imediatamente de rir. Nessa altura ocorreu a miss Ellis que
Claudina, como de costume, tinha conseguido exactamente aquilo que queria,
usando o seu processo habitual, pouco escrupuloso!
Miss Ellis procurava adivinhar quem seria a professora que naquele
momento estaria na sala. Pensou que talvez fosse miss Rollins. E isso era bom.
Miss Rollins era muito severa, e faria com que Claudina se sentisse muito
pequena e humilde perante o acto que praticara.
Mas, com grande satisfação de Claudina, não era miss Rollins. Ao bater
timidamente à porta da sala das professoras, pensou qual seria a professora
com mais probabilidades de ali se encontrar. Desejou que fosse a professora de
pintura, porque era engraçada e alegre.
Abriu a porta e entrou, e viu que era Mademoiselle. Mam’zelle estava a
passar uns momentos agradáveis, sozinha. Tinha tirado os sapatos de salto raso,
e desabotoara a gola alta da sua blusa. Estava um dia tão quente! Estava a
passar pelo sono, sobre um caderno, quando a figurinha de Claudina apareceu.
Ficaram a olhar uma para a outra.
- Por que estás aqui, Claudina? - perguntou Mam’zelle severamente, em
francês. Claudina despejou imediatamente uma copiosa e sincera explicação.
Como todos aqueles insectos e animais alados daquele horrível exterior inglês a
tinham molestado, sim, e mordido, e picado, e que a vida assim nem valia a
pena ser vivida! E o sol queimava-a, e tinha a certeza que lhe iam aparecer
dúzias daquelas sardas tão feias, e o que iria a mãe dizer? Ah! muito dura era a
vida naquele desportivo colégio inglês, com o seu amor pela água gelada, o
delírio de andar a bater em bolas tantas vezes por semana, os detestáveis
passeios a pé, e...
Mam’zelle concordou inteiramente. Também detestava sol a mais, e os
insectos e répteis de qualquer espécie enchiam-na de medo e repugnância.
Esqueceu-se de inquirir se Claudina tinha ido para dentro de livre vontade, ou
se tinha sido mandada de castigo. Falaram pelos cotovelos, os seus
pensamentos voltaram-se para a sua querida França, onde as raparigas eram
verdadeiras raparigas, estudavam, cosiam e bordavam, e não andavam em
correrias loucas como as raparigas inglesas.
Por isso, quando miss Ellis perguntou mais tarde à mam’zelle se tinha
ralhado devidamente à Claudina por ter sido mandada para dentro de castigo,
mam’zelle apanhou um choque, e ficou espantada a olhar para miss Ellis.
- Ah, pobre Claudina! - disse por fim. - Não deve tratá-la com muita
dureza, miss Ellis. É tão difícil para uma rapariguinha estrangeira aprender os
vossos hábitos ingleses!
Miss Ellis bufou.
- Suponho que isso significa que fizeram festas uma à outra, que a
mam’zelle acreditou tudo quanto a menina mal comportada lhe disse, e se
calhar até a ajudou a fazer os trabalhos de Matemática! Ela nunca tinha feito
uma conta certa!
Mam’zelle sentiu-se muito pouco à vontade. Tinha ajudado Claudina a
fazer o trabalho, e claro que tinha acreditado quanto ela havia dito. Seria que a
Claudina enganava a sua boa tia? Não... não! Tal não era possível!
Mas, pensando bem no assunto, sabia que a espertalhona da Claudina
podia enganá-la, e enganava, se lhe desse para aí. Mam’zelle adorava Claudina
e bebia os ares por ela. Mas assim mesmo, às vezes não sabia o que pensar...
Seria Claudina um bocadinho esperta de mais? Não conseguia ela o que queria
demasiadas vezes? O mal é que nunca se sabia o que Claudina queria senão
depois dela o ter conseguido, e nessa altura já não havia nada a fazer.
- Palavra de honra! - disse Roberta no fim da lição de Matemática, quando
todas estavam a guardar os livros.
Aquela Claudina faz o que lhe apetece, e consegue-o!
Tenho a certeza que passou lá dentro um rico tempo. E assim foi. Foi ter
com miss Ellis no fim da manhã, pedir-lhe perdão com um ar muito
enternecedor.
- Ah, miss Ellis! Estou tão envergonhada, tão envergonhada, tão
envergonhada! Os ingleses não têm medo de nada, conservam-se sempre
calmos, nunca perdem a cabeça... mas eu, sou uma estúpida rapariguinha
francesa... perdoe-me, que eu prometo portar-me melhor de futuro. A minha tia
ficou muitíssimo zangada comigo, fez-me chorar amargamente. Veja como
tenho os olhos vermelhos!
Miss Ellis não viu quaisquer vestígios de vermelhidão nos seus olhos, e
tinha a certeza que mam’zelle não se tinha zangado coisa alguma, mas era-lhe
difícil esconder um sorriso. Claudina era tão sincera nas desculpas que pedia!
- Por esta vez perdoar-te-ei, Claudina. Mas tem cuidado para a próxima
vez.
VIII O período continua
Embora as raparigas soubessem que Claudina dizia petas quando lhe
convinha, que se servia das coisas delas sem prévio pedido, e continuava a
copiar sempre que lhe era preciso, não podiam deixar de gostar dela. Era muito
alegre, generosa à sua maneira, e nunca se ofendia com aquilo que lhe diziam.
Contudo podia ofender-se facilmente com alguma coisa que a Ângela ou a
Paulina lhe dissessem. Ângela olhava Para ela com o mesmo desdém com que
olhava para a Helena, porque era uma aluna que certamente não pagava a
pensão do colégio.
- Alunas por caridade... qualquer delas! - disse ela um dia à Adelina,
troçando. - Acho que não deviam estar em colégios como este.
Se Roberta, Lida ou as gémeas ouviam comentários deste género, por
acaso, diziam-lhe das boas e não a poupavam.
- Olha lá - disse Patrícia uma vez -, nós não gostamos mais da Helena do
que tu, mas tens que compreender, Ângela, que se a mãe da Helena a tem aqui
sem pagar, é por causa do trabalho que ela própria aqui tem como Vigilante, e é
indiferente pagar qualquer coisa em dinheiro ou em trabalho; tudo é
pagamento, e a Helena não está aqui por “vaidade”, como tu dizes. Tu é que és
tão snob que até enjoa!
Ângela detestava que lhe chamassem snob. Fechou o livro com toda a
força.
- Snob! - exclamou ela - é uma palavra da vossa predilecção quando se
referem a alguém que tem verdadeira classe. Arranjem qualquer coisa mais
original para dizer.
- Tens razão - concordou Roberta imediatamente.
- Tu achas que a Claudina também aqui está por caridade. Pois bem, em
vez de nos dizeres isso a nós, por que não vais dizê-lo à mam’zelle, ou à própria
Claudina? És demasiado cobarde para isso. És capaz de tocar na Helena porque
a tens na mão e ela não te pode responder à letra! Mas não te atreves a tocar na
Claudina directamente, porque ela é capaz de se atirar a ti e arranhar-te essa
carinha de anjo, ou fazer com que a mam’zelle te comece a fazer guerra!
- Oh, és impossível! - disse Ângela, furiosa. - vou pedir à minha mãe que
me tire do colégio no meio do período. Na verdade, quando ela aqui chegar e
vir o género de raparigas com quem tenho que viver, tenho a certeza que me
leva com ela.
- Deus do Céu! Se ao menos a tua mãe tiver o senso preciso para fazer isso!
- suspirou Roberta. - Mas não faz. Eu conheço as mães. Vai deixar-te ficar aqui
para nos maçares durante o resto do período.
Os olhos de Ângela encheram-se de lágrimas de raiva. Durante a sua vida,
completamente estragada com mimos, nunca ninguém lhe tinha falado daquela
maneira. Estava furiosa, magoada e triste. Engolia as lágrimas, porque as
lágrimas prejudicavam a sua beleza. Foi ter com a Adelina. A Adelina arranjava
sempre um unguento para suavisar as mágoas da Ângela. com o seu habitual
sistema de cabeça oca, fazia por não ver os graves defeitos da Ângela, e apenas
tinha olhos para o seu rosto encantador, para a beleza dos seus vestidos e de
tudo quanto possuía. Pobre Adelina! Tinha a sina de ser atraída pelas pessoas
que devia desprezar.
- Nunca aprende! - comentou a Lida. - Realmente pensei uma vez, quando
ela andava no segundo ano, e estava tão interessada na nossa horrível
ensaiadora, a miss Quentin, que essa lição lhe tivesse servido de alguma coisa...
lembras-te como a miss Quentin a desprezava? Fingia gostar imenso da
Adelina, e troçava dela nas costas.
- Lembro-me perfeitamente - concordou Patrícia.
- É uma pena que a Adelina só se sinta feliz adorando alguém. No fundo
faz um mal terrível à Ângela. Sempre que nós conseguimos introduzir um
pouco de bom senso na cabeça da Ângela, a Adelina fá-lo sair, dizendo-lhe que
ela é maravilhosa, duma beleza indescritível, e o mais que lhe vem à cabeça!
- Devo dizer que é completamente diferente de vocês ambas - disse
Roberta. - Vocês são muito sensatas. Até custa a crer que tenham uma prima
como a Adelina!
O tempo continuava quente e de sol, com o céu azul todos os dias. As
alunas nadavam e jogavam a seu belo prazer. Estavam todas muito queimadas,
excepto Claudina, que permanecia pálida e branca apesar de tudo. Houve uma
semana em que se preocupou muito porque estava certa de que lhe iam
aparecer sardas no nariz. As outras arreliavam-na sem dó nem piedade.
- Santo Deus! Como já se vê bem uma enorme sarda que a Claudina tem
no nariz! - exclamou a Lida fixando os olhos no narizito da colega.
- Se vê! Vai ser uma verdadeira beleza - confirmou Patrícia.
- Do tamanho duma moeda de dez tostões - disse Isabel.
Claudina soltou um grito de aflição, e tirou do bolso o espelhinho que
trazia sempre consigo. Tanto ela como a Ângela e a Adelina andavam sempre
munidas de espelhos para examinarem os rostos a propósito de tudo e de nada.
- Não tenho sarda nenhuma! - anunciou ela indignadamente. - Vocês
falam “debaixo do chapéu”!
As colegas riram-se, e a Roberta disse:
- Claudina, tu falas “através do chapéu” e não “debaixo dele”. Mas se
queres guardar um segredo, guarda-o “debaixo do chapéu”. Percebes?
Claudina suspirou.
- Muito difíceis são os vossos ditados ingleses! Mas agora hei-de lembrar-
me: falar através do chapéu, significa ser parvo, e guardar qualquer coisa
debaixo do chapéu, significa guardar um segredo. Olhem, ali vai alguém que
guarda qualquer coisa debaixo do chapéu!
As raparigas voltaram-se para ver a quem se referia Claudina. Era Helena
Paterson.
- Realmente a Helena tem ar de quem anda embuchada - disse a Lida um
tanto preocupada. - Dá a impressão de que tem um segredo, e que receia que
alguém o descubra. Por vezes até parece que se sente infeliz.
- Mas tem aqui a mãe a quem pode contar tudo - disse Patrícia. As colegas
fizeram uma troça doida.
- “Peee”! - fez Roberta. - Tu contavas alguma coisa à Vigilante, se ela fosse
a tua mãe? Eu cá não contava nada. É dura como ferro. Deus queira que eu
nunca adoeça enquanto ela aqui estiver como Vigilante. Não posso pôr na
minha ideia ser tratada por ela!
As raparigas eram agora muito cuidadosas na maneira de tratar a Helena,
pois tinham a certeza que qualquer desdém, quer intencional, quer não, que
mostrassem à Helena, era participado à Vigilante, que as sobrecarregaria com
toda a espécie de inesperada costura. Todas, menos a Ângela. Esta podia fazer e
dizer à Helena tudo quanto lhe apetecesse. A Vigilante parecia olhar sempre
para a Ângela com toda a benevolência. Helena não se atrevia a dizer nada dela.
- Tenho a impressão de que a Helena sente a falta do irmão - disse
Roberta. - Vocês ouviram o que a Ângela nos contou... como ele a veio ver, sem
querer ver a mãe. Se calhar ele está metido nalgum sarilho, e a Helena anda
preocupada por causa disso.
- Pobre Helena! - lamentou a Lida. - vou ver se consigo tirar nabos da
púcara.
Para o efeito, Lida, com bondade e tacto, “apalpou” a Helena, mas ficou a
saber muito pouca coisa.
- Que idade tem o teu irmão - começou ela. - É parecido contigo?
Helena foi buscar uma fotografia e mostrou-a à Lida. Parecia satisfeita por
ter uma oportunidade de falar do irmão.
- Eddie tem dezoito anos - informou. - Tem mais dois anos do que eu. É
simpático, Lida. Mas não tem tido muita sorte. Sabes, o meu pai morreu quando
éramos ainda tão pequenos. O Eddie devia estar agora no colégio, mas tem que
ganhar a vida.
lida olhou para a fotografia. Era um rapaz de aspecto fraco. Parecia
bondoso, mas era tudo quanto se podia dizer.
- Em que trabalha ele? - perguntou ela.
- Está nuns trabalhos de engenharia - respondeu Helena. - Desempenha-se
muito bem. Um dia há-de ganhar muito dinheiro.
- Tu não andas preocupada por causa dele, pois não? - inquiriu a Lida com
bondade, olhando para a cara da rapariga que estava a seu lado, e que corara.
Helena respondeu logo:
- Preocupada por causa dele? Claro que não. Por que havia de estar?
Gostava de o ver mais vezes, isso gostava. Sabes, até ao princípio deste período
em que a mãe arranjou este emprego, vivíamos todos juntos. Ele está agora num
apartamento, e eu sinto muito a sua falta.
lida não disse mais nada. Continuava a achar que a Helena parecia
preocupada, e não prestava tanta atenção às lições como miss Ellis desejava.
“Mas, no fim de contas - pensava Lida - não era preciso mais que ter que ouvir
as rabugices da Vigilante, nas horas vagas, Para uma pessoa ter um ar
preocupado! “
Helena tinha que ajudar a mãe no arranjo das roupas, todas as semanas, e
às vezes quando as alunas passavam à porta da Vigilante, ouviam-na rabujar
com a Helena. Quando calhava, a Helena respondia-lhe torto, isso é verdade,
mas geralmente ouvia em silêncio. Algumas das raparigas tinham pena da
Helena, outras ficavam satisfeitas, porque sabiam que era uma alcoviteira
quando lhe apetecia contar o que se passava no quarto ano.
Mais umas semanas se passaram, e o meado do período aproximava-se.
Três ou quatro raparigas do quarto ano faziam anos, e houve uma porção de
presentes para comprar.
Ângela tinha sempre muito dinheiro e comprava presentes muito caros.
Paulina procurou rivalizar com ela e comprava presentes maravilhosos
também. Mas era impossível gastar tanto dinheiro como a Ângela! Não podia
pensar em gastar quarenta escudos num frasco de sais para o banho, ou num
lenço de assoar com uma rendinha à volta.
Helena não deu presente nenhum.
- Desculpa... - disse ela à Lida no dia dos seus anos. Gostava de te dar
qualquer coisa, mas não tenho dinheiro nenhum nesta altura. Contudo desejo-te
muitas felicidades.
- Muito obrigada - disse a Lida, pensando que a Helena devia ser muito
direita e honesta, e apreciando-a naquele momento, em que provou ser
suficientemente corajosa para confessar que não tinha dinheiro nenhum.
Ângela presenteou Helena com um magnífico diário, cuja capa era de
cabedal autêntico, com os cantos lindamente trabalhados. Lida gostou muito
dele. Então Paulina ofereceu-lhe uma bolsa com as suas iniciais: I. W. W.
- Oh, Paulina, que bonito! Mas não queria que gastasses tanto dinheiro
comigo! Tenho a certeza de que isso te faz diferença!
Foi uma observação infeliz feita à Paulina, que era muito sensível em
matéria de dinheiro, e que procurava sempre competir com a Ângela. Corou e
respondeu, toda empertigada:
- Sabes que a minha família, os Bingham-Jones, são ricos - respondeu ela,
com aquela voz afectada que a Lida detestava. - Tenho o dinheiro que quero. É
verdade que o não espalho duma maneira tão vulgar como a Ângela, mas
também tenho-me na conta de ter mais educação. Contudo tenho aquele que
peço, Lida, e não julgues que gasto mais do que aquilo que posso.
- Oh, filha, os Bingham-Jones e a fidalga Favorleigh deixam-nos
completamente esmagados com tanta riqueza e fidalguia! - comentou Patrícia,
rindo. - Bem, mas das duas, eu prefiro a Paulina, porque a Ângela é realmente
má, por vezes, e diz coisas horripilantes com o mais angélico dos sorrisos!
- Não tenho em grande conta nenhuma das quatro raparigas que entraram
este ano. Considerando bem - disse Isabel franzindo a testa pensativamente. -
Ângela é uma snob cheia de maldade. Paulina é uma snob invejosa. Claudina é
divertida mas sem escrúpulos nenhuns... não tem qualquer noção do que seja
honra, segundo me parece... e a Helena é uma alcoviteira!
- Pai da vida! A modos que és màzinha, Isabel! - observou Patrícia.
- Não, isso é que não sou - disse Isabel honestamente.
- Estou apenas a avaliá-las. Não sou como a Adelina, que é incapaz de ver
para além dum rosto bonito. E embora não tenha em grande conta nenhuma
destas quatro, sabes muito bem que as ajudaria a todas, se da minha ajuda
precisassem. E quando se é realmente mau, não se pensa assim, não te parece?
- Tens toda a razão - concordou Patrícia. - Tens razão, sim senhora. Não
importa que se vejam as pessoas como elas são, e que até se não goste delas,
desde que se esteja pronto a auxiliá-las quando elas precisam.
IX Fazendo os preparativos para a festa do período
O meio do período chegou rapidamente, e as alunas andavam excitadas
porque os pais vinham visitá-las. Haveria desafios de ténis e corridas de
natação na sua presença. Lida, Roberta, as gémeas e mais algumas alunas
andavam muito entusiasmadas porque esperavam fazer parte das equipas que
entravam nessas competições.
- Gostava que a minha mãe me visse nadar debaixo de água durante todo
o tempo do banho - disse Roberta.
- Ela foi grande nadadora quando era nova. Deus queira que me escolham
para as corridas de natação.
As gémeas esperavam entrar nos desafios de ténis, pois a mãe ficaria
muito satisfeita de as ver jogar juntas e ganharem um desafio. Tinham ambas
um grande orgulho no Colégio de Santa Clara, e desejavam ardentemente que o
seu colégio fizesse vista, e que elas próprias fizessem boa figura.
lida iria bater-se sozinha contra uma aluna do quinto ano. Tinha sido
escolhida pela sua maneira elegante de jogar, e esse desafio seria mais uma
exibição do que uma luta. Ambas as raparigas jogavam com uma elegância
natural, e a professora tinha uma grande vaidade nelas.
Marília esperava vencer a prova de comprimento na piscina. Era muito
rápida e forte. A sua amiga Glória, que parecia um ratinho, também entrava nas
provas de natação, porque, apesar de ser muito baixa, era uma esplêndida
nadadora. Estava ansiosa por que a mãe a visse.
Não tinha nem pai nem irmãos, e por isso a mãe era tudo para ela.
- As festas do período vão ser animadas - disse Lida.
- A tua mãe vem, Ângela?
- Evidentemente - respondeu Ângela - e o meu pai também. Estou desejosa
de ver o carro novo. É um Rolls-Bentley preto, com uma risca verde, e...
- Desconfio que estás mais ansiosa por ver o carro novo do que a família! -
comentou Roberta, com um risinho. - Nunca falas dos teus pais senão a respeito
da sua riqueza... Ainda não tinhas dado por isso?
Ângela ficou amuada.
- Não sei o que queres dizer com isso. Certamente também falavas de
carros e outras coisas se os teus pais tivessem tanto como os meus. E vais ver a
minha mãe quando ela vier! Há-de sobressair de todas as outras. É linda, tem o
cabelo louro como o meu, e uns olhos muito azuis. Anda sempre muitíssimo
bem vestida...
- Até os alfinetes de segurança que ela usa são de ouro do melhor quilate,
cravados de diamantes... - rematou Patrícia.
- Não sei que graça é que vocês acham - disse Ângela quando as colegas
desataram à gargalhada. - Só lhes digo que esperem, que depois me dirão
quando virem a minha mãe! É a senhora mais bonita que vocês jamais viram.
- Que pena não seres parecida com ela! - exclamou Roberta em ar de troça.
- A tua mãe não tem desgosto de ter uma filha como tu? Deves ser um grande
desapontamento para ela!
Ângela corou de raiva. Não suportava que a arreliassem daquela maneira.
- Está bem - disse ela numa voz azeda. - Está bem. Mas esperem só até
verem a minha mãe... e depois me dirão se é ou não a pessoa mais maravilhosa
que vocês já Viram em toda a vossa vida. Espero que traga o colar de Pérolas de
duas voltas. Vale quatrocentos contos.
- Pois eu - disse Glória, que raras vezes intervinha em conversas destas,
com a sua doce voz - quero lá saber se a minha mãe traz o vestido mais velho
que tem, se vem com malhas caídas nas meias, ou se até se esqueceu de pôr pó-
de-arroz no nariz, desde que venha ver-me e que eu possa estar algumas horas
com ela! Pode ser a mais desarranjada, a mais feia, a mais pobremente vestida,
que terei sempre muito orgulho nela, e para mim será sempre a melhor de
todas!
Este discurso pareceu enorme na boca da tímida Glória. Ficaram todas
caladas quando ela acabou de falar. Patrícia sentiu virem-lhe as lágrimas aos
olhos. Havia tanta ternura na voz da Glória... e o que ela havia dito era
extraordinário. Aquela era a verdadeira maneira de se amar alguém. Que
importa o aspecto ou o que se faz? O que importa é receber as pessoas como
elas merecem.
Até a Ângela foi apanhada de surpresa. Ficou a olhar para a Glória, muito
admirada. Ia para fazer uma observação desdenhosa, mas Roberta não deixou.
- Agora cala-te - intimou Roberta numa voz firme.
- A Glória disse a última palavra no que respeita a mães, e tem toda a
razão. Parabéns, Glória.
Depois disto, Ângela não disse mais nada, mas intimamente regozijava-se
ao pensar na sua mãe admiravelmente vestida, e em como as outras seriam
forçadas a admirá-la, e ao seu vestido, quando ela aparecesse.
- Os teus pais vêm? - perguntou Lida à Paulina.
- Claro que vêm - respondeu Paulina com alegria, e começou a falar deles
com entusiasmo. - O meu pai é um bonito homem, e a minha mãe é muito
simpática. Deus queira que traga o vestido que comprou nas férias. é muito
bonito. Fá-la parecer mais nova, e fica-lhe muito bem.
Paulina falou sobre os pais duma maneira tão snob como a Ângela,
embora duma forma diferente. Referia-se-lhes como pessoas generosas, boas e
bem dispostas, em vez de se lhes referir como pessoas cheias de teres e haveres.
- Os pais da Paulina devem ser simpáticos - comentou Patrícia. - Tenho
que ver bem os pais da Ângela. Tenho a impressão de que o pai deve usar
botões de brilhantes no casaco, e a mãe cinco ou seis casacos de peles ao mesmo
tempo!
Isabel fartou-se de rir.
- Estou muito contente por a nossa mãe ser uma pessoa vulgar. É bonita,
boa e sensata, mas não passa duma simpática mãe como há muitas!
Todas as alunas se exercitaram bem para as exibições que se
aproximavam, nadando e jogando ténis sempre que podiam, para que os pais se
orgulhassem delas. Havia também uma exposição de quadros pintados pelas
alunas e uma exposição de costura, na qual Claudina esperava obter um certo
êxito. Tinha bordado uma linda almofada em que havia um pavão com uma
maravilhosa cauda aberta.
Mam’zelle tinha um grande orgulho nesta almofada. Maçava toda a gente
a descrevê-la, e explicava:
- É um trabalho muito delicado! Ah! Claudina é muito inteligente! Não
acha que a Claudina fez uma cauda perfeita, miss Ellis?
- Acho - respondeu miss Ellis. - Muito melhor do que os trabalhos de
Matemática, História, Geografia, Literatura, ou...
- Bem, bem! - interrompeu mam’zelle, magoada.
- Nem todos podemos ter habilidade para tudo. Mas a Claudina, ela...
- Não me parece que a Claudina tenha jeito para mais alguma coisa além
da costura - comentou miss Ellis.
- Só queria que ela tivesse um bocadinho de atenção nas aulas, e que
pensasse um bocadinho durante as horas de estudo! A mam’zelle estraga a
Claudina com mimos.
- Eu?! Estragar a Claudina com mimos! - exclamou mam’zelle, deixando
cair os óculos, com a fúria. - Nunca estraguei rapariga nenhuma com mimos,
nunca! Sou sempre severa, sempre justa, sempre...
- Está bem, mam’zelle -? disse miss Ellis apressadamente, ao ver que
mam’zelle estava lançada num dos seus longos e apaixonados discursos - está
bem. Tenho que me ir embora. Quando nos voltarmos a encontrar diz-me
o resto.
Mam’zelle procurou Claudina. Agarrou-se a ela, abraçou-a muito, com
grande espanto de Claudina. É que mam’zelle lembrara-se de repente, que a
pobre Claudina» não teria a presença dos pais na festa do período, visto que
estavam em França. Por isso, assim que se lembrou de tal, correu a confortar
Claudina que, no entanto, não precisava de qualquer conforto. Gostava dos
pais, evidentemente, mas como eram muitos irmãos e por conseguinte não
recebia do amor e da atenção dos pais senão um pequena parcela, não tinha
muitas saudades deles.
- Ah, minha querida Claudina! - disse mam’zele apertando nos braços a
espantada Claudina. - Não estejas triste, não te deixes desencorajar! Não te
amofines, que não estarás sozinha no dia da festa.
Claudina perguntava a si própria se a tia teria enlouquecido.
- Eu não estou triste, ma tante! Mas o que se passa? Aconteceu alguma
coisa?
- Não, não! – respondeu Mam’zelle, ainda cheia de ternos pensamentos
para com a sua Claudina. - Não aconteceu nada. É só porque tenho pena de ti
por os teus pais não virem à festa do período. Quando todas tiverem os seus
simpáticos pais e mães junto delas, tu não terás senão a tua tia Matilde que te
adora!
- Mas isso é bestial! - exclamou Claudina. Mam’zel franziu o nariz e os
óculos caíram.
- Não empregues essas expressões! - aconselhou a tia - São ordinárias. Ah,
minha querida Claudina, não terás aqui os teus pais para admirarem a tua linda
almofada, com o seu imponente pavão... mas estou eu, minha querida, e não
sairei de junto dela nem um só minuto, e direi a toda a gente: “Vejam! Vejam a
linda almofada bordada pela extraordinária Claudina! Ah! Só uma rapariga
francesa seria capaz de executar um trabalho destes. Olhem para a cauda, vejam
como as penas estão bem matizadas, olhem para esta valiosa almofada, a coisa
mais bela deste dia! “
- Oh, tia Matilde, pela sua rica saúde não diga nada disso! - suplicou
Claudina verdadeiramente alarmada.
- As minhas colegas nunca mais acabariam de rir! Arreliar-me-iam até
mais não! Por favor não diga nada. Eu não me sentirei só, nem me importo que
não venha ninguém.
- Ah, como és valente! - suspirou mam’zelle, enxugando uma lágrima que
teimava em cair. – Compreendo a tua coragem. Não queres mostrar às outras o
teu sofrimento.
- Eu não sofro - afirmou Claudina, já um pouco impaciente - mas não sofro
mesmo, tia Matilde. Peço-lhe que não faça disto um bicho-de-sete-cabeças. Seria
ridículo se estivesse a tarde inteira ao pé da almofada a fazer observações dessa
natureza!
A ideia da mam’zelle de guarda à almofada como um buldogue, a falar
aos pais das outras alunas na solidão da sua sobrinha, e a gabar até ao infinito a
sua almofada, enchia a Claudina de terror. Começou a desejar que as festas do
período tivessem acabado!
Mas nem sequer haviam começado! Quatro dias... três dias... dois dias...
finalmente a véspera! Agora sim, estava perto! Naquela noite as alunas foram
para a cama muito excitadas, e cochicharam até muito depois das luzes
apagadas. Susana Howes, a chefe de turma, fingia estar a dormir. Não queria
ser desmancha-prazeres na véspera do dia da festa, severa como era todas as
outras noites.
Ângela pensava na impressão maravilhosa que a sua mãe iria causar, e
como ela se iria aquecer nos reflexos da glória da mãe. Esperava que a mãe
trouxesse o famoso colar de pérolas, e a sua linda raposa.
Helena também pensava na mãe, presente mas como Vigilante, e não
enfeitada e bonita com as mães das colegas. Gostava que o Eddie pudesse ali
estar, não porque ela entrasse em qualquer competição desportiva, ou tivesse
algum trabalho em qualquer das exposições, mas porque seria encantador vê-lo
à sua procura, o seu adorado irmão.
Adelina estava ansiosa por ver a sua bonita mãe, bem como a da Ângela.
Esperava que ficassem amigas. Seria formidável se gostassem uma da outra, e
como seria bom se a mãe da Ângela a convidasse a ela, Adelina, para passar as
férias em sua casa. Seria ouro sobre azul!
Paulina também estava a pensar nos pais. E Roberta igualmente. As
últimas férias pareciam estar já a uma grande distância. Estar no colégio era
bom, mas melhor era estar em casa junto dos seus. Era muito agradável estar
com a família no dia seguinte.
Uma a uma as raparigas adormeceram. Roberta foi a primeira a acordar.
Sentou-se na cama e gritou:
- Acordem, dorminhocas! É o dia da festa!
X Finalmente o dia da festa
No sábado da festa o dia estava lindo. O sol brilhava num céu azul sem
uma única nuvem.
- Está um dia magnífico, Claudina! - disse Dora, radiante, à colega
francesa. - Não podia estar mais bonito!
Claudina resmungou:
- Pensar que temos que estar lá fora com um sol destes! Já sei que vou ficar
cheia de sardas. Quem me dera que estivesse a chover!
- Minha desmancha-prazeres! - disse Roberta rindo-se
- Até num dia destes gostavas de ficar dentro de casa! Vem daí, anima-te e
sorri. Na verdade está um dia divinal.
A exposição de pintura estava pronta para ser admirada pelos pais das
alunas. Havia quadros muito bons, Miss Walker, a professora, tinha muito
orgulho neles. Tinha aguarelistas com quem saía muitas vezes para pintarem
cenas rurais, e algumas delas pintavam muito bem.
- Estes quadros vendem-se lindamente! - disse Claudina. - Os nossos
trabalhos são para vender? Quanto te dariam por este lindo quadro, Lida?
Lida riu-se.
- Tens ideias cómicas, Claudina. Claro que os nossos trabalhos não são
para vender. Como se os nossos orgulhosos pais o consentissem! Não. Os pais
levam para casa e colocam em lugares de destaque nas paredes, ou sobre os
móveis, os nossos quadros e cerâmicas, para que os amigos os possam admirar
e dizer: “Como a sua filha deve ser inteligente, minha senhora!”
- Aposto que a tua mãe ficava contente se lhe mandasses a tua linda
almofada no dia dos anos - lembrou Patrícia. Claudina riu-se.
Tenho três irmãs que fazem coisas muito mais bonitas do que as minhas.
A minha mãe olhava para a almofada e dizia: “Ah, a Claudina está a fazer
progressos! Isto não está nada mau para uma principiante!“
- Mas a verdade é que a mam’zelle acha que está uma maravilha... - disse
Roberta. Tu tens uma coisa boa Claudina, não és nada vaidosa. com o falatório
que se tem feito acerca do teu bordado, era para estares toda inchada, e não
estás.
- Eu sei que está bem feito em relação ao que vocês inglesas fariam -
confessou Claudina, muito séria. - Mas também sei que em França não passa
dum bordado vulgar. A minha bitola de comparação no que se refere a bordado
é diferente da vossa, e não posso achar a minha almofada tão maravilhosa como
vocês dizem.
Claudina era uma estranha mistura de honestidade, sinceridade e
fraudulência. Mas até a sua fraudulência era estranha, porque não procurava
escondê-la. Tentava muitas vezes enganar miss Ellis, por exemplo, mas quando
ela dava por isso, Claudina confessava imediatamente a sua tentativa de dolo
sem se sentir envergonhada. Era como se estivesse a brincar com as professoras,
tentando levar a melhor, mas sem procurar esconder o facto de que estava
fazendo essa tentativa. As condiscípulas não conseguiam defini-la.
Patrícia e Isabel iam jogar juntas um desafio do colégio” e estavam
radiantes. Inspeccionavam as suas saias e blusas brancas, as peúgas encarnadas
e os sapatos brancos, e levaram as roupas à Vigilante para a criada as passar a
ferro. Todas as alunas tinham que se apresentar impecáveis à chegada dos pais!
Paulina mostrou-se triste ao pequeno-almoço, e ninguém sabia por quê.
Lida falou-lhe no seu modo habitualmente bondoso.
O que tens, Paulina? Pareces triste. Não estás aborrecida por não teres sido
escolhida para os desafios do colégio, pois não?
- Não! - respondeu Paulina. - Tive apenas um grande desapontamento.
- O que foi - perguntou Lida, e as colegas aproximaram-se para ouvir.
- Sabem - disse Paulina -, por pouca sorte, a minha mãe está doente e o
meu pai não a quer deixar sozinha, por isso não vêm hoje! E eu tinha tanto
gosto em que viessem à festa!
- Já foi azar, Paulina! - lastimaram as gémeas, com simpatia.
Um desapontamento daqueles à última hora era uma arrelia. Ficaram
todas cheias de pena.
- Deus queira que a tua mãe não tenha nada de cuidado - desejou Susana
Howes.
- Não, não tem nada de importância - disse Paulina.
- Mas não pode vir. E eu que tanto gostava que vocês conhecessem o meu
pai, que tem uma figura tão bonita, e a minha mãe, que é linda! Até lhe tinha
escrito a pedir-lhe que trouxesse o vestido novo de que eu gosto tanto, e ela
mandou-me dizer que sim.
- Paciência - disse Isabel, que na verdade estava cheia de pena. - Podes sair
connosco e com os nossos pais, se quiseres. E assim não te sentirás tão só.
- Obrigada - disse Paulina. E depois parecia muito mais animada e tudo a
entusiasmou muito mais.
Mam’zelle tinha colocado a bonita almofada de Claudina num lugar bem
em evidência. Sentia-se ainda na disposição de cair nos braços de Claudina e de
lhe dizer que se não sentisse abandonada, mas Claudina fugia-lhe sempre que
podia, desaparecendo cada vez que via aproximar-se a tia.
- É uma espécie de jogo das escondidas, Claudina! - disse Roberta. - Mas
olha que tens que falar com a Mam’zelle rapidamente, ou ela rebenta. Está
ansiosa por te mostrar a maneira graciosa como colocou a tua maravilhosa
almofada na exposição.
O almoço foi muito ligeiro naquele dia porque as criadas estavam
atarefadas a arranjar os morangos para o chá que os pais tomariam à tarde, e
havia dezenas de quilos de morangos para pôr em taças de vidro. As
cozinheiras tinham feito bolos e biscoitos formidáveis, e havia sanduíches de
toda a espécie. As alunas estavam constantemente a espreitar para dentro da
casa de jantar, onde as travessas estavam todas enfileiradas.
Claudina entrou e surripiou alguns morangos. Era a única que se atrevia a
fazer aquilo.
- Arranjas um bom sarilho se alguém te apanha - disse Roberta.
- Entrem e provem - aconselhou Claudina, passando a língua rosada sobre
os lábios vermelhos. - São tão doces e tão sumarentos!
- Não - respondeu Roberta. - Demos a palavra de honra que não
tocaríamos nas coisas do chá, e nem sequer me passa pela cabeça faltar à minha
palavra.
- A vossa honra é uma coisa muito engraçada - troçou Claudina. - É uma
coisa horrível, que vos não deixa fazer o que vos apetece. Eu não me preocupo
com essas honras. Nunca terei a vossa honra. Não gosto disso.
- Tu és impossível, Claudina - censurou Ângela, torcendo o nariz. - Fazes
tudo quanto te apetece. Ainda bem que não sou tão desonesta como tu.
O tom destas palavras foi muito desagradável, mas Claudina limitou-se a
rir. Dificilmente se ofendia.
- Oh, Ângela! - disse ela. - Achas pior surripiar alguns morangos do que
dizer mentiras duma rapariga, nas suas costas? Eu, cá por mim, acho realmente
desonesto dizer mentiras acerca de alguém, como tu fazes. Para mim tu és
desonesta, não vales mesmo nada, não por causa de meia dúzia de morangos,
mas por causa da tua má língua!
As raparigas presentes fartaram-se de rir. Aquilo fora dito numa voz
agradável, mas havia tanta verdade naquelas palavras, e o feitiço tinha sido tão
habilmente voltado Contra o feiticeiro, que as raparigas não puderam deixar de
se rir. Apenas Ângela ficara zangada. Mas havia pouco tempo para discussões
no dia da festa. Havia tanto que fazer, e cada aluna tinha a sua tarefa a cumprir.
Algumas tinham o encargo de arranjar as flores em todo o colégio, o que
levava muito tempo. As jarras tinham que Ser lavadas, eram retiradas as flores
velhas, era preciso apanhar flores novas e dispô-las, o melhor possível, nas
jarras e outros recipientes do género. As gémeas tinham muito jeito para este
trabalho, e estiveram ocupadas toda a manhã.
Depois do almoço todas vestiram fatos de desporto ou o uniforme do
colégio. O uniforme de Verão era uma bata de cor muito alegre. Cada aluna
podia escolher a cor que mais lhe agradasse, e cada uma escolhia aquela que
melhor lhe ficava. As morenas, como Carlota, escolhiam tons de vermelho e
laranja. As louras, como Ângela, escolhiam tons claros de azul e rosa. Pareciam
flores que se moviam sobre o relvado dos terrenos do colégio, naquele dia
quente de Verão.
- Os pais começam a chegar! - anunciou Adelina, ao ouvir os carros no
caminho. - Os primeiros já cá estão. Quem são?
A turma do quarto ano espreitou pelas janelas, mas ninguém conheceu as
pessoas que estavam nos carros.
- Devem pertencer aos anos mais atrasados - disse Roberta. - Lá vêm mais.
- São nove! - exclamou Joana. - Já sabia que chegavam cedo. A minha mãe
está muito bonita e queimada. vou ter com os meus pais.
Saiu a correr. Cada vez chegavam mais carros, e em breve os relvados
estavam cheios de pais, mães, tios, irmãos e irmãs mais velhos ou mais novos.
Como Helena gostaria que o irmão ali estivesse!
A mãe de Helena estava muito bem arranjada, muito direita no seu
uniforme de Vigilante e o seu avental branco. Alguns dos pais iam falar com ela
acerca da saúde das filhas. Helena estava satisfeita por ver que a mãe era
procurada por tantos pais, mas não podia deixar de lastimar que não pudesse
estar vestida como as mães das outras, com um bonito vestido e o mesmo ar
doce e atraente que as outras tinham.
“A mãe devia sorrir-se mais - pensava Helena. - Tem um ar tão severo e
duro. Olhem para a mãe das gémeas, além... tem um ar mesmo agradável. E
como aprecio a maneira como pôs o braço à roda da Patrícia e da Isabel. A
minha mãe nunca me abraça a mim nem ao Eddie.”
Um enorme carro subia a alameda, com um condutor elegantemente
fardado. Era um belo Rolls-Bentley novo, preto, com uma risquinha verde.
Parou, e o condutor apeou-se. Ângela soltou um grande grito:
- O nosso carro novo! Olhem todas, não é uma beleza? Gostam da farda do
motorista, preta com galões verdes para condizer com o carro? As almofadas
também são pretas, debruadas a verde, e com monogramas verdes também.
- Pensei que ficasses tão entusiasmada ao ver os teus pais que nem
reparasses no carro! - disse Joana friamente.
Mas Ângela não fez caso. Estava na verdade radiante por ali estarem
tantas alunas do quarto ano à chegada do seu enorme carro novo!
O motorista abriu a porta do carro. A mãe da Ângela saiu. Parecia um
quadro! Tinha um ar muito jovem, era parecidíssima com a filha, e estava
vestida o mais elegantemente possível.
As raparigas ficaram a olhar para ela, que por sua vez olhou à volta com
os seus brilhantes olhos azuis, iguais aos da filha também. Depois saiu o
marido. Era um homem alto, com um ar marcial e sério. Ângela deu outro grito.
Correu para os pais, abraçou a mãe, como vira as colegas fazerem, exagerando
tudo propositadamente, porque sabia que estavam a observá-la.
- Querida Ângela! Tem cuidado com o meu vestido! - disse a mãe. - Deixa-
me ver como estás.
O pai deu um grande abraço à filha, depois afastou-a um pouco para a
poder ver bem.
- Está óptima, realmente.
- Mas este horrível uniforme do colégio não a favorece nada - comentou a
mãe. - Acho que lhe não fica mesmo nada bem. E não posso ver esses
horrorosos sapatos de salto raso.
Todas as alunas os usam - disse o pai de Ângela sensatamente. - Acho que
a pequena está até muito bem.
Se ao menos o colégio tivesse um uniforme mais bonito! - disse a mãe em
tom de censura. - Era uma das razões por que eu não queria que viesse para
aqui.
O uniforme tão feio!
XI A “Maravilhosa” mãe de Ângela
Muitas vezes se ouviu naquela tarde a voz censuradora da mãe da Ângela!
Bonita como era, atraente e elegantemente vestida, o seu rosto perdia todo o
encanto em consequência do enfado e descontentamento que mostrava.
Queixou-se de tanta coisa, e a sua voz infelizmente era áspera e demasiado
alta! Queixou-se do banco duro em que estava sentada para ver os desafios de
ténis. Queixou-se da chávena de chá que a filha lhe levou.
- Que porcaria de chá! Ao menos deviam ter chá chinês. Sabes que não
gosto de chá da índia.
Queixou-se do bolo, dizendo:
- Que seco! Dificilmente se pode comer.
- Então não comas - disse o marido.
E com grande aflição da Ângela, a mãe atirou-o para o chão, onde podia
ser pisado. Os perspicazes olhos das colegas observavam todas estas coisas, e
Ângela começou a não se sentir à vontade.
- Não achas a minha mãe encantadora? - perguntou à Adelina, em voz
baixa. - Não tem um cabelo lindo? E aquelas pérolas não são magníficas?
Adelina concordou, intimamente achava que a mãe da Ângela se
comportava como uma criança amimada, queixando-se e rabujando sempre.
Não gabou nenhum quadro, não mostrou qualquer entusiasmo pela cerâmica.
Foi forçada a elogiar a almofada de Claudina, porque mam’zelle estava lá como
um dragão, com uma cara tão feroz, que toda a gente se achava na obrigação de
louvar o trabalho da sobrinha.
Ah, então esta senhora é a tua mãe, Ângela? - perguntou mam’zelle numa
voz muito delicada. - Vamos mostrar-lhe o trabalho da Claudina! Não acha
lindo? Veja a perfeição dos pontos! Repare na cauda, que bem aberta que está!
A mãe da Ângela tinha cara de quem ia passar pela almofada sem dizer
uma palavra, mas mam’zelle não estava disposta a que isso acontecesse. Pegou
no braço da visitante, e praticamente forçou-a a debruçar-se sobre a almofada
da Claudina.
- A senhora ainda não reparou! É um trabalho de arte! É a mais bela coisa
que está na exposição! - disse mam’zelle com grande entusiasmo.
- Muito bonita - disse a mãe da Ângela de tal maneira que mais parecia
dizer “horrorosa”.
Libertou o braço da mão da mam’zelle sacudiu a manga, como se ali
tivesse ficado alguma poeira, e foi-se embora toda impaciente.
- Quem é esta velha? - perguntou à Ângela, numa voz que se ouvia bem. -
com certeza não é tua professora? Já viste alguém mais insignificante e gebo?
As alunas gostavam todas muito da mam’zelle, e ficaram furiosas ao ouvir
aquelas apreciações. Roberta estava certa de que a própria mam’zelle tinha
ouvido. A senhora francesa ficou-se a olhar para Ângela e para os seus pais,
com uma expressão magoada e intrigada nos olhos.
- Olhem, eu sempre achei a Ângela má - disse Roberta em voz baixa - mas
só agora sei de onde lhe vem a maldade! Como eu ficaria envergonhada se a
minha mãe se fosse embora daquela maneira, criticando as coisas e as Pessoas
em alta voz. Pobre mam’zelle! É uma pena magoá-la.
Claudina tinha ouvido as observações feitas pela mãe de Ângela, e estava
também furiosa e magoada. Adorava a tia Matilde, e embora estivesse
aborrecida por ela não sair de junto da almofada e se comportar tão
exageradamente, compreendia que essa atitude era filha do muito Que queria à
sobrinha, e do orgulho que nela tinha.
Olhou para a bonita mãe da Ângela. Reparou no seu ar enfadado, na sua
boca petulante que por vezes lhe prejudicava a beleza. Pensou nos insultos que
aquela bonita boca devia ter pronunciado através dos anos, e nos males que
devia ter causado. E Claudina desejou ardentemente castigar a mãe da Ângela
de qualquer forma dramática, pelas palavras cruéis que tinha dito acerca da tia
Matilde.
Ângela levou os pais para a piscina. O Colégio de Santa Clara tinha muito
orgulho nela, porque era uma das mais belas e das maiores piscinas existentes
em qualquer dos colégios do reino. A água batia de encontro às paredes da
piscina, dum bonito azul esverdeado.
Mas até nisso a mãe da Ângela achou que dizer:
- Suponho que mudam a água todos os dias, não Ângela?
- Não, mãe, mudam duas vezes por semana, e às vezes três - respondeu
Ângela. A mãe fez uma careta de repugnância.
- Deus do Céu! Pensar que nem ao menos mudam a água uma vez por dia!
Que colégio! Tenho que apresentar uma reclamação por causa disso. Ângela, só
tomas banho na piscina quando a água for mudada. Proíbo-te.
- Mãe, mãe - começou Ângela pouco à vontade - tenho que fazer o que as
outras fizerem. E na verdade a água está sempre limpa, mesmo quando já tem
dois ou três dias.
- Tenho que reclamar - repetiu ela. - Nunca aprovei a ideia de te mandar
para aqui. É um colégio de segunda classe, creio eu. Eu bem queria mandar-te
para o Colégio das Torres Altas. Um colégio de tanta categoria! Não percebo
por que é que o teu pai te quis mandar para aqui. Talvez que agora, depois de o
ver, ele mude de opinião.
- Não fales tão alto, Palmira - recomendou o marido.
- As pessoas daqui não gostam de te ouvir falar assim. Estás em minoria. É
evidente que todos os outros pais aqui presentes pensam como eu, que o
Colégio de Santa Clara é esplêndido em todo o sentido!
- Oh, tu! - exclamou a mãe de Ângela, como se o que o marido pensava
não marcasse coisa alguma. Cerrou os lábios vermelhos, e ficou tão amuada
como Ângela costumava ficar quando alguém a contrariava.
Não... a mãe da Ângela não foi nenhum sucesso! Bonita podia ser, rica era
com certeza... mas não tinha o encanto da mãe das gémeas, ou a sensatez da
alegre mãe de Roberta, ou a afectividade da mãe da Glória, que se vestia com
simplicidade e tinha um ar muito doce.
- Ainda bem que não tenho uma mãe como a da Ângela! - disse Joana para
a Adelina. - Não achas que é horrível?
Por muito leal que a Adelina quisesse ser para com Ângela, não pôde
deixar de concordar. Tinha ouvido várias das malcriadas observações da mãe
da Ângela, de que não tinha gostado, porque até Adelina, que era uma cabeça
tonta, tinha um profundo sentimento de lealdade para com o Colégio de Santa
Clara. Já não estava nada interessada em ser apresentada à mãe dela, mas
chegou uma altura em que teve que o ser, porque Ângela andou à sua procura e
levou-a.
- Mãe, esta é a Adelina, a amiga de que lhe falei nas minhas cartas - disse.
A mãe olhou para a bonita e delicada rapariga com aprovação. Adelina era
como a Ângela, e o uniforme do colégio ficava-lhe bem.
- Ah! Então esta é que é a Adelina? Muito prazer em conhecê-la. Devo
dizer que tem um ar muito mais atraente do que o de algumas das outras
alunas. Uma ou duas das que a Ângela me apresentou, até metem medo!
Roberta fora-lhe apresentada, e certamente era uma das que metia medo.
A sua face franca e sardenta não podia oferecer qualquer atracção a uma pessoa
tão esquisita como a mãe da Ângela.
Onde está a tua mãe? - perguntou Ângela. - Temos que a apresentar à
minha. A minha mãe quer pedir-lhe Para te deixar passar parte das férias
grandes comigo.
Mas, com grande alívio da Adelina, quando a apresentação se efectuou, e
as duas mães se tinham cumprimentado, o convite foi firmemente declinado
pela própria mãe da Adelina.
Muito obrigada - disse ela - mas tenho outros Projectos para a Adelina.
Não explicou quais eram. Também não disse que tinha observado a mãe
da Ângela, e algumas das suas insolentes observações a tinham decepcionado.
Não disse que a da Ângela era uma pessoa com quem não gostaria que a filha
passasse nem um só dia! Mas a Adelina sabia o que a mãe estava a pensar, e
apesar de ser uma menina tonta sabia que a mãe tinha razão.
A mãe da Ângela teve a percepção dos pensamentos da mãe da outra, e
ficou surpreendida e maçada. Ia dizer qualquer coisa mais, quando se ouviu
uma sineta tocar.
- Oh, é preciso tocar uma sineta desta maneira - disse a mãe da Ângela,
tapando os ouvidos. - Que brutalidade!
- Mas é característico, não acha - observou a mãe da Adelina secamente, e
foi-se embora.
- É a sineta a chamar para se ir ver a natação - informou Adelina, dando o
braço à mãe. - Vamos mãezinha, Vai ver a Roberta a nadar, aquela rapariga
sardenta de quem a mãe gostou. E a Marília também nada com muita rapidez.
O sol brilhava intensamente quando o grupo tomou os os seus lugares
junto da piscina. Os pais sentaram-se à volta dela, mas as alunas foram para a
grande galeria que ficava por cima, olhando para as nadadoras com
entusiasmo.
Muitas não tomavam parte na natação, mas todas estavam interessadas
em ver as condiscípulas mergulharem e darem cambalhotas e nadar. Era
divertido ouvir o chapinhar da água e ver a ondulação da água azul.
- Está uma tarde maravilhosa - disse Joana, contente.
- Tenho-me divertido imenso! Sinto-me feliz por estar um dia tão bonito,
para que o Colégio de Santa Clara possa mostrar todo o seu esplendor.
- Todos os pais parecem achar que tem sido um grande sucesso -
comentou Roberta. - Todos... excepto uma pessoa!
Referia-se à mãe de Ângela. Ângela ouviu esta observação e corou.
Sentira-se tão contente para mostrar sua linda mãe... mas tudo parecia
estragado. Não podia deixar de desejar que a mãe tivesse feito comentários
agradáveis como acontecera com as mães das colegas.
Mas a verdade é que a mãe geralmente não se mostrava satisfeita com
coisa alguma, fosse lá o que fosse.
Claudina, Adelina, Ângela e muitas outras que não entravam nas
competições, arranjaram lugares na frente, na galeria que ficava por cima da
piscina. Claudina debruçou-se muito, não tanto para ver as nadadoras nos seus
fatos de banho azul-marinho, mas para ver as filas dos pais.
- Cuidado, Claudina, olha que cais! - disse Adelina alarmada, tentando
puxá-la para trás.
- Não caio - respondeu Claudina -, só estou a ver aquela pessoa lá em
baixo, sempre descontente, que fax malcriados comentários em voz alta!
- “Schiiu” - fez Adelina - olha que a Ângela pode ouvir.
- Não me ralo - respondeu Claudina. - Por que havia a Ângela de esperar
que gabássemos uma mãe que só é bonita por fora e tem uma alma hedionda?
- Cala-te, pela tua saúde suspirou Adelina, receando que Ângela ouvisse. -
Lamento que a mãe dela tivesse dito aquelas coisas da tua tia. Eu ouvi, e estou
convencida de que a pobre mam’zelle ficou magoada.
A natação começou. A mãe da Ângela ficou com um ar enjoado quando
um pingo de água caiu em cima do seu lindo vestido. Sacudiu-o com delicadeza
e procurou afastar-se um pouco, mas havia outras pessoas atrás dela e não pôde
fazer o que queria.
Era um momento emocionante, porque as nadadoras eram rápidas e boas,
e as mergulhadoras graciosas e valentes. Mas o momento mais emocionante da
tarde inteira, não foi a natação, nem os mergulhos, nem as cambalhotas
formidáveis que a Roberta deu.
Foi a inesperada e altamente dramática proeza praticada por Claudina,
sem qualquer ensaio prévio!
Estava toda debruçada sobre a balaustrada da galeria. De repente deu um
grito muito agudo, que fez com que toda a gente estremecesse, alarmada, e
depois, com horror de todos os espectadores, a rapariguinha francesa caiu de
cabeça para baixo dentro da piscina!
XII Um momento feliz
Fez um enorme reboliço ao cair na água. Esta saltou e caiu em cheio em
cima da mãe da Ângela, encharcando-a da cabeça até aos pés!
- Santo Deus! exclamou miss Theobald, a Directora, abandonando a sua
calma dignidade habitual.
- Quem caiu à água? Que alguém a apanhe depressa!
Claudina não sabia nadar. Mergulhou e depois veio à superfície, abrindo a
boca. Roberta e Marília estavam na água e imediatamente nadaram até junto
dela. Agarraram-na e ajudaram-na a sair da piscina.
- Claudina! O que aconteceu? - disse Roberta. - És idiota!
Claudina abria a boca e gesticulava. Deu uma olhadela para os lados da
mãe da Ângela, e viu, com grande prazer, que estava encharcada. Miss
Theobald estava junto dela, Pedindo desculpa, e dizendo-lhe que era melhor ir
imediatamente para dentro do colégio, e consentir que ela, miss Theobald, lhe
emprestasse alguma roupa enquanto a dela secava.
Furiosa, a mãe da Ângela seguiu miss Theobald. Tinha um ar desgraçado,
com o vestido encharcado, agarrado ao corpo, e o seu lindo chapéu a pingar.
Ângela tinha uma Cara atormentada.
- Também deves ir com a Directora e mudar de roupas, Claudina -
aconselhou miss Ellis à encharcada menina.
Veste outra farda, depressa, senão ainda te constipas. Despacha-te.
Pelo canto do olho, Claudina viu mam’zelle debruçada sobre ela, com o
alarme e a ansiedade estampados no rosto. A francesinha correu imediatamente
para o colégio. Sentiu que não podia aguentar, ver-se envolvida naquele
momento na esmagadora afeição da mam’zelle.
- Espera, espera Claudina - gritava a Vigilante, que estava muito
aborrecida por ela a ter obrigado a abandonar o grupo e voltar para o colégio.
Mas Claudina não esperou. Era preferível fazer face à descompostura da
Vigilante do que às manifestações de desgosto e simpatia da mam’zelle.
- Isto foi uma coisa mesmo à Claudina, causar tanta confusão! - comentou
Patrícia. - Oh! Isabel, não posso deixar de me sentir radiante por a pessoa
encharcada ser a antipática mãe da Ângela!
- Achas que a Claudina poderia ter feito aquilo de propósito? - perguntou
Isabel, com certa dúvida. - Sabes, é que ela não se importa nada com as acções
que pratica para atingir qualquer fim que tenha metido na cabeça. E aposto que
queria castigar a mãe da Ângela pela sua má-criação para com a mam’zelle.
- Mas a Claudina detesta pura e simplesmente a água! - disse Patrícia. -
Nada a faz despir para se meter na piscina. E atirar-se da galeria para a água
seria uma grande valentia, considerando que não sabe nadar.
Claudina voltou em breve, com roupas enxutas e um ar pensativo e
inocente. Era capaz de se mostrar tão inocente como a Ângela, quando queria...
e agora, que as companheiras a conheciam melhor, tinham a certeza que quanto
mais inocente parecia, maior maldade tinha feito ou ia fazer!
A mãe da Ângela voltou também pouco depois, vestida com roupas da
miss Theobald! Esta era mais ou menos da mesma estatura da mãe da Ângela,
mas um pouco mais alta, e embora andasse sempre bem arranjada, os seus
vestidos eram simples, modestos e dignos.
Não ficavam nada bem à mãe da Ângela. Ficava até muito esquisita dentro
deles, e ela sabia-o. Estava furiosa e não o escondia. Já era mau ficar encharcada
daquela maneira por causa duma estúpida e descuidada aluna, mas era muito
pior ser obrigada a vestir roupas tão compridas, grosseiras e antiquadas, depois
do seu lindo vestido!
Mas de qualquer modo não podia ser malcriada para com miss Theobald.
A Directora foi extraordinariamente simpática e pediu imensas desculpas, mas
manteve-se calma e digna, e agiu como se esperasse que a mãe da Ângela se
mantivesse calma e digna também. E, com grande surpresa sua, a senhora
prejudicada viu-se de boca calada, e comportando-se o melhor possível,
enquanto vestia as roupas de miss Theobald.
O resto do tempo depressa passou. Todos os desafios e competições
haviam terminado. Os pais foram-se embora com as filhas, levando-as a jantar
fora nos diversos hotéis das redondezas, para se distraírem.
Paulina foi com a mãe das gémeas. Estas tinham contado à mãe o grande
desapontamento da amiga, e ela disse imediatamente que Paulina iria com elas.
A mãe da Adelina perguntou-lhe:
- Há alguém que gostasses de trazer contigo esta noite? Espero que não
desejes ir com a Ângela e os pais, porque seria um aborrecimento para mim e
para o teu pai.
Adelina compreendeu que a mãe não queria criar relações de amizade
com a mãe da Ângela. Uma vez que não podia convidar esta, quem havia de
convidar?
Deu uma olhadela pelas companheiras. A maior parte estava de roda dos
pais, conversando alegremente, enquanto esperavam que os respectivos carros
chegassem. Helena estava sozinha a olhar. A mãe havia desaparecido,
certamente estava de volta das mais pequenas. Helena tinha um ar tão triste
que a Adelina ficou impressionada.
- Vou convidar a Helena, mãe. Não é que eu a aprecie muito, nem à mãe,
que é a Vigilante, mas com certeza gostaria tanto de ir! Olhe mãe, posso
convidar mais uma?
- Quem? - perguntou a mãe, surpreendida.
- Posso convidar a Claudina, aquela menina francesa que caiu à água? -
pediu Adelina. - Os pais dela estão em França. Só cá tem a tia, a mam’zelle.
Tenho a certeza que ficava contente. Adora sair.
- Está bem querida. Convida-as - disse a mãe, satisfeita.
Tudo, menos a enfatuada da Ângela e sua igualmente enfatuada
mãezinha!
Adelina correu para a Helena e disse-lhe:
- Vai pedir à tua mãe se te deixa ir jantar connosco. Avia-te.
- Oh! - exclamou Helena, com uns olhos que brilhavam como estrelas. -
Oh, Adelina, isso é verdade? Tu és formidável!
Correu à procura da mãe. Adelina foi ter com Claudina dizendo:
- Queres vir jantar comigo e com os meus pais? A mãe disse-me que podia
convidar-te. A Helena também vai.
- Obrigada - disse Claudina, trazendo à cena todas as suas bonitas
maneiras. - É muito amável da tua parte, Adelina, e da tua mãe também. vou
pedir à minha tia.
Mam’zelle ficou encantada. Gostava de Adelina, embora não tivesse
nenhuma esperança no francês dela.
- Vai sim, minha filha - anuiu ela enternecidamente. - Precisas de te
distrair depois do terrível choque desta tarde. Pobrezita! Cair à água daquela
maneira, quase que te afogavas, que...
- Bem, nunca estive em riscos de me afogar... - disse Claudina, piscando o
olho - eu sabia que não me afogaria, tia Matilde, porque a Roberta e a Marília
estavam ambas na piscina... Oh! E não foi formidável quando encharquei
aquela detestável criatura, de alto a baixo? Nunca pensei que a pusesse naquele
estado!
Mam’zelle ficou de boca aberta, e olhava para Claudina como se não
pudesse acreditar no que ouvia.
- Claudina! Claudina! Que estás tu para aí a dizer? com certeza... não, não
é possível... não podes ter caído de propósito! Não és assim tão má como isso! -
Mam’zelle mal podia falar.
Claudina respondeu muito gravemente:
- De propósito, tia Matilde? Como é que a tia pode pensar uma coisa
dessas? Acha que a sua sobrinha era capaz de fazer uma coisa tão chocante?
Mas como foi estupendo que aquilo tivesse acontecido justamente à mãe da
Ângela! Ah! Realmente foi um milagre!
Com um brilho especial nos olhos, a pouco escrupulosa Claudina foi-se
embora para se vestir e sair. A mam’zelle ficou a olhar para ela. Ah! Aquela
Claudina... era mesmo má! E contudo como era boa também, atirar-se à água a
fim de molhar e castigar a antipática criatura que tanto havia magoado a sua
tia! Mam’zelle sentou-se num banco do vestíbulo sem poder respirar. Afinal
Claudina era uma menina má ou boa? Aí está uma coisa que mam’zelle não
sabia dizer.
Entretanto todas as meninas e os respectivos pais tinham saído nos
diversos automóveis. Ângela tinha ido no seu magnífico carro... mas uma
Ângela calada e oprimida. As coisas não haviam corrido como ela planeara.
Não tinha brilhado nos reflexos da glória da sua linda mãe. Apenas sentira a
troça das companheiras porque a mãe tinha criticado o colégio em alto e bom
som.
Ângela olhava pela janela do carro e via o ar feliz das gémeas e da Paulina,
que caminhava junto dos pais das primeiras. Iam sair todos juntos e
conversavam alegremente.
- Andaram todas muito bem! - dizia a mãe das gémeas, numa voz clara e
satisfeita.
Depois viu a sua amiga Adelina, e com grande surpresa sua, a Helena e a
Claudina estavam com ela, entrando juntas no mesmo carro! Oh, que vilania a
da Adelina! Por que não a teria convidado a ela, Ângela, para ir com ela e com
os pais? Imaginem, convidar a coscuvilheira da Helena, e aquela exagerada da
sobrinha da Mam’zelle? Como é que a Adelina podia fazer uma coisa daquelas?
Ângela não pensou qual seria a verdadeira razão, que se traduzia num
sentimento de bondade por arte da Adelina. Estava furiosa e arreliada. Havia
de dizer à Adelina aquilo que dela pensava, a primeira vez que se
encontrassem. Se a Adelina queria fazer suas amigas as meninas que ali
estavam por caridade, podia fazê-lo. Mas não voltaria a ter a Ângela Favorleigh,
a fidalga Ângela Favorleigh como sua amiga também!
Havia duas ou três cidades razoavelmente grandes perto do colégio, que
facilmente se alcançavam de automóvel. Cada família escolheu uma cidade e o
hotel que desejava, e todos partiram. com enorme alegria de Helena, a mãe de
Adelina escolheu a cidade onde o Eddie vivia!
- Oh! - exclamou ela no momento em que o carro entrava na cidade - é
aqui que vive o meu irmão. Quem me dera vê-lo!
- Gostavas de o convidar para jantar connosco - perguntou a mãe de
Adelina.
Helena abanou a cabeça.
- Oh, não, muito obrigada. Já é muita amabilidade convidarem-me a mim.
Mas, se não se importassem, gostaria de o ver depois do jantar. Não vive longe
do hotel, e ele gostaria de me ver.
- Como quiseres, minha filha - disse a mãe de Adelina.
E assim, depois do jantar, que tinha sido esplêndido,
Helena saiu para ir ter com o irmão.
Claudina teve um grande sucesso junto dos pais de Adelina. A
francesinha era bem educada, viva e divertida, e estava contentíssima por ter
tido aquela distracção. Os pais da Adelina apreciaram muito a sua companhia.
- Adelina, quem me dera que esta francesa fosse tua amiga em vez da
Ângela - disse a mãe. - Na verdade é muito simpática. Não gostas dela?
- Gosto, mãe, gosto - respondeu Adelina. - É muito diferente das inglesas...
isto é, não tem o nosso sentido da honra nem da honestidade, nem se importa
com aquilo que faz. Mas é engraçada, absolutamente sincera, e
extraordinariamente boa.
- Lá vem a Helena outra vez - disse a mãe da Adelina.
- Deve ser muito amiga do irmão. Tem agora um ar mesmo feliz!
Helena estava feliz, na verdade. Eddie tinha ficado radiante por a ver.
Olhou para a Adelina e para Claudina duma maneira amiga e enternecedora a
que não estavam habituadas. Como aquele dia tinha sido encantador!
XIII Joana e as garrafinhas de mau-cheiro
Depois do entusiasmo da festa do período as pequenas estavam
aborrecidas e tristes. Não havia nada de interesse à vista. As lições eram uma
maçada. O tempo estava quente de mais. As férias grandes pareciam a uma
grande distância.
- Joana! Roberta! Não são capazes de arranjar uma partida qualquer? -
sugeriu Patrícia, abrindo a boca.
- Digam que sim! Morro de tédio esta semana se não acontecer nada.
Joana riu-se.
- Eu tenho uma partida formidável que o meu irmão me deu. O que não
sei, é se devemos fazê-la, agora que estamos no quarto ano...
- Não sejas parva! - disse Dora. - Lá porque estamos no quarto ano não
havemos de poder brincar? O que é a partida?
- É um cheiro horrível... esperem um bocadinho que eu vou buscar - disse
Joana.
Foi ao dormitório, remexeu numa das gavetas, e depois voltou com uma
pequena caixa. As colegas rodearam-na. A caixa estava cheia dumas coisas que
pareciam bolas de vidro dum líquido claro.
- O que é isso - perguntou Patrícia, intrigada.
- Nunca vi coisas dessas.
- São garrafinhas de cheiro - explicou Joana -, garrafinhas de mau cheiro,
como o meu irmão lhes chama. Quando alguma se parte e se despeja o líquido,
este seca imediatamente, mas deixa o cheiro mais horroroso que imaginar se
possa...
- Que espécie de cheiro - perguntou Dora com grande interesse. - Género
cano de esgoto, por exemplo?
- Bem... cheira a ovos podres - respondeu Joana.
- O meu irmão... bem, ele é tremendo, sabem? Uma vez partiu uma
garrafinha destas na nossa sala de visitas, no meio duma solene e elegante
reunião... e foi um instante enquanto a sala se esvazeou! Vocês nem imaginam o
cheiro que era!
Roberta riu-se.
- Vamos partir uma amanhã na lição de Francês lembrou ela. - Vai ser uma
grande maçada traduzir páginas e páginas daquele livro em que a mam’zelle
está tão interessada... aquela peça francesa. É uma partida que está mesmo a
matar para coisas destas. Partes uma dessas garrafinhas amanhã, Joana, ou
queres que eu a parta?
- Tu ficas com uma e eu com outra - disse Joana.
- Se a minha não resultar, pois o meu irmão diz que isso às vezes acontece,
então rebentas tu a tua. Estás a perceber?
As alunas estavam todas palpitantes por causa das garrafinhas de mau
cheiro, estavam todas a par do que se ia passar, com excepção da Helena.
Tinham medo de dizer à Helena e que ela fosse participar à Vigilante,
descobrindo o segredo. Por isso não lhe disseram nem uma palavra. Ficou
muito admirada ao verificar que muitas das colegas se calaram quando ela
chegou, e depois começaram a conversar muito alto de coisas muito parvas.
Estava certa de que tinham estado a falar dela, e sentiu-se magoada.
“Se elas me vão tratar mal, digo à minha mãe, e todas elas vão ter montes
de coisas para coser!”, pensou Helena com despeito.
No dia seguinte, Joana e Roberta entraram na aula de Francês com as
garrafinhas de mau cheiro no bolso. A lição era justamente antes do recreio.
- Temos que escolher uma lição que seja antes do recreio - tinha dito a
Joana. - Porque se o cheiro durar muito tempo, ainda lá pode estar quando miss
Ellis for dar lição, e de certeza desconfia logo que há gato...
- Não desconfia só que há gato... se lhe chegar ao nariz o cheiro das tuas
garrafinhas... - observou Roberta a rir.
- Abrimos todas as janelas e portas para deixar sair o cheiro durante o
recreio - disse Patrícia. - E quando chegar a hora da lição de Matemática já não
cheira a coisa nenhuma, e a miss Ellis não dá por nada.
As alunas estavam todas de pé e caladas, muito delicadamente, quando
mam’zelle entrou, e se sorriu para todas.
- Sentem-se! Hoje vamos continuar com a nossa tradução. vou distribuir os
papéis. Tu, Joana, fazes o papel da velha criada; tu, Adelina...
As alunas abriram os livros, escondendo a vontade de rir o melhor que
podiam. Uma partida feita pela Joana ou pela Roberta era sempre um gozo, um
grande gozo! Lembravam-se de muitas outras partidas que ambas haviam
pregado, e riam-se. Aquilo animaria consideravelmente a aborrecida lição de
Francês.
- Joana! queres fazer o favor de começar? - disse mam'zelle amavelmente.
Gostava daquele quarto ano. Eram alunas boas, trabalhadoras, e a Claudina
estava lá também, com a cara em cima do livro. Como era boazinha!
Joana começou a ler. Meteu a mão no bolso. As que estavam por trás dela
viram o gesto, e procuraram conter o riso. Este era o mal de quando se fazia
uma partida... havia sempre uma vontade de começar a rir antes do tempo, e
era dificílimo conter as gargalhadas. Dora deu uma das suas habituais
fungadelas, e mam’zelle ficou muito admirada.
Dora transformou a fungadela num violento ataque de tosse, o que fez a
Marília desatar a rir também. Mam’zelle ficou-se a olhar para ela.
- É assim tão engraçado o ataque de tosse da Dora perguntou.
Isto ainda pareceu mais engraçado a Marília, que cada Vez se ria mais, o
que começou a contagiar as outras. Joana voltou-se e franziu o sobrolho. Não
queria que mam’zelle suspeitasse demasiado cedo que ela estava a pregar uma
partida. As colegas viram o seu olhar preventivo, e ficaram o mais sérias que
puderam.
A lição continuou. Joana tirou a garrafinha do bolso. Tinha a mão atrás
dela, e as outras viram-na apertar com força a garrafinha. O vidro partiu-se e o
líquido saiu, secando ao contacto do ar. O líquido desapareceu, e os pequenos
fragmentos de vidro caíram no chão sem serem vistos.
Alguns momentos após, um estranho cheiro espalhou-se pela casa. Dora
tossiu. Adelina fungou e fez “pooh! “
Era um cheiro horrível, não havia dúvida. Cheirava a ovos podres, canos
de esgoto, ratos mortos, carne de gato estragada... era um verdadeiro horror!
A princípio mam’zelle não deu pelo cheiro. Estava só admirada com as
repentinas fungadelas e ataques de tosse. Ergueu os olhos. Viu expressões de
agonia na cara de todas, de mistura com um enorme desejo de rir.
- O que se passa? - perguntou mam’zelle, desconfiada.
- Por que estão a fazer caretas? Adelina, pára com esse “pooh!” e tu Joana,
porque tens essa cara tão enjoada?
- Oh, mam'zelle, não nota o cheiro? - disse Joana, com expressão
atormentada no rosto.
- Qual cheiro? - disse mam’zelle, desesperada. O cheiro ainda lá não tinha
chegado.
- Oh, mam’zelle... que cheiro! - disseram meia dúzia de vozes ao mesmo
tempo.
Mam’zelle tinha uma cara espantada e aborrecida. Fez algumas enormes
aspirações de ar, o que provocou explosões de gargalhadas na Dora.
- Não me cheira a nada - afirmou mam’zelle. - É uma brincadeira estúpida.
Pára de fungar, Joana. Se voltas a fazer “pooh”, Adelina, mando-te para fora da
sala. Claudina, não estejas com essa cara de pato moribundo.
- Mas tia Matilde, o cheiro, o cheiro! C'est abominable! - exclamou Claudina,
que detestava maus cheiros, e parecia mesmo ir desmaiar.
- Claudina, também tu! - gritou mam’zelle que, a salvo num canto da sala,
não sentia ainda qualquer cheiro.
- Escutem, mês enfants, se voltam a falar em cheiro vou imediatamente
buscar miss Theobald para ela cheirar. Não passa dum fingimento. As meninas
são muito más. Era uma ameaça terrível! Miss Theobald dava logo pelo cheiro
assim que entrasse na sala, então é que eram elas! As alunas olharam umas para
as outras numa aflição. Puseram os lenços no nariz, e procuraram não aspirar
aquele cheiro medonho.
Mam’zelle começou a ler em voz alta a peça francesa. Depois de ler
algumas linhas, parou. Estranho! Também lhe parecia notar agora qualquer
cheiro. Fez uma cautelosa aspiração. Era cheiro, ou não? Que disparate! Cheiros
estranhos e horríveis não invadem assim as salas de repente. Mam’zelle fez
nova aspiração e continuou com a leitura.
O cheiro acabou por lhe chegar. Sentia-o agora perfeitamente. Voltou a
parar de ler e fungou com força. Sim, não havia dúvida, estava na sala um
cheiro pavoroso! Pobres, pobres pequenas! Tinham-no notado primeiro, e ela
não as tinha acreditado.
Mam’zelle tossiu quando o cheiro se apoderou dela. Começou à procura
do lenço. As pequenas estavam agoniadas com o cheiro e ao mesmo tempo
perdidas de riso por causa da cara horrorizada da mam’zelle. Tapavam a boca
com o lenço, fazendo toda a espécie dos mais estranhos barulhos.
- Meninas - disse mam’zelle numa voz abafada - meninas, vocês têm
razão. Está aqui um cheiro horrível. O que será?
- Talvez seja algum rato morto debaixo do chão - sugeriu Dora,
amavelmente, tirando o lenço da boca por um momento.
Mam’zelle deu um gritinho. Ratos, mortos ou vivos, faziam-lhe calafrios.
- Talvez tenha rebentado um cano de esgoto do lado de fora da janela -
lembrou Patrícia, através do lenço que tinha na boca. vou ver.
Foi à janela que estava aberta e debruçou-se, aproveitando para respirar ar
puro. Mais umas duas se lhe juntaram, achando que era uma esplêndida ideia.
- Talvez que desapareça - disse mam’zelle cheia de esperança. - Abre a
porta, Joana. É possível que ajude a fazer sair este cheiro da sala.
Joana abriu a porta de muito boa vontade. Esta partida era divertida... mas
tinha os seus inconvenientes!
A corrente de ar levou até à mesa da mam’zelle uma boa dose do cheiro.
Exclamou com violência:
- Tiens! Isto é medonho! Vamos adoecer todas. Peguem nos livros depressa
e vamos acabar a lição no jardim. vou dizer à miss Theobald e talvez que ela
mande levantar as tábuas do soalho para ver se lá está algum rato morto.
Ficaram todas radiantes por irem para o jardim, excepto Claudina, que
não sabia o que era pior, se o cheiro da sala, se os insectos do exterior! Achava
que entre estas duas hipóteses havia muito pouco que escolher!
Em breve se encontravam sentadas numa agradável sombra do jardim,
rindo-se sempre que se lembravam do horrível cheiro que estava na sala. A
lição deixara de ser aborrecida e triste! O cheiro transformara-a num sucesso.
Mam’zelle manteve a sua palavra e deu parte do sucedido à miss
Theobald.
- Ah, miss Theobald! É um cheiro inacreditável! De ratazanas e ratos
mortos, de ovos podres ou canos de esgoto rebentados! Penetrou na sala
quando as pequenas estavam a ler a lição de Francês, e estragou toda a aula.
Tivemos que abandonar a sala e ir para o jardim.
Miss Theobald ficou surpreendida ao ouvir falar num cheiro tão forte e tão
horroroso. Em tantos anos de colégio, nunca ouvira falar dum cheiro que
levasse a professora e as alunas a abandonar a sala de aula.
- Vou ver de que cheiro se trata - disse ela à mam’zelle. - Se se tratar duma
ratazana morta, ou de canos de esgoto rebentados, evidentemente que ainda
hoje se tomarão as devidas providências. O cheiro ainda lá estará, se a razão for
alguma destas.
Mas, com grande espanto da mam’zelle e uma ligeira admiração de miss
Theobald, não havia o mais ligeiro vestígio de cheiro. Andaram as duas a
respirar fundo à roda da sala, mas não havia qualquer sobra de cheiro.
- Extraordinário - disse miss Theobald, olhando para a mam’zelle. - Tem a
certeza, que era um cheiro forte, um cheiro muito mau?
Mam’zelle ficou muito indignada. O quê, a Directora estava a duvidar da
sua palavra? Mam’zelle começou imediatamente a descrever o cheiro que
existia em toda a sala, como se fosse dez vezes pior do que realmente fora. Miss
Theobald sorriu-se para dentro. Já conhecia os indignados exageros da
Mam’zelle.
- Bem - disse ela -, não mando levantar hoje o soalho nem inspeccionar os
canos, porque talvez que o cheiro não volte a aparecer. Se voltar, a mam’zelle
imediatamente me diz, por favor, para eu vir cheirá-lo antes dele desaparecer.
- Está bem, miss Theobald - concordou mam’zelle e dirigiu-se para a sala
das professoras, cheia do cheiro e do seu poder de mandar uma classe para o
jardim. Toda a gente ouviu aquilo com espanto. Não ocorreu a ninguém, senão
à professora do primeiro ano, miss Roberts, que podia tratar-se duma partida.
Mas miss Roberts tinha tido uma grande experiência das brincadeiras da Joana,
e a verdade é que lhe passou pela cabeça que se tratava duma brincadeira.
- Diga-me uma coisa, mam’zelle - disse ela pensativamente -, a Joana está
no quarto ano, não está?
- Está - respondeu mam’zelle - mas o que tem isso a ver com o mau cheiro?
- Oh, espero que nada. Mas... se fosse eu, mam’zelle, se esse cheiro
voltasse a aparecer, ia imediatamente chamar a miss Theobald. Desconfio que
ela é capaz de descobrir a causa do cheiro sem levantar o soalho nem
inspeccionar os canos de esgoto!
- Com certeza darei parte do caso à Directora imediatamente - disse
mam’zelle cheia de dignidade.
E chegou o dia em que ela o fez.
XIV Miss Ellis também prega uma partida
As pequenas tinham ficado maravilhadas com o sucesso da garrafinha de
mau cheiro da Joana. Sempre que a Helena se não encontrava na sala,
conversavam e riam-se do espanto e da arrelia da mam’zelle.
- Seja como for, é melhor não voltarmos a fazer isso - disse Joana. - Tenho
uma espécie de pressentimento que uma vez foi um sucesso, mas que duas
vezes será um fracasso! Pode-se fazer pouco da mam’zelle uma vez, quando o
rei faz anos, mas sempre não.
- Se voltarem a provocar o cheiro, fico doente e saio da sala - preveniu
Claudina. - É o cheiro mais horroroso que eu já senti nos dias da minha vida.
- Não voltamos a fazer isso - prometeu Roberta.
- Mas vou dizer-vos o que vamos fazer. Vamos fingir que há um cheiro, e
mam’zelle vai ficar toda aborrecida e irritada à espera dele... vai fungar e voltar
a fungar, e nós vamo-nos fartar de rir!
- É uma ideia estupenda - concordou Joana. - Dora, tu é que vais começar
outra vez a sentir o cheiro amanhã, na lição de Gramática francesa.
Dora riu-se. Era capaz de representar aquele papel muito bem. E assim, no
dia seguinte, quando a mam’zelle estava sentada à sua secretária no canto da
sala, Dora iniciou a sua representação.
Havia na sala um aroma muito agradável, porque a Adelina, a
encarregada das flores da sala naquela semana, tinha enchido uma grande jarra
de cravos cor-de-rosa que perfumavam agradavelmente a sala. As alunas
aspiravam-lhe o aroma enquanto trabalhavam.
Dora começou a fungar. A princípio fungava devagarinho. Depois fungou
com mais força.
- Dora! Estás constipada? - inquiriu mam’zelle, impaciente. - És alguma
menina do primeiro ano para vir para a aula sem lenço?
- Eu tenho lenço, mam’zelle - respondeu Dora humildemente, tirando o
lenço do bolso.
Nessa altura Joana começou a fungar. Torcia o nariz, fungava e olhava à
roda. Roberta deu uma gargalhada que se transformou num ataque de tosse.
Mam’zelle franziu o sobrolho. Não gostava de comportamentos daquele
género. Ficava furiosa.
Depois foi a vez de Patrícia começar a fungar, e puxou também do lenço.
Em breve toda a classe, com excepção da Helena, que não estava dentro da
brincadeira, fungava, como se todas as alunas estivessem constipadas.
Mam’zelle olhou para as alunas que fungavam, desesperada.
- Que barulho é este “Fum! Fum! Fum!” Não posso suportar isso.
Dora fez uma cara agoniada. Mam’zelle viu, e um pensamento alarmante
a assaltou: seria aquele terrível cheiro outra vez?
- Dora - disse ela com firmeza - o que se passa?
- Noto um cheiro - murmurou Dora -, noto distintamente. É muito forte. A
mam’zelle não nota?
Mam’zelle não notava, o que não era de admirar. Mas lembrou-se que da
outra vez só o notou muito depois das pequenas. Olhou ansiosamente para as
alunas. Todas elas pareciam notar o cheiro.
- Vou participar imediatamente - disse mam’zelle, e saiu da sala numa
correria.
- Com a breca! - exclamou Roberta - não pensei que ela iria chamar a
Directora por causa disto! Ainda por cima partiu com tanta rapidez, que nem
tempo tivemos de dizer nada!
Infelizmente para a mam’zelle, a Directora não estava. Mam’zelle ficou
aborrecida e desolada. Agora que o cheiro voltara, não estava a miss Theobald
para o verificar, e saber que ela, mam’zelle, não havia exagerado da primeira
vez.
Mam’zelle espreitou para a sala das professoras, ao voltar para a aula.
Estava ali miss Ellis, corrigindo trabalhos do quarto ano.
- Miss Ellis, lamento dizer que o terrível cheiro voltou a aparecer. É
abominável! Não me parece que a miss Ellis ali consiga dar a lição que se segue.
Foi-se embora direita à sala de aula. Entrou, esperando ser recebida por
uma onda daquele cheiro horrível. Mas não parecia haver cheiro nenhum. Que
estranho!
- Miss Theobald não está - disse mam’zelle - e é pena, porque não pode
certificar-se do cheiro. E eu também não noto nada ainda!
Foi uma boa notícia a miss Theobald não estar! As pequenas ficaram mais
animadas. Dora disse logo:
- Não se preocupe, mam'zelle. Já sabemos qual é o cheiro desta vez. É
muito diferente do outro. Hoje foram estes cravos!
Dora pegou na grande jarra que tinha os cravos, foi junto da mam'zelle e
meteu-lhos debaixo do nariz. Mam’zelle cheirou-os, e o forte e delicioso aroma
dos cravos subiu-lhe pelo nariz.
- Ah! - exclamou mam’zelle - desta vez era o cheiro dos cravos. Então foi
bem bom que a miss Theobald não estivesse, senão tinha aqui vindo cheirar,
para nada!
Houve alguns risinhos. Porém, ao abrir-se a porta, as alunas ficaram
silenciosas, e olharam para ver se era a miss Theobald que aparecia, no fim de
contas.
Mas não. Era miss Ellis que, cheia de curiosidade por verificar aquele
cheiro extraordinário que tanto excitava a mam’zelle, vinha cheirá-lo também.
Ficou à porta a fungar.
- Não me cheira a nada, mam’zelle - disse ela, admirada. Mam’zelle
apressou-se a explicar:
- Eu também não notei nada. Foi o cheiro dos cravos que as pequenas
notaram. A Dora acaba de mo dizer.
Miss Ellis ficou surpreendida e muito desconfiada.
- Não percebo como é que elas confundiram o cheiro dos cravos com o
cheiro horrível que a mam’zelle me descreveu da outra vez - comentou ela. -
Nem sei se hei-de acreditar no tal cheiro.
Deu uma olhadela à sua turma, e saiu.
Mam’zelle estava indignada. Não tinha ela própria notado o cheiro da
outra vez? O resto da aula passou-se muito calmamente, discutindo cheiros,
presentes e passados, com a indignada professora de Francês.
Depois do recreio tiveram aula de Geografia, com miss Ellis, que entrou na
sala com um ar bastante severo.
- Quero preveni-las - disse ela - de que qualquer menção feita a cheiros,
maus ou bons, será considerada por mim como um sinal de que as meninas
desejam algum trabalho extra para fazer.
Todas sabiam o que aquilo significava. “Algum trabalho extra” na boca de
miss Ellis queria dizer duas boas horas de estudo a mais. Por isso resolveram
logo não pronunciar a palavra cheiro.
Mas qualquer coisa de terrível aconteceu dentro de dez minutos. Roberta
esquecera-se por completo que tinha uma garrafinha de mau cheiro no bolso,
que ali ficara desde a véspera. E, ao sentar-se mais precipitadamente, depois de
ter levado o caderno à miss Ellis, partiu a garrafinha. Então, num abrir e fechar
de olhos aquele horroroso cheiro voltou a espalhar-se pela sala uma vez mais!
Dora notou-o, Joana notou-o, Roberta notou-o e levou imediatamente a
mão ao bolso, apalpando com desespero para ver se acidentalmente teria
partido a garrafinha. Ao descobrir que assim acontecera, olhou esgazeada a
toda a roda, fazendo sinal às outras do que havia acontecido. Os perspicazes
olhos de miss Ellis captaram os sinais de Roberta. Por isso não ficou muito
admirada quando sentiu a aproximação do cheiro para os seus lados. E que
cheiro horroroso!
Miss Ellis raciocinou com toda a calma. Evidentemente que o cheiro de
ontem foi horrível, exactamente igual a este, e aquele a que a mam’zelle hoje se
referiu, e que a Dora acabou por dizer que era o dos cravos, não tinha nada a
ver com o cheiro autêntico, não passou duma brincadeira parva feita à
mam’zelle.
“Mas este cheiro horrível é igual ao de ontem - pensou miss Ellis - e, a
avaliar pelos sinais da Roberta para as outras, fora por engano. Não me parece
que se atrevessem a fazer-me uma partida destas a mim. Pois bem... sou eu que
lhes vou fazer uma partida a elas! “
Calmamente miss Ellis escreveu algumas instruções no quadro. Depois
voltou-se e saiu da sala, fechando a porta atrás de si. As raparigas ficaram a
olhar para o quadro.
Página 72 - Escrever as respostas.
Página 73 - Ler os dois parágrafos e escrevê-los novamente por outras
palavras.
Página 74 - Copiar o mapa que ali está.
- Olhem para isto! - explodiu Dora. - Ela foi-se embora, e nós temos que
ficar aqui a aguentar este horrível cheiro e fazer o trabalho. Roberta, tu és uma
perfeita idiota! Por que partiste essa garrafinha de mau cheiro?
- Foi um acidente - desculpou-se Roberta. - Sentei-me em cima dela.
Esqueci-me por completo que a tinha. Não é horripilante? Miss Ellis deu pelo
cheiro, claro está, percebeu que era uma partida, e para castigo obriga-nos a
ficar a trabalhar na Geografia no meio deste cheiro, e nem sequer nos atrevemos
a reclamar!
- Eu não vou ficar aqui no meio deste cheiro - anunciou Claudina com
toda a pompa. Levantou-se. - Sinto-me doente. vou ficar doente.
Saiu, e simulou uns vómitos tão perfeitos ao passar à porta de miss Ellis,
que esta não disse nada e deixou-a ir para a casa de banho. Claudina fazia
sempre o que queria! Nenhuma das outras se atreveu a deixar a sala. Ali
ficaram, de lenço na boca, lastimando-se da sua sorte, mas sem se atreverem a
abandonar o trabalho. No fim da hora, quando o cheiro havia diminuído
bastante, miss Ellis abriu a porta.
Deixou-a aberta e disse.
- Podem ir dar uma volta pelo jardim e voltar. Tu ficas, Roberta.
Com uma careta, Roberta ficou, enquanto as outras correram alegremente
para o ar fresco.
- Desta vez fui eu que causei este horrível cheiro confessou Roberta. com
miss Ellis nunca valia a pena estar com rodeios, e de resto Roberta também não
era dada a eles. Era uma rapariga muito direita e sincera.
- Mas foi um acidente, miss Ellis, juro que foi, e peço-lhe que me acredite.
- Acredito - disse miss Ellis. - Mas é um acidente que espero não volte a
acontecer. Tiveram todas o justo castigo, por isso não se fala mais no assunto.
Mas quero que previnas a turma do quarto ano, que qualquer futuro cheiro
redundará numa série de castigos!
XV Um aniversário – E uma esplêndida ideia!
- Não está um tempo maravilhoso? - disse Isabel a Patrícia. - Dias e dias
consecutivos de um sol radioso e céu azul. Quem me dera que as lições fossem
dadas na piscina!
- A noite é a parte mais fresca do dia! - disse Dora.
- Gostava de dormir todo o dia e trabalhar durante a fresca brisa da noite.
- A noite passada acordei e vi o luar entrar pela janela - disse Lida. -
Levantei-me e fui à janela, mas nem lhes sei descrever a beleza do campo,
iluminado pela lua. Apeteceu-me ir dar um passeio... e fazer um piquenique ao
luar, sozinha!
- É verdade! - exclamou Roberta. - Um piquenique ao luar! Que ideia
extraordinária! Vamos fazê-lo!
- Ooooh! - exclamaram as outras, olhando para Roberta, na verdade
impressionadas por tão original ideia.
- Como vai ser divertido!
- Sim... seria! - disse Lida. - Mas agora que estamos no quarto ano, acham
que devemos fazê-lo?
- Oh, Lida, não sejas tão santinha! - disse Joana.
- Não sou - protestou Lida indignada - e é uma coisa que nunca fui. Bem, e
no fundo talvez não tenha importância. Podíamos fazer o piquenique ao pé da
piscina, e tomar banho à meia-noite.
- Cada vez melhor! - exclamou Roberta, dando saltos de alegria. - Meu
Deus! vai ser estupendo! Olhem, esperemos pela noite da lua cheia, que é daqui
a duas noites. A piscina estará toda iluminada e vai ser formidável.
- É o dia dos meus anos - disse Marília -, é mesmo nesse dia. Fazemos o
piquenique nessa noite, e é como se fosse uma festa de anos.
- Óptimo - concordou Joana. - Então façamos os planos rapidamente,
porque não temos muito tempo para arranjar as coisas. - Voltou-se para Susana
Howes, a calma e responsável chefe de turma e perguntou: - Tu também vais,
não é verdade?
Susana disse que sim. Era uma boa rapariga, em quem se podia confiar,
mas gostava de se divertir, e não via qualquer mal em se fazer um piquenique
ao luar.
- Vou hoje à cidade com a Lida e compro algumas coisas - anunciou ela. -
Digo na mercearia e no padeiro que vocês irão a horas diferentes para trazerem
uma ou duas coisas. E assim ninguém desconfiará... voltamos todas
calmamente para o colégio com pequenos embrulhos!
- Dizemos à Helena, ou não? - perguntou Joana.
- Claro que não - disse Roberta. - Aposto que nos denunciava, contando à
mãe, seríamos apanhadas, e lá estava tudo estragado.
- Realmente tenho pena que a Helena seja sempre posta de parte - disse
Patrícia. - Mas não podemos arriscar a que nos descubram. E estas coisas à
meia-noite são sempre tão divertidas!
Marília estava entusiasmada por calhar no dia dos seus anos, o que dava
mais sedução ao acontecimento. Ela e a Glória, a sua calma amiguinha, não se
cansavam de falar no assunto.
- Levo o meu bolo de anos, claro está - participou Marília. - vou guardá-lo
até essa altura. A mãe disse que ia mandar 16 velas separadas, e nós espetamo-
las no bolo e acendemo-las ao luar!
Helena já estava habituada a que as outras planeassem as coisas sem lhe
dizerem nada. Sabia que as partidas que combinavam todas juntas não lhe eram
comunicadas senão à última hora por causa da sua fama de alcoviteira. Por isso
não se punha à escuta quando as via falar umas com as outras em voz baixa.
“Que me importa a mim as partidas parvas que elas fazem? Se querem
proceder assim, que procedam!”, pensava ela.
Portanto não procurou ouvir nem descobrir o seu novo segredo.
Continuava a sua vida, com um ar pálido e infeliz. Raras vezes sorria agora,
estava sempre metida consigo, e não procurava criar qualquer amizade. Tinha
sido simpática para com a Adelina depois da festa do período, e Adelina,
devido à sua bondade, tinha beneficiado, pois nunca mais tivera roupa para
coser a partir daquele dia! Mas ainda trabalhava na costura da Ângela, embora
esta nunca se mostrasse muito agradecida.
Chegou o dia dos anos da Marília. Como de costume, a sua turma deu-lhe
presentes. Alguns eram sem importância, se as alunas já só tinham pouco
dinheiro, outros eram caros, como por exemplo o da Ângela, que lhe deu um
livro de música muito caro, e que a Marília desejava possuir. Custou quarenta e
cinco escudos, e Marilia ficou preocupada.
- Não devias ter gasto tanto dinheiro num presente de anos!
- Por quê? - perguntou Ângela. - O meu avô mandou-me quinhentos
escudos a semana passada. De que serve uma pessoa ter dinheiro se não é para
gastar?
Paulina, para não ficar atrás, deu a Marília uma pasta de bom cabedal para
guardar as músicas. Marília ficou abismada. Não era costume darem-se no
colégio presentes de anos de tanta categoria. Nem sabia que a Paulina tinha
reparado que a sua pasta estava tão velha e tinha uma correia partida.
- Oh, Paulina, isto é lindo! - exclamou Marília, corada de surpresa e
alegria. - Mas não devias comprar uma coisa tão dispendiosa. Que a Ângela o
faça, já não é bom, agora eu, dares-me uma coisa tão cara! Na verdade, sinto-me
como que esmagada!
- Se a Ângela o pode fazer, também eu posso - disse Paulina toda
empertigada, o que, até certo ponto, tirou o valor do presente, pois Marília
pensou que se a Paulina lhe dava uma coisa boa só porque não queria ficar atrás
da Ângela, não havia então naquele gesto sombra de amizade ou afeição.
Claudina ofereceu a Marília uma bonita carteira, o que surpreendeu todas
as colegas. Claudina era das raparigas que menos dinheiro tinha, e não se
importava de o dizer. Por isso Marília ficou muito comovida com o seu tão
bonito presente.
- Oh, muito obrigada, Claudina, é linda! Mas foi uma extravagância da tua
parte, pois sei que não tens muito dinheiro.
Mas naquela semana Claudina parecia estar cheia dele! Comprou quatro
quilos de cerejas como comparticipação das guloseimas do piquenique, que lhe
custaram vinte escudos. Todas acharam que ela se comportara às alturas.
- Quando tenho dinheiro gosto de o gastar - explicou Claudina. - É bom
gastar dinheiro. Gostava de poder gastar sempre. Que bom seria ser como a
Ângela e dizer:
- Vou comprar isto, vou comprar aquilo!
- Sim... mas isso não significa que se tenha muitos prazeres, verdadeiros
prazeres - disse Glória. - Por exemplo, se a minha mãe e eu conseguimos juntar,
ao fim duma data de tempo, dinheiro para irmos passar juntas umas boas
férias, essas férias são para nós muito melhores, e dão-nos um prazer muito
maior do que aquele que a Ângela possa sentir, uma vez que pode ter férias
caras sempre que lhe apetece. Ter muito dinheiro não quer dizer que se goze
mais do que aqueles que têm pouco- Muito bem raciocinado, como sempre -
concordou Isabel dando uma pancadinha nas costas da sensata Glória.
- Tanto eu como a Patrícia gostaríamos de comprar mais coisas para o
piquenique, mas a nossa avó fez anos a semana passada e gastámos a maior
parte do nosso dinheiro no lenço lilás que lhe mandámos. Por isso estamos tesas
por um tempo. Espero que não faças má cara ao nosso presente de anos,
Marília... são só dois lápis de desenho marcados com o teu nome.
- É muito amável da vossa parte - disse Marília, que na verdade não se
importava que os presentes custassem dez escudos ou dez tostões. - Acho que
foram todas muito simpáticas comigo, todas sem excepção. Todas me deram
presentes.
Até a Helena, embora pedindo muitas desculpas pela insignificância do
seu presente.
- É só um lencinho, e nem sequer é novo. É um dos meus, mas peço-te que
o aceites, com os meus parabéns. Não quero ser a única a não te dar nada.
Sabes, eu tenho muito pouco dinheiro meu, e o Eddie está a fazer anos também,
e tenho que poupar todos os tostões por causa disso.
Todas sabiam que a Helena era aquela que menos dinheiro tinha. A mãe
dela era miserável no dinheiro que lhe dava. Fora de dúvida tinha que trabalhar
muito para se governar, mas pensava que a filha, com dezasseis anos, não
precisava mais que cinco ou dez tostões por semana, como no tempo em que
tinha cinco ou seis anos.
- Gostava de dizer à Helena para ir connosco logo à noite- disse Marília.
Marília era uma rapariga insensível e não se preocupava com ninguém a
não ser com a sua amiga Glória. Mas tinha ficado comovida pelo presente da
Helena, e pela sua franca confissão de não ter dinheiro.
- Mas não pode ser - disse Roberta duma maneira decidida. - Sei que ela
disse à mãe que a Joana tinha dito que parecia haver, nos dormitórios do quarto
ano, mais lençóis rotos do que nos outros dormitórios todos juntos, e a pobre
Joana teve esta semana montanhas de roupa Para coser. Mas quem pode deixar
de pensar que alguém rasga os nossos lençóis de propósito? De propósito, sim,
Para terem trabalho para nos dar! Pois se eu chegava a Passar um período
inteiro sem ter uma fronha ou um lençol para coser quando a nossa antiga
Vigilante cá estava!
- Muito bem. Não se convida a Helena – concordou Marília. - Também não
me importo muito. Parece que é uma grande alcoviteira.
Estava tudo preparado para o piquenique e banho da meia-noite. O céu
estava limpo quando naquela noite se foram deitar. Foram para a cama ainda
de dia, porque os dias eram muito compridos naquela altura.
- Desconfio que hoje não chega a haver noite - disse Roberta, chegando à
janela. - Quando a luz do dia começar a desaparecer, começará a lua cheia a
subir no céu, e tudo ficará tão claro como durante o dia. Santo Deus! Que calor!
vou adorar estar dentro de água à meia-noite!
Felizmente para elas, a Helena dormia profundamente. Depois de
adormecer parecia que nada a acordaria; nem sequer acordou uma noite em
que a campainha de alarme de incêndios se avariara e começou a tocar! Por isso
as companheiras estavam certas de que ela não daria por nada.
Havia calor de mais para poderem dormir! Algumas das alunas
dormitavam, Helena e Marília dormiam a sono solto. Mas as outras davam
voltas e mais voltas, meio a dormir, meio acordadas. E assim, quando o relógio
duma das torres bateu as onze e meia, só foi preciso acordar a Marilia.
Helena dormia numa cama junto da porta dum dos dormitórios do quarto
ano, e as outras tinham que passar por ela em bicos dos pés. Helena não se
mexeu. Ultimamente andava com mau parecer e cansada, e agora dormia
profundamente. As raparigas levaram os fatos de banho e os roupões por cima,
e sapatos de borracha. Não fizeram barulho ao passar nos corredores, desceram
as escadas, e foram ao armário grande onde haviam escondido a comida e as
bebidas.
Com risinhos e cochichos pegaram nas coisas todas, e abriram a porta do
jardim o mais silenciosamente que lhes foi possível. Deixaram-na um pouco
aberta para poderem entrar facilmente quando voltassem. Não havia vento para
a fechar.
Encoberta pelas árvores, a fila das excitadas raparigas dirigia-se para a
piscina. Sob uma magnífica lua cheia, a água tinha um aspecto esplendoroso,
sereno e profundo. A lua ia alta, e inundava os terrenos com uma fria luz de
prata. Tudo se via perfeitamente. Só se sentia a falta das cores quentes do dia.
- Não podemos fazer muito barulho - recomendou Joana. - As nossas
vozes podem ser ouvidas ao longe numa noite calma como esta. Deus queira
que ninguém ouça o barulho da água quando lá entrarmos! Tomamos já banho
antes de comer. Tenho tanto calor!
Despiram os roupões. Longas pernas nuas brilharam ao luar. Uma a uma
entraram na água, mergulhando ou saltando. Todas, menos a Claudina, que se
tinha recusado terminantemente a vestir o fato de banho, e trazia a camisa de
noite por baixo do roupão. A francesinha apreciava o encanto do piquenique da
meia-noite, mas apesar do calor nada a convenceria a entrar na água. Atirara-se
lá para dentro para castigar uma petulante de língua desdenhosa... mas por
prazer nunca lá entraria!
Estava a ver as companheiras e a rir-se. Olhou para o outro lado da
piscina, e de repente viu uma figura caminhando silenciosamente entre as
árvores. Quem seria?
XVI Claudina trata da Vigilante
Claudina correu, nos seus sapatos de borracha, para ver quem estava na
rua naquela noite, além das alunas do quarto ano. Era Helena! Helena, que elas
haviam deixado na cama a dormir profundamente.
“A alcoviteira! - disse Claudina a si própria. - Vem espreitar-nos para
depois ir contar tudo à sua severa mãezinha! vou atrás dela.”
Mas perdeu-a de vista, sem saber como, e não viu para onde se dirigiu.
Voltou a correr à piscina, e por um triz que não cai à água, com a precipitação
de contar às colegas o que tinha visto.
Que maçada! - lastimou Roberta, saindo da piscina
com o luar a brilhar nas gotas de água que lhe escorriam pelas pernas. -
Certamente que a alcoviteira da Helena vai a correr dizer à Vigilante, e antes de
termos tempo de comer qualquer coisa, já ela aqui estará a descompor-nos e
mandar-nos para dentro, de castigo.
- Eu volto para dentro e ponho-me de vigia - disse Claudina prontamente.
- Sei onde dorme a Vigilante. vou para junto da porta dela e fico ali até ter a
certeza de que vem aí, ou de que a Helena no fim de contas não lhe disse nada.
- Óptimo - concordou Roberta. - Despacha-te! E não te esqueças de vir a
correr prevenir-nos se ouvires a Vigilante a vestir-se ou a andar de um lado
para o outro. Não podemos ser apanhadas. Mas que pena se não podemos fazer
o piquenique à meia-noite! Estou certa de que a Vigilante vai confiscar o lindo
bolo da Marília!
Claudina correu nos seus sapatos de borracha. Não voltou a ver Helena.
Entrou pela porta do jardim que ficara aberta, e subiu as escadas sem fazer
qualquer barulho, até ao corredor onde ficava o quarto da Vigilante.
Postou-se à porta do quarto dela, e escutou. Não vinha lá de dentro o mais
ligeiro ruído. Não ouvia a voz da Vigilante nem a da Helena. Por outro lado não
ouvia ressonar nem respiração pesada. Claudina estava ali sem saber o que
fazer. Helena tinha visto as companheiras? Tencionava fazer queixinhas? Para
onde é que ela tinha ido?
Nisto Claudina ouviu um barulho vindo do quarto da Vigilante. A cama
estava a ranger! Era evidente que a Vigilante estava acordada. A cama voltou a
ranger, e então ouviram-se passos de quem arrasta chinelas.
“Agora está a vestir o roupão - pensou Claudina. - Agora está a atar o
cinto. Mas por que é que ela se está a levantar agora, se a Helena lhe não veio
dizer nada? “
Claudina encolheu-se num recanto escuro quando a Porta da Vigilante se
abriu de repente. A sua figura delgada e de ombros estreitos apareceu
enquadrada na porta, banhada pelo luar. A Vigilante era horrível.
Caminhou silenciosamente pelo corredor e voltou na direcção dos
dormitórios do quarto ano. Claudina seguia-a como uma sombra preta,
ambulante, parando inteligentemente nos recantos escuros. A Vigilante entrou
no dormitório da Helena.
Helena! - chamou a Vigilante baixinho. Mas não obteve resposta.
Então, evidentemente, a Vigilante apalpou a cama e não encontrou
ninguém. Soltou uma exclamação e em seguida acendeu a luz. Num momento
viu que as camas estavam todas vazias!
Foi ao outro dormitório do quarto ano, e acendeu igualmente a luz.
Ninguém!
- Onde estão elas? - dizia a Vigilante, furiosa. - Não admito isto! Por que é
que a Helena me não preveniu? Devia ter mais juízo e não se meter em
brincadeiras deste género.
Claudina ouviu pronunciar estas palavras e ficou admirada. Então Helena
não tinha prevenido a mãe! Tinha seguido as outras até lá fora, e devia estar
escondida algures a vê-las divertirem-se.
E agora a Vigilante ia estragar tudo. Como tinha tal coragem? Claudina
sentiu um repentino e intenso ódio por aquela Vigilante tão severa e tão má.
Não havia mal algum em tomar banho e fazer um piquenique ao luar! Era mais
que certo que se as alunas tivessem pedido autorização à miss Theobald, ela ter-
se-ia rido e autorizado, apenas uma vez! E agora a Vigilante ia estragar tudo.
A Vigilante desceu as escadas. Foi ao pé do armário onde elas haviam
escondido as coisas do piquenique. Tinham deixado a porta aberta. A Vigilante
soltou uma exclamação e preparava-se para o fechar.
Foi então que a formidável ideia veio à mente de Claudina! Era uma ideia
que podia vir à mente de qualquer rapariga, mas só Claudina teria a coragem
de lhe dar execução.
De repente, a Vigilante apanhou o maior choque de toda a sua vida!
Alguém lhe deu um valente empurrão que a fez entrar no armário, no meio de
velhas raquetas de ténis e outros apetrechos desportivos. Depois fecharam a
porta... à chave.
A Vigilante estava presa! Claudina tirou a chave do armário, e meteu-a no
bolso do roupão.
Sufocada de riso saiu a correr pela porta do jardim, e dirigiu-se para a
piscina. Ouvia a Vigilante a bater na porta do armário. Mas o vestíbulo das
traseiras, que dava para o jardim, onde se encontrava o armário, era raras vezes
usado, e ficava muito distante dos alojamentos onde se dormia, e não era
provável que alguém pudesse ouvi-la.
“Agora estamos salvas! - pensou Claudina, triunfante. - Que rica partida!
Será que estas raparigas inglesas consideram isto uma partida? “
Pela primeira vez uma dúvida lhe atravessou a mente. Ela, Claudina, sabia
que era uma grande, muito grande partida fechar à chave num armário aquela
detestável Vigilante, para evitar que estragasse o divertimento delas... mas
pensariam as outras como ela, Claudina? Não iria aquela curiosa “honra” de
que elas estavam sempre a falar, fazer com que não achassem aquilo uma
partida? Iria a Susana Howes, a chefe de turma do quarto ano, achar-se na
obrigação de acudir à Vigilante? Nunca se sabe o que é que as inglesas acham
bem ou mal!
“O melhor é não lhes dizer o que fiz - pensou Claudina, enquanto ia a
caminho da piscina. - Se não souberem, não se preocupam. Agora só lhes digo
que não há perigo, que a Helena não disse nada, e que a Vigilante está
absolutamente, absolutamente segura! “
As outras saíram da piscina e foram ter com Claudina quando a viram
chegar.
- Não há novidade - disse Claudina. - Novidade nenhuma. A Helena não
disse nada. Ainda não voltou para o colégio. E a Vigilante está absolutamente,
absolutamente segura!
- Óptimo! - disseram todas, sacudindo a água. - E se comêssemos agora?
- Mas onde está a Helena, se não está na cama nem voltou para o colégio? -
disse Roberta muito admirada.
Mas ninguém sabia nem ninguém se importava. Que a Helena andasse
por onde lhe apetecesse, desde que lhes não estragasse o divertimento. E que
bom a Vigilante estar segura!
Ficaram todas cheias de fome depois da natação. Sentaram-se a gozar o
piquenique. Havia pão, manteiga, carne de conserva, sardinhas de lata,
marmelada, compota de damasco, bolachas, cerejas, e o grande bolo da Marília.
As velas não faziam muita vista por causa do luar, mas mesmo assim era
engraçado acendê-las.
Fizeram o piquenique à beira da água, balouçando as pernas. A água
estava morna porque o sol a havia aquecido. Era simplesmente formidável. Não
havia memória de uma meia-noite tão divertida!
- Este bolo é um assombro - disse Roberta, comendo uma enorme fatia. -
Palavra de honra! Não me lembro de alguma vez ter tido tanta fome como hoje.
Essas sardinhas estão em sanduíches? Passa-mas, Susana.
Claudina apreciou a refeição mais do que qualquer das outras, não porque
tivesse tanta fome como elas, visto que não tinha andado a nadar... mas porque
não podia deixar de se lembrar da Vigilante fechada à chave no armário escuro,
completamente impossibilitada de estragar o divertimento das alunas do quarto
ano! E aquilo dava um sabor muito especial ao prazer que o piquenique lhe
causava. Não se preocupava nada com o que iria acontecer quando a Vigilante
saísse do armário. Claudina nunca consentia que coisas daquele género a
preocupassem!
Por fim, a refeição acabou. Tinham comido tudo. Até a Ângela disse que
tinha gostado. Adelina não tinha apreciado tanto como as outras pois tinha
caído na piscina com o roupão vestido, e estava sem saber como havia de o
secar antes da Vigilante o ver. Marília disse que nunca tinha tido um dia de
anos tão divertido em toda a vida.
- Foi um grande sucesso - afirmou Joana, satisfeita.
- Agora é melhor irmos embora. Escutem... está a dar uma hora... “Dong”!
Santo Deus! Sinto-me cansada.
Todas estavam cansadas. O banho tinha sido um bocado estafante, porque
tinha havido corridas animadas, e tinham andado em grande brincadeira.
Limparam as migalhas, os cartões, sacos de papel, latas, garrafas vazias, foi
tudo posto num recipiente que estava na galeria, tencionando deitar tudo fora
quando lhes fosse possível.
- Está tudo em ordem - disse Susana, olhando à roda.
- Que linda que a água está, a brilhar ao luar. Não me apetece nada deixá-
la!
Mas tinham que deixar a piscina. Dirigiram-se para o colégio por entre as
árvores, cochichando umas com as outras. Chegaram à porta do jardim que
continuava aberta.
E então ouviram um barulho esquisito. “Pan, pan, pan”! “Pum, pun,
pum”!
- Com a breca! O que é isto - perguntou Susana assustada.
- Soltem-me! Soltem-me! - gritava uma voz abafada, e alguém estava a dar
pontapés numa porta de madeira.
Adelina e Ângela estavam aterrorizadas.
- É um ladrão! - disse Adelina, e correu pelas escadas acima a toda a
velocidade. Ângela seguiu-a a tremer.
Claudina empurrou as outras para as escadas, rapidamente.
- Não parem - murmurou. - Voltemos para o dormitório o mais depressa
possível. Não parem. Eu já explico tudo.
No maior dos espantos foram todas para os dormitórios. Juntaram-se no
dormitório da Claudina, e pediram explicações quanto aos barulhos estranhos
que tinham ouvido.
- É a Vigilante - disse Claudina. - Está fechada à chave naquele armário.
Houve um silêncio assombrado.
- Quem a fechou lá? - perguntou Roberta, por fim.
- Fui eu - confessou Claudina. - Ela veio aos nossos dormitórios e viu que
não estávamos na cama. Não queria que ela estragasse a vossa festa... por isso
empurrei-a para dentro do armário e fechei-a à chave. Não andei depressa e
bem?
XVII Uma Vigilante enfurecida
Durante uns dois minutos ninguém disse nada. As raparigas achavam
inacreditável que Claudina pudesse ter feito uma coisa daquelas. Fechar a
Vigilante à chave no armário dos jogos! Deixá-la a gritar e a bater na porta!
Realmente Claudina devia ser completamente louca.
- Não, não sou louca - disse Claudina, lendo no pensamento delas. - Era a
única coisa a fazer, não é verdade? Ela ia estragar-vos a paródia, e eu podia
impedi-la de o fazer. E assim fiz.
- Mas, Claudina, meteste-te num tremendíssimo sarilho! - disse Joana por
fim.
- Que importância é que isso tem - respondeu Claudina, e realmente agiu
como se não se importasse nada com as consequências! Não estava nada
nervosa, nem aflita.
As companheiras continuavam a olhar para ela, dificilmente acreditando
no facto da Vigilante ter estado, e ainda estar, fechada dentro dum armário!
Nesta altura Roberta teve um pensamento horripilante.
- Quem vai soltá-la?
Ninguém disse nada. Nem mesmo Claudina desejava soltar uma mulher
que estava, de certeza, violenta e terrivelmente furiosa. Mas a verdade é que
não a podiam ali deixar ficar até ao dia seguinte.
- Onde está a chave? - perguntou Joana. Claudina tirou-a do bolso do
roupão e apresentou-a.
Era uma chave enorme. Claudina pôs o dedo dentro do buraco do topo da
chave, e balouçou-a dum lado para o outro, pensativamente.
- Como fui eu que a fechei, serei eu também a soltá-la - disse por fim. -
Darei uma volta à chave muito, muito devagarinho, depois abro só uma
coisinha de nada da porta, e depois... ah, pernas para que vos quero! Até voo
pelas escadas acima!
As companheiras não puderam deixar de rir, e Roberta disse:
- Francamente, não posso perceber como te atreveste a fazer tal coisa...
fechar a Vigilante no armário! Virgem Santíssima! Isto é uma coisa inédita! Por
que não nos contaste isso quando voltaste para a piscina, antes do piquenique?
- Porque pensei que vocês diriam: “Ah, não é honesto fazer tal coisa” -
explicou Claudina. - Pensei que talvez a Susana fosse capaz de se sentir na
obrigação de libertar a Vigilante, e por isso não disse nada.
- Nunca vi ninguém como tu - disse Patrícia. - Fazes as coisas mais
espantosas por motivos absolutamente bons! Por exemplo... atiras-te para
dentro da piscina, quando detestas a água, para castigar alguém que tinha sido
antipático para com a tua tia... agora fechas a Vigilante no armário só para que a
nossa festa não ficasse estragada! Devo dizer que fazes coisas muito
dramáticas... Nunca se sabe o que irás fazer a seguir!
- Bem, o que vamos fazer da Vigilante? - perguntou Susana, que começava
a ficar preocupada. - Devemos deixar a Claudina ir soltá-la?
- Eu vou - disse Claudina, e ergueu-se com muita dignidade.
Gostava de momentos como este, em que se sentia no palco com toda a
gente a olhar para ela. Não era nada vaidosa, mas dava-lhe um grande prazer
fazer qualquer coisa original e dramática.
Foi. As companheiras enfiaram-se na cama a correr, pensando que daí a
nada a Vigilante entraria nos dormitórios, furiosa como um touro bravo!
Claudina desceu as escadas até ao vestíbulo das traseiras. A Vigilante
continuava a gritar e a bater na porta.
Claudina chegou ao armário e meteu a chave na fechadura com muita
cautela... mas no momento em que ia dar a volta à chave, ouviu passos na rua!
Subiu as escadas a correr, sem ter dado a volta à chave. A pessoa que
chegava que lhe abrisse a porta! com certeza que ouvia a Vigilante e lhe abriria
a porta. E assim ela, Claudina, podia ir-se embora, e estava salva!
Os passos chegaram à porta do jardim, e alguém entrou. Era Helena!
Parou, muito quieta e no maior dos espantos, ao ouvir os gritos abafados e as
pancadas na porta do armário dos jogos!
- O quê! Mas é a voz da mãe! - exclamou Helena, absolutamente atónita. -
Onde está ela? Não pode estar naquele armário!
Mas estava, como em breve Helena percebeu. Deu imediatamente a volta
à chave e abriu a porta. A Vigilante saiu a cambalear e completamente fora de
si, de furiosa que estava. Agarrou na Helena com toda a força, sem ver de quem
se tratava. Helena gritou de dor.
- Mãe! Não! Sou eu, Helena. Quem a meteu nesse armário?
- Tu! - exclamou a Vigilante, largando o braço da filha. - O que estás tu a
fazer aqui? Onde tens estado? Como te atreves a sair à noite desta maneira?
Diz-me imediatamente o que estiveste a fazer?
Helena não disse nada. A mãe deu-lhe um safanão.
- Estiveste algures com as alunas do quarto ano. Nenhuma delas está na
cama! O que estiveste a fazer? vou fazer queixa de vocês todas à miss Theobald.
Por que me não disseste o que se estava a passar?
- Não posso dizer nada, mãe. - respondeu Helena numa voz assustada.
Para ela era uma novidade o facto das alunas do quarto ano não estarem
deitadas. Não tinha dado pela falta delas quando ela própria saíra. Também
não tinha ouvido qualquer barulho na piscina. Tinha saído para se encontrar
com Eddie, o irmão, na azinhaga e não ia dizer isto à mãe. Já não se atrevia a
encontrar-se com ele de dia, com medo que a vissem e dissessem à mãe. Por
isso costumava encontrar-se com ele só uma vez por semana durante a noite,
quando as companheiras estavam a dormir.
Ninguém sabia disto. Nem ela desejava que a mãe soubesse, pois se tal
acontecesse estava o Eddie metido em sarilhos também. O que teriam feito as
alunas do quarto ano? Que maldade da parte delas saírem para uma paródia
sem lhe terem dito nada a ela! De qualquer modo tinha que convencer a mãe
que tinha estado com as outras.
- Não dizes nada? - ameaçou a mãe. - Pois bem, diz-me lá quem e que me
fechou aqui? Não quero pensar que. tu te atreveste!
- Claro que não fui eu - respondeu Helena -, nem sei quem foi. Talvez
tenha sido a Carlota. É uma coisa que ela era capaz de fazer. Mas na verdade
não sei, mãe. Por favor deixe-me ir para a cama!
Mas a Vigilante estava demasiado zangada e humilhada para deixar a
coisa assim. Subiu as escadas, foi aos dormitórios do quarto ano e acendeu as
luzes. Todas fingiam estar a dormir. Entrou no dormitório da Helena e falou em
voz alta e furiosa.
- Não serve de nada estarem a fingir que dormem. Sei que não estão. Vim
aqui para saber quem me fechou dentro do armário! Quero que mo digam
agora mesmo. Essa menina será expulsa do Colégio de Santa Clara.
Susana Howes sentou-se na cama e olhou para a furiosa Vigilante, e disse
calmamente:
- Todas nós somos culpadas. Todas nós lastimamos o sucedido, senhora
Vigilante, e esperamos que aceite as nossas desculpas.
A Vigilante disse numa voz explosiva:
- Aceitar as vossas desculpas! Evidentemente que não aceito! E não
julguem que isto fica assim. Insisto em querer saber quem me fechou no
armário. De contrário vou direita à miss Theobald, agora mesmo, no meio da
noite.
Claudina levantou-se, pronta para falar. Não se importava nada de
confessar. Mas Roberta pôs-lhe uma mão sobre o ombro, e puxou-a para si, para
lhe dizer ao ouvido:
- Não te confesses à Vigilante! Vai ter com a tua tia e faz um barulho de
meter medo, e não há razão para a mam’zelle ser metida no assunto. Podes
dizer à miss Theobald amanhã, se quiseres.
- Bien! - concordou Claudina, enfiando-se na cama outra vez. - Muito bem.
Farei como tu dizes, Roberta.
A Vigilante ficou-se a olhar à roda do dormitório. Depois bateu com o pé
no chão com toda a força e quase que berrou.
- Muito bem! vou ter com a miss Theobald. Todas terão que explicar o que
estiveram a fazer no meio da noite, abandonando as vossas camas desta
maneira. E previno-as de que não terei dó nenhum daquela que me fechou no
armário. Helena, mete-te na cama. Sinto-me absolutamente envergonhada só de
pensar que uma filha minha se juntou às outras para fazer asneiras durante a
noite, e se recusa a contar-me o que andaram a fazer!
Foi-se embora, com um passo de quem estava furibunda. As raparigas
sentaram-se.
- “iiih”! - fez Roberta - que vulcão! Olha lá Helena, onde estiveste? A tua
mãe julga realmente que estiveste connosco?
- Julga - respondeu Helena em voz baixa. - pelo amor de Deus não me
denunciem. Estive apenas com o meu irmão Eddie. Tive medo de dizer isso à
minha mãe, e por isso deixei-a pensar que estava com vocês. Não sabia o que é
que vocês tinham estado a fazer, por isso era-me impossível dizer-lho,
evidentemente, e isso pô-la furibunda comigo. Estamos todas metidas num
sarilho dos diabos.
- Miss Theobald vai ficar danada por a acordarem no meio da noite -
comentou Joana, olhando para o relógio. - É uma e meia. O melhor é tentarmos
dormir alguma coisa... se bem que eu estou à espera de ver entrar miss
Theobald a pedir explicações também!
As pequenas tentaram deitar-se e dormir. Marília foi a primeira a
adormecer, e depois, uma a uma todas adormeceram... todas, excepto Helena,
que permaneceu acordada, olhando a noite, preocupada e infeliz. Tudo corria
mal! Tudo estava cada vez pior! Deus do Céu! Como ela desejava que as
companheiras a não denunciassem e não dissessem que não tinha estado com
elas naquela noite.
Podia muito bem ser que fossem contar a verdade acerca dela. Não estava
ela farta de as acusar naquele período? Não seria pois de admirar se elas
quisessem tirar um pouco de vingança!
A Vigilante dirigiu-se ao longo do corredor para a ala separada do edifício
onde a Directora, miss Theobald, tinha os seus aposentos. Bateu à porta com
toda a força.
- Entre! - respondeu uma voz assustada, e ouviu-se o barulho do
interruptor duma luz que se acendia.
A Vigilante abriu a porta. Miss Theobald estava sentada na cama, perdida
de sono.
- Que aconteceu? - perguntou ela com ansiedade.
- Está alguém doente?
- Não! - respondeu a Vigilante com o rosto ainda vermelho de raiva. -
Muito pior do que isso!
- Santo Deus! O quê? perguntou miss Theobald, saindo à pressa da cama à
procura do roupão. - O que é? Diga depressa!
- É o quarto ano - explicou a Vigilante com uma voz terrível. -Ninguém
estava na cama, ninguém! Nem mesmo a minha Helena! Deus sabe o que
estiveram a fazer!
Miss Theobald sentou-se na cama, muito aliviada.
- Oh, uma ceia à meia-noite, suponho eu. Pensei que me viesse dar parte
duma coisa realmente grave! E isso não podia ser dito de manhã?
- De facto não podia - respondeu a Vigilante - por outra razão muito
importante também. Alguém me fechou durante uma data de tempo no
armário dos jogos, no vestíbulo das traseiras, junto do jardim!
Miss Theobald olhou espantada para a Vigilante, como se realmente não
pudesse acreditar no que ouvia.
- Fecharam-na à chave, no armário - disse por fim.
- Tem a certeza? Quer dizer... na verdade não estou a ver nenhuma das
alunas do quarto ano a fazer uma coisa dessas...
- Oh, não sabe nem metade do que se passa no colégio! - disse a Vigilante
numa voz terrível - Nem metade! A minha Helena conta-me muitas coisas, e se
a miss Theobald ouvisse algumas dessas coisas ficava varada.
- Não tenho que ouvir coisa alguma - disse miss Theobald - e não posso
deixar de pensar que não está certo da sua parte, permitir que a Helena lhe
conte essas coisas. Também acho que não tem que se preocupar se eu sei ou
não, aquilo que se passa. Isso só me diz respeito a mim.
A Vigilante sentiu o tom de censura nas palavras de miss Theobald, e
começou a ficar aborrecida pelo facto da Directora não se mostrar mais zangada
e interessada pela sua prisão no armário. Tinha o ar mais terrível do que nunca.
- A Helena é que me libertou - disse ela. - De contrário teria que estar no
armário até de manhã. Uma linda coisa para acontecer à Vigilante dum colégio
como este! Fui imediatamente aos dormitórios do quarto ano, e lá estavam
todas as alunas fingindo que dormiam. Hipócritas!
- Não seja tão vingativa! - aconselhou miss Theobald, que tinha ficado
chocada com o tom de voz da Vigilante.
- A senhora nunca tinha sido Vigilante num colégio de raparigas, e ainda
não está habituada às garotices dos diversos anos. Mas geralmente são
inofensivas. Quem a fechou no armário?
- As pequenas não dizem - vociferou a Vigilante.
- Mas eu exijo que seja expulsa aquela que me fechou. Uma aluna que faz
uma coisa destas, exerce uma péssima influência sobre as outras.
- Presumo que todas as alunas se combinaram para esse efeito - disse miss
Theobald. - Eu nunca expulsaria uma aluna sem uma razão mais forte do que
uma simples maldade. Tenho a certeza que a turma inteira participou da
brincadeira, e certamente não espera que eu expulse toda a turma! Procure ver
as coisas à luz da razão. Neste momento está muito aborrecida, muito zangada,
mas vai ver que de manhã já não desejará que as alunas sejam expulsas.
- Não vem comigo agora aos dormitórios para saber quem me fechou no
armário - perguntou a Vigilante, furibunda, ao ver miss Theobald tirar os
chinelos e despir o roupão.
Espero que as pequenas a estas horas estejam a dormir - disse a Directora,
metendo-se na cama. - Não vejo razão para as acordar outra vez. Isso pode
perfeitamente esperar até amanhã.
A Vigilante estava enfurecida. Planeara um regresso dramático aos
dormitórios, com miss Theobald, e tinha chegado ao ponto de esperar que a
Directora quisesse saber quem era a culpada e anunciasse a sua expulsão
naquele próprio momento. Mordeu os lábios, e olhou para miss Theobald tão
enraivecida, que esta começou a sentir-se maçada.
- Por favor, agora vá-se embora - disse ela. - Continuaremos esta
complicada conversa de manhã.
A Vigilante deu um passo em frente, e o seu rosto tomou um ar maligno.
- Pois bem - disse ela. - Não tencionava dizer nada enquanto não
descobrisse a gatuna... mas há alguém no quarto ano que rouba, miss Theobald!
Tem-me faltado dinheiro, sim, dinheiro, selos também, e outras coisas como
papel e sobrescritos. Há uma aluna desonesta e ladra no quarto ano, e também
quero este assunto esclarecido! De contrário, desconfio bem que vou ter com a
Polícia!
2
2 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.
XVIII Claudina vence outra vez
Miss Theobald detestou intensamente a Vigilante naquele momento. Era
evidente que sentia um verdadeiro prazer em dizer aquelas coisas cheias de
veneno.
- Acho que tudo isso pode esperar até de manhã - disse a Directora. -
Nessa altura tratarei dessas coisas a fundo. Agora de noite não se pode fazer
nada de jeito. Boa noite.
A Vigilante saiu do quarto sem responder. Esperava ter dado um choque a
miss Theobald. Não tencionava falar do dinheiro desaparecido, porque queria
ter o prazer de apanhar a ladra com a boca na botija, para nessa altura a agarrar
por um braço e a levar triunfantemente à miss Theobald. A Vigilante esperava
que a ladra e aquela que a tinha fechado no armário fossem uma só pessoa.
Tinha a certeza de que assim era. Certamente só uma pessoa com muito mau
fundo a poderia ter fechado dentro do armário!
“Talvez que amanhã se descubra tudo - pensava ela enquanto se metia na
cama. - vou obrigar a Helena a contar-me o que o quarto ano fez. Não lhe falarei
do dinheiro que me tem faltado, não vá ela prevenir o quarto ano e a ladra não
ser apanhada”.
Na manhã seguinte, o quarto ano acordou cheio de sono, cansado, e cheio
de medo. A Vigilante sempre teria ido falar com miss Theobald? O que iria
acontecer?
A Vigilante apareceu ao pequeno-almoço, terrível e severa. Helena tinha
os olhos pisados. A mãe tinha-lhe ralhado e exigido que ela lhe dissesse o que o
quarto ano tinha feito na noite anterior. Mas Helena não dissera nada.
Roberta tinha-lhe falado muito a sério.
- Ouve o que te digo, Helena. Não te convidámos para o nosso piquenique
ontem à noite porque tivemos medo que contasses à tua mãe, como fazes
muitas vezes. Mas vamos fazer uma combinação contigo. Não diremos à tua
mãe que não estiveste connosco, e por isso continuará a pensar que estiveste.
Por tua vez nunca mais nos denuncias, estás a perceber? E se o fizeres, a
combinação fica imediatamente sem efeito, e contaremos à tua mãe os encontros
que tens com o teu irmão. É a única maneira de te ensinarmos que com traição
não se lucra coisa alguma.
Helena, pálida e triste, prometera.
- Obrigada - disse ela. - Nem quero pensar que a mãe possa vir a saber dos
meus encontros com o Eddie. Ficaria tão zangada com ele! Nunca mais
denunciarei ninguém. Eu bem sei que o tenho feito... mas é tão difícil por vezes
não responder às perguntas da minha mãe!
Roberta calculava que sim. Helena tinha os seus problemas, mas não era
sendo fraca e a denunciar as colegas que os resolvia! O que mais cedo ou mais
tarde acabaria por descobrir.
Mas naquela manhã, Helena tinha sido decidida e forte, e não tinha
respondido às instantes perguntas da Vigilante. A mãe zangara-se imenso,
tinha-lhe mesmo puxado as orelhas com quanta força tinha. A Vigilante tinha
um génio tremendo quando perdia a cabeça, e a pobre Helena tinha tido muito
que aguentar.
- Claudina - disse Susana baixinho, ao pequeno-almoço - se queres acusar-
te à miss Theobald de teres fechado a Vigilante no armário, é melhor ir logo em
seguida ao pequeno-almoço. Mas se não te queres acusar não precisas de o
fazer. Ficaremos todas a teu lado, e diremos à miss Theobald para dar um
castigo à turma inteira. No fim de contas divertimo-nos a valer, graças a ti, e
nenhuma de nós deseja que sejas castigada por causa duma coisa que qualquer
de nós gostaria extraordinariamente de ter feito.
- Obrigada, Susana - respondeu Claudina, pensando que aquelas raparigas
inglesas eram capazes de ser muito simpáticas, leais e generosas - mas eu vou
ter com a miss Theobald. Não tenho vergonha do que fiz. Ela é uma mulher má,
a Vigilante, e hei-de dizer à miss Theobald que até tive prazer em a castigar
pelas coisas antipáticas que tem feito durante o período.
- Bem... faz e diz o que quiseres - disse Susana, pensando que Claudina,
provavelmente durante toda a vida, faria e diria o que muito bem lhe
apetecesse! - E boa sorte!
E assim, Claudina foi até à porta da Directora, bateu firmemente, e entrou.
Começou sem qualquer rodeio:
- Miss Theobald, vim para lhe dizer que fui eu que fechei a Vigilante a
noite passada. Suponho que é uma coisa que nenhuma rapariga inglesa teria
feito, com o seu extraordinário sentido da honra, mas eu sou francesa, não gosto
da Vigilante, e queria que o quarto ano se divertisse. Fomos fazer um
piquenique à meia-noite, miss Theobald, e tomar banho na piscina. Eu não
nadei, mas as outras nadaram, e disseram que foi formidável.
Miss Theobald teve dificuldade para não sorrir ao ouvir esta franca
confissão. Claudina tinha sempre um ar inocente que desarmava as professoras,
mesmo quando estava a fazer, ou a confessar, as coisas mais extraordinárias.
Miss Theobald olhou fixamente para a inteligente rapariga.
- Por que não gostas da Vigilante?
- Quer que eu lhe diga a verdade? - perguntou Claudina. - Pois bem, então
digo. A Vigilante descobre, através da Helena, todas as parvoíces e maldades
do quarto ano, e então veja o que acontece! Misteriosamente, os nossos lençóis
aparecem rotos, e nós passamos horas a cosê-los. De repente as meias aparecem
cheias de buracos, e as batas sem botões. Oh, miss Theobald, nós não gostamos
da Helena, e se o demonstramos, são montanhas de roupa para coser, e temos
que ficar a fazer costura enquanto as outras estão lá fora a jogar.
- Percebo - disse miss Theobald, que já tinha desconfiado daquilo. -
Claudina, não podes andar a fechar pessoas à chave dentro dos armários. Tenho
a certeza de que nem mesmo as alunas francesas fazem isso.
- Ah, miss Theobald, eu não vou fechar toda a gente nos armários! - disse
Claudina, que se ia lançar num dos seus longos e complicados discursos. - Não,
toda a gente não! Só as pessoas que o merecem, devem ser fechadas nos
armários. Eu cá por mim, nunca...
Miss Theobald pensou que Claudina tinha muita coisa parecida com a
mam’zelle. Sorriu-se intimamente, e pôs ponto final naquela interminável
explicação.
- Está bem, Claudina. Vais pedir desculpa à senhora Vigilante esta manhã,
e aceitar o castigo que ela te der. Há uma coisa mais... - Parou, e olhou para
Claudina duma maneira penetrante. Claudina dispensou toda a atenção porque
tinha uma grande simpatia e respeito pela sensata e bondosa miss Theobald. -
Essa coisa mais é acerca do sentido inglês da honra... Falas disso duma maneira
ligeira, e até mesmo trocista...
Mas penso que intimamente compreendes perfeitamente que se trata
duma coisa boa e admirável. Quando voltares para França, Claudina, leva uma
coisa contigo: o sentido inglês da honra.
Claudina tinha um ar solene. Estava muito comovida.
- Miss Theobald, acredite-me quando lhe digo que realmente não faço
troça disso. A princípio não a compreendia, depois achava que era uma coisa
maçadora nos outros, e ainda mais maçadora para nós possuirmos. Mas agora
começo a aprendê-la, e é uma coisa boa, mesmo muito boa.
Bateram à porta, e a Vigilante entrou, com uma cara mais terrível do que
nunca. Queria esclarecer tudo com miss Theobald imediatamente. Claudina
ficou radiante ao vê-la, e pensou: “agora vou pedir desculpa à Vigilante ao pé
da miss Theobald, e assim ela não se atreverá a ser demasiado má nem a dar-me
um castigo exagerado! “
E assim, dirigiu-se à Vigilante, muito mansa, de olhos baixos, olhando
para o chão, e falou com uma voz muito tímida:
- Senhora Vigilante, fui eu que a fechei à chave ontem à noite. Peço-lhe
muita desculpa, e que me perdoe. Aceitarei de boa vontade o castigo que me
der.
Miss Theobald olhava para a cena, muito divertida. Sabia que Claudina
estava a representar um papel, e tinha-se aproveitado, inteligentemente, da
vinda da Vigilante ali, para pedir logo desculpa, perante a própria Directora.
A Vigilante corou. Olhou para Claudina e ralhou-lhe severamente:
- És uma péssima menina! Mereces ser expulsa! E, ainda mais, fazia com
que te expulsasse, se a tua tia não fosse aqui professora de Francês, e se te
expulsassem partir-se-lhe-ia o coração.
A verdade é que a Vigilante tinha medo da mam’zelle que era capaz de se
exaltar com mais violência do que ela própria. Pensava até que a mam’zelle era
capaz de lhe arranhar a cara e puxar-lhe os cabelos, se ela se atrevesse a
expulsar Claudina.
- É muita bondade da sua parte ter consideração pela minha boa tia -
respondeu Claudina, com a mesma voz doce. - Qual vai ser o meu castigo?
- Vais passar esta semana todas as horas livres a ajudar-me a coser a roupa
do colégio - disse a Vigilante, que não viu o relâmpago de felicidade que
perpassou nos olhos baixos de Claudina.
Ah, assim, durante a semana inteira estava privada dos jogos e dos
passeios a pé!
- Sim, senhora Vigilante - disse ela, fingindo uma voz muito triste, a qual
não enganou miss Theobald. Depois voltou-se para a Directora:
- Agora volto para a aula - disse ela, com um sorriso de muita gratidão.
Saiu da sala, fechando calmamente a porta. Miss Theobald pensou que
ninguém podia deixar de gostar daquela travessa rapariga, esperta como era, e
conseguindo aquilo que queria!
- Bem, miss Theobald - começou a Vigilante, num tom de voz de desafio -
podemos tratar agora o assunto do roubo? Não quero que isto volte a acontecer.
E acontece todos os dias. E o que é mais, voltou a desaparecer algum do meu
dinheiro a noite passada! É verdade que foram só dez escudos... mas roubar dez
escudos é tão mau como roubar cem. É roubar. E acho que a pequena que
pratica estes roubos deve ser expulsa. Não concordou em que se expulsasse a
aluna que me fechou no armário ontem à noite... mas talvez tenha que o fazer,
miss Theobald! Sim, talvez tenha que o fazer!
- O que quer dizer com isso - perguntou miss Theobald, surpreendida.
- Quero dizer - explicou a Vigilante - que desconfio que é essa menina
francesa que me rouba as coisas! Está sempre a entrar e a sair do meu quarto
com roupas para coser... e ouvi dizer que ultimamente tem gasto muito
dinheiro, e eu sei que não o tem porque a própria mam’zelle mo disse. Por isso,
talvez que a miss Theobald ache melhor libertar-se duma aluna deste género, e
concorde comigo em que será uma grande coisa expulsá-la!
XIX A mãe de Paulina
Ainda a miss Theobald não tinha resolvido naquele dia qual seria a
melhor maneira de estudar a Vigilante e as suas acusações, quando um terrível
acidente se deu no ginásio.
Aconteceu à Paulina, Trepava por uma das cordas, quando a certa altura
escorregou e caiu ao chão. Caiu com uma perna dobrada debaixo dela, e ouviu-
se um estalido.
Paulina ficou encolhida no chão, fez-se muito branca, e perdeu os
sentidos. A professora de ginástica correu para ela, alarmada, chamaram a
correr a Vigilante, e em seguida foi chamado o médico.
- Tem a perna partida - diagnosticou ele. - Fractura simples. Nada de
importância.
O médico tratou da fractura, e puseram a Paulina na cama, ainda muito
branca em consequência do choque. Miss Theobald foi vê-la, e Paulina olhou
para ela com uns olhos imploradores.
- Não digam nada à minha mãe - pediu ela. - Não quero que ela se
preocupe. Por favor não lhe digam nada!
- Já lhe telefonei, minha filha - disse miss Theobald, muito admirada. - Por
que não querias que ela soubesse?
- Não quero que ela se preocupe - disse Paulina debilmente. - Por favor
telefone-lhe outra vez, miss Theobald, e diga-lhe que se não preocupe, que não
é preciso vir ver-me, e que eu lhe escrevo ainda hoje.
- Tu hoje não podes escrever - disse miss Theobald docemente. - Não
podes fazer hoje qualquer movimento. Voltarei a telefonar à tua mãe hoje à
noite, e dir-lhe-ei que se não incomode a vir ver-te se o não puder fazer.
- Diga-lhe que não venha - implorou Paulina. - Sabe, ela não tem estado
bem, e eu não quero que ela se rale.
Toda a gente tinha pena da Paulina. As colegas não tiveram licença de ir
visitá-la naquele dia, mas mandaram-lhe pequenos presentes de flores, fruta e
livros.
- Parece acontecer tudo ao mesmo tempo - comentou Roberta. - Olhem lá,
não acharam muito estranha a conversa de miss Theobald, esta manhã?
Na verdade tinha sido uma conversa muito séria e muito solene, e tinha
sido justamente antes do almoço, naquela manhã. Todas as alunas do quarto
ano, excepto Paulina, que estava na enfermaria, sob os cuidados da Vigilante,
tinham sido chamadas à sala de miss Theobald.
Miss Theobald falara ligeiramente sobre o acontecimento da noite anterior,
dizendo-lhes que Claudina havia confessado, que tinha pedido perdão à
Vigilante, e recebido o devido castigo pelo seu extraordinário procedimento.
Disse que teria autorizado o piquenique e o banho ao luar, se lhe tivessem
pedido, mas compreendia que as meninas do quarto ano ainda eram
suficientemente novas para acharem mais divertido fazerem essas coisas sem
licença, do que com ela.
Isto fez com que as alunas mais responsáveis se torcessem um pouco. Não
gostavam de ser consideradas novas e parvas. Então miss Theobald abordou a
outra queixa da Vigilante. Esta era muito mais séria, evidentemente, e as alunas
não se sentiram nada à vontade ao ouvi-la dizer que havia uma ladra no meio
delas, que tinha que ser descoberta, ou vir ela própria confessar.
- Devem compreender que aquilo que seria uma coisa sem importância,
relativamente falando, num ano mais atrasado, no meio de crianças, toma
aspecto muito grave entre as mais velhas - disse miss Theobald - e a Vigilante
está preocupada com o assunto, e com razão. Quem quer que é, tira as coisas
deliberadamente e continuamente... não é uma coisa praticada num momento
de aflição, que depois se lamente amargamente. É, ao que parece, feita
friamente, deliberadamente, e com frequência.
As pequenas falaram depois todas sobre o assunto, passando o caso da
Vigilante fechada no armário para segundo plano, visto que a outra acusação
era muito mais grave. Quem diabo poderia ser?
- A Vigilante está convencida de que é alguém do quarto ano porque a
nossa sala é a única que fica perto do quarto dela - disse Roberta. - Seria fácil a
qualquer aluna sair de vez em quando, ver se o caminho estava livre, e depois
entrar e tirar qualquer coisa.
- Têm sido tiradas coisas tão estranhas além do dinheiro - disse Joana,
intrigada -, selos, papel, sobrescritos. Para quê? A Vigilante diz que também
têm desaparecido bolachas e rebuçados. Até parece que alguém tem tirado o
que pode, só por despeito.
- Bem, nenhuma de nós gosta da Vigilante - observou Roberta, rindo-se. -
Se fosse uma questão de vingança pelas maldades que ela nos faz, qualquer de
nós podia ser a culpada!
- Ainda bem que essas coisas lhe acontecem a ela - disse Claudina. -
Merece todas as desgraças por causa das tristezas que causa aos outros. A pobre
Helena tem estado hoje todo o dia com os olhos vermelhos!
- Pois tem, e eu não posso deixar de ter pena dela - disse Dora. - Já é uma
desgraça ter a Vigilante como vigilante, mas tê-la também como mãe deve ser o
maior dos infortúnios!
Patrícia, Isabel, Joana, Roberta e Lida discutiram o assunto entre elas no
campo de ténis, naquele dia.
- Quem poderá ser? - interrogava Roberta.
- Haverá alguém que de repente tenha mais dinheiro do que era costume?
- perguntava Patrícia. Imediatamente o mesmo pensamento atravessou a mente
de todas.
- Sim... Claudina. Tem gasto a torto e a direito ultimamente.
- E tem muitas oportunidades de ir ao quarto da Vigilante, porque está
sempre a ter coisas para coser!
- Mas não pode ser Claudina! É verdade que não tem o nosso sentido da
honra... mas não fazia uma coisa dessas!
- Vocês sabem que ela não se importa com aquilo que faz quando não
gosta de alguém ou deseja vingar-se. Nem sequer pensaria que o não devia
fazer.
As cinco olharam umas para as outras, sentindo-se de repente muito
pouco à vontade. Sabiam que na verdade Claudina tinha muito pouco
dinheiro... e contudo tinha dado à Marília aquela bonita carteira... e tinha gasto
vinte escudos nas cerejas para o piquenique. Realmente parecia que poderia ser
Claudina.
Tocou a sineta para o chá e as raparigas correram para o colégio. Depois
do chá a Ângela e a Adelina foram juntas à cidade comprar qualquer coisa de
que precisavam. Quando regressavam, passaram por uma senhora de idade,
vestida com um sóbrio vestido preto, sapatos de salto raso, e um chapéu muito
modesto. Usava óculos, tinha um rosto magro e cansado, mas bondoso.
- Deve ser alguma cozinheira que vai para o Colégio de Santa Clara - disse
Ângela à Adelina.
Quando as raparigas iam a passar por ela, voltou-se e perguntou-lhes:
- Diziam-me, por favor, se vou bem para o Colégio de Santa Clara? As
meninas são do colégio, não são?
- Somos - respondeu Adelina. - É sempre em frente. As raparigas iam para
continuar, quando a senhora as fez parar para lhes fazer uma pergunta que as
deixou surpreendidas.
- Como está a minha Paulina agora? A Directora telefonou-me para me
dizer que tinha partido uma perna esta manhã, e eu apanhei o primeiro
comboio que pude. Sou a mãe dela.
Ângela e Adelina pararam estupefactas na estrada, e ficaram a olhar para
a velha senhora, de boca aberta. Lembravam-se das maravilhosas histórias que
a Paulina contava da sua linda e rica mãe. Não podiam compreender que
aquela modesta senhora, com um ar cansado e quase velha, fosse a suposta
maravilhosa mãe da Paulina.
O coração de Ângela foi logo assaltado pela troça. com que então Paulina,
que nunca queria ficar atrás dela, tinha uma mãe que parecia uma cozinheira
gasta. Tentou puxar a Adelina rapidamente ao longo da estrada.
Mas qualquer coisa no cansado rosto da mãe da Paulina tinha comovido a
Adelina, que tinha muitos defeitos mas era sensível aos sentimentos dos outros,
e sentiu a preocupação e a ansiedade no rosto da senhora. Sacudiu o braço da
Ângela.
- Paulina está bem - disse ela com simpatia. - Não a pudemos ver hoje, mas
todas nós lhe mandámos qualquer coisa. Flores, livros, e outras coisas sabe,
para a animar. Sente-se melhor agora? Paulina ficou tão desapontada por a
senhora não ter vindo, nem o pai, à festa do período, por nessa semana estar
doente.
A mãe de Paulina pareceu muito surpreendida.
- Não estive doente - disse ela. - Eu queria vir à festa, mas Paulina
mandou-me dizer que havia um caso de escarlatina e que a festa tinha sido
adiada, por isso não vim.
Adelina estava horrorizada. Num abrir e fechar de olhos viu que Paulina,
com receio de que a mãe não fizesse boa figura no meio das outras mães,
sabendo que tinha dito toda a espécie de mentiras que seriam descobertas logo
que as companheiras vissem a sua cansada e velha mãe, tinha realmente
inventado a mentira da escarlatina para evitar a vinda dos pais à festa, e tinha
fingido aquele grande desapontamento por eles não terem vindo.
Ângela, claro está, ouviu o que estava a dizer, e uma expressão de troça e
desprezo lhe veio ao rosto.
- Bem! - disse ela - não houve nenhum caso de...
- Mas Adelina não deixou a Ângela interferir no assunto. Deu-lhe tamanha
cotovelada que a fez dar um grito de surpresa. Depois deitou-lhe uns olhares
tão ferozes que Ângela não disse mais nada, mas pensou, muito admirada, que
a Adelina devia estar louca, para a tratar a ela, Ângela, daquela maneira.
Julgo que a Paulina está contente no Colégio de Santa Clara - disse a mãe. -
Ela sempre desejou ir para lá desde que ouviu falar dele. Não sabia como havia
de suportar tão grande encargo, mas sempre consegui. O pobre Pai é um
inválido, sabe, está assim há muitos anos, com certeza que ela lhes contou tudo
isto. Não temos muito dinheiro, mas gostava que a Paulina fosse feliz no
colégio, e disse-lhe: “Olha minha filha, não podes ter tanto dinheiro como as
outras para os teus alfinetes, nem tantas festas, mas se queres ir nestas
condições, eu não te impeço”.
A mãe da Paulina falava com a Adelina, não com a Ângela. Gostou da
bonita e simpática carinha da Adelina, e estava muito contente por ter com
quem falar. Ângela, teve um gesto de desprezo, e continuou rapidamente o seu
caminho para o Colégio de Santa Clara.
- Ainda é longe, não é? - disse a mãe de Paulina um pouco ofegante. - Não
vim de táxi porque os táxis são caros e pensei que podia muito bem vir a pé.
Coitadinha da Paulina, já foi pouca sorte partir assim a perna. Pensei que ela
iria ficar tão contente de me ver se eu pudesse vir logo!
Adelina não estava tão segura disso. Pensava que se Paulina tinha
mentido para evitar que a mãe viesse à festa, certamente também não estava
interessada agora em a ver no Colégio de Santa Clara, com a razão das suas
mentiras patente à vista.
“Paulina faz-me tristeza - pensava Adelina -, na verdade é odienta, faz
com que a pobre mãe certamente se prive de tudo quanto precisa, para lhe
pagar o colégio aqui, e depois mantém-na afastada do colégio porque tem
vergonha dela! Idiota! “
Adelina acompanhou a mãe da Paulina até à porta do colégio e deixou-a aí
entregue a uma criada. Foi tirar o chapéu e o casaco e foi até à sala ter com as
outras.
“Deus queira que a Ângela não tenha ido fazer pouco da mãe da Paulina -
pensou Adelina, desanimada. Tenho pena da pobre senhora. Parecia tão
cansada e tão envelhecida”.
Ao abrir a porta da sala ouviu logo a voz da Ângela:
- Só lhes digo que sei quem tirou o dinheiro à Vigilante, e tudo o mais!
Não há qualquer dúvida. Foi a Paulina!
- Paulina? O que é que tu queres dizer? Por que dizes isso? - perguntou a
Joana.
- Já lhes digo por quê - continuou Ângela, e fez uma pausa dramática. - Eu
e a Adelina subimos a estrada com a mãe da Paulina, agora mesmo, e por
aquilo que ela nos contou é mais que certo que a nossa querida Paulina é uma
terrível mentirosa e é certamente uma grande ladra!
XX Ângela e Claudina
- Tens que dizer a razão por que dizes isso - intimou Roberta.
As alunas do quarto ano juntaram-se todas para ouvir. Só ali não estava
Claudina, nem, evidentemente, Paulina.
- Ora oiçam - disse Ângela malevolamente. - Eu e a Adelina vínhamos
para o colégio, e vimos na estrada uma velha feia, muito modesta, vestida de
preto, mesmo na nossa frente. Pensei que devia ser alguma cozinheira que
vinha para o colégio. E afinal era a mãe da Paulina... Paulina não vem dos
Bingham-Jones, como ela diz, mas apenas dos Jones!
- É uma pessoa muito simpática - disse Adelina, que não gostara da voz
desdenhosa da Ângela.
- Uma pessoa simpática! - zombou Ângela, andando à roda de Adelina
duma maneira trocista. - Vulgar como a porcaria, queres tu dizer! E quando
penso nos ares da Paulina... a querer fazer ver que a sua mãe é tão elegante
como a minha... fingindo que a sua família é tão importante como a minha
realmente é... gabando-se dos seus carros e das suas coisas... quando são tão
pobres como Job, e mal podem manter a filha aqui no colégio! Macacos me
mordam se eu não disser à Paulina o que penso dela quando a vir! E hei-de
dizer-lhe o que penso da sua mãezinha, vestida como uma cozinheira e
lamentando-se por causa da sua pobre Paulina.
Antes de mais alguém poder falar, Adelina levantou-se. Estava branca e
havia um estranho ar na sua fisionomia.
- Não dizes nada disso à Paulina! Não lhe dizes nada que a possa
envergonhar da sua pobre mãe. Não compreendes como podes levá-la a
detestar a mãe, se ela souber que a viste e que dizes essas coisas da pobre
senhora? Acho que a Paulina procedeu muito mal inventando todas aquelas
coisas, mas não consinto que piores a situação da mãe, dizendo à Paulina coisas
horríveis acerca dela. Ângela estava atónita. Como é que a sua amiga Adelina
lhe falava daquela maneira? Olhava para ela esgazeada, incapaz de dizer uma
palavra. Mas em breve a sua língua readquiriu agilidade.
- Pois olha, se te interessas por pessoas da categoria da mãe da Paulina,
fico bem satisfeita por não vires passar as férias comigo - disse ela
desdenhosamente. - Vou-me embora! Não estou para ser insultada por uma
criatura que tinha na conta de minha maior amiga.
A pobre Adelina estava a tremer, pois detestava discussões. Ângela
dirigiu-se para a porta. Mas com intensa surpresa e aborrecimento da sua parte,
duas raparigas agarraram-na bem pelos braços, e obrigaram-na violen tamente
a sentar-se, o que a deixou quase sem pinga de sangue.
- Podes não querer ouvir a Adelina, mas não tens outro remédio senão
ouvir-nos a nós! - disse Carlota, com os seus olhos de cigana, lançando fogo. -
Agora somos nós! que vamos dizer meia dúzia de coisas!
- Deixem-me ir embora, suas estúpidas - murmurou Ângela entre os
dentes.
- Parece que estás a falar muito acerca de mães - criticou Carlota,
debruçando-se sobre a furiosa Ângela, e falando num tom tão feroz que Ângela
inclinou-se para trás, com medo. - Também nós vamos falar de mães... da tua
mãe! Não falaríamos dela se não fosse preciso... mas é muito preciso agora, para
introduzir um pouco de bom senso nessa cabeça obtusa!
- Se me não deixam ir embora começo a gritar - ameaçou Ângela
enraivecida.
- Cada vez que gritares, dou-te uma bofetada valente como esta - disse
Carlota, dando no anafado ombro da Ângela uma palmada com tanta força, que
ela soltou um grito de dor.
- Cala-te, Carlota - aconselhou Roberta - não podes fazer isso.
- Posso, sim senhor - respondeu Carlota friamente. E Ângela sabia que
podia, por isso não disse mais nada.
- A mãe da Paulina pode ser velha, feia, pobre, e estar cansada, mas não é
razão para ser desprezada. Mas há razão para se desprezar a tua mãe, Ângela! É
uma inútil, uma malcriada, uma insatisfeita, uma horrível snob... tal e qual
como tu! E fazes favor de lhe dizer que não volte a pôr aqui o pé, fazendo cara a
tudo, porque a não queremos ver, porque não gostamos dela e a desprezamos, e
desejamos que te leve daqui o mais cedo que ela quiser!
- Estás a ouvir? - perguntaram a Roberta, a Joana e as gémeas.
Ângela ficou muito branca. Estas coisas eram dolorosas de ouvir, mas ela
também as havia pensado. Também ela se envergonhara com as atitudes da
mãe na festa do período... mas não tinha percebido quão amargamente as
colegas se haviam magoado com o seu insolente procedimento para com o
colégio e tudo o que o representava.
- Já chega, Carlota - disse Susana Howes, um tanto atrapalhada.
E realmente chegou. Ângela tinha o ar de quem ia desmaiar. Quisera
sumir-se pelo chão abaixo. Acabavam de lhe falar, a ela, que tanto se tinha
gabado e tanta bazófia punha na sua família que colocava acima de qualquer
outra, como se não fosse mais do que um farrapo. com um grande soluço fugiu
da sala.
- Ainda bem que ela se foi embora - disse Patrícia.
- Anima-te, Adelina. Orgulhei-me de te ouvir falar assim. Talvez que
agora vejas a Ângela tão claramente como nós a vemos.
- Vejo, sim - murmurou Adelina com verdadeira desolação. - Acho-a
medonha. Tive tanta, tanta pena da mãe da Paulina... e a Ângela não teve para
com ela senão palavras de escárnio. Não possui um átomo de bondade!
- Nem uma amostra - concordou Joana. - Agora já aprendeu que a
bondade gera bondade, e que o desprezo gera desprezo. E se o não aprendeu,
muito terá que sofrer!
- Acham que a Ângela tem razão quando diz que Paulina deve ser a ladra?
- perguntou Dora. - Ultimamente tem gasto dinheiro a rodo... e se realmente é
pobre... de onde é que lhe vem?
- Nós estivemos inclinadas a pensar que seria a Claudina - disse Isabel. -
Vocês sabem que ela também é pobre... quase nunca tem vintém... e eis que de
repente aparece cheia de dinheiro. E vocês sabem que não tem escrúpulos
nenhuns! Eu gosto dela... mas simplesmente não tem qualquer sentido do que
seja honra! Por isso começámos a desconfiar se seria ela.
- Shiu! Shiu! - fez alguém, mas tarde de mais... pois Claudina, que tinha
entrado sem que ninguém tivesse visto, tinha ouvido o que Isabel dissera!
Claudina abriu imediatamente caminho através das companheiras. Isabel
viu-a chegar, e ficou horrorizada. Por nada no mundo desejava que Claudina
tivesse ouvido o que ela tinha dito!
- Claudina! - disse ela. - Lamento que tenhas ouvido. Não te zangues. Só
tivemos esse pensamento porque as tuas ideias sobre a honra são
completamente diferentes das nossas. E realmente parece-nos que, se detestavas
a Vigilante, era uma maneira de te vingares dela.
Claudina olhou para o grupo das colegas, e o seu rosto expressava uma
intensa fúria. Viu a cara franca de Isabel, a cara assustada da Patrícia, a cara
atenta da Roberta... e depois, com enorme espanto de todas elas, o seu ar de
fúria desapareceu... e Claudina desatou à gargalhada!
Surpreendidas, todas olhavam para ela. “Francamente - pensou Dora -
nunca se sabe quais são as reacções da Claudina! “
Roberta pensou que era parecidíssima com a mam’zelle nas suas
repentinas mudanças de furiosa para risonha. Mas que sorte que a Claudina
tivesse encontrado nas Palavras de Isabel motivo para gargalhadas!
- Eu não estou zangada - confessou Claudina por fim, limpando as
lágrimas que o riso lhe havia provocado.
Não, não estou zangada. Vocês inglesas são tão sérias, tão solenes e tão
honradas! Eu tenho a minha honra também, e embora por enquanto não seja
igual à vossa, talvez que um dia venha a sê-lo. A boa miss Theobald disse-me
esta manhã que há uma coisa que tenho que levar comigo para França, apenas
uma... o sentido inglês da honra!
- Dizer uma coisa dessas é mesmo à miss Theobald - observou Joana. - Mas
afinal por que te riste, Claudina?
- Ri-me porque me lembrei de repente da razão porque tenho agora tanto
dinheiro para gastar - explicou Claudina, rindo-se com o seu riso contagioso. -
Para eu vos contar essa razão, terão que me prometer primeiro sob a vossa
honra inglesa, que nunca, nunca dirão à minha tia Matilde o que eu fiz!
- Oh, Claudina... o que fizeste tu? - perguntou Patrícia, imaginando as
coisas mais inconcebíveis.
- Lembram-se da minha linda almofada, de que a minha tia tanto gostava?
Pois bem! Vendi-a a uma das vossas mães por uma data de dinheiro!
Compreendem, eu precisava de dinheiro... aproximavam-se aniversários e eu
não gosto de ter tão pouco dinheiro. E uma das vossas mães foi tão boa para
comigo que me comprou a almofada, e eu mandei-lha pelo correio. Expliquei-
lhe que era minha, e que precisava de dinheiro, e ela foi tão boa, tão boa para
comigo!
- Foi a minha mãe? - perguntou Adelina, desconfiada.
- Eu vi-te falar às escondidas com ela na festa do período. A minha mãe
não é muito capaz de fazer uma coisa simpática como essa, e não dizer nada a
ninguém. Só queria é que ela a pusesse no meu quarto!
- Bem... confessou Claudina, rindo-se com imenso gosto. - Pode ter sido a
tua simpática mãe, Adelina. O meu sentido da honra não me deixa dizê-lo. E
agora apelo para o vosso sentido da honra também, para não dizerem à minha
tia o que aconteceu à almofada. Eu disse-lhe que a tinha mandado à minha mãe.
- Tu és uma terrível aldrabona, Claudina - censurou Glória, chocada. -
Enganas as pessoas a torto e a direito! Não te percebo. Por que não disseste à
mam’zelle que tinhas vendido a almofada, em vez de dizer mentiras e fazer
disso um segredo?
- Ah, eu cá por mim adoro segredos! - disse Claudina com os olhos a
dançarem. - E a tia Matilde teria escrito à bondosa mãe e recuperado a almofada
devolvendo o dinheiro, e eu teria ficado desolada, porque é formidável ganhar
dinheiro, não acham?
- O que eu acho é que tu es um enigma - disse Joana.
- Nunca chegarei a conhecer-te, Claudina. Dizes mentiras para vender a
almofada, a fim de arranjar dinheiro para comprar presentes de anos... fechas a
Vigilante no armário para nós nos podermos divertir... tu...
- Ah, não contes mais nenhuma das minhas maldades - implorou
Claudina com veemência. - Um dia tornar-me-ei boa. Sim, certamente ainda
hei-de vir a ser boa se ficar neste esplêndido colégio mais algum período!
- Foste muito simpática em não te teres ofendido com as minhas palavras -
disse Isabel, com muito calor.
- Estou contente por nos teres dito de onde te veio o dinheiro. Desconfio,
depois disto, que a Paulina é quem deve ter roubado a Vigilante. Ultimamente
tem aparecido com tanto dinheiro! Que aborrecimento! Quem me dera que
estas coisas nunca acontecessem! O que havemos de fazer sobre o assunto?
- A Lida e eu vamos contar tudo à miss Theobald
- disse Susana. - Neste momento não podemos sondar a Paulina, porque
ainda não está capaz. Mas miss Theobald deve saber o que pensamos, e a razão
que a isso nos leva. Anda daí, Lida. Vamos arrumar o assunto!
XXI Adelina é uma boa amiga
lida e Susana foram ao quarto da miss Theobald e bateram à porta. Ela
disse-lhes que entrassem. Felizmente estava sozinha. Ergueu os olhos com um
sorriso quando as duas alunas entraram.
- Então o que desejam as meninas do quarto ano?
Espero que se não tenham metido em mais nenhuma trapalhada!
- Não, miss Theobald - disse Susana - mas estamos muito preocupadas por
causa da história do roubo... e temos uma ideia de quem possa ser.
- Então por que não vem ela própria ter comigo - perguntou miss
Theobald, com um ar muito sério.
- Bem... não pode - respondeu Susana -, compreende, pensamos que seja a
Paulina... e como sabe, está na enfermaria, com uma perna partida.
- Paulina! - exclamou miss Theobald, com uma grande surpresa
estampada no rosto. - Não acredito que seja a Paulina. Não é o seu género.
Não... com certeza não pode ser a Paulina.
- Primeiro pensámos que podia ser a Claudina - disse Lida - mas não foi.
- Isso dá-me muito prazer - disse miss Theobald.
- Contudo não acredito que seja a Paulina. Em algumas coisas não é muito
sensata... mas de maneira alguma me parece ser uma menina desonesta.
- Temos mais alguma coisa para dizer à miss Theobald acerca da Paulina,
que mostra que realmente, sob certos aspectos, ela e um bocado estranha e
bastante mentirosa - disse Susana com uma certa gravidade. - Claro que não
estamos aqui com a intenção de fazer queixinhas... mas sabe, e que há certas
coisas que nós não podemos tratar, e por isso aqui viemos.
- Muito bem - concordou miss Theobald, muito grave também. - bom... o
que têm para me dizer sobre a Paulina? A mãe dela está cá, e posso ter uma
conversa com ela sobre Paulina antes da senhora se ir embora.
A Lida e a Susana contaram à miss Theobald das ridículas mentiras e
vaidades da Paulina... de como evitou que a mãe viesse à festa do período,
contando-lhe uma absurda história dum caso de escarlatina... de como fingiu
um grande desapontamento... de como parecia estar sempre cheia de dinheiro,
e afinal a mãe tinha dito à Adelina que Paulina tinha sempre pouco dinheiro
para os seus alfinetes.
- Por isso... - observou Lida - ligando todas estas coisas, e sabendo que a
Paulina é uma terrível mentirosa, pensámos que haveria grandes
probabilidades de ser ela a roubar a senhora Vigilante.
- Compreendo - disse miss Theobald. - Mas geralmente, e isso é muito
curioso, as pessoas que mentem pelos motivos da Paulina, raramente são
desonestas sob outros aspectos. Sabem, a Paulina mente porque deseja
ardentemente ser superior àquilo que é... e é esta a única razão por que mente.
Se ela roubasse, sabia que era um ser desprezível, e que os outros a
desprezariam também. Por isso não roubaria. Mas por outro lado, tendo assim
tanto dinheiro, quando é evidente que a mãe não lhe pode dar muito... é
estranho! E isso leva-me a pensar que talvez ela roube, na verdade.
- É muito estranho - comentou Susana. - Bem, miss Theobald, nós
dissemos-lhe tudo quanto sabemos e pensamos. Todas nós desejaríamos ver
este caso do roubo esclarecido... o quarto ano detesta-o, como pode imaginar... e
estamos muito satisfeitas por deixar o assunto nas suas mãos.
Nisto bateram à porta. Miss Theobald disse: Entre. - Antes de alguém
entrar fez sinal às pequenas de que podiam ir-se embora. - vou tratar de tudo -
prometeu ela. - vou falar com a Paulina, talvez amanhã ou depois, assim que
estiver refeita do choque de ter partido a perna. O médico vai metê-la em gesso,
e depois voltará para as aulas enquanto se cura. É indispensável que eu tenha
este assunto esclarecido antes dela voltar à turma.
Uma criada havia entrado na sala e esperava que miss Theobald acabasse
de falar. Depois disse:
- A mãe da menina Paulina deseja falar com a miss Theobald antes de se ir
embora.
- Diz-lhe que entre - disse miss Theobald.
A senhora entrou. Lida e Susana olharam para ela com curiosidade antes
de se irem embora. Então, aquela pobre, cansada e ralada criatura, tão
modestamente vestida, era a bonita, maravilhosa, lindamente vestida e rica mãe
da Paulina! Como a Paulina era parva!
Assim que a porta se fechou, a mãe da Paulina começou as suas
lamentações.
- Oh! Miss Theobald, estou muito aborrecida com a Paulina. Parece que
não ficou satisfeita por me ver. Desfazia-se a chorar quando lhe disse que tinha
encontrado no caminho algumas das suas colegas, com quem eu tinha falado.
Até me ralhou por a ter vindo ver... que sou uma exagerada... e no fim de contas
é a minha única filha a quem tanto quero!
Miss Theobald olhou para a desanimada senhora e teve pena dela. Estava
sem saber se havia de lhe falar nas estúpidas vaidades da Paulina, e de lhe
explicar que a atitude da Paulina era filha da vergonha que sentia por a vinda
da mãe ao colégio ter posto a descoberto todas as suas mentiras... que se
envergonhava da mãe, que se envergonhava de ter pouco dinheiro, que se
envergonhava de tudo... e que isso a tinha levado a inventar uma nova família e
uma nova casa a seu gosto.
Depois resolveu não dizer nada. Só serviria para magoar e afligir ainda
mais a pobre criatura. Primeiro tinha que ter uma longa conversa com Paulina,
e talvez que ela fosse capaz de a convencer a ser ela própria a tratar do assunto.
Por isso ouviu, e tentou confortar a pobre senhora o melhor que pôde.
- Não se preocupe. Paulina teve um grande choque ao cair daquela
maneira. Não faça caso daquilo que ela diz.
Por fim, a mãe de Paulina foi-se embora, apenas meio confortada,
sentindo-se magoada e intrigada. Miss Theobald suspirou. Surgiam de repente
imensos problemas difíceis de resolver. Em que estado ficaria a mãe de Paulina,
se tivesse que lhe dizer que a filha era ladra e uma estúpida gabarola!
“Amanhã ou depois vou ter uma conversa com a Paulina - pensou miss
Theobald. - Só desejo que a Vigilante não me dê mais maçadas! Na verdade
sempre é uma mulher muito desagradável! “
Mas a Vigilante deu mesmo mais maçadas! Na manhã seguinte entrou
como um furacão nos aposentos de miss Theobald, com outra queixa.
- Desta vez desapareceram-me quarenta escudos! Duas notas de vinte
escudos. Do meu porta-moedas. E eu tinha-o escondido no cesto da costura.
Mas desapareceram assim mesmo. Miss Theobald, essa pequena tem que ser
descoberta e expulsa!
Miss Theobald ouviu, assombrada. Como pode a Paulina ser a ladra, se
estava na enfermaria com uma perna partida? Mas, como a Vigilante
continuava com a sua queixa, depreendeu-se da conversa que o cesto tinha
estado na enfermaria. Tinha-o levado para lá, para coser enquanto esteve ao pé
da Paulina.
Portanto Paulina podia ter tirado as notas do porta-moedas. Outras
pequenas tinham entrado e saído, visto que Paulina tinha tido licença de
receber as companheiras de turma naquele dia. Tudo aquilo era muito
aborrecido. Miss Theobald libertou-se da Vigilante assim que lhe foi possível,
pensando que naquele período o quarto ano lhe estava dando que fazer!
As alunas do quarto ano mantinham-se frias para com a Ângela desde o
dia da discussão. Ângela tinha um ar oprimido e triste, mas ninguém tinha
pena dela, nem mesmo a Adelina. Ao meio-dia e meia hora Adelina viu a
Ângela pôr o chapéu para sair.
- Onde vais? - perguntou-lhe ela. - Sabes que não temos licença de ir à
cidade sozinhas... queres que vá contigo?
- Não! - respondeu Ângela mal-humorada. - Se queres saber o que vou
fazer, digo-to. vou à primeira cabina telefónica dizer à minha mãe as coisas
horríveis que vocês disseram dela, e pedir-lhe que venha buscar-me hoje
mesmo!
- Não faças isso! - aconselhou Adelina, pesarosa.
- Só dissemos aquelas coisas por teres sido tão antipática Para com a pobre
mãe da Paulina.
Mas Ângela tinha tomado aquela resolução, e saiu. Adelina ficou por ali à
espera, muito aflita, sem querer contar às outras. Estava mesmo a ver a mãe da
Ângela chegar no seu Rolls-Bentley, desdenhosa e má, pronta a dizer os
maiores horrores do Colégio de Santa Clara e das suas alunas. Não era um
pensamento agradável.
Logo a seguir, cinco minutos antes da sineta tocar, viu a Ângela que
voltava. Mas uma Ângela infeliz, com os olhos vermelhos de chorar! Adelina
correu ao seu encontro, inesperadamente atraída por aquela Ângela humilde e
infeliz, da qual gostava muito mais do que da Ângela alegre e presumida.
- O que tens? - perguntou ela. Ângela voltou-se para Adelina e começou a
chorar amargamente.
- Oh, Adelina! A minha mãe não estava... foi o meu pai que me atendeu.
Mas em vez de me ouvir e de me confortar, ficou muito zangado. E disse que a
mãe não tinha nenhum direito de falar como falou na festa do período... e que
ele trataria de fazer com que eu não crescesse a pensar que posso dizer aos
outros, coisas que os magoem... e que vem hoje falar com a miss Theobald por
minha causa!
- Oh, Ângela! - exclamou Adelina muito aflita.
- Que horror! Como deve estar zangado! Miss Theobald não vai ficar nada
satisfeita ao saber que telefonaste para casa a queixar-te. Toda a gente se vai
zangar contigo!
- Isso sei eu! - choramingou Ângela. - Não sei o que hei-de fazer. Oh,
Adelina, eu sei que tenho sido idiota. Mas pelo amor de Deus não me
abandones agora. Fui muito parva ontem ao falar da mãe da Paulina. Até me
sinto envergonhada do que disse. Pela tua rica saúde continua a ser minha
amiga!
- Ângela - disse Adelina, com um ar repentinamente sério. - Tenho sido
uma péssima amiga. Tenho-te gabado, adulado, e achado a melhor do mundo,
quando teria sido muito melhor se me tivesse rido sempre de ti, e te arreliasse,
como as outras. Tanto a Roberta como as gémeas teriam feito de ti uma rapariga
muito melhor. Ter-te-iam incutido a sua sensatez. Eu fui muito parva e
estraguei-te.
- Deixa lá, não faz mal, continua a ser minha amiga - implorava Ângela,
que sentia agora, que as coisas se apresentavam negras, que precisava de ter
alguém que a estimasse. - Peço-te que sejas minha amiga, Adelina.
Prometo que vou procurar ser mais simpática, juro que prometo. Mas o
que vou eu dizer ao meu pai quando ele cá vier esta tarde? Tenho tanto medo
dele quando se zanga de verdade!
- Escuta, Ângela. Logo a seguir ao almoço, voltaremos à cabina telefónica.
Fala com o teu pai, diz-lhe que estiveste a pensar melhor, e que chegaste à
conclusão de que tens sido uma idiota, mas que gostarias que ele te desse outra
oportunidade. Depois eu dir-lhe-ei duas palavrinhas, e talvez que entre as duas
consigamos que ele desista de vir.
- Oh, Adelina, tu és uma jóia! - disse Ângela, enxugando os olhos e
fungando. - O meu pai gostou de ti. Vai dar ouvidos às tuas palavras. Muito e
muito obrigada pelo teu auxílio.
A sineta do almoço há muito que havia tocado. As duas pequenas
chegaram atrasadas. Miss Ellis, olhando para os olhos inchados da Ângela,
limitou-se a dizer meia dúzia de palavras ásperas, e calou-se.
Logo em seguida ao almoço dirigiram-se as duas para a cabina telefónica.
Ângela falou com o pai, que continuava aborrecido, e fez-lhe o seu pequeno
discurso.
- Tenho sido uma idiota. Agora é que eu vejo. Não venha, paizinho. vou
procurar portar-me melhor. Está aqui a minha amiga Adelina para lhe falar.
Passou o auscultador à Adelina que, um tanto nervosa, iniciou o pequeno
discurso que havia preparado. - Muito boa tarde! Aqui fala Adelina, a amiga da
Ângela. Ela agora está calma. Primeiro estava abatida e um bocado parva. Mas
tenho a certeza de que para o futuro vai ser uma boa rapariga. Por isso parece-
me que não tem necessidade de deixar o seu trabalho para vir ao colégio.
- Oh! - respondeu o pai da Ângela numa voz aborrecida. - Bem, como
estou muito ocupado, não vou hoje. Mas ao primeiro disparate da Ângela vou
imediatamente e faço um grande barulho. Meti a Ângela no Colégio de Santa
Clara por ser o melhor que conheço.
Aí permanecerá até ela própria achar que é o melhor colégio que ela
conhece. Se realmente é amiga dela, ajude-a a compreender isso. Eu sei que a
menina já aí está há muito tempo.
- Sim, já cá estou há muito tempo - confirmou Adelina com entusiasmo - e
é na verdade o melhor colégio do reino inteiro! Farei ver isso à Ângela, garanto
que faço, e as minhas colegas farão o mesmo.
- Não a estraguem - implorou a distante voz, que já não parecia tão
aborrecida. - Sacudam-na um bocado! Ela pode parecer uma princesinha loura,
ou mesmo um anjo, mas por dentro não é nada disso. Diga-lhe para voltar ao
telefone.
Ângela pegou no auscultador. O que ouviu deu-lhe um certo conforto.
- Obrigada, paizinho. vou tentar. Palavra de honra que vou. Adeus.
Pousou o auscultador, com um ar muito mais feliz.
- O meu pai disse-me que embora esteja ainda muito zangado comigo,
será sempre meu amigo. E disse que se eu gostasse dele, procuraria ser como
ele quer que eu seja. Portanto, agora vou fazer por isso. Obrigada, Adelina, pelo
teu conselho.
Apertou o braço da amiga. Adelina deu o braço à Ângela, e voltaram para
o colégio. Adelina falava severamente consigo própria, enquanto caminhavam.
“Não voltes a dizer à Ângela que é bonita! Nunca mais a lisonjeies! Nunca
mais lhe digas que parece um anjo! Não serve de nada parecer um anjo quando
por dentro se é exactamente o contrário. Arrelia-a, e ri-te dela, e ralha-lhe,
aponta-lhe os defeitos... é isso que tens que fazer se queres ser uma verdadeira
amiga da Ângela”.
E, com espanto da turma inteira, entre as duas amigas os papéis estavam
totalmente invertidos! Ângela era agora a dócil, aceitando uma crítica
arreliadora, e Adelina era quem mandava!
- É bom para as duas! - observou Roberta, sorrindo-se. - Ângela tornará a
Adelina uma rapariga muito mais simpática, e acabará por dar-lhe uma
sensatez muito apreciável!
XXII A Vigilante tem um choque
- Não sei se a miss Theobald já teve alguma conversa com a Paulina por
ela tirar o dinheiro e as outras coisas à Vigilante - disse Lida à Susana depois do
chá, naquele dia.
Helena ergueu os olhos, assarapantada. Não estivera ali no dia anterior
quando o assunto tinha sido discutido, e a Lida mais a Susana haviam ido falar
com a miss Theobald. Durante esse tempo estivera a ser continuamente
interrogada pela mãe, que tentava descobrir o que as alunas do quarto ano
haviam feito na noite do dia dos anos da Marília. Porém, Helena tinha mantido
a sua palavra, e não dissera nada.
- Paulina a tirar dinheiro à minha mãe - perguntou Helena, espantada. -
Mas o que é isso? Não ouvi dizer nada.
- Não ouviste? - perguntou Joana surpreendida. -Ah, pois não! Estavas
com a tua mãe quando ontem se discutiu esse assunto, e hoje ainda não tivemos
tempo de falar sobre isso. Também não há muito que dizer, na verdade, senão
que todas nós pensamos que foi a Paulina que tirou essas coisas à tua mãe.
Todas nós sabemos agora que os pais dela a têm aqui no colégio com
dificuldade, e que POUCO dinheiro lhe dão para os seus alfinetes... por isso...
como ultimamente tem gasto dinheiro a rodo, ficámos com a certeza que a ladra
era ela. É tão mentirosa, que Pode ir um pouco mais longe e ser ladra também!
- E a miss Theobald vai falar com ela sobre isso - informou Susana. - A
Lida e eu fomos contar tudo à miss Theobald. Tenho pena que a Paulina tenha
partido a perna... mas se na verdade é tão ladra como mentirosa, acho que é um
castigo merecido.
Helena ficou-se a olhar para as companheiras que estavam a conversar.
Roberta achou-lhe um ar um bocado estranho.
- Sentes-te bem? - perguntou-lhe. - Tens uma cara a modos que esquisita!
- Claro que estou bem - respondeu Helena. Levantou-se e foi-se embora.
com grande espanto das outras, viram-na um minuto mais tarde correndo
caminho abaixo a toda a velocidade.
- O que se passa com a Helena - inquiriu Lida, intrigada. - Ter-se-ia
esquecido que temos trabalhos para fazer esta noite?
Na verdade assim parecia. Não veio para a aula de estudo, e miss Ellis
mandou à Vigilante indagar se, por qualquer razão, conservava a Helena junto
dela. A Vigilante chegou à sala de estudo, muito mal disposta.
- Não faço ideia nenhuma onde esteja a Helena - afirmou ela. - Espero que
a castigue, miss Ellis. Ultimamente tem-se tornado obstinada e desobediente.
Helena nem sequer apareceu ao jantar, e já as outras se estavam a despir
quando a viram. Dora foi à janela do dormitório e viu a Helena a subir um dos
caminhos do colégio. Vinha mais alguém com ela.
- É o Eddie! - disse Adelina. - Santo Deus! Em que sarilhos se meteu! Deve
ter saído a correr para se encontrar com o irmão, e agora ele resolveu vir com
ela.
Helena parecia nervosa e lacrimosa. Eddie parecia estar no mesmo estado.
Entraram no colégio. Em vez de irem direitos aos aposentos da mãe, foram
direitos aos da miss Theobald.
- Anima-te! - murmurou o irmão. -Eu estou aqui! Olharei por ti, Helena.
Entraram os dois no quarto de miss Theobald. A Directora ficou
surpreendida ao ver Helena com um rapaz. Helena disse-lhe quem era o Eddie.
- É o meu irmão Edgar - apresentou ela, depois foi-se abaixo, e desatou a
soluçar tão amargamente que até fazia dó.
Miss Theobald estava impressionada. Eddie deitou um braço protector à
roda da irmã.
- Não chores - disse ele. - Eu conto tudo. - Depois voltou-se para miss
Theobald.
- Hoje a Helena ouviu dizer que uma outra rapariga, Paulina, ia ser
acusada de roubar a Vigilante, nossa mãe. Pois bem... era a Helena quem
roubava o dinheiro e as outras coisas, e não a Paulina nem mais ninguém!
- Mas por quê? O que a levava a fazer uma coisa tão extraordinária? -
perguntou miss Theobald, pensando que nos últimos dias as surpresas eram
enfiadas umas nas outras.
- Era por minha causa - explicou Eddie. - Eu tinha arranjado um emprego
numa empresa de trabalhos de engenharia no começo deste período, e a minha
mãe ficou muito contente. Porém não estive lá muito tempo, porque tive um
acidente com um carro e fui despedido. Eu... não me atrevia a dizer à minha
mãe, miss Theobald.
Miss Theobald olhou para a pálida e magra face do rapaz que estava na
sua frente, e não se surpreendeu que temesse o mau génio e a terrível língua da
mãe. A descompostura que lhe pregaria, e as tremendas coisas que lhe diria, se
soubesse que tinha falhado no seu emprego!
- Então - continuou Eddie, engolindo em seco, e conservando o braço à
roda da irmã -, então pensei que talvez conseguisse arranjar outro emprego
relativamente depressa, e depois só era preciso dizer à mãe que tinha mudado
de emprego. Mas, compreende, eu não tinha dinheiro, e tinha que pagar o
quarto e a comida... e assim um dia consegui vir até aqui, sem conhecimento da
minha mãe, e falei com a Helena, pedindo-lhe que me desse o dinheiro que
pudesse.
- Estou a perceber - disse miss Theobald, muito grave - e a Helena roubava
à mãe para lhe dar a si.
- Eu não sabia que a Helena tirava o dinheiro à mãe. Pensava que era
dela... dos seus alfinetes, ou da Caixa Económica dos Correios. Eu sabia que ela
tinha algum dinheiro ali. E também me levava bolachas, e papel e selos para eu
responder aos anúncios. Ela tem sido... tem sido uma jóia para comigo, miss
Theobald.
- Oh, Eddie tu bem sabes que eu tudo faria por ti - soluçava Helena. - Mas,
miss Theobald, quando soube que a Paulina ia ser acusada daquilo que eu tinha
feito... então saí a correr para ir ter com o Eddie e contar-lhe tudo. E ele veio
comigo para lhe contarmos o que se passava. Oh, miss Theobald, nós não nos
atrevemos a dizer à mãe!
- Que trapalhada! - exclamou miss Theobald, olhando para as duas caras
infelizes e assustadas na sua frente.
Intimamente não podia deixar de culpar a Vigilante por tudo aquilo. Se
tivesse sido uma mãe boa e adorável, ajudando os filhos em vez de esperar
deles mais do que é natural, nunca tal teria acontecido. Teriam corrido para ela
para que os confortasse e os ajudasse, em vez de lhe esconderem aquilo que os
afligia, e de a roubarem, só porque tinham medo dela.
- Sabe - desculpou-se Helena, enxugando os olhos
- Como a minha mãe também é mãe do Eddie, na verdade não pensei que
era mal tirar-lhe dinheiro e outras coisas a ela para o ajudar a ele.
- Compreendo - disse miss Theobald - mas assim mesmo é mal feito.
Helena, estou muito satisfeita por teres tido a coragem e compreenderes que
não podias deixar culpar outra menina por um mal que tinhas praticado. Isso é
uma coisa muito importante a teu favor.
Houve uma pausa. Então Eddie falou, embora muito nervoso.
- Miss Theobald... acha que pode falar com a mãe, em nosso nome? Peço-
lhe por tudo que o faça. Não se zangará tanto connosco se a miss Theobald lhe
falar primeiro.
Miss Theobald ficou um bocado pensativa, mas disse:
- Está bem, eu falo com ela. Vocês podem esperar nessa sala ao lado até eu
lhe ter falado.
Eddie e Helena retiraram-se para a sala do lado, tristes e assustados. Miss
Theobald tocou a campainha e disse à criada para pedir à Vigilante para lhe vir
falar.
A Vigilante apareceu pouco depois, muito direita no seu uniforme, com o
seu avental engomado.
- Sente-se, senhora Vigilante - disse miss Theobald.
- Descobri quem lhe tirou o dinheiro, e queria falar-lhe sobre o assunto.
- Espero que expulse essa menina - disse a Vigilante num tom severo. - No
fim de contas, miss Theobald, eu tenho aqui uma filha no quarto ano. Não é lá
muito bom exemplo para ela, ter uma ladra que vive a seu lado!
- Bem, senhora Vigilante - respondeu miss Theobald - tomei a resolução de
não ser eu a decidir se essa menina será ou não expulsa. A senhora é que vai
decidir, e mais ninguém.
Os olhos da Vigilante brilharam.
- Muito obrigada. Pode considerar a minha resolução tomada. A menina
vai-se embora, e vai-se embora amanhã!
- Muito bem - concordou miss Theobald. - Agora ouça a minha história,
por favor. A pequena não roubava para ela, mas para alguém a quem ela muito
queria, e que estava em grandes dificuldades.
- Roubar é sempre roubar - disse a Vigilante numa voz de quem se sente
cheia de direitos.
- Ela teve medo de pedir à mãe para a ajudar, e até teve medo de lhe pedir
conselho - continuou miss Theobald.
- Então a mãe é tão culpada como a filha - comentou a Vigilante. - As mães
cujos filhos roubam porque têm medo delas, estão muito longe de serem boas
mães.
- Estou plenamente de acordo - disse miss Theobald.
- No entanto essa menina teve a coragem de me vir contar, e de me pedir
para lho dizer.
- Onde está a ladra - perguntou a Vigilante ferozmente. - Tenho meia
dúzia de palavras para lhe dizer, é o que lhe garanto! E amanhã vai-se embora.
Miss Theobald levantou-se e abriu a porta que ligava a sua sala com o
escritório.
- A ladra está aqui com o irmão.
A Vigilante entrou com firmeza no escritório, pronta a atirar-se à ladra.
Encontrou ali os seus dois filhos, Helena e Eddie. Ambos olhavam para ela
nervosamente.
- O que é isto? - exclamou a Vigilante numa voz sumida. - Por que está
aqui a Helena e o Eddie?
- Helena é a ladra, senhora Vigilante... e Eddie é aquele para quem ela
roubava... e a senhora é a mãe dura que ambos demasiado temiam para lhe
pedirem conselho e ajuda - disse miss Theobald com uma voz grave e séria. - E
penso que, conhecendo a senhora como conheço, não é Helena que deve deixar
o Colégio de Santa Clara, mas sim a senhora!
O rosto da Vigilante envelheceu como que de repente, e os seus lábios
começaram a tremer. Ficou-se a olhar para Helena e para o Eddie, de olhos
esgazeados, como quem não acredita. Helena chorava novamente.
- A senhora é uma mãe dura e má - continuou miss Theobald em tom
solene. - Os seus filhos precisam de conforto, mas é coisa que a senhora nunca
saberá dar-lhes!
- Já arranjei outro emprego, mãe, arranjei-o hoje! - disse Eddie. - Eu
pagarei todos os tostões que a Helena lhe tirou. Não ralhe com ela. Ela fez isso
porque me quer muito. Em breve ganharei o suficiente para que ela possa viver
comigo e tomar conta da casa. Depois não terá que se incomodar por nossa
causa. Nós sempre lhe demos desapontamentos. Por mais que fizéssemos nunca
éramos suficientemente espertos ou dotados. Mas eu agora tomarei a Helena à
minha conta.
- Oh, Eddie, pelo amor de Deus não fales assim! - dizia a mãe numa voz
sufocada. - O que é que eu fiz? Oh, o que fiz eu para merecer um castigo destes?
Miss Theobald fechou a porta. Deviam resolver as coisas sozinhos. A
Vigilante é que tinha feito a cama onde agora se deitaria. Aquelas duas crianças
recompor-se-iam do choque que acabavam de sofrer, porque se estimavam
mutuamente, e estariam sempre ao lado um do outro. Não tinham grande força
de vontade nem um carácter muito atraente... mas a estima que tinham um pelo
outro lhes daria força e coragem.
Miss Theobald pegou no telefone. Ligou para a antiga Vigilante, que
estava quase restabelecida da sua doença.
- É a senhora Vigilante - perguntou miss Theobald. - pode voltar amanhã?
Fará apenas aquilo que puder... mas não podemos dispensá-la por mais tempo!
Sim... tenho o pressentimento de que a actual Vigilante se irá embora amanhã.
Óptimo! Teremos o maior prazer em vê-la de volta!
XXIII Finalmente tudo em ordem
E agora mais uma coisa era ainda preciso fazer. Era preciso falar com a
Paulina e tratar também do seu caso. No dia seguinte, Paulina ficou muito
admirada ao ver entrar miss Theobald na enfermaria muito mais séria do que
de costume.
Era a segunda surpresa que Paulina tinha naquele dia. A primeira fora
quando uma Vigilante completamente diferente tinha aparecido, gorda, alegre e
cintilante. Paulina olhou para ela com espanto, encantada por não ver a outra
Vigilante.
- Olá! - exclamou a nova Vigilante - com que então partiste uma perna!
Muita falta de cuidado. Agora não te ponhas a partir pernas todos os dias!
Ouviste?
- Onde está a outra Vigilante? - perguntou Paulina.
- Teve que se ir embora inesperadamente - respondeu a Vigilante,
endireitando-lhe a roupa da cama. - Por isso tive que voltar. E quero prevenir-te
de que sou uma autêntica Leoa Velha! Estou aqui há anos sem conto, tenho
provavelmente cem anos de idade, e ralhei tanto à maior parte das mães das
alunas que aqui estão como as próprias alunas!
- Ah, então é a antiga Vigilante, de que as minhas colegas tanto me têm
falado - disse Paulina toda contente.
- Que bom! Por que é que a outra Vigilante se foi embora assim tão de
repente? A Helena foi-se embora também?
- Foi - respondeu a Vigilante. - Tiveram ambas de abandonar o colégio
repentinamente, mas isso não é da nossa conta. Olha lá, que tal achas essas
almofadas?
Ainda Paulina não estava refeita do espanto em que ficara ao ver uma
nova Vigilante, quando miss Theobald entrou. Como era seu hábito, miss
Theobald foi direita ao assunto, sem rodeios, e em breve a horrorizada Paulina
percebeu que tanto a miss Theobald como todas as suas colegas sabiam quão
estúpida, mentirosa e gabarola ela tinha sido!
Sentiu-se uma desgraçada e tapou a cara com as mãos, cheia de vergonha.
Miss Theobald continuou, implacável, e acabou por lhe contar do desgosto e
espanto que ela causara à mãe.
- Veio a pobre senhora a correr, para te ver, chegou estafada, pois veio a pé
da estação para aqui por não ter dinheiro para tomar um táxi, e tu sabes muito
bem que triste recepção lhe fizeste!
Paulina virou a cara para a parede e uma lágrima lhe escorreu pelo rosto.
- E há mais uma coisa ainda - continuou miss Theobald ao lembrar-se de
repente. - Alguém roubava dinheiro... e como tu parecias ter muito, e as
pequenas ouviram dizer esta semana que tu pouco dinheiro tinhas para os teus
alfinetes, foste apontada como a provável ladra! Imagina pois, Paulina, a que
enormes e terríveis suspeitas um presumido e mentiroso nos pode levar!
- Oh, nunca roubei a mais pequena coisa na minha vida! - exclamou
Paulina. - Tinha algum dinheiro na minha caderneta dos Correios... e trouxe-a
comigo sem conhecimento da minha mãe... e quando precisava de dinheiro
levantava-o. E por isso é que eu tinha muito dinheiro para gastar, miss
Theobald. Peço-lhe que me acredite.
- Acredito sim, mas vais dar-me a tua caderneta e não voltarás a levantar
dinheiro algum sem licença da tua mãe. E se continuares aqui no Colégio de
Santa Clara, terás de fazer o que fazem as outras meninas que têm muito pouco
dinheiro... confessá-lo com toda a honestidade! Ninguém se importa. Nunca
devemos julgar as pessoas pelo dinheiro que têm ou pelos haveres que
possuem, mas por aquilo que são. Tens que aprender isto, Paulina, ou então
nunca conhecerás a verdadeira felicidade.
- Sou uma desgraçada! - murmurou Paulina na ânsia de ouvir uma
palavra amiga. - Não sei... não sei como hei-de enfrentar as minhas
companheiras depois disto!
- Diz à Lida, à Susana ou às gémeas que tens sido uma parva - aconselhou
miss Theobald, levantando-se.
- Todas elas lamentam que tenhas partido a perna, e penso que farão com
que sejas bem tratada... mas agora, Paulina, terás que ganhar a sua bondade e
amizade... não procurar comprá-las com histórias de riquezas e grandes
haveres! Ganha a sua amizade sendo sincera, natural e boa. Quanto a sentires-te
desgraçada... é uma parte do castigo de que só tu és responsável, não é
verdade? E terás que o suportar o mais valentemente que puderes!
Miss Theobald voltou-se para se ir embora. Sorriu para Paulina, um
sorriso mais doce do que as suas palavras, e a pequena sentiu-se um pouco
confortada.
Seguiu o conselho de miss Theobald, e confiou na Lida quando a veio
visitar. Lida dizia o que tinha a dizer sem rodeios, mas gostava de ajudar os
outros.
- És uma terrível idiota, és parva de todo! E só te ajudo, e faço com que as
outras sejam simpáticas contigo, numa condição, Paulina.
- Que condição?
- De escreveres à tua mãe dizendo que estás muito arrependida de a teres
tratado tão mal quando te veio ver, e prometer-lhe que a tratarás com toda a
ternura quando cá voltar - intimou Lida. - Não vou fazer com que as outras te
perdoem, sem que tu sejas a primeira a fazer alguma coisa por isso! E fica
sabendo, minha menina, que não voltas a gabar-te seja do que for, ou connosco
terás de te haver!
E com este conselho se retirou a Lida, para contar às outras que a Paulina
começava finalmente a ter juízo. E como tinha partido a perna e se sentia muito
infeliz, o que é que elas achavam que o colégio ia ser quando voltasse da
enfermaria.
- Bem... sem a Helena, com a rápida modificação da Ângela, a Paulina a
ficar sensata e a Vigilante desaparecida para sempre... parece que vai ser um
céu aberto! - comentou Roberta com um dos seus sorrisos.
- Só falta a Claudina entrar na posse do sentido da honra inglesa - disse
Patrícia. - Nessa altura a nossa turma será na verdade formada de santas!
Na semana seguinte, Adelina recebeu uma carta de Helena, que leu a
todas as companheiras.
Querida Adelina:
Não sei se já lhes disseram, mas a ladra era eu. Vocês
compreendem, o Eddie tinha perdido o emprego (agora arranjou outro
muito bom) e não tinha dinheiro algum, e por isso pediu-me para o
ajudar, o que eu fiz. Mas eu também não tinha muito dinheiro, por isso
tirava o da mãe, bem como outras coisas.
Foi um grande choque para a minha mãe, que não podia suportar
a ideia de ficar no Colégio de Santa Clara nem mais um dia. Por isso
fizemos as malas e viemos embora. Miss Theobald foi extraordinaria-
mente simpática tanto para comigo como para com o Eddie. Nem eu te
sei dizer como foi boa! Até se ofereceu para me conservar no Colégio de
Santa Clara quando a minha mãe saiu. Mas eu não tinha cara para
aparecer diante de vocês, e de qualquer modo sinto que esse colégio
não é para mim. Sei perfeitamente que não é.
E assim vou aprender dactilografia e estenografia, e depois
arranjarei um emprego no escritório onde trabalha o meu irmão, e
estaremos juntos. A minha mãe está muito diferente. Deve ter sido para
ela um grande choque ao verificar como fui desonesta... mas foi por
causa do Eddie, e não pude evitá-lo. Tem sido mais simpática e mais
meiga. Se a vissem agora, dificilmente a reconheceriam! Eu e o Eddie
pensamos que quando ambos estivermos a ganhar, a mãe não precisará
de trabalhar, poderá então descansar, e talvez se sinta mais feliz.
Achei que era melhor contar-vos o que aconteceu, porque parti tão
de repente! Deixei ficar o meu dedal de prata na caixa da costura do
colégio, na que está no armário do quarto ano. Queres ficar com ele
para ti, como gratidão por me teres levado a jantar fora, no dia da festa
do período, visto que é uma atenção que nunca te poderei pagar?
Espero que a perna da Paulina esteja melhor. Adelina, peço-te
para não pensares só mal de mim. Eu sei que era coscuvilheira, mas
vocês não podem imaginar as dificuldades por que eu às vezes passava!
Tua muito grata.
Helena Paterson
Ficaram todas comovidas com esta carta. Adelina procurou logo o dedal e
disse que o usaria sempre e que não pensaria muito mal da Helena.
- Era mais por culpa da mãe que era tão coscuvilheira e parva - disse
Roberta. - Meu Deus! Muita sorte temos nós de termos umas mães tão boas!
Ângela corou ao ouvir esta observação, mas não disse nada. Ultimamente
estava tão simpática... e tinha resolvido que quando fosse para casa, nas férias,
havia de gabar o Colégio de Santa Clara, noite e dia, e não consentiria que a
mãe dissesse uma única palavra contra ele! As mães podem fazer maus ou bons
filhos... “mas - pensava Ângela - talvez que os filhos também possam por vezes
modificar as mães”. Estava disposta a fazer uma grande tentativa para procurar
modificar o feitio da mãe sob vários aspectos. Miss Theobald teria ficado
encantada se tivesse tido conhecimento dos pensamentos que atravessavam a
loura cabeça da Ângela durante aqueles dias.
- As férias estão à porta - disse Patrícia à Isabel. - Tem sido um período
agitado... não estás contente com o regresso da velha Vigilante? Olha lá,
Roberta, não arranjas uma partidinha para rematar o período? Fala com a Joana
e tratem disso.
- Acho que sim - riu-se Roberta com o seu ar bem disposto e a sua cara
queimada e com mais sardas do que de costume.
- Podíamos pôr uma rã na carteira da Claudina, ou encher-lhe a caixa dos
lápis de bichas-cadelas - sugeriu Joana com uma olhadela marota à horrorizada
Claudina.
- Se fizerem tal coisa, meto-me no comboio e no barco e fujo para França a
correr! - declarou Claudina.
- Era capaz disso - comentou Joana. - E então talvez seja melhor não se
fazer nada à Claudina. Era uma pena se voltasse para França sem ter tido tempo
de conseguir aquele “sentido de honra” de que está sempre a falar!
Claudina atirou uma almofada à cabeça de Joana, que bateu no cesto do
trabalho da Dora. Dora deu um salto e atirou um monte de roupa à cabeça da
Claudina. A roupa espalhou-se por cima da Marília, que vinha a entrar na sala
naquele momento. As pequenas rebentavam a rir ao ver a Marília parar,
surpreendida, com a bata duma qualquer em cima da cabeça!
Num instante se travou uma batalha com gritos e risinhos. Viram-se
braços, pernas e cabeças em todas as direcções. Nisto abriu-se a porta e Miss
Theobald entrou com uma visita.
- E esta - informou ela - é a sala das alunas do quarto ano. Meninas,
meninas, o que estão a fazer? Como se portarão as meninas quando estiverem
no sexto ano, se agora se comportam como se estivessem na classe infantil!
Como se portarão elas? Suponho que o seu comportamento não será muito
diferente. Depois se verá.
Fim
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups.google.com/group/digitalsource