Emily rodda deltora quest 7 - o vale dos perdidos
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DELTORA É UMA TERRA DE MONSTROS E MAGIA...
Lief, Barda e Jasmine estão à procura das sete pedras perdidas do mágico
Cinturão de Deltora e estão perto de atingir a sua meta. Seis pedras brilham agora
no Cinturão, e a última deve ser encontrada para que Deltora possa ser libertada da
tirania do perverso Senhor das Sombras.
Os companheiros enfrentaram vários terrores com força e coragem. Agora
estão prestes a conhecer os sombrios mistérios que não podem ser derrotados
somente com força e coragem. Se falharem, a sua busca estará perdida, e eles
ficarão aprisionados para sempre na atordoante névoa do Vale dos Perdidos.
SUMÁRIO Terrores na noite
Companhia
À deriva
Silêncio
O segredo de Tora
Os recém-chegados
Uma guerra de vontades
Caminhos separados
O Vale dos Perdidos
O palácio
O jogo
A procura
Faíscas brilhantes
O nome
O porta-jóias
Respostas
ATÉ AGORA...
Lief, Barda e Jasmine partiram em uma grande busca pelas sete pedras
preciosas do mágico Cinturão de Deltora. Escondidas em locais assustadores por
todo o reino, elas devem ser recolocadas no Cinturão para que o legítimo herdeiro
do trono possa ser encontrado e a tirania do Senhor das Sombras, derrotada.
Seis pedras já foram encontradas. O topázio, símbolo da lealdade, que tem
o poder de contatar o mundo espiritual e de aclarar e estimular a mente; o rubi,
símbolo da felicidade, cuja cor perde a intensidade na presença de ameaças, repele
espíritos malignos e é um antídoto para venenos; a opala, pedra da esperança, que
oferece vagas imagens do futuro; o lápis-lazúli, pedra celestial, que é um poderoso
talismã; a esmeralda, símbolo da honra, perde o brilho na presença do mal; a
ametista, símbolo da verdade, acalma e tranqüiliza.
Os companheiros descobriram um movimento secreto de resistência
chefiado pelo misterioso Perdição. Outro membro da resistência, Dain, um jovem
com a mesma idade de Lief, foi seqüestrado por piratas, e os pais de Lief foram
aprisionados.
Sempre receosos dos Guardas Cinzentos que servem ao Senhor das
Sombras e dos terríveis Ols, capazes de mudar de forma e aparência, os amigos
precisam agora cruzar o rio Tor e partir para a sua última meta, o Vale dos Perdidos,
onde se encontra a última pedra, o grande diamante.
E, agora, continue a leitura...
Estava escuro e muito silencioso. Lief, barda e Jasmine deslizavam pela
noite como sombras ao lado do Rio Tor, que também carregava os seus segredos.
Por motivos de segurança, eles decidiram não viajar de dia, mas a noite
também encerrava seus perigos, pois a Lua encontrava-se oculta atrás das nuvens,
e eles não ousavam acender uma tocha para iluminar o caminho. Da mesma forma
que a escuridão lhes servia de esconderijo, ela também ocultava o inimigo à
espreita.
E não era só isso que ela escondia, mas também buracos, pedras e valas,
árvores, arbustos e pontos de referência. A cada passo que davam, iam rumo ao
desconhecido.
Os companheiros sabiam que não muito distante dali havia uma ponte e,
quando a atingissem, poderiam finalmente cruzar o rio que lhes causara tanto
sofrimento. E, então, poderiam começar a jornada na direção do Vale dos Perdidos,
onde se encontrava o grande diamante, a sétima pedra do Cinturão de Deltora.
Contudo, seria extremamente fácil passar pela ponte sem notá-la, de modo
que, por mais que detestassem até mesmo pensar no rio Tor, eles o
acompanhavam de perto, certos de que aquelas águas escuras acabariam por
levá-los ao seu destino.
Lief agarrava o Cinturão de Deltora oculto sob as roupas com uma das
mãos. Mas o Cinturão, apesar de todo o seu poder, não podia ajudá-lo enquanto ele
se esforçava para tentar enxergar na escuridão que cercava os amigos.
— Já estamos perto — Jasmine sussurrou de repente.
Lief percebeu uma certa palidez quando ela virou o rosto em sua direção.
Filli, encolhido em seu casaco, emitiu um vago som sonolento. Kree encontrava-se
em silêncio e invisível no ombro dela, as penas pretas ocultas pela escuridão.
— Você consegue vê-la? — Barda indagou.
— Não, mas sinto o cheiro de pessoas e animais, e a ponte fica logo depois
de uma vila, lembra?
O grupo seguiu adiante, esgueirando-se até chegar a um trecho de terreno
sem vegetação. Lief teve a impressão de ver um muro escuro erguendo-se à
esquerda.
Talvez houvesse habitantes armados do vilarejo atrás dele, em vigília,
atentos a sinais de perigo. Talvez fosse esse o motivo pelo qual a vila ainda não
tivesse sido destruída, apesar dos piratas que navegavam nas águas do Tor e dos
bandidos que rondavam as suas margens.
Se ouvissem algum ruído, os guardas iriam averiguar. Atacariam de
imediato, sem pena. Eles tinham aprendido com as tristes experiências
testemunhadas ao longo do rio e sabiam que hesitar representava arriscar-se a
perder tudo.
Os amigos prosseguiram andando com cuidado, contendo a respiração.
Mal o grupo atingiu a segurança de um bosque além do muro, as nuvens que
cobriam a Lua se espalharam e o chão foi inundado pela luz.
— Tivemos sorte — Jasmine comentou, prendendo a respiração. — Se
isso tivesse acontecido somente alguns minutos antes...
Barda tocou o braço de Lief e apontou para a frente. Por entre as árvores,
ele pôde ver a ponte. Ela estava muito perto e parecia tranqüila sob o luar. Um
pequeno rebanho de cabras de pêlo longo amontoava-se ao seu redor, algumas em
pé, outras repousando na grama.
A ponte era sólida e larga o bastante para permitir a passagem de carroças.
A seu lado, havia uma grande placa com dizeres um pouco apagados, o que, porém,
não impediu Lief de distinguir as palavras.
PONTE DO REI
Atravesse aqui para:
Tora
Onde as águas se Encontram
Rio Largo
O coração de Lief bateu mais forte. Tora! A grande cidade do Oeste,
profundamente leal aos reis e rainhas de Deltora. O local ideal para esconder o
herdeiro do trono.
Tora devia estar próxima, mas não havia nenhuma placa que indicasse a
presença de uma cidade quando acompanharam o rio em direção à costa, apenas
alguns dias antes. Na época, Lief não deu importância ao fato, pois tinha muitas
outras coisas com que se preocupar. Agora, porém, aquilo lhe parecia muito
estranho, pois certamente, segundo o nome indicava, Tora encontrava-se às
margens do rio Tor.
— Tora deve estar é bem longe do rio — Barda comentou, mostrando que
pensava no mesmo assunto. — Mas é estranho que nem ao menos a tenhamos
visto a distância.
Lief assentiu, ainda refletindo sobre o mistério.
— Talvez tenhamos passado por ela à noite, quando todas as luzes
estavam apagadas. De qualquer forma, ainda podemos visitá-la quando estivermos
a caminho do Vale dos Perdidos.
— Para falar a verdade, seria prudente não fazermos isso, pelo menos até
que o Cinturão esteja completo — Jasmine murmurou. — Dain foi advertido...
Ela se interrompeu, mordeu o lábio, e Lief e Barda também ficaram em
silêncio. Lembranças do garoto que tinham visto pela última vez amarrado e
indefeso na caverna dos piratas invadiram a mente de todos.
Dain desejara ir a Tora. Agora ele nunca a veria. Naquele momento, os
piratas certamente estavam navegando rio acima com ele. Em mais alguns dias,
ele seria entregue aos Guardas Cinzentos. Embora Lief, Barda e Jasmine
soubessem que não podiam salvá-lo, o seu olhar triste e assustado os perseguia.
O rapaz faria de tudo para escapar, mas que esperança ele teria contra
uma gangue de rufiões armados, ávidos pelo ouro do Senhor das Sombras?
Jasmine sacudiu a cabeça como se quisesse afastar os pensamentos
indesejáveis e voltou a atenção às cabras perto da ponte.
— Vamos ter que andar mais devagar para não assustar os animais — ela
disse. — Se elas fizerem qualquer som, estaremos perdidos.
— Acho que elas estão acostumadas com as pessoas — disse Lief,
observando as cabras, os pequenos chifres brilhantes, o pêlo longo e macio. — Mas
devemos deixar que nos vejam agora que a Lua está brilhando. Se aparecermos
diante delas no escuro, elas irão se assustar.
Ele deu um passo para a frente e parou abruptamente, os olhos
arregalados. Havia algo de errado com uma das cabras! O corpo dela parecia se
agitar e se encrespar como uma vela ao vento.
Lief piscou depressa. Que peça o luar estava lhe pregando? Ele olhou
novamente, e o animal estava exatamente como antes. No entanto, ele sentiu
Barda agarrar-lhe o braço e viu outra cabra se agitando e mudando: a cabeça se
esticando para cima, o corpo estremecendo para depois retomar a forma anterior. E
então ele soube. Acabara de ver o que Dain chamara de o Tremor.
— Ols! — ele sussurrou. — Elas não são cabras, mas Ols! — um frio
percorreu-lhe a espinha ao se dar conta do quanto haviam estado perto de se
misturar ao rebanho e encontrar a morte sem de nada desconfiar.
— Eles estão vigiando a ponte — Barda cerrou os dentes frustrado.
— O que vamos fazer?
— Um de nós terá de atraí-los para longe para que os outros dois consigam
passar — Jasmine sugeriu. — Eu vou...
— Eles são muitos, e o seu truque não vai funcionar, Jasmine. — Barda
discordou com veemência. — Alguns a seguirão, outros ficarão. E, pensando bem,
havia muitos pássaros aquáticos empoleirados do outro lado da ponte quando
passei a caminho da costa. Mais Ols, com certeza, embora eu não tivesse
percebido isso na época. E tenho certeza de que eles ainda vão estar lá.
— Então, precisamos continuar — Lief murmurou. — Dar a volta na ponte
para que eles não nos vejam e encontrar outro modo de atravessar o rio, mais
adiante.
— Mas não há outro modo — protestou Jasmine. — Você sabe que eu não
sei nadar. E, mesmo que soubesse, os vermes assassinos...
— Não podemos nadar, mas existem botes... — Barda interrompeu com
calma. — Temos dinheiro para pagar uma travessia. Ou podemos construir uma
balsa. Qualquer coisa é melhor do que enfrentar dezenas dessas criaturas.
Tão silenciosamente quanto haviam chegado, eles se afastaram e
prosseguiram rio acima, descrevendo uma grande volta ao redor da ponte. Vez ou
outra, por brechas entre as árvores, eles entreviam as cabras, ainda à espera,
imóveis sob a luz da Lua.
Quando o dia nasceu e o sol lutava para abrir caminho entre as nuvens, a
vila e a ponte haviam ficado para trás. Os amigos pararam para comer e descansar
e se ajeitaram sob uma moita de arbustos de folhas ásperas. Kree levantou vôo a
fim de caçar alguns insetos e esticar as asas enrijecidas.
Lief assumiu o primeiro turno da vigília. Ele enrolou-se no casaco e tentou
ficar confortável. Seus olhos ardiam, mas ele não receou cair no sono, pois estava
com os nervos à flor da pele.
As horas se arrastavam. Kree voltou e se empoleirou em um dos arbustos.
As nuvens estavam baixas e se tornavam mais espessas a cada momento. "Vai
chover", Lief pensou desanimado. Animais em fuga haviam criado trilhas estreitas
entre a folhagem, mas naquele momento não havia nenhum à vista, e Lief sentiu-se
grato por isso. Num lugar em que havia Ols em abundância, todos os seres vivos
eram suspeitos.
E Perdição afirmara que havia Ols que podiam assumir a forma de objetos:
os Ols de Grau Três, a perfeição da arte perversa do Senhor das Sombras. Se a
história era verdadeira e tais seres realmente existiam, até mesmo o arbusto em
que Kree se encontrava ou o pedregulho aos pés de Lief podia ser um inimigo
secreto. A qualquer momento, uma transformação terrível poderia ocorrer e um
espectro branco e bruxuleante com a marca do Senhor das Sombras em sua
essência poderia surgir e dominá-los.
Nenhum lugar era seguro. Nada era confiável.
Lief molhou os lábios, lutou contra o medo que lhe apertava o peito, mas
mesmo assim a sua carne parecia tremer sobre os ossos. Ele deslizou as mãos
para debaixo da camisa e sentiu o Cinturão de Deltora que lhe pesava na cintura.
Os seus dedos escorregaram até a sexta pedra, a ametista. Quando pousaram
sobre ela, a sua magia percorreu-lhe o corpo, e o tremor desapareceu lentamente.
"Vamos encontrar um modo de achar um barco", ele disse a si mesmo.
"Vamos atravessar o rio, a nossa busca irá continuar e vamos sobreviver."
Contudo, Lief não conseguiu livrar-se da sensação de que tinham sido
apanhados numa rede. Uma rede que o Senhor das Sombras puxava para si muito
lentamente.
O sol já ia alto quando Barda acordou para substituir Lief na vigília. O garoto
acordou no meio da tarde e constatou que o céu estava cinzento e o ar, pesado.
Uma dor de cabeça maçante se manifestou quando se sentou. Ele tivera um sono
pesado, pontilhado de sonhos confusos e perturbadores.
Barda e Jasmine ajeitavam os seus pertences.
— Acho que devemos prosseguir, Lief, assim que você estiver pronto —
Barda sugeriu. — Já está muito escuro e, se esperarmos a noite cair, a nossa
jornada não vai render muito antes de a chuva cair.
— A vila que vimos quando fomos até a costa não pode estar muito longe
— Jasmine acrescentou, virando-se para espiar os arredores por entre os arbustos.
— Se chegarmos até lá antes do anoitecer, talvez possamos convencer alguém a
nos levar para a outra margem do rio.
Lief sentiu uma onda de irritação. Seus amigos estiveram conversando
enquanto ele dormia, fazendo planos sem consultá-lo. Certamente esperaram com
impaciência que acordasse, considerando-o um dorminhoco. Eles não sabiam o
quanto ele estava cansado? Ele dormira durante horas e, no entanto, ainda se
sentia exausto... tão exausto que achava que uma semana de sono não o satisfaria.
Quase imediatamente, percebeu que o seu aborrecimento era resultado
desse mesmo cansaço. Ele observou as pálpebras pesadas de Jasmine e as
marcas escuras e profundas no rosto de Barda. Seus companheiros estavam tão
exaustos quanto ele. Lief obrigou-se a sorrir, assentiu e começou a reunir os
próprios pertences.
Quando chegaram ao próximo vilarejo, estava mais escuro ainda, apesar
de a noite ainda não ter caído. Os companheiros atravessaram cautelosamente o
portão aberto no muro.
O local estava em ruínas. Tudo que não era feito de pedra havia sido
queimado e transformado em cinzas. Os conhecidos nomes "Finn", "Nak" e "Milne"
estavam rabiscados nas paredes que permaneceram de pé.
— Eles escreveram seus nomes aqui num gesto de triunfo, pensando que
são reis e não piratas, ladrões e assassinos — Jasmine murmurou enraivecida. —
Estou feliz por eles terem morrido gritando.
— E eu também — Barda ajuntou com veemência.
Lief também desejou concordar. Houve uma época em que teria sido fácil
fazê-lo, mas, ao pensar em como Milne, principalmente, fora ao encontro de seu
terrível destino, tagarelando aterrorizado no Labirinto da Besta, algum motivo
desconhecido o impediu. A vingança não mais lhe parecia doce. Tinha havido
sofrimento demais.
Ele se virou e começou a procurar entre as ruínas, mas nada havia para
encontrar. Não havia pessoas ou animais naquele lugar abandonado. Não havia
abrigo.
E não havia barco.
Com os corações pesados, Lief, Barda e Jasmine prosseguiram devagar.
A chuva começou à meia-noite. Primeiro, ela caiu com força,
golpeando-lhes as mãos e as faces, para depois se transformar em um fluxo
constante que os encharcou e enregelou até os ossos. Kree permanecia
empoleirado tristemente no ombro de Jasmine, e Filli molhado escondia a cabeça
em seu casaco.
Eles caminhavam penosamente em meio à lama e à escuridão, tentando
manter-se alertas, procurando qualquer coisa que os ajudasse a atravessar o rio.
Mas não havia árvores, apenas arbustos baixos. Não havia troncos de árvore nem
tábuas jogadas na praia pelas águas, e nada que encontravam servia para construir
uma balsa.
Ao amanhecer, conseguiram repousar um pouco, abrigando-se como
puderam embaixo de umas folhas que pingavam. No entanto, algumas horas
depois, o lugar onde estavam deitados ficou encharcado, e eles tiveram que se
levantar e recomeçar a caminhada.
E assim o tempo passou. No início da terceira noite de chuva, eles haviam
parado de procurar um ponto onde cruzar o rio, agora inchado e com as margens
alagadas. A chuva dificultava a visão da outra margem, mesmo durante o dia, mas
Lief e Barda sabiam que já deviam ter atingido o lado oposto dos grandes canteiros
de junco que haviam impedido que eles prosseguissem correnteza abaixo. De nada
adiantaria atravessar naquele ponto, mesmo que encontrassem um meio de
transporte. Eles sabiam, a partir da experiência amarga que tiveram, o que era
chapinhar naquele lodaçal.
— Será que esse rio perverso vai barrar nossa passagem para sempre? —
Jasmine resmungou, quando pararam para descansar mais uma vez. — E essa
chuva não vai parar nunca?
— Se pudermos avançar mais um pouco, estaremos em frente ao local em
que o rio Largo se une ao Tor — Barda afirmou. — Sei que lá, pelo menos, há
árvores. Podemos construir um abrigo e descansar até que a chuva pare. Talvez até
possamos acender uma fogueira.
E assim eles prosseguiram envoltos pela fria e úmida escuridão. Então,
depois do que pareceu um tempo extremamente longo, Jasmine parou
bruscamente.
— O que foi? — Lief sussurrou.
— Sshh! Escute! -Jasmine ordenou, agarrando a manga do casaco de Lief
com a mão molhada.
Lief franziu o cenho, tentando se concentrar. No início, tudo que conseguiu
ouvir foi o tamborilar da chuva e o correr do rio intumescido mas, finalmente, as
vozes chegaram até ele. Vozes ásperas, zangadas e irritadas.
Os companheiros avançaram devagar. E, não muito longe, viram uma luz
que piscava, antes oculta pelas árvores.
Árvores! Lief se deu conta de que finalmente haviam atingido o abrigo pelo
qual procuravam. Mas outros o haviam encontrado antes deles. A luz vinha de uma
lanterna pendurada em um galho, intermitente por causa dos vultos que se moviam
à sua volta, bloqueando-lhe a claridade vez ou outra.
As vozes aumentaram de intensidade.
— Pois eu acho que devemos voltar! — um homem vociferou. -Quanto
mais penso no assunto, mais me convenço disso. Não deveríamos ter concordado
em deixar Nak e Finn sozinhos com o saque. Como sabemos que eles ainda
estarão lá quando voltarmos?
Lief balançou a cabeça. Será que estava imaginando coisas? Tinha ouvido
o homem dizer "Nak" e "Finn"? Seriam os vultos entre as árvores os piratas que
haviam partido para levar Dain até os Guardas Cinzentos? Mas o que estariam
fazendo ali? Ele pensava que eles estariam muito mais longe naquele momento.
— Nak e Finn vão estar esperando por nós, Gren — o outro pirata
resmungou. — Pode ter certeza de que eles vão querer a parte do ouro que vamos
receber por aquele insignificante membro da Resistência.
Eles falavam de Dain! Lief esforçou-se para enxergar melhor o rio além das
árvores e achou ter vislumbrado parte das velas do navio pirata que certamente
estava ancorado perto da margem. E Dain se encontrava nele!
— Você é um idiota que confia demais nas pessoas, Rabin! — gritou Gren.
— Se eu estiver certo, Nak e Finn têm muito mais para pensar do que num punhado
de moedas de ouro! Por que outro motivo teriam deixado que subíssemos o rio
sozinhos? Você acredita mesmo que eles têm medo de Perdição? Ele não passa de
mais um infeliz integrante da Resistência!
— Eles devem ter parado quando a chuva começou — Barda sussurrou. —
Talvez a correnteza do rio tenha ficado forte demais para que pudessem enfrentá-la.
E eles vieram até a terra firme em busca de abrigo.
— Então deve haver um bote a remo aqui, na beira do rio — deduziu
Jasmine.
— Nak e Finn não iriam nos trair! — gritou uma mulher com voz estridente.
— Você é que é um traidor por pensar nisso, Gren. Cuidado! Lembre-se do que
aconteceu com Milne.
Outras vozes murmuraram zangadas.
— Não me ameace, sua bruxa! — disparou o homem. — Você não tem
memória? Você não se lembra de quando um dos prisioneiros da caverna disse que
Finn havia encontrado uma grande pedra preciosa? E se for verdade?
— Uma pedra encontrada no Labirinto da Besta? — Rabin zombou. — Ah,
sim, tenho certeza de que isso é bem possível! Você está de miolo mole, Gren, se
acredita nesses contos da carochinha!
— Cale essa boca horrível, Rabin! — Gren devolveu, a voz carregada de
raiva.
— Cale a sua, gordo idiota!
E, então, ouviu-se um movimento repentino e violento, seguido de um
gemido de dor.
— Ah, seu demônio! — a mulher gritou.
Alguma coisa atingiu a lanterna. A luz balançou descontrolada e apagou.
— Fique longe de mim! — Gren ordenou. — Ora, sua...
— Tire as mãos dela! — gritaram várias outras vozes furiosas.
E, de repente, o bosque pareceu explodir em sons quando o resto da
tripulação entrou na briga. Gritos e grunhidos, o tilintar do aço, o quebrar de galhos,
passos pesados e gritos estridentes se sobressaíram em meio ao tamborilar da
chuva.
— Para o rio! — Barda sussurrou. — Depressa!
O bote cheio de água até a altura dos tornozelos balançava na beira do rio.
Sem dúvida, ele tinha sido empurrado para a terra seca quando o último dos piratas
descera. Mas o rio havia subido e o fizera flutuar, se não estivesse amarrado a uma
árvore, certamente teria sido levado pela correnteza.
Barda precisou de apenas alguns instantes para desamarrar a corda
enquanto seus companheiros esgueiravam-se para dentro do barco seguidos por
Kree, que esvoaçava acima deles. Quando o grande homem subiu e apanhou os
remos, o grupo já avançava para águas mais fundas.
Gritos e brados vindos das árvores ainda se sobressaíam ao barulho da
chuva. Não muito longe dali, o navio pirata puxava violentamente a âncora. Duas
vigias na lateral cintilavam como olhos, fato que Lief não tinha notado antes.
Freneticamente tirando água do fundo do bote, ele espiou para o convés
procurando sinais de movimento.
Enquanto isso, Barda lutava com os remos. Contudo, essa era uma
habilidade que ele não dominava, e as águas agitadas do rio erguiam-se ao redor
do bote, resistindo a todos os movimentos dele e empurrando-os rio abaixo.
— A correnteza é forte demais para mim! Não sei se vou conseguir chegar
até o navio — ele bradou, sacudindo a cabeça a fim de afastar os cabelos molhados
da testa.
— Você precisa conseguir! — Jasmine insistiu. E somente então Lief se deu
conta do quanto ela queria que Dain fosse salvo. Ela não tinha dito nada antes e
parecera aceitar a perda do rapaz com a calma que sempre exibia diante de
fatalidades. Contudo, naquele momento em que Dain se encontrava tão perto, ela
não conseguia enfrentar o pensamento de deixá-lo para trás.
Cerrando os dentes, Lief largou o balde e engatinhou até o banco do
remador.
— Passe para lá! — ele gritou, sentando-se ao lado de Barda e apanhando
um remo. Ele nunca remara antes, mas vira os piratas fazê-lo alguns dias antes e
acreditou poder imitá-los. Juntos, ele e Barda curvaram-se para a frente e para trás,
incessantemente.
A força adicional nos remos começou a apresentar resultados. Devagar e
com dificuldade, o bote se aproximou do navio pirata. Nesse momento, eles ouviram
um grito, não vindo da praia, mas do próprio navio.
Lief olhou à sua volta. Um vulto parado no convés acenava freneticamente.
Era Dain. Um vulto menor saltitava ao seu lado sacudindo violentamente uma
lanterna. Lief percebeu que era a pequena criatura estranha e tratante que Dain
chamara de polípano. Os piratas certamente o haviam deixado a bordo com Dain e
este, de algum modo, convencera-o a libertá-lo.
Dain erguera um rolo de corda presa ao convés do navio e começou a
balançá-la como se fosse jogá-la.
— Aqui! — Jasmine gritou. Ela se ergueu com dificuldade e estendeu as
mãos. O bote jogava perigosamente.
— Sente-se! — Barda ordenou com rispidez. — Você vai fazer o bote virar.
Lief, reme!
E, então, Jasmine soltou um grito, Kree gritou e o bote deu um solavanco e
girou. Lief olhou novamente sobre o ombro. O contorno escuro do navio pirata com
suas vigias semelhantes a dois olhos brilhantes que os contemplavam fixamente
parecia muito próximo.
Dain atirou a corda. Jasmine a apanhou e, apesar de as suas fibras
estalarem e se esticarem entre as duas embarcações dando a impressão de que
iam se romper, isso não aconteceu.
— Não consigo segurar a corda! — Jasmine gritou. Ela já estava
perigosamente inclinada sobre a borda, a água quase lhe cobrindo a cabeça. Filli
choramingava assustado no ombro dela, incapaz de ajudar, apavorado com a
possibilidade de cair. Kree esvoaçava ao lado deles, gritando aterrorizado.
Barda largou o remo e rastejou até eles, tomou a corda nas mãos fortes e
puxou. O bote balançou e se agitou nas ondas. Lief agarrou ambos os remos e fez o
que pôde para lutar sozinho contra a correnteza.
— Volte, Dain! — ele escutou Barda gritar. — Nós vamos subir a bordo. —
Mais uma vez, Lief arriscou um olhar. Dain, acompanhado pelo polípano, descia
freneticamente uma escada de corda que pendia da lateral do navio exatamente
entre as vigias iluminadas. O polípano ainda segurava a lanterna que parecia ura
terceiro olho com pouco brilho e oscilante.
Contudo, ao se esforçar para enxergar melhor através da chuva, notou que
a luz das vigias também oscilava e, sem dúvida, parecia muito mais brilhante do que
antes.
— Dain! — Barda vociferou. — Dain, esse bote é muito pequeno. Não
podemos...
É possível que Dain tenha ouvido, mas não lhe deu atenção. Ele se virou e
se preparou para saltar, segurando-se à escada com uma das mãos. Seu cabelo
estava encharcado e grudado na cabeça. A expressão de seu rosto, reluzindo sob a
luz da lanterna, parecia desesperada. Acima dele, o polípano tagarelava e
balançava, sacudindo a escada apavorado.
Então, Lief sentiu o cheiro de fumaça e entendeu.
— Fogo! — ele gritou.
Assim que as palavras lhe saíram da boca, ouviu-se um estrondo vindo do
interior do navio. As vigias se estilhaçaram e línguas de fogo saltaram para fora.
Grandes fendas se abriram no casco do navio por onde se via o fogo queimar
furiosamente. A água da chuva chiava e se transformava em vapor assim que
tocava a madeira incandescente.
Dain e o polípano saltaram juntos e caíram dentro do bote. Este oscilou
para o lado, formando uma grande onda que jogou Lief para trás e arrancou-lhe os
remos das mãos.
O bote tornou a se endireitar, mas balançava ao sabor das ondas e
rapidamente inclinou para um lado, pressionado para baixo pelo peso adicional de
mais dois passageiros e da água que entrava. Atordoado pela queda, Dain ficou
encostado ao banco, enquanto Jasmine tentava freneticamente tirar a água do
fundo do bote, e Lief e Barda procuravam os remos. O polípano gritava agarrado à
proa. Ele conhecia barcos e sabia muito bem o que podia acontecer com aquele
bote.
Gritos furiosos atravessaram o ar vindos da margem do rio. Os piratas
escutaram o barulho, descobriram a perda do bote e viram o fogo. Lief, ao mesmo
tempo em que tentava bravamente manter o equilíbrio do bote, notou-lhes as
sombras saltando à luz da lanterna que haviam tornado a acender. Mas aquele
brilho tênue não era nada em comparação ao inferno em que o navio se
transformara.
Parecia inacreditável que o fogo pudesse queimar apesar da chuva
torrencial e da água que corria por baixo do navio. Mas o fogo começara abaixo do
convés e engolia descontrolado as provisões.
— Foi o polípano! — Dain acusou, erguendo-se. — Ele jogou uma lanterna
na cabine debaixo do convés, onde eram armazenados o óleo, a gordura e as tintas.
A chuva e as batidas dos piratas o deixaram maluco!
"Assim como o desejo de mastigar a goma marrom de que ele tanto gosta",
pensou Lief olhando para a figura de braços longos que se agarrava à proa, aos
gritos. O polípano, certamente, desejava nunca ter deixado o Rainha do Rio.
— Precisamos nos afastar do navio — Barda gritou. — Se ele afundar, vai
nos puxar com ele.
Barda e Lief curvaram-se outra vez sobre os remos, mas os seus esforços
desajeitados foram inúteis. Nada parecia conseguir impedir o bote de ser
perigosamente levado pela correnteza. E, quanto mais água Jasmine tirava do
fundo, mais entrava pela borda.
O polípano soltava gritos estridentes, os olhos vidrados de pavor. Então,
sem aviso, ele saltou repentinamente de onde se encontrava para junto de Lief e
Barda, empurrando-os para o lado e apossando-se dos remos.
Blasfemando, Barda tentou tirá-los dele.
— Não! — Lief gritou. — Deixe-o! Ele sabe remar muito melhor do que nós.
Ele pode nos salvar!
Com dois hábeis impulsos nos remos, o polípano virou o bote, então,
inclinou-se para trás, contraiu os braços fortes e começou a remar. E, como se o
bote reconhecesse que finalmente se encontrava nas mãos de um perito, começou
a cortar as ondas com velocidade surpreendente. Alguns momentos depois, ele se
afastara do navio em chamas e se dirigia para o outro lado do rio.
Jasmine continuava a tirar água do barco e, à medida que ela desaparecia
devagar, a velocidade da embarcação aumentava. Logo o navio em chamas ficou
para trás. Eles sabiam que adiante estavam as águas largas e tranqüilas do rio
Largo e a ponte em arco que o cruzava. Mais adiante, também se encontrava o
triste vilarejo de Onde as Águas se Encontram e o pequeno píer que exibia a placa
Rainha do Rio.
Filli chiava, excitado, farejando o ar.
— Estamos muito próximos! — Jasmine exclamou. — Estamos quase na
margem.
O polípano virou, mostrando os dentes marrons. Os seus braços não
pararam de trabalhar nem por um momento, mas seus olhos pareciam pegar fogo
enquanto perscrutavam a escuridão.
O rio estava agitado onde as águas dos dois rios se encontravam, mas o
bote avançava depressa. "É como atravessar um redemoinho", Lief pensou
agarrando-se ao banco. Se o polípano não estivesse remando, eles nunca
sobreviveriam a essa turbulência.
No momento seguinte, porém, o polípano parou de remar. Ele deixou o seu
lugar, abandonando os remos e correu para a proa, passou por Jasmine e Dain e
saltou para a escuridão.
Os companheiros ouviram um baque e o som de passos apressados.
— O píer! — Jasmine gritou.
Desesperada, ela se inclinou para a frente, tentando agarrar os pilares do
velho píer ou o poste que sustentava a placa Rainha do Rio. Contudo, as águas
turbulentas puxaram o bote para longe antes que ela conseguisse o seu intento. O
barco estava sendo arrastado rio abaixo, girando sem parar. Um dos remos afundou
na água, soltou-se, girou na correnteza agitada e se perdeu.
Barda estendeu a mão para o outro, mas não foi rápido o bastante. Antes
de poder apanhá-lo, ele seguiu o mesmo destino do primeiro.
E não havia nada que os companheiros pudessem fazer, além de
agarrar-se às bordas da embarcação à deriva, enquanto as águas traiçoeiras os
levavam para longe.
Tranqüilidade. Silêncio. Uma luz rosada através das pálpebras fechadas.
Lief acordou confuso. Amedrontado, permaneceu deitado. A última coisa que
lembrava era o bote se chocando contra algo, girando e depois prosseguindo a
louca trajetória na escuridão.
"Será que eu adormeci?", ele pensou. "Como isso aconteceu?"
Mas ele tinha dormido ou perdido a consciência. Não havia dúvidas quanto
a isso, pois ali se encontrava ele, despertando. A chuva tinha parado, a terrível noite
tinha passado.
"Ou... será que eu morri? Esta luz, flutuando tranqüila... é assim que toda a
luta termina?"
Lief abriu os olhos. O céu acima dele estava rosado. Estava amanhecendo.
Lentamente, ele se sentou. Diante dele, havia um lago imenso, liso como
um espelho. Jasmine dormia ao seu lado, o rosto apoiado nas bordas duras de um
banco, enquanto Kree permanecia ao lado dela, vigilante. Barda encontrava-se
deitado não muito longe, respirando serenamente. E Dain... Dain estava sentado na
proa, os olhos escuros repletos de admiração.
— Onde estamos? — Lief indagou com voz rouca, molhando os lábios. —
O que aconteceu?
— Batemos em alguma coisa... talvez um banco de areia formado pelas
águas — Dain respondeu devagar. — Acho que fomos conduzidos para um canal
separado do rio principal. Devemos ter flutuado até este grande lago, em vez de
sermos carregados correnteza abaixo.
— Mas não há nenhum lago ao lado do rio Tor! — Lief protestou. Ele
sacudiu a cabeça incapaz de acreditar nos próprios olhos. No entanto, ele
conseguiu ver, a distância, o largo braço do rio dirigindo-se para o mar.
— Parece que antigamente havia — Dain disse suavemente. — E, por
causa da enchente, ele se formou outra vez. Você não está vendo? Isto aqui são os
canteiros de junco que agora foram cobertos pelo lago, como era antigamente. E
agora não há nenhuma neblina para esconder o que existe na beira do lago.
Ele apontou. Lief virou-se e ali, exatamente às suas costas, havia terra
firme e uma extensão de luz resplandecente.
— É Tora — Dain sussurrou. — Tora.
Lief apertou os olhos por causa do brilho atordoante e finalmente discerniu
as formas cintilantes de torres, torreões e muros. Em meio ao seu assombro, ele
primeiro pensou que os próprios edifícios cintilavam com um brilho vindo do seu
interior por algum tipo de mágica. Depois, ele se deu conta de que o brilho era
provocado pelos raios do sol da manhã batendo contra milhares de superfícies
brancas e polidas.
Lief desviou o olhar e esfregou os olhos úmidos. Era impossível ver a
cidade com clareza. Mesmo assim, ele tinha visto o suficiente para ficar surpreso e
cheio de admiração diante de sua beleza silenciosa e intocada.
— Tora foi escavada numa montanha de mármore com o auxílio da magia
— Dain contou. — Ela é perfeita. Um bloco único, sem nenhuma fenda ou emenda.
A voz do rapaz parecia mais forte e grave. Lief olhou para ele intrigado e
viu que ele estava sentado com o corpo bem reto. Como já tinha acontecido uma
outra vez, desde que Lief o conhecera, de repente ele parecia mais velho,
orgulhoso e menos frágil. A boca estava firme, os olhos brilhavam. Era como se
uma máscara tivesse caído de seu rosto, revelando-o.
Dain sentiu o olhar de Lief e virou o rosto rapidamente.
— Agora seria uma boa hora para entrar na cidade — ele disse com a voz
habitual. — É muito cedo, e a maior parte das pessoas ainda deve estar dormindo.
Sem esperar uma resposta, ele rastejou para a extremidade do bote e
saltou para a praia. O barco balançou levemente, e Jasmine e Barda abriram os
olhos, sentando-se assustados.
— Está tudo bem... — Lief garantiu. — Estamos em segurança. A
inundação tornou a encher um velho lago. E parece que chegamos a Tora.
Assim como Dain fizera, ele apontou para longe. E, como ele mesmo fizera
momentos antes, Barda e Jasmine se viraram e piscaram diante das luzes
exuberantes.
— Então Tora realmente fica perto do rio! — Jasmine exclamou.
— Ou, pelo menos, junto a um lago ao lado do rio.
— E Dain acha que podemos entrar calmamente na cidade sem sermos
detidos? — Barda murmurou. — Tora é controlada pelo inimigo.
— Isso foi o que Perdição disse — Lief lembrou, franzido o cenho.
— Mas começo a me perguntar se ele estava dizendo a verdade. Não
consigo ver a cidade com clareza, mas não parece haver Guardas Cinzentos no
portão, marcas do Senhor das Sombras nas paredes, tampouco sinais de danos ou
destruição, ou detritos. E ela tem uma aparência tão pacífica, Barda. Você já viu
algum lugar ocupado pelos Guardas igual a esse?
Barda hesitou e depois passou a mão sobre a boca seca.
— É possível — ele sussurrou. — Será que a magia dos toranos tem sido
forte o bastante para repelir até a maldade do Senhor das Sombras? Nesse caso,
Lief... nesse caso...
O coração de Lief acelerou excitado.
— Nesse caso, o herdeiro de Deltora pode estar aqui. Esperando por nós.
A cidade se descortinava diante deles silenciosa, à espera, envolta em luz.
As margens do lago se estendiam vazias e convidativas diante deles. No entanto,
assim que Lief pousou os pés em terra firme, o seu entusiasmo desapareceu e ele
foi tomado pelo medo.
De cabeça baixa, ele seguiu Dain devagar, lutando contra o medo, tentando
compreendê-lo. Seria aquela uma cautela natural, uma relutância em mergulhar
meio às cegas num lugar em que, apesar das aparências, os inimigos poderiam
estar à espreita? Seria medo da poderosa magia de Tora?
Ou seria porque, agora que o momento havia praticamente chegado, ele
temia encontrar o herdeiro de Deltora?
Ele ergueu a cabeça e espantado viu que Dain já se encontrava no fim da
praia. A figura solitária hesitou por uma fração de segundos, então, avançou para a
luz atordoante e desapareceu. Lief piscou e esfregou os olhos que começaram a
lacrimejar outra vez, toldando-lhe a visão.
Ele caminhou aos tropeços, puxando a capa ao redor do corpo a fim de
ocultar a espada. "Não devemos parecer inimigos", ele pensou confuso.
"Precisamos..."
— Lief! — ele escutou Barda chamá-lo ansioso e percebeu que os
companheiros o haviam perdido de vista. Cada fio de sua capa reluzia,
envolvendo-o em luz. Ele respondeu ao chamado e aguardou. Barda e Jasmine
alcançaram-no rapidamente, os braços protegendo os olhos ofuscados.
Juntos, eles percorreram os últimos metros que os separavam dos muros
da cidade. Aos poucos, acostumaram-se à luz, e ela não mais os cegou. Os
companheiros chegaram ao final da praia. Tora erguia-se diante deles em todo o
seu vasto esplendor.
Tora foi escavada numa montanha de mármore com o auxílio da magia. Ela
é perfeita. Um bloco único, sem nenhuma fenda ou emenda.
Eles pararam por um momento impressionados. E, então, com as mãos
estendidas diante deles, a fim de demonstrar que não desejavam causar nenhum
mal, os amigos passaram pelo amplo arco branco que era a entrada da cidade.
No mesmo instante, foram percorridos por um profundo calafrio como se
tivessem sido mergulhados num banho de água fria e límpida. Por um momento, o
tempo parou, e Lief perdeu toda a noção de onde se encontrava ou do que deveria
fazer. Quando voltou a si, percebeu que os seus olhos ofuscados o haviam
enganado. Lief havia pensado que o arco era simplesmente uma passagem, mas
ele era muito mais profundo do que imaginara. Em vez de caminhar diretamente
para dentro da cidade, ele e os companheiros viram-se parados na sombra de um
túnel reverberante. Um espaço branco, liso e arredondado os cercava.
Kree murmurava e grasnava, oscilando levemente no braço de Jasmine.
— O que foi isso? — Jasmine sussurrou. — Essa... sensação?
Lief balançou a cabeça, sem saber o que dizer. Mas ele não sentia medo.
Na verdade, jamais se sentira tão tranqüilo em toda a vida.
Devagar, eles caminharam até o fim do túnel e, finalmente, saíram para a
luz da cidade.
Nenhuma figura de túnica esperava por eles. Nenhum Guarda Cinzento
saltou com ar zombeteiro, no caminho deles. O silêncio era sinistro. As botas deles
ecoavam na rua ampla e reluzente.
Virando-se para um dos lados, Lief puxou a camisa e observou o Cinturão
de Deltora. O rubi estava mais brilhante do que nunca, de modo que eles ainda não
se encontravam em perigo. Mas... a esmeralda!
Lief olhou fixamente para a pedra preciosa. A esmeralda perdera toda a cor
e estava completamente embaçada e sem vida como quando se encontrava em
poder do monstro Gellick, na Montanha do Medo. O que aquilo significava?
Estariam cercados por algo maligno? Ou... ele pareceu se lembrar de que algo mais
era capaz de tirar o brilho da esmeralda. Mas o que era?
Ele e os companheiros continuaram a andar. Salões e casas, torres e
palácios erguiam-se cintilantes de ambos os lados. Pelas janelas e portas abertas,
viam-se cortinas suntuosas, tapetes de seda e móveis finos. Em todos os lugares,
jardineiras floridas enfeitavam as janelas reluzentes e cercadas de abelhas. Árvores
frutíferas cresciam vigorosamente em vasos imensos, arrumados ao redor de
pátios nos quais mesas com comida e bebida se encontravam postas, e fontes
espirravam água para o alto.
Contudo, não havia ninguém sentado junto das fontes, cuidando das
árvores ou servindo-se da comida. Ninguém falava pelas ruas ou espiava das
janelas das casas. Ninguém andava pelos tapetes de seda ou repousava nas
refinadas poltronas. A cidade estava totalmente deserta.
— É como Onde as Águas se Encontram — Jasmine sussurrou.
— Não — Barda murmurou sombrio. Lá, a cidade se encontrava em ruínas.
Mas aqui... bem, parece que as pessoas acabaram de partir. Será que a mágica dos
toranos é tão poderosa que eles podem ficar invisíveis? — ele indagou, olhando
sobre o ombro. — E onde está Dain?
Intrigados, um frio percorrendo-lhes a espinha, eles prosseguiram pelas
ruas de mármore vazias.
Finalmente, o grupo chegou a uma enorme praça no centro da cidade e ali
pelo menos uma das perguntas de Barda foi respondida, pois encontraram Dain.
Grandes salões decorados com altas colunas cercavam a praça. O maior
encontrava-se no alto de um majestoso lance de largos degraus. No último deles,
havia uma caixa esculpida que parecia deslocada ali, como se tivesse sido levada
para lá com um propósito e, depois, abandonada.
Dain, porém, não havia subido os degraus. Ele estava agachado aos pés de
um imenso pedaço de mármore que se encontrava no centro da praça. Lief soube
no mesmo instante que se tratava da pedra que o pai vira no quadro do palácio em
Del. Contudo, não havia chamas verdes sendo lançadas do topo. E ela estava
rachada de um lado a outro.
Dain não se moveu quando Lief, Barda e Jasmine caminharam em sua
direção. Mesmo quando se aproximaram e o chamaram, ele pareceu não lhes notar
a presença. Os seus olhos inexpressivos e desesperançados estavam fixos na
pedra.
Havia palavras gravadas no mármore e a fenda irregular atravessava-o
como uma ferida.
Nós, povo do Tora,
juramos lealdade a Adia, rei de Deltora,
e a todos de sou sangue que o sucederem.
Se algum dia esse juramento for quebrado,
que esta pedra, coração da cidade,
também se quebre e sejamos nós eliminados para
sempre para que lamentemos a nossa desonra.
Lief olhou para a pedra fosca e quebrada, o coração partido ao se lembrar,
enfim, das palavras de o Cinturão de Deltora que descreviam os poderes da
esmeralda.
A esmeralda, símbolo da honra, perde o brilho na presença do
mal e quando um juramento é quebrado.
— Tora quebrou o seu juramento — Lief murmurou, sem necessidade de
obter mais provas do que tinha ocorrido. — Mas por quê? Por quê?
Com um gemido de frustração e desapontamento, Barda se afastou. Lief e
Jasmine, contudo, não conseguiram acompanhá-lo. Não ainda.
Lief pousou a mão no ombro de Dain.
— Levante-se, Dain — ele pediu baixinho. — Não há nada para você, aqui.
E nada para nenhum de nós. Tora está vazia. Tudo está preservado por
encantamento, mas está sem vida. E acho que já faz muito tempo. É por esse
motivo que o lago secou, e a cidade foi separada do rio.
— Não pode ser — Dain murmurou tomado pela tristeza. — Esperei tanto
tempo — a expressão de seu rosto denotava o seu sofrimento e perturbação. Todo
o seu corpo tremia.
— Dain, por que você tinha que vir a Tora? — Jasmine perguntou,
ajoelhando-se ao lado dele. — Conte-nos a verdade.
— Achei que os meus pais estariam aqui — ele respondeu com a voz muito
baixa. — Minha mãe sempre me disse que, se algum dias fôssemos separados,
eles me encontrariam em Tora. Ela disse que sua família vivia aqui e que eles nos
abrigariam. Eu contei isso a Perdição, um ano atrás, quando ele me encontrou lá,
largado para morrer pelos bandidos que atacaram a nossa fazenda — ele
prosseguiu, os punhos fechados. — Ele disse para não contar isso a ninguém, pois
meus pais poderiam correr perigo quando chegassem a Tora se alguém ficasse
sabendo que o filho deles estava com a Resistência.
— Como alguém ficaria sabendo? — Lief indagou intrigado.
— Perdição teme que exista um espião entre nós. Pelo menos, foi isso o
que ele me disse — Dain olhou a pedra destruída, o olhar sombrio. — Mas ele
também me contou que Tora estava tomada por espiões, infestada de Guardas
Cinzentos e Ols. Ele mentiu. O tempo todo em que ele me deteve com falsas
promessas, ele sabia que a cidade estava deserta e que eu alimentava falsas
esperanças — ele respirou fundo. — Nunca mais vou voltar para a fortaleza. Nunca
mais.
Dain deixou pender a cabeça e não mais a ergueu. Lief o observou e
percebeu, vagamente, que já ficara irritado antes porque Dain responsabilizava
Perdição por todos os seus problemas, pois, afinal, o rapaz não era prisioneiro dele.
Ele poderia ter deixado a Resistência a qualquer momento e viajado para Tora
sozinho.
Mas naquele momento Lief não sentia irritação, somente uma profunda
tristeza. E perguntou-se por que motivo estaria se sentindo daquele modo.
— Vejam, ali!
A voz de Barda tinha um som estranho. Lief ergueu o olhar e viu que o
amigo tinha subido os degraus do grande salão. Atrás dele, elegantes colunas
brancas erguiam-se na direção do céu, mas ele olhava para baixo, para a caixa
esculpida e aberta que segurava nas mãos.
— Vá — disse Jasmine em voz baixa. — Vou esperar aqui.
Lief se ergueu, atravessou a praça e subiu as escadas. Barda estendeu a
caixa para que ele a visse. Em seu interior, havia inúmeros rolos de pergaminho.
Lief escolheu um e o desenrolou.
O Rei agradece a sua mensagem.
Ele vai atender ao seu pedido assim que possível.
Brandon
Lief remexeu na caixa, apanhou outros rolos e os leu. Todos eram iguais,
exceto pelas assinaturas. Alguns estavam assinados pela rainha Lilia, outros pelo
rei Alton, pai de Endon. Outros, ainda, exibiam a assinatura do próprio Endon.
— Essas mensagens são parecidas com as que meu pai me mostrou
— Lief comentou sem entusiasmo. — As mensagens que o povo de Del
recebia quando enviava pedidos e reclamações ao rei.
— Parece que os toranos também enviavam esses mesmos tipos de
mensagem e recebiam as mesmas respostas — Barda conjeturou.
— Imagino que, assim como o povo de Del, eles se sentiram abandonados.
Assim, quando chegou a última mensagem... — ele estendeu dois pedaços de
papel amassados para Lief. — Estes também estavam na caixa — ele disse
carrancudo. — Em cima de todos os outros.
Os pedaços de papel eram as duas metades de um bilhete. Lief as reuniu e
leu a mensagem escrita às pressas.
Povo de Tora:
O Cinturão de Deltora está perdido, o Senhor das Sombras retornou. Com a
ajuda de um verdadeiro amigo, escapei com a rainha e nosso futuro filho. Eu lhes
peço que nos ofereçam refúgio em honra de seu antigo juramento.
Enviar resposta pelo mensageiro.
Não percam tempo, eu lhes imploro.
Endon,
Rei de Deltora
— Mensageiro? — Lief indagou e olhou fixamente para o bilhete. — Que
mensageiro? — balbuciou.
— Um pássaro, sem dúvida — Barda afirmou. — Um pássaro preto como
Kree, é quase certo. Houve época em que havia muitos em Del e, antigamente,
acreditava-se que eles eram pássaros reais, devido à sua inteligência. É por isso
provavelmente que a feiticeira Thaegan os detestava tanto e gostava de comê-los.
— Os toranos rasgaram o bilhete — Lief sussurrou. — Eles se recusaram a
ajudar e quebraram o juramento. Como puderam arriscar-se tanto?
Barda deu de ombros. O seu rosto estava sombrio e denotava a sua
decepção.
— A pedra na praça data dos tempos de Adin. Talvez os toranos não
acreditassem mais naquelas palavras, mas a antiga magia ainda era poderosa. Eles
foram condenados no momento em que rasgaram o bilhete. O seu pai não contava
com isso, Lief — Barda comentou, fitando a caixa esculpida nas mãos. — O rei e a
rainha deixaram Del apressadamente, muito antes que qualquer resposta pudesse
ter retornado de Tora. Sem dúvida, eles imaginaram que receberiam alguma
mensagem durante a viagem e que a magia de Tora os ajudaria em seu trajeto.
Mas o plano falhou.
— Isso quer dizer que durante todo esse tempo meu pai acreditou que o
herdeiro se encontrava a salvo em Tora, esperando por nós — Lief murmurou. —
Esse era o seu segredo. Ele pensou que nos encontraríamos aqui e também nos
primeiros dias de nossa jornada. Você lembra? Segundo os planos dele, o Vale dos
Perdidos seria a nossa primeira meta, não a última. Se fosse, certamente teríamos
passado por Tora no caminho para o Labirinto da Besta.
Lief pousou as mãos no Cinturão em busca de coragem.
— O plano de se esconder em Tora pode ter falhado, mas de alguma forma
Endon e Sharn encontraram outro lugar seguro — ele deduziu. — O Cinturão está
intacto. O meu pai me disse que isso significa que o herdeiro está vivo, onde quer
que esteja. Quando o Cinturão estiver completo, ele nos mostrará o caminho. Meu
pai tem certeza disso e precisamos acreditar nele.
Lief tornou a guardar as duas metades do bilhete na caixa esculpida,
fechou a tampa com firmeza e a recolocou na escada.
Quando levantou a cabeça, Barda exibia uma expressão séria e seu olhar
esquadrinhava a grande praça e os prédios que a circundavam, as imensas colunas,
as estátuas de pássaros e animais, as urnas esculpidas transbordantes de flores.
Lief perguntou-se o que ele estaria fazendo. Exceto pela pedra quebrada, junto da
qual Dain ainda se encontrava agachado, tomado pelo sofrimento e acompanhado
por Jasmine, nada havia para ver.
— Se a cidade está vazia, por que tudo está tão perfeito e intacto, Lief? —
Barda perguntou de repente. — Por que não foi destruída por saqueadores e
animais? Os piratas, os bandidos... o que os impediu de pilhar este lugar à vontade?
Ele apontou a caixa.
— Até mesmo ela é uma obra de arte. Deve valer uma fortuna para um
comerciante. E, sem dúvida, a cidade está repleta de objetos como este. E, no
entanto, ninguém os roubou? Por quê?
Ele falava em voz baixa, mas mesmo assim a sua voz pareceu ecoar na
praça.
— Você acha que Tora está... protegida? — Lief sussurrou, sentindo um
calafrio percorrer-lhe a espinha.
— Lief! Barda! — Jasmine chamou.
Perplexos, ambos olharam para baixo. Jasmine ainda se encontrava
agachada junto de Dain e acenava com insistência. Lief e Barda desceram os
degraus correndo e atravessaram a praça na direção dela.
Dain não ergueu a cabeça, embora certamente tivesse ouvido a
aproximação deles. Jasmine envolvera-o com um cobertor, mas mesmo assim ele
tremia.
— Ele não se move — Jasmine sussurrou assustada. — Ele não consegue
parar de tremer e não aceita nem mesmo um pouco de água. Estou com muito
medo por ele.
— Levem-me embora daqui, eu imploro — Dain murmurou com os lábios
descorados. — Não consigo suportar. Por favor, levem-me embora.
Os companheiros começaram a deixar a cidade. O olhar de Dain, que
caminhava sustentado por Lief e Barda, era triste e inexpressivo. Ele se arrastava,
aos tropeços. Sua testa estava molhada com um suor frio, e o corpo frágil ainda
continua tomado por um intenso tremor.
Lief assistia com pesar ao sofrimento do rapaz, mas, em algum lugar, no
fundo de sua mente, ele estranhava a prostração de Dain. Não tinha o garoto sido
treinado por Perdição e pela Resistência durante um ano? Não tinha ele enfrentado
Ols e outros perigos assustadores no dia-a-dia?
Dain esperara encontrar os pais em Tora, e isso não aconteceu. Entretanto,
por que motivo o choque e desapontamento o haviam abalado tão profundamente?
Era como se o coração dele tivesse se partido como a pedra de Tora, e a luz de seu
espírito tivesse sido apagada como as chamas verdes.
O grupo prosseguiu e, com exceção de Dain, todos olhavam para as casas
à medida que passavam. Através das janelas reluzentes, viam-se claramente os
tristes sinais de uma vida que se fora: alimentos tão frescos quanto no dia em que
haviam sido preparados, travessas e louças lindamente pintadas, almofadas e
cortinas bordadas. Em quase todas as casas, havia teares dos quais pendiam
tecidos de milagrosa delicadeza à espera de que o tecelão, há muito desaparecido,
retornasse.
Os teares fizeram Lief lembrar-se da mãe. Quantas vezes a vira sentada
tecendo tecidos para os seus trajes e artigos domésticos? Lief sabia que a mãe era
muito habilidosa, pois outras pessoas a elogiavam. Mas os fios que ela era obrigada
a usar eram ásperos e descorados, em nada parecidos com os de Tora que
brilhavam como jóias.
A coisa mais fina que ela havia feito era a capa que ele usava agora. Sua
mãe colocara toda a sua habilidade naquela peça e, segundo as palavras dela,
também amor e lembranças.
Onde estaria a mãe naquele momento?
"Eu, entre todas as pessoas, deveria compreender o sofrimento de Dain",
Lief pensou. "Sei o que é sentir a falta e temer pelo bem-estar de pais muito
amados."
"Mas você não perdeu as esperanças", sussurrou uma voz no fundo de sua
mente. "Você não se abandonou ao desespero, tampouco adoeceu de corpo e alma.
E quanto a Jasmine, ela desistiu e morreu quando os pais foram levados? Barda se
desesperou quando a mãe foi morta e seus amigos, assassinados?"
Lief sacudiu a cabeça para afastar a voz. "As pessoas têm diferentes forças
e fraquezas", ele disse a si mesmo. "Eu não devo culpar..."
Os pensamentos dele tomaram outro rumo quando uma nova idéia surgiu
em sua mente. Talvez houvesse outro fator que justificasse a prostração de Dain
que ele ainda não compreendia. Todos os sinais indicavam que o rapaz não estava
simplesmente tomado pelo sofrimento e pela decepção, mas sim profundamente
chocado. Mais chocado do que seria razoável, se ele lhes contara toda a verdade.
A entrada do túnel encontrava-se diante deles. O grupo atravessou a sua
sombra fresca e, mais uma vez, Lief sentiu o misterioso formi-gamento percorrer-lhe
o corpo. Ele caminhou num sonho e lamentou passar para o espaço ensolarado.
Ele e Barda pousaram Dain no chão com delicadeza. O rapaz continuava
tremendo como se estivesse com frio, os grandes olhos fitando o sol brilhante sem
vê-lo.
— Dain, tente ser forte — Barda incentivou. — Assim você vai acabar
ficando doente.
Ele repetiu essas palavras várias vezes até que, finalmente, Dain reagiu.
Lentamente, o olhar vago recuperou o brilho. O garoto moveu-se e molhou os lábios
secos.
— Sinto muito — ele murmurou. — Encontrar a cidade vazia foi um grande
choque para mim. Mas isso não é desculpa.
Kree grasnou e bateu as asas num gesto de advertência.
— Alguém está se aproximando! -Jasmine exclamou, empunhando a
adaga.
Lief olhou para o lago, mas este permanecia imóvel. Isso significava que o
perigo se aproximava por terra, pelas colinas que se erguiam ao lado e atrás da
cidade.
Kree voou para o alto, preparando-se para investigar.
— Não, Kree! — Jasmine ordenou. — Eles podem ter arcos e flechas. Fique
conosco.
O pássaro pairou no ar por um instante e, então, com relutância, voltou para
baixo.
— Jasmine, eles são muitos? — Barda perguntou preocupado. Como fizera
tantas vezes antes, Jasmine se ajoelhou e colou o ouvido ao chão.
— Acho que são apenas dois — ela informou depois de um momento. —
Ambos são altos, um mais pesado do que o outro.
Dain a observava com atenção, claramente impressionado. Lief percebeu
que o tremor nos membros do rapaz havia diminuído. "Ter algo a mais em que
pensar parece ser exatamente o que Dain precisa", Lief pensou. Mas, apesar da
constatação, sentiu-se um tanto aborrecido.
"No entanto, por que não deveria Dain admirar Jasmine?", pensou dirigindo
a irritação para si mesmo. "Qualquer um admiraria suas habilidades." Então lhe
ocorreu que, se ainda estivesse no interior de Tora, não estaria zangado, mas sim
bastante calmo.
"O encantamento da cidade está se esvaindo", pensou. "Estou voltando ao
normal."
E, finalmente, compreendeu o que significava o formigamento que sentira
no túnel. Ele compreendeu por que Tora permanecia perfeita e intocada após
dezesseis anos de abandono.
— Lief! — Barda chamou insistente. — Depressa!
— Lief empunhou a espada e correu a reunir-se aos amigos. Estes
encontravam-se parados, lado a lado, formando uma barreira entre Dain e dois
vultos altos que se aproximavam, vindos das colinas. Os recém-chegados
pareciam brilhar na ofuscante luz do sol.
Seriam bandidos? Ols?
— Tora está protegida por magia — Lief disse rapidamente. — Uma magia
que age sobre corações e mentes. O túnel afasta todo o mal. Se voltarmos para lá,
nada poderá nos prejudicar.
Barda olhou rapidamente para ele e depois para os muros reluzentes da
cidade. Lief percebeu que ele media mentalmente a distância e tentava decidir se
deveriam arriscar-se a voltar e correr para a segurança. Mas era tarde demais. Os
estranhos já os tinham visto e apressavam o passo.
Inquieto, Dain apoiava o peso do corpo ora num pé, ora no outro.
— Dain, volte para Tora — Barda ordenou.
Mas Dain negou com um gesto obstinado ao mesmo tempo em que
procurava sua adaga.
— Dain! — Jasmine exclamou. — Vá!
— Se eles forem Ols, posso ajudar — Dain retrucou entre dentes. — Ou
fico com vocês, ou morro. Estou cansado de demonstrar fraqueza.
Ele se postou ao lado dela e mostrou uma expressão carrancuda para os
estranhos que se aproximavam. De repente, o seu olhar ficou mais atento, e a sua
boca se transformou numa linha dura.
— Perdição! — ele balbuciou, virando-se.
Perplexos, Lief, Barda e Jasmine se deram conta de que ele estava certo.
Agora eles podiam ver que o mais alto dos estranhos era quem se intitulara
Perdição das Colinas. Perdição, que tinham visto pela última vez na fortaleza da
Resistência e que os mantivera prisioneiros durante três dias.
Para sua surpresa, constataram que Neridah, a Veloz, o acompanhava.
Por que a escolhera como companheira? À medida que se aproximavam, Lief notou
que Neridah sorria, ao passo que a expressão de Perdição continuava séria.
— Não relaxem! — Barda murmurou. — Eles podem ser Ols tentando nos
enganar.
Era evidente que Dain e Lief não compartilhavam da mesma opinião, mas
mesmo assim suas mãos apertaram-se sobre o punho da espada. À sua maneira,
Perdição tinha provado ser tão perigoso quanto, qualquer Ol e que não era
confiável.
Quando a dupla se aproximou, Perdição não perdeu tempo com
cumprimentos.
— Então, Dain — ele grunhiu —, você está onde queria. Está satisfeito?
— Você sabia! — Dain explodiu. — Você sabia o tempo todo o que
aconteceu aqui, Perdição. Você mentiu para mim!
— Claro! — Perdição retrucou com frieza. — O que mais o mantinha forte
além da esperança? Constatar que você alimentava falsas esperanças o fez
sentir-se melhor ou pior?
O rosto de Dain mostrava claramente a resposta. Perdição assentiu com
amargura.
— Tenho procurado seus pais desde que o levei à fortaleza, Dain. Eu
esperava ter êxito antes que você descobrisse que eles não estavam em Tora. Mas
você não conseguiu esperar.
— Não, não consegui! — Dain gritou desafiador. — Mas não é minha culpa.
Eu não conhecia os verdadeiros acontecimentos. Não sou uma criança que precisa
ser protegida e alimentada com contos de fadas! Foi me enganando que você me
levou a fazer o que fiz.
Perdição fitou-o durante um longo momento. Então, para surpresa de todos,
a sua expressão se descontraiu e ele quase exibiu um sorriso.
— Houve uma época em que você não teria falado com os mais velhos
dessa maneira — ele começou. — Quando o conheci, você era uma criança
educada e obediente.
— Não sou uma criança! — Dain gritou furioso.
— Não, parece que não. Talvez... — Perdição pareceu refletir. — Talvez eu
tenha me enganado. Isso não acontece com freqüência — ele admitiu contrariado.
— Mas é possível. Será que pode me perdoar e voltar para a fortaleza conosco?
Sentimos muito a sua falta.
Dain hesitou.
Barda, Lief e Jasmine entreolharam-se. Em pensamento, todos
concordavam com o fato de que muitos problemas se resolveriam se Dain partisse
com Perdição. Mas eles não tinham certeza de que o rapaz estaria em segurança.
— Desde a última vez em que o vimos, aprendemos que não devemos
confiar nas aparências — Lief disse com calma, dando um passo à frente. — Antes
que Dain decida o que pretende fazer, gostaríamos que você e Neridah também
entrassem em Tora.
Os olhos escuros de Perdição, então frios e destituídos de humor,
voltaram-se para ele.
— Você não precisa ficar mais do que alguns instantes — Lief continuou,
recusando-se a ser intimidado. — O túnel de Tora revela o mal muito mais depressa
do que a sua sala de teste.
— Então... vocês descobriram o segredo de Tora! — Perdição resmungou.
— Parabéns! Mas o que vai acontecer se eu me recusar a atender ao seu pedido?
Neridah deu um passo e se postou ao lado de Perdição. Barda e Jasmine
colocaram-se ao lado de Lief. Ambas as partes se entreolharam. E então Barda
falou.
— Se você se recusar a entrar em Tora, temos o direito de pressupor que
vocês são Ols e tomar as medidas necessárias.
Perdição agarrou a espada no mesmo instante.
— Não! — Dain gritou, atirando-se na frente de Barda. — Vocês não devem
lutar! Vocês não são inimigos, vocês estão do mesmo lado.
— Ainda não tenho certeza disso — Perdição afirmou, a expressão
carrancuda.
— Nós também não — Jasmine replicou. — Pois, se você é realmente
Perdição, tratou-nos muito mal e não confiamos em você. E, se você é um OI que
assumiu a aparência de Perdição, representa um perigo para todos nós.
Os olhos de Perdição cintilaram. Era evidente que ele podia perceber que
as palavras de Jasmine estavam repletas de bom senso. No entanto, ele não baixou
a espada.
— Que mal pode haver em provar ser o que parece? — Lief murmurou,
deliberadamente mantendo a voz baixa e regular.
— Não temos que provar nada a vocês! — Neridah gritou zangada.
— Perdição e eu estamos juntos desde que deixamos a fortaleza. Podemos
jurar...
— O que podemos jurar não significa nada — Perdição disse, estendendo a
mão para calá-la. — Ols geralmente viajam aos pares, não é mesmo?
E, então, como se a interrupção de Neridah de certa forma o tivesse
ajudado a tomar uma decisão, ele deu de ombros, guardou a espada e começou a
caminhar na direção da luz cintilante da cidade. Neridah, claramente surpresa e
zangada, hesitou por um instante e depois se virou e o seguiu com passos firmes.
Os amigos os seguiram. Ao atingirem o túnel, aguardaram enquanto
Perdição e Neridah prosseguiam sozinhos. Lief também se viu tentado a entrar no
túnel, mas algo lhe dizia que essa não seria uma atitude sensata. Ele não podia
permitir que todas as suas emoções se dissipassem naquele momento. Um pouco
de ira servia para mantê-lo alerta e nunca era demais ficar atento quando se lidava
com alguém como Perdição.
Assim sendo, ele ficou e observou, e viu o que de outra forma não teria
visto. Quando os dois vultos caminharam pelo túnel, o ar começou a se encher de
faíscas coloridas que giravam no ar como grãos de poeira iluminados pelo sol.
— Não vi nada parecido quando atravessamos — Jasmine comentou.
— Eu só... senti.
— Talvez elas sejam invisíveis para quem está lá dentro — Barda esfregou
os olhos atordoados com a mão e se virou.
Perdição e Neridah desapareceram em questão de segundos numa nuvem
de luz em movimento, mas tornaram a aparecer apenas alguns momentos depois,
voltando lentamente pelo caminho que haviam percorrido.
Ambos pareciam aturdidos quando saíram novamente para a luz do sol. Os
seus rostos estavam tranqüilos e estranhamente imóveis.
— Então... estão satisfeitos agora? — Perdição indagou. Suas palavras,
porém, não continham sarcasmo e o seu olhar parecia perdido. Gemendo, ele se
sentou com as costas recostadas aos muros da cidade.
Neridah, Dain e os outros fitaram-no confusos. Fatigado, ele ergueu os
olhos.
— Depois que a raiva, o ódio e a amargura deixaram um homem que tem
pouco incentivo para viver, o que resta para ele além do vazio? — ele perguntou
com um leve sorriso. — É por esse motivo que não gosto de visitar Tora. Eu estive
aqui somente uma vez e foi suficiente.
— Quem é você, Perdição? — Lief perguntou de repente.
Por um instante, acreditou que o homem não iria responder. E então
Perdição deixou cair os ombros e fechou os olhos, como se não tivesse forças para
recusar.
— Não sei quem sou — ele disse. — Não sei o que perdi, além de meu
nome. Minhas lembranças começam nas Terras das Sombras. Eu lutava contra um
Vraal na Arena das Sombras e fui ferido. Tudo o que aconteceu antes disso está na
escuridão.
A sua mão moveu-se lentamente até a cicatriz recortada que trazia no
rosto.
— Mas você escapou? — Lief continuou. Talvez fosse cruel usar a atual
fraqueza de Perdição para descobrir mais a seu respeito, mas era uma
oportunidade que não iria se repetir.
— Escapei da Arena das Sombras — Perdição prosseguiu. — Eles não
esperavam por isso. Eles pensaram que eu estava acabado. Fugi pelas montanhas,
perseguido e sem ter noção de nada além de que Deltora era o meu lar. Na
Montanha do Medo, enfrentei meus perseguidores. Escapei mais uma vez, mas o
preço que paguei foi muito alto.
Perdição soltou um profundo suspiro.
— Continuei minha jornada, mais morto do que vivo. Finalmente, um bom
homem me encontrou, deu-me abrigo e cuidou de meus ferimentos.
— Um homem que vivia num lugar chamado Kinrest — Jasmine murmurou.
Perdição lançou-lhe um olhar rápido e sorriu mais uma vez, embora os seus
olhos estivessem tomados pela tristeza.
— Então vocês viram o seu túmulo e sabem que assumi o seu nome — ele
disse. — Ele me salvou, mas eu provoquei a sua morte. Os Guardas Cinzentos que
não morreram na Montanha do Medo me perseguiram até a caverna que ele
ocupava. Perdição era um homem pacífico e não teve a menor chance contra eles.
Mas, graças a ele, eu tinha recuperado as minhas forças. Matei todos os Guardas e
espalhei os seus ossos pela floresta.
Vestígios da antiga selvageria tomaram conta de sua voz quando ele
proferiu essas últimas palavras. Lief se deu conta de que o efeito tranqüilizador do
túnel de Tora se dissipava gradativamente. Perdição ficou em silêncio por um
momento e, quando tornou a sorrir, esse sorriso não passava de uma amarga
contração dos lábios.
— Acho que vocês se aproveitaram de mim — ele constatou, erguendo-se.
— Espero que tenha satisfeito a sua curiosidade — sua boca endureceu, seu olhar
tornou-se sombrio. A conhecida máscara impiedosa voltou a cobrir seu rosto.
— Perdição, sei que você passou por maus bocados — Neridah murmurou.
— Mas eu não tinha idéia... — ela se calou quando Perdição disparou-lhe um olhar
frio. Estava claro que ele não queria sua solidariedade ou admiração. Neridah corou,
mas logo sacudiu a cabeça num gesto irritado e se afastou deles.
— Não me meti em seus assuntos por pura curiosidade, Perdição
— Lief explicou em voz baixa.
— Não? — o homem fitou-o longamente e então virou-se para Dain.
— Combinei com Steven, o mascate, para encontrá-lo dentro de alguns
dias — ele comunicou simplesmente. — Ele tem novos suprimentos para nós. Você
vai me acompanhar? Ou prefere ficar com seus novos amigos?
— Ele não tem escolha, Perdição. Dain precisa ir com você — Barda
ajuntou rapidamente. — Temos uma longa e difícil jornada à nossa espera.
— Não quero ser uma carga para ninguém — Dain respondeu aborrecido
corando. — Vou com você, Perdição, para encontrar Steven.
Perdição assentiu com um leve gesto de cabeça. E então, como se tivesse
ficado ressentido por ver Dain ser deixado de lado com tanta facilidade, ergueu uma
sobrancelha e disse:
— E que lugar é esse que torna a jornada de vocês tão difícil? — ele quis
saber.
Mesmo muito tempo depois, Lief não soube explicar a resposta que dera a
Perdição naquele momento. Ele seguira um impulso, talvez por querer dar a ele
alguma informação como sinal de confiança. Ou talvez estivesse simplesmente
cansado de mentiras.
— Nós vamos para o Vale dos Perdidos — ele disse claramente. Barda e
Jasmine viraram-se para ele surpresos por vê-lo falar tão francamente. Dain
pareceu curioso, mas Perdição apenas assentiu, a expressão sombria.
— Imaginei que iriam para lá. E aconselho, do fundo do coração, que
desistam desse plano. O Vale não é para gente como vocês.
— O que você sabe? — Barda indagou irritado.
Perdição olhou para onde Neridah se encontrava sentada, observando a
água do lago, e baixou a voz.
— É um lugar maligno. Um lugar de sofrimento e de almas perdidas. Sei de
muitos que lá entraram em busca da grande jóia, o prêmio de seu Guardião.
Lief olhou rapidamente para Barda e Jasmine. Ambos pareciam perplexos
e atentos. Ele molhou os lábios.
— Uma grande jóia? — ele perguntou cauteloso. Perdição fitou-o com um
quê de sarcasmo.
— Não me insultem tentando fingir que nada sabem. Eu sei que essa é a
sua meta. Dizem que se trata de um diamante maior e mais poderoso do que
qualquer outro já visto. Maravilhoso. Puro. Sem preço. Isso não é segredo por essas
bandas. A sua fama atraiu muitos antes de vocês para as garras do Guardião.
Todos entraram esperançosos no Vale. Todos desejaram amargamente nunca tê-lo
visto.
Lief sentiu uma pontada de medo, mas endireitou os ombros. Barda estava
parado como uma rocha, a mão pousada na espada. Mas Jasmine atirou os
cabelos para trás e ergueu o queixo.
— Mesmo assim, precisamos ir — ela disse desafiadora. Perdição
estendeu as mãos e agarrou-a pelos ombros.
— Você não precisa! — ele falou entre os dentes cerrados. — Escute o que
estou dizendo! A busca de vocês já está perdida. Se insistirem, também se
perderão. E para quê? Por causa de um sonho. Por nada!
Jasmine soltou-se com um safanão e deu um passo para trás,
colocando-se ao lado dos amigos. Perdição fitou-os por um momento, ergueu as
mãos, mas logo as deixou cair novamente, num gesto de derrota.
— Fiz o que pude — ele murmurou. — Não há nada mais que eu possa
fazer. Mas é um desperdício. Vocês já têm muitos seguidores. Juntos, poderíamos
ter incitado o povo. Poderíamos ter nos unido para combater o Senhor das Sombras.
Poderíamos ter salvado Deltora.
— É verdade que, por ora, devemos seguir caminhos separados — Barda
afirmou. — Mas, no momento certo, iremos nos unir e lutar juntos.
— No momento certo... — Perdição repetiu, virando-se. — Temo que esse
momento nunca chegue para vocês, amigos. Não agora.
Com uma expressão sombria, ele jogou a mochila sobre os ombros e fez
um sinal para Dain.
— Diga a Neridah que estamos partindo — ele ordenou. — Já perdi muito
tempo aqui, e Steven não vai esperar.
Com um último olhar para Lief, Barda e Jasmine, Dain caminhou vacilante
até a beira da água.
— Você sabe mais do que está nos contando, Perdição! — Jasmine
exclamou. — Se puder nos ajudar, faça-o!
— Vocês recusaram a única ajuda que posso lhes oferecer — ele
murmurou. — Vocês não têm o direito de pedir mais do que isso.
Ele fitou-a carrancudo, e Jasmine devolveu-lhe o olhar, seus olhos verdes
tomados pela raiva. E então, inesperadamente, ele soltou uma breve risada.
— Há uma coisa que posso fazer por vocês — ele disse condescendente.
Perdição puxou um gorro de lã preta do bolso e jogou-o para ela. Você e o pássaro
fazem com que o seu grupo seja reconhecido. Cubra os seus cabelos com isso.
Você já está vestida como um garoto, bem esfarrapado, para falar a verdade. É o
seu cabelo que a denuncia.
Jasmine fitou-o longamente, como se não tivesse certeza de aceitar o
presente, mas finalmente o bom senso superou o orgulho. Ela ergueu os cabelos e
ajeitou-os sob o gorro, cobrindo as orelhas com ele. A transformação foi instantânea.
Foi como se um garoto mal-humorado estivesse parado diante deles.
Kree gritou, numa evidente demonstração de que a mudança não lhe
agradara. Perdição, contudo, fez um gesto de aprovação.
— Assim está melhor — ele elogiou.
Ele se voltou assim que Dain se aproximou e exibiu uma expressão
carrancuda ao notar que o garoto vinha sozinho.
— Por que Neridah não está com você? — ele disparou.
— Ela... ela não vai conosco — Dain balbuciou. — Ela disse que vai
continuar a viagem até a casa dela.
— Então foi por isso que ela insistiu em me acompanhar — Perdição
resmungou zangado. Tenho certeza de que ela nunca teve a intenção de voltar. A
vida na fortaleza não agrada a ela. É muito difícil e perigosa e não há dinheiro para
gastar com os luxos aos quais uma atleta mimada se acostumou.
— Mas... ela não tem medo de que os Guardas Cinzentos a sigam? — Lief
se espantou.
— Certamente ela pensa que será capaz de persuadir você a
acompanhá-la em pelo menos parte do trajeto. E ela está convencida de que vai
estar em segurança quando chegar em casa — Perdição disse com certa ironia. —
Ela é tola. Mais uma que insiste em não ouvir conselhos.
Sem dizer mais nada, ele se virou a começou a se afastar na direção das
colinas. Dain hesitou por um momento, depois murmurou uma despedida
apressada e correu atrás dele.
Como Perdição havia previsto, Neridah fez o que pôde para convencer os
amigos a permitir que ela os acompanhasse. No fim, ela não resistiu e chorou nos
braços de Barda, alegando que deixara a Resistência apenas porque Perdição lhe
partira o coração.
— Eu o amo — ela soluçou. — Mas ele é cruel e não liga para mim. Não vou
ficar onde posso vê-lo todos os dias. É impossível.
Barda deu-lhe tapinhas desajeitados no ombro, mas Jasmine a observava
com uma surpresa fria e Lief... Lief conhecia muito bem as manobras enganosas
de Neridah para acreditar que as lágrimas dela fossem verdadeiras.
Finalmente, cedendo à insistência de Barda, eles concordaram em deixá-la
viajar com o grupo por um ou dois dias.
— Mas, depois disso, precisamos nos separar, Neridah — Barda avisou
com gentileza. — Nosso destino é um local assustador e perigoso.
— O Vale dos Perdidos — ela sussurrou. — Eu sei. Eu ouvi o nome
enquanto vocês conversavam com Perdição. Vocês são tão corajosos... muito mais
do que ele imagina.
Mais uma vez, Lief se perguntou o que significava a atitude dela. Ela não
dera nenhum sinal de que ouvira o que haviam falado com Perdição. Ela ficara
sentada, bastante quieta, fitando o lago como que perdida em pensamentos. E
durante todo o tempo ela estivera ouvindo. Ela ouvira o nome do Vale dos Perdidos.
O que mais teria escutado?
Ela é astuciosa, Lief concluiu. Precisamos ter cuidado.
No final, Neridah viajou com o grupo cerca de uma semana. Ela protestou
com veemência quanto a viajar à noite e foi uma companheira mal-humorada e
irritada. Contudo, embora passassem por várias estradas que levavam à casa dela,
ela se recusou a segui-las. Sempre que Lief, Barda e Jasmine tentavam separar-se
dela, ela chorava e corria atrás deles. Ela grudava neles como mel e acabou por
perder até a simpatia de Barda.
— Estou começando a achar que ela não está sendo sincera conosco —
ele sussurrou certo dia, depois que Neridah enfiou-se amuada sob seu cobertor. —
Ela disse que queria ir para casa. Por que não faz isso?
— Não sei — Lief sussurrou em resposta. — Mas precisamos dar um jeito
nela depressa. Eu não confio nela e não a quero conosco quando chegarmos ao
Vale dos Perdidos. Segundo o mapa e os nossos cálculos, ele não fica longe daqui.
— Uma coisa é certa: de bom grado, ela não vai deixar que continuemos
sem ela — Jasmine afirmou aborrecida. — Portanto, temos duas opções. Ou
batemos na cabeça dela e corremos, ou esperamos até que ela esteja
profundamente adormecida e nos afastamos pé ante pé.
Ela pareceu um tanto desapontada quando Lief e Barda escolheram a
segunda opção.
Algumas horas depois, eles puseram o plano em prática, esgueirando-se
para longe do acampamento como ladrões. Caminharam depressa o dia todo,
tentando não ser vistos e, quando o sol se pôs, chegaram a uma cadeia de
montanhas escarpadas e densamente arborizadas.
— O Vale fica nessa cadeia, tenho certeza — Barda afirmou.
— Vai ser uma escalada longa e difícil — Lief suspirou, analisando as
montanhas. — E perigosa também, pois a floresta é muito densa e escura. A Lua
está em seu quarto minguante e amanhã não poderemos contar com a luz do luar.
— Não consigo escutar nada com essa lã grossa cobrindo os ouvidos —
Jasmine reclamou impaciente, arrancando o gorro e sacudindo os cabelos aliviada.
— E então, o que você estava falando? Que vai estar escuro de noite? E que a
floresta é muito densa? É verdade. Que tal dormirmos a noite toda desta vez, já que
podemos escalar durante o dia escondidos pelas árvores?
O plano parecia excelente e eles fizeram exatamente o que Jasmine
sugeriu. Assim sendo, foi somente no final do dia seguinte que os amigos atingiram
o cume da montanha escarpada e conseguiram ver a enorme fenda na terra que
era o Vale dos Perdidos.
Uma névoa espessa arrastava-se taciturna no fundo do vale. Agitada pelos
lentos movimentos de vultos quase invisíveis que se aglomeravam nas profundezas,
ela recobria o topo das árvores. Um calor leve e úmido cheirando a folhas e madeira
em decomposição e vidas sufocadas roçou o rosto dos amigos como um eco
enviado pela névoa.
Jasmine estava irrequieta. Filli choramingava em seu ouvido, e Kree, após
um leve e único pio, sentou-se imóvel em seu braço.
— Eles não gostam do Vale — ela murmurou.
— Eu também não posso dizer que estou maravilhado — Barda devolveu
secamente.
Jasmine curvou os ombros e estremeceu. E então, sem dizer nada,
virou-se e voltou para a maior das árvores que circundavam a beira do penhasco.
Surpresos, Lief e Barda observaram quando ela ergueu Filli e o colocou no galho
mais alto que pôde alcançar. Kree voou e pousou ao lado dele.
— Sei que vocês vão cuidar um do outro — Jasmine disse. — Tomem
cuidado.
Ela se virou e, sem olhar para trás, voltou para a companhia de Lief e Barda,
e encontrou seus olhares interrogativos.
— Eu disse... Kree e Filli não gostam do Vale. Eles não podem descer até
lá.
— Por quê? — Lief indagou, intrigado. Ele olhou para o galho em que Kree
e Filli encontravam-se pousados, olhando desamparados para Jasmine.
— Se eles descerem, morrerão — Jasmine explicou simplesmente, dando
de ombros. — E qualquer outra criatura. A névoa os matará.
Um calafrio percorreu o corpo de Lief.
— E quanto a nós? — ele indagou bruscamente.
— Há pessoas lá embaixo. Posso ver suas sombras em meio à neblina —
Jasmine contou. — E, se elas podem sobreviver, nós também podemos. Vamos
descer até onde a névoa começa. Lá, decidiremos o que fazer.
Bruscamente, ela se virou e ergueu a mão para Kree e Filli. Então se voltou
novamente, ajeitou o gorro com firmeza sobre as orelhas e caminhou até a beirada
do penhasco.
Lief e Barda a seguiram. O chão sob seus pés era íngreme, traiçoeiro,
escorregadio e coberto de pedras soltas. Andando e escorregando, sempre se
arriscando a cair, eles desciam cada vez mais. Depois de apenas alguns minutos,
Lief perdeu a noção de que estava caminhando por sua livre vontade. As pedras
escorregadias e o declive fortemente inclinado faziam o trabalho por ele. Visto da
beira do penhasco, o Vale tinha parecido muito distante. Agora ele se aproximava
rapidamente.
Uma vez ele olhou para trás. O cume do penhasco assomava alto sobre
eles. Impossivelmente alto e distante. Era difícil acreditar que ele e os amigos
haviam estado lá em cima, que tinham tido a opção de descer, ficar onde se
encontravam ou até dar as costas ao Vale e partir.
Parecia que, naquele momento, não havia escolha. Quanto mais se
aproximavam da pesada neblina, mais ela parecia atraí-los e mais íngreme se
tornava o declive. Era preciso muito mais energia para parar do que para prosseguir.
Os companheiros apoiavam-se uns nos outros para não cair, mas pouco podiam
fazer para se ajudar mutuamente.
E, antes que se dessem conta, estavam envolvidos pela névoa. Era como
se ela tivesse se erguido para encontrá-los, roçando-lhes os rostos com dedos
quentes e úmidos, turvando-lhes os olhos. Lentamente, ela se insinuou em seus
narizes e bocas, enchendo-os com seu cheiro exageradamente adocicado e seu
sabor de deterioração.
"Não era esse o plano", Lief pensou confuso. Ele tentou parar em meio a um
passo, escorregou e caiu, rolando cegamente ofegante, debatendo-se nas pedras.
Ele ouviu Barda e Jasmine chamá-lo assustados, mas não conseguiu interromper a
queda.
Quando finalmente parou, percebeu que se encontrava no fundo do Vale. A
névoa espessa o circundava. Árvores espectrais, cobertas de musgo denso,
repletas de trepadeiras que pendiam de seus galhos estendiam-se sobre sua
cabeça. Grandes porções de um fungo vermelho escuro e reluzente saíam salientes
das raízes retorcidas ao lado de seu rosto. Samambaias viçosas arqueavam-se ao
seu redor, tocando-lhe o rosto e as mãos enquanto ele se esforçava para erguer-se
ofegante.
E em toda a sua volta ouvia-se um suave suspirar, como uma leve brisa
soprando entre as árvores. Mas não havia vento. O som parecia vir de todos os
lados, do interior do espaço cinzento e inquietante onde sombras ainda mais
escuras deslizavam, contorciam-se e se aproximavam.
— Barda! Jasmine! — Lief chamou tomado por repentino pavor. Contudo, a
névoa abafou-lhe a voz, e ela lhe pareceu fina e estridente. E, quando seus amigos
responderam, as vozes deles pareceram estar muito, muito distantes.
Lief tornou a chamá-los. Ele imaginou ter ouvido um grito de dor e sentiu o
peito apertar. Mas então viu os amigos saídos da escuridão, aproximando-se aos
tropeços. Ele se inclinou para a frente, agarrando-lhes os braços, agradecido.
— Bem, pelo menos ainda estamos vivos — Barda resmungou. — A névoa
ainda não nos matou.
Jasmine, porém, nada disse. Ela havia empunhado a adaga e se
encontrava parada, muito quieta, todos os músculos tensos.
O som murmurante e plangente estava mais alto. A névoa que os cercava
girava e crescia, e as sombras escureciam e se aproximavam.
— Afastem-se! — Jasmine gritou, erguendo a adaga num gesto
ameaçador.
As sombras vacilaram por um momento para logo em seguida avançarem
novamente. E então Lief pôde ver que eram pessoas, multidões de homens,
mulheres e crianças atravessando a neblina, vindas de todas as direções.
Elas não pareciam inamistosas. Na verdade, à medida que se aproximavam
devagar, os seus rostos pálidos pareciam acolhedores e tomados por uma
ansiedade tímida, enquanto as mãos longas e finas se estendiam na direção dos
companheiros. Os dedos eram de um cinza-claro, quase transparentes, assim
como as roupas compridas que esvoaçavam ao redor delas. Os cabelos pendiam
escorridos pelas costas. Não era de surpreender que parecessem fazer parte da
névoa.
Elas sussurravam enquanto se moviam, o som de suas vozes era
semelhante ao de folhas secas farfalhando ao vento, mas Lief não compreendia
nada do que diziam. Ainda assim, ele não se sentiu ameaçado. Mesmo quando elas
chegaram muito perto e a primeira delas tocou-lhe o rosto, as roupas e os cabelos
com dedos ressecados e leves como asas de uma mariposa, ele não sentiu medo,
somente uma repugnância que o fez retrair-se.
E ainda mais e mais pessoas chegaram. Os trapos descorados que
usavam cobriam membros que pareciam apenas pele e osso. As suas formas
davam a impressão de se misturar e se unir, e de se sobrepor à medida que
avançavam, cada mão movendo-se em cima de dezenas de outras, tocando,
apertando...
Barda e Lief estavam rigidamente imóveis, enquanto Jasmine tremia, a
boca apertada e os olhos fortemente cerrados.
— Não posso suportar isto — ela sussurrou. — Quem são eles? O que há
de errado com eles? — ela segurava a adaga frouxamente na mão e não fez
menção de usá-la. Estava muito claro que aquelas pessoas eram totalmente
inofensivas e que passavam por terríveis dificuldades.
Houve uma agitação em meio à multidão. Ela se inclinou e estremeceu
como um pasto verdejante varrido pelo vento. E então as mãos irrequietas foram se
retraindo, as pessoas se afastaram, sussurrando em meio à névoa, os olhos
cinzentos tomados por um anseio desesperançado.
O medo pairava no ar. Lief podia senti-lo, até quase cheirá-lo. E então ele
viu quem o provocava. Uma sombra alta e escura, perfurada por dois pontos
vermelhos de luz que brilhavam como carvões incandescentes, atravessava a
neblina na direção deles.
Lief tentou colocar a mão sobre a espada, mas não conseguiu movê-la. Ele
procurou recuar, porém os seus pés não obedeceram. Um simples olhar o avisou de
que Barda e Jasmine estavam igualmente enfeitiçados.
A sombra tomou forma, e Lief pôde constatar que os carvões
incandescentes eram olhos, olhos que queimavam no rosto devastado de um
homem alto e barbado que vestia uma túnica longa e escura. Ele segurava, em
cada uma das mãos, duas correias grossas e cinzentas que desapareciam na
névoa atrás dele como se estivessem presas a alguma coisa, mas parecia
ignorar-lhes a existência. O seu olhar penetrante estava fixo em Lief, Barda e
Jasmine.
Os amigos lutaram para se libertar, e os lábios finos do recém-chegado
curvaram-se num sorriso maldoso.
— Não desperdicem as suas forças — ele disse num tom satisfeito. —
Vocês não podem fazer nada, a menos que eu permita. É uma lição que vocês logo
aprenderão. Sejam bem-vindos ao meu vale. Há muito não tenho o prazer de
receber visitantes e agora tenho a felicidade de receber quatro.
Ele observou com vivo prazer quando Lief, Barda e Jasmine se
entreolharam surpresos. Quatro visitantes? Do que ele estava falando?
— Talvez vocês tenham pensado em me enganar ao se dividirem em
grupos, não é? — ele perguntou. — Ah, como gosto disto. Visitantes que apreciam
jogar. Isso fará com que tudo seja mais agradável para todos nós.
Ele curvou um dedo magro e, para surpresa dos companheiros, do meio da
névoa saiu Neridah aos tropeços, a expressão desnorteada, ferida e sangrando.
Obstinada, ela os seguira, apesar de tudo que haviam feito, e agora tinham,
além de si mesmos, mais uma pessoa com que se preocupar. Rangendo os dentes
e enraivecido, Lief lembrou o grito que ouvira. Sem dúvida, Neridah tropeçara ao
descer sozinha o íngreme declive.
Ele olhou para a mulher com irritação inútil, quando ela parou ao seu lado.
Mas Neridah não lhe devolveu o olhar. Ela olhava para a frente, os olhos cheios de
medo e confusão.
O homem que os torturava esfregou as mãos.
— Quem é você? — Lief indagou. O homem sorriu zombeteira.
— Eu? — ele replicou sarcástico. — Ora, vocês não adivinharam? Eu sou o
Guardião.
Com um movimento esvoaçante das túnicas, ele se virou e afastou-se para
dentro de névoa. Exatamente quando os companheiros iam perdê-lo de vista, ele
fez um gesto indiferente com uma das mãos e curvou o dedo indicador.
E, incapazes de impedir, os pés se arrastando como se lutassem para
resistir à ordem, Neridah, Lief, Jasmine e Barda o seguiram desajeitadamente.
A névoa girava ao redor deles enquanto caminhavam. Samambaias e
trepadeiras roçavam-lhe braços e pernas. Sombras tremeluzentes eram percebidas
com o canto dos olhos. O povo do vale observava, mas não ousava se aproximar.
O Guardião caminhava diante deles alto, as costas eretas.
— Se o Guardião está nos levando para a sua caverna, cabana ou onde
quer que more, melhor para nós — Jasmine sussurrou. — Pois é lá que ele
guarda...
Ela se interrompeu olhando para Neridah, que virou a cabeça zangada.
— Eu sei sobre o grande diamante — ela disse em voz alta. — Por que
acha que os segui até aqui? Por causa da excelente companhia? — ela lançou um
olhar assustado para o Guardião. — Eu achei que vocês tinham condições de obter
êxito, não importa quem tivesse falhado — continuou com voz trêmula. — Nunca
imaginei que vocês nos levariam a ser capturados assim que pisássemos no Vale!
— Já fomos capturados antes e escapamos — Jasmine sussurrou.
— E vamos conseguir outra vez. Ainda temos as nossas armas.
— Ele falou de jogos — Lief ajuntou devagar. — Ele gosta de jogos. O que
será que ele quer dizer?
— Nada agradável, imagino — Barda respondeu com uma careta. — Mas,
pelo menos, isso prova que ele é um homem e não um Ol ou qualquer outro animal
com forma humana. São os seres humanos que gostam de jogos.
— E, se ele é somente um homem, podemos derrotá-lo, apesar de toda a
mágica que usar — Jasmine completou. — Derrotá-lo e tomar-lhe a pedra. Só
temos que esperar e descobrir qual é o seu ponto fraco.
Lief hesitou. Ele também acreditava que o Guardião sob a aparência do
poder mágico era um ser humano. Mas não tinha certeza de que esse fato facilitaria
a tarefa deles. E alguma coisa ainda o estava incomodando na sua memória. Algo
que fazia com que ele se arrepiasse cada vez que pensava no diamante.
O grupo caminhou durante um tempo que pareceu longo, cruzou um riacho
fundo e, finalmente, chegou a uma clareira. Bruscamente, o Guardião parou e
ergueu a mão. Luzes começaram a brilhar através da névoa. Quando os
companheiros se aproximaram, viram que as luzes brilhavam no interior de um
palácio de vidro em forma de domo.
A neblina girava fora das paredes de vidro, refletindo a luz e emitindo um
brilho sinistro. Centenas de vultos cinzentos envoltos em sombras moviam-se na
névoa. Dentro do palácio, porém, cores vivas reluziam. Os diversos aposentos eram
decorados com móveis refinados, tapetes e quadros coloridos, estátuas de prata e
ouro, almofadas e cortinas de seda. Todo o local brilhava como uma jóia.
O Guardião deu um passo para o lado para que os prisioneiros tivessem
uma visão melhor das maravilhas do palácio. Ele sorria orgulhoso ao ver os rostos
perplexos.
— Vocês hão de concordar que é uma morada digna de um rei — ele disse.
Como ninguém lhe respondeu, o sorriso desapareceu de seu rosto e foi
substituído por uma expressão de escárnio.
— Nós vamos entrar. Talvez isso solte as suas línguas e torne vocês mais
agradáveis — ele puxou as correias que segurava nas mãos e quatro vultos
surgiram de trás dele, saídos da névoa.
Lief percebeu que Neridah reprimia um grito e, na verdade, ele mesmo mal
se conteve quando viu as criaturas que emergiram da neblina cinzenta.
Calvos, grosseiros, deformados, cobertos por chagas e abscessos, os
braços retorcidos pendendo quase até o chão, os monstros sorriam e babavam
enquanto fitavam os prisioneiros. As correias flexíveis que os prendiam ao seu
mestre saíam de pontos inchados e vermelhos na parte posterior de suas nucas.
Repugnado, Lief se deu conta de que as correias faziam parte deles. Carne de sua
carne.
— Esses são os meus bichos de estimação... meus companheiros — o
Guardião apresentou. — Eu os mantive escondidos até agora para não assustá-los.
Mas vocês aprenderão a amá-los, assim como eu. Talvez já gostem deles, apesar
de não saber. Eles são monstros bons e fortes, não é mesmo? Eles me protegem e
me fazem companhia. Eles se chamam Vaidade, Egoísmo, Rancor e Ganância.
Enquanto falava, deu uma leve pancadinha na cabeça de cada um. No
momento em que sentiram o toque do mestre, as criaturas se inclinaram e deixaram
escapar um gemido de prazer.
— Seus nomes são uma pequena brincadeira que inventei — ele disse,
sorrindo. — Pois cada um tem uma das imperfeições que mencionei, mas nenhum
recebeu o nome daquela que apresenta. Ganância não é ganancioso, Vaidade não
é vaidoso, Egoísmo não é egoísta. Rancor também não é invejoso, de jeito nenhum.
E, o que é mais importante, ele nunca sentiu rancor em toda a vida. Vocês não
acham isso divertido?
Novamente sem resposta, ele se virou e caminhou até uma porta instalada
numa das paredes do palácio. A porta se abriu e ele recuou.
Lief, Barda, Jasmine e Neridah caminharam até a entrada ao mesmo tempo.
Logo depois, estavam no interior do palácio seguidos pelo Guardião. Os monstros
amontoaram-se atrás dele, grunhindo, as correias balançando terrivelmente em
seus pescoços. Ao se chocarem, três deles começaram a rosnar e mostrar as
garras uns aos outros.
O mestre gritou uma ordem zangada, chutando-os com selvageria. Quando
eles finalmente se aquietaram, ele voltou a atenção aos prisioneiros.
— Assim como ocorre com crianças, às vezes os meus bichinhos
discordam e precisam de uma mão firme — ele disse com suavidade. — O egoísta e
o vaidoso têm muito medo de Ganância. Mas eles lutam, se for preciso, pois, afinal,
eles estão presos uns aos outros e não podem escapar.
A porta se fechou com um suave clique.
Lief olhou ao redor, piscando na luz brilhante. O aposento em que haviam
entrado era amplo e luxuosamente decorado. No centro, uma fonte jorrava e
cintilava. Almofadas de veludo formavam pilhas sobre o piso reluzente. Uma
música suave pairava no ar, embora Lief não pudesse constatar de onde o som
vinha.
Numa extremidade do aposento, havia uma longa mesa coberta por uma
toalha branca que reluzia com baixelas de prata e copos de cristal. Longas velas
brancas queimavam em castiçais sofisticados entre travessas repletas de pratos
fumegantes e cheirosos.
Cinco lugares haviam sido postos. Dois em cada lado da mesa e um na
cabeceira.
O Guardião esfregou as mãos com um som seco e irritante.
— Bem, agora estamos a sós — ele disse. — Agora podemos aproveitar a
companhia uns dos outros. Boa comida e bebida. Música. Conversa. E, depois,
talvez, o jogo.
A aparência e o aroma da comida eram ótimos, mas para os companheiros
o seu sabor lembrava poeira e cinzas, e eles pouco comeram. Eles falaram pouco,
também, pois ficara claro desde o início que o anfitrião não buscava uma
conversação, mas sim um público.
A voz do Guardião continuou ininterrupta, quando ele se sentou à cabeceira
da mesa, suas terríveis criaturas agachadas atrás de sua cadeira.
Lief notou que as correias eram atadas aos punhos do Guardião
certamente por tiras ocultas debaixo das mangas. Dessa forma, as mãos dele
ficavam livres enquanto os monstros continuavam sob seu controle.
— Nasci em meio a grandes riquezas, mas, devido à maldade e à inveja de
terceiros, perdi tudo — ele contou, despejando um vinho dourado num cálice de
cristal. — Fui expulso de minha casa. Ninguém ergueu um dedo para me ajudar.
Sozinho, sofrendo, desesperado e desprezado, refugiei-me neste vale. No início, os
meus únicos companheiros eram os pássaros e outras pequenas criaturas. Mas...
— Não há pássaros ou pequenas criaturas neste vale — Jasmine
interrompeu. — Pelo menos que eu tenha visto.
O Guardião fitou-a por sob as sobrancelhas, claramente aborrecido com a
interrupção.
— Eles foram embora — ele disparou irritado. — Não havia mais lugar para
eles, aqui, depois que eu me transformei e este se tornou o Vale dos Perdidos — ele
se inclinou para a frente, os olhos vermelhos emitindo um brilho quente sob a luz
das velas. — Vocês não querem saber como esse milagre aconteceu? — ele
perguntou. — Vocês não querem saber como eu, um pária, reuni novas riquezas,
um novo reino e poderes milhares de vezes mais fortes do que aqueles que perdi?
Ele não esperou a resposta e prosseguiu como se não tivesse havido
nenhuma interrupção.
— Um voz me falou quando eu estava mergulhado no sofrimento. Ela
sussurrava palavras nos meus ouvidos, dia e noite. Ela me lembrava de como eu
tinha sido enganado. De como fora traído. Do que eu tinha perdido. Primeiro,
pensei que iria ficar louco. Mas então...
Os olhos brilhantes assumiram um ar vidrado. E, quando ele tornou a falar,
foi como se tivesse se esquecido dos visitantes que estavam em sua companhia,
como se estivesse contanto a história para si mesmo, uma história que ele contara
muitas e muitas vezes antes.
— Então, eu vi a resposta — ele murmurou. — Vi que a luz havia me traído,
mas que a escuridão iria dar-me força. Vi que durante toda a vida eu vinha trilhando
o caminho errado. Vi que o mal teria êxito onde o bem tinha fracassado. E, então,
aceitei o mal. Acolhi-o em meu coração e, assim, renasci como o Guardião.
Bruscamente, os seus olhos perderam o ar vidrado e se concentraram nos
estranhos ao redor da mesa. Ele notou os rostos rígidos e sérios, os pratos quase
intocados.
— Por que não comem? — ele indagou irritado. — Vocês desejam me
insultar?
Lief olhou através da parede mais próxima à mesa. Meio escondido na
névoa, um grupo de rostos ansiosos e abatidos colava-se ao vidro.
— Não ligue para eles — o Guardião recomendou sorrindo, fazendo um
aceno casual para a multidão. — Os meus súditos não comem nem bebem. Eles
estão acima das necessidades comuns da carne. É a sua vida calorosa que eles
desejam ardentemente.
Jasmine, Barda e Neridah ficaram ainda mais rígidos. Lief molhou os lábios,
estremecendo interiormente ao lembrar os dedos secos e cinzentos que o
acariciaram.
— Você quer dizer que eles são espíritos dos mortos? — ele indagou
confuso.
O Guardião pareceu indignado e, atrás dele, os monstros se mexeram e
grunhiram.
— Espíritos dos mortos? — ele vociferou. — Você acha que eu governaria
um reino de mortos? Os meus súditos estão muito vivos, ah, estão, sim, e assim
ficarão até o final dos tempos. Eles definham, enfraquecem, mas não envelhecem
nem morrem. Irão viver aqui, em meus domínios, para sempre. Essa é a sua
recompensa.
— Recompensa! — Neridah explodiu. As mãos dela tremiam ao empurrar o
prato para longe.
O Guardião assentiu, alisando a barba Pensativamente.
— Uma ótima recompensa, não é mesmo? — ele murmurou. — Embora eu
tema que eles sejam ingratos. Eles não sabem apreciar a boa sorte que têm.
— Como eles conquistaram essa recompensa? — Lief obrigou-se a
perguntar.
— Ah... — o Guardião esticou-se satisfeito — na verdade, essa é a
pergunta pela qual eu estava esperando. A grande maioria de meus primeiros
súditos chegou até mim trazida por uma forte ventania, o orgulho que causara a sua
queda ainda forte dentro deles — ele murmurou. — Outros, como vocês, cheios de
inveja e cobiça chegaram depois para tentar me tomar o meu tesouro mais precioso.
O símbolo de meu poder. O grande diamante do Cinturão de Deltora.
Lief não ousou fitar os amigos ou Neridah. Ele agarrou os braços da cadeira
com força numa tentativa de não revelar seus sentimentos.
Contudo, era evidente que o Guardião não se deixara enganar. Ele sorriu
para os presentes na mesa, os olhos vermelhos assimilando avidamente as
expressões dos rostos de seus convidados. Então, ele raspou as últimas migalhas
do prato e jogou-as ao chão com indiferença. Os quatro monstros lutaram pela
comida, cada qual brigando com selvageria por seu quinhão, enquanto o mestre os
observava com um sorriso.
— Certa vez, Egoísmo quase matou o ganancioso num jantar como este —
ele comentou indolente, enquanto o tumulto finalmente chegava ao fim. — Ah,
bem...
Devagar, ele empurrou a cadeira e se levantou, as criaturas desfiguradas
movendo-se desajeitadamente e babando atrás dele.
— E agora é hora de jogar — ele anunciou. — É o momento de que gosto
mais. Acompanhem-me.
Ele não precisou pedir. Os pés deles o seguiam, quer quisessem ou não,
enquanto ele passava de um aposento reluzente a outro acompanhado de perto
pelos monstros.
Finalmente, o grupo chegou a um aposento que mostrava claramente que
era onde ele passava a maior parte do tempo. Cortinas vermelho-escuras cobriam
as paredes, ocultando a neblina e os demais aposentos. Belos quadros e desenhos
e um enorme espelho dentro de uma moldura esculpida decoravam o ambiente.
No chão, havia um tapete com uma rica estampa de flores, frutas e
pássaros e um humilde eremita em cada extremidade. "Uma das brincadeiras do
Guardião", Lief pensou. Em nenhum outro lugar deste vale, seriam encontrados
seres vivos, belos e simples. Sobre o tapete, em frente a um sofá coberto de
almofadas, havia uma mesa baixa na qual se empilhavam vários livros. Centenas
de outros volumes lotavam estantes que se erguiam ao redor das paredes.
O Guardião não parou, atravessou o aposento e puxou a cortina a fim de
revelar uma porta de vidro numa das paredes. Ele não a abriu, mas deu um passo
para o lado e, com um gesto do braço, convidou os visitantes a observar o espaço
que se descortinava do outro lado.
Era um pequeno quarto que continha apenas uma mesa de vidro colocada
exatamente no centro. Sobre ela, havia um porta-jóias dourado.
— A pedra que procuram está no porta-jóias — o Guardião informou com
voz trêmula. Era evidente que ele mal conseguia conter a alegre excitação. —
Aquele que competir comigo e vencer poderá entrar no quarto e apanhar o prêmio.
Lief colou-se à porta de vidro. O Cinturão de Deltora aqueceu levemente, o
que provava que o Guardião dizia a verdade. O grande diamante estava no
aposento. O Cinturão podia senti-lo.
Barda empurrou a porta com o ombro, mas ela não se moveu.
— Não há força que destranque esta porta — riu o Guardião. Ela está
selada por mágica e assim permanecerá até que vocês conquistem o direito de
abri-la. E, então, querem jogar?
— Temos escolha? — Jasmine murmurou.
— Ora, é claro que sim! — o Guardião exclamou, erguendo as
sobrancelhas. — Se vocês quiserem, podem sair daqui, agora, de mãos vazias.
Dêem as costas para a pedra que vieram buscar. Voltem para o lugar de onde
vieram. Eu não os impedirei.
Lief, Barda e Jasmine se entreolharam.
— Se ganharmos o jogo e entrarmos no quarto, o diamante será nosso
para sempre? — Lief queria ter certeza absoluta. — Você permitirá que deixemos o
Vale levando o prêmio conosco? Você dá a sua palavra?
— Certamente! — garantiu o Guardião. — Essa é a regra. O prêmio será
seu para sempre.
— E se perdermos? — Barda perguntou bruscamente. — O que vai
acontecer?
O Guardião estendeu as mãos. As correias carnosas saltaram livres de
seus pulsos e os monstros mexeram-se atrás dele.
— Então... bem, então vocês serão meus para sempre. E vocês
permanecerão aqui como todos os outros que escolheram competir comigo. Vocês
passarão a fazer parte do Vale dos Perdidos. Para sempre.
Os companheiros ficaram imóveis ao lado da porta. Do lado de fora do
pequeno quarto em que se encontrava o porta-jóias, mãos cinzentas e
desesperadas roçavam o vidro através da névoa espessa.
— Vão aceitar o desafio? — o Guardião murmurou. Os seus olhos
queimavam como carvões incandescentes enquanto esperava pela resposta.
— Precisamos saber mais detalhes antes de decidir — Barda replicou
devagar.
— Eu não preciso saber de mais nada! — Neridah exclamou. — Eu já decidi.
Esses três podem fazer o que quiserem, mas eu não vou participar de nenhum jogo.
O Guardião se curvou, embora a sua expressão denotasse sarcasmo.
— Então, senhora, pode partir — ele respondeu, fazendo um gesto
indiferente com o braço.
Neridah cambaleou como se o feitiço que a envolvia tivesse sido quebrado.
Ela recuou, virou-se e correu do aposento sem olhar para trás.
— Uma pena — o Guardião suspirou. — Pensei que ela, de todos vocês,
achasse impossível resistir à atração do diamante. Talvez, mesmo agora, ela mude
de idéia e volte. Ela carrega um cheiro de ganância e inveja muito forte.
Ele se voltou para as criaturas aos seus calcanhares e afagou-as, uma a
uma.
— Vocês perceberam isso, não é mesmo, meus queridos? — ele cantarolou.
Os monstros grunhiram em concordância, esfregando as caras inchadas contra as
mãos de seu mestre num gesto de adoração.
Sem se incomodar em virar, ele estalou os dedos na direção dos visitantes.
Com alívio, eles sentiram os laços invisíveis que os prendiam afrouxar. De repente,
podiam mover-se livremente.
O Guardião caminhou até o espelho e começou a se examinar com
admiração, alisando a barba e sorrindo. Os dedos de Lief ansiavam por apanhar a
espada e atacar. Mas ele sabia, assim como Barda e Jasmine, que seria inútil.
Rancor, Ganância, Vaidade e Egoísmo os observavam, os dentes à mostra. A um
único som de alerta, o Guardião se viraria e lançaria outro feitiço, talvez ainda mais
poderoso que o anterior.
— É hora de dormir — ele disse por fim, afastando-se do espelho com um
bocejo. — Ao contrário de meus súditos, ainda tenho essas necessidades humanas.
O que mais querem saber?
"Ele tem certeza de que queremos o diamante", Lief pensou. "Ele sentiu a
nossa necessidade quando olhamos para o porta-jóias. Por outro lado, a
necessidade dele também é grande. Ele finge não se importar, mas ele realmente
quer que participemos do jogo. O orgulho faz com que ele queira provar ser mais
poderoso e inteligente do que nós, nos subjugar e derrotar. Esse é o seu ponto
fraco."
— Só poderemos decidir se vamos jogar ou não se soubermos mais sobre o
jogo — Jasmine disse em voz alta. — Que jogo é esse? Como se joga?
O Guardião franziu o cenho hesitante.
— Você quer que joguemos, ou não? — Lief insistiu. — E nós... nós
queremos o diamante, eu confesso. Mas nós seríamos tolos em arriscar a nossa
liberdade cegamente. Precisamos saber se é possível vencer.
— É claro que é possível — o Guardião disparou, fitando-os atentamente.
— Estão me acusando de trapacear?
— Não — Lief garantiu —, mas alguns jogos dependem de sorte e
oportunidade. Talvez o seu seja um desses. E, se for assim...
— O meu não é um jogo de sorte! — o Guardião vociferou. — É uma
batalha de inteligência.
— Então prove — Barda pediu com calma. — Diga o que precisamos fazer.
O Guardião refletiu por um momento e então sorriu.
— Parece que vocês serão oponentes respeitáveis — ele comentou. —
Muito bem. Eu lhes direi. Tudo que precisam fazer é descobrir uma palavra. A
palavra que irá destrancar a porta. E essa palavra é... o meu verdadeiro nome.
Os companheiros fitaram-no em silêncio. De todas as coisas que
esperavam, essa era a menos provável.
O Guardião assentiu satisfeito, contente com a surpresa dos amigos.
— As pistas para a charada estão neste palácio — ele ajuntou provocador.
— E a primeira está escondida neste aposento.
— Agradeceríamos se pudéssemos ficar um pouco sozinhos, a fim de
tomar a nossa decisão, senhor — Barda pediu, endireitando os ombros e usando
um tom o mais educado e formal possível.
— Certamente! — O Guardião fez uma mesura. — Sou um homem muito
justo e vou lhes conceder essa cortesia. Mas peço que não abusem de minha
paciência. Voltarei dentro de instantes, e vocês deverão ter a resposta.
Ele tomou as correias de suas criaturas nas mãos, virou-se e os deixou.
Assim que ficaram a sós, Jasmine correu até a porta de vidro e olhou para o
quarto mais uma vez.
— Há outra porta aí dentro! — ela sussurrou. — Uma porta que leva para
fora. Está vendo? Ali, no canto.
— E daí? Qual é o seu plano? — Barda indagou desconfiado.
— É simples — Jasmine começou, os olhos brilhando. — Diremos ao
Guardião que jogaremos o estúpido jogo. E então, enquanto ele estiver dormindo,
encontraremos um modo de entrar no quarto. Podemos roubar a pedra, sair pela
outra porta e escapar do Vale antes que ele acorde.
— Não! — Lief exclamou impulsivo.
— Você está com medo? — Jasmine retrucou, fitando-o aborrecida. — Com
medo da magia dele?
Lief hesitou. Não era bem isso, mas algo diferente. Era a lembrança que
insistia em não deixar a sua mente. Um aviso. Algo sobre o diamante...
— Seria tolice não ter medo, Jasmine — Barda concordou. — O homem
tem grandes poderes e é totalmente louco. Seja lá quem for que ele tenha sido
algum dia, o Senhor das Sombras apoderou-se de seu corpo e alma.
Ele se encontrava inclinado sobre a mesinha dando uma rápida olhada nos
livros que ali se encontravam. Lief percebeu que Barda, prático como sempre,
estava verificando se o nome do Guardião ou parte dele estava rabiscado na capa
de um dos volumes e se aproximou para ajudá-lo.
— Vocês nunca vão descobrir o nome dele desse jeito! — Jasmine
murmurou furiosa. — Se fosse simples assim, aquelas pobres almas lá fora, na
janela, teriam...
O grito sufocado de Lief interrompeu as palavras de Jasmine. No fundo de
uma das pilhas de livros, ele se deparou com algo familiar. Um pequeno volume
azul descorado. Ele o apanhou e o abriu.
Como esperava, e ao mesmo tempo temia, era O Cinturão de Deltora, o
livro que tantas vezes estudara em sua casa, em Del. O livro que vira pela última
vez na masmorra em que o pai se encontrava acorrentado e indefeso.
E agora estava ali. Ali, no Vale dos Perdidos! Com o coração aos pulos, ele
estendeu o livro para que Barda e Jasmine vissem. Barda franziu o cenho.
— O fato de o Guardião ter uma cópia do livro não significa nada — ele
comentou. — Certamente, há vários exemplares, não apenas um. Eles devem estar
espalhados por vários lugares esquecidos, em todo o reino.
— Pelo que o Guardião nos contou, podemos ter certeza de que ele é um
servo do Senhor das Sombras — Lief argumentou. — E, se ele tem estudado este
livro, é porque está obedecendo a ordens de seu mestre. O Guardião finge acreditar
que somos estranhos comuns que querem o diamante por simples ganância. Mas,
talvez, ele saiba que nosso objetivo é outro.
— Então por que se importar com essa história de jogo? — Jasmine
replicou. — Ele pode nos matar quando desejar.
— Talvez ele esteja apenas se divertindo — Lief conjeturou, estremecendo.
— Brincando conosco como os gatos brincam com os ratos.
— É possível — Barda refletiu. — Mas talvez não. Ele não sabia quando
viríamos. E, se ele foi avisado sobre a chegada de um garoto, um homem e uma
garota acompanhada de um pássaro preto, ele pode não ter se dado conta de que
somos nós. Kree não está conosco, Jasmine está usando roupas de homem e
chegamos aqui com Neridah.
— Pelo menos, nesse momento ela foi útil — Jasmine resmungou.
Lief folheava freneticamente o pequeno livro. Em cada página, havia
palavras e frases das quais se lembrava muito bem, mas ele procurava somente
uma coisa. A passagem sobre os poderes do diamante.
E, finalmente, ele a encontrou.
O diamante é o símbolo da inocência, da pureza e da força.
Diamantes obtidos com nobreza e com coração puro são uma poderosa força
para o bem. Eles conferem coragem e força, protegem contra influências
malignas e ajudam nas causas movidas pelo verdadeiro amor. Mas fique
atento a este conselho: diamantes conseguidos através de perfídia ou
violência ou desejados por inveja ou ganância representam presságios
malignos e trazem má sorte. Aqueles que os obtêm sem honra serão vítimas
de indizível perversidade.
— Era isso o que eu tentava lembrar — Lief disse rapidamente, mostrando
a passagens aos companheiros. É por isso que não podemos roubar o diamante!
Os amigos olharam para o livro e depois um para o outro.
— Esse aviso não é para nós — Jasmine protestou. — Afinal, não
queremos a pedra por ganância ou inveja. Nós a estaríamos roubando por uma boa
causa. Nós a estaríamos resgatando das mãos do mal e devolvendo-a ao seu lugar
de direito!
— As palavras são claras — Lief discordou. — O diamante deve ser obtido
sem o uso da força ou de trapaças. Do contrário, ele só nos trará o mal, assim como
trouxe ao Guardião.
— E então... — Barda murmurou.
Lief suspirou, fechando o livro e recolocando-o em seu lugar na mesa.
— O Guardião deve dá-lo para nós voluntariamente. E há somente uma
maneira de obrigá-lo a fazer isso. O orgulho é sua fraqueza, e esse jogo é
importante para alimentar esse orgulho. Acho que, se pudermos vencê-lo, ele será
forçado a...
Nesse momento, ouviram o som de passos. O Guardião retornava. Ele
entrou no aposento, seus animais de estimação rastejando atrás dele.
— E então? — ele perguntou. — Tomaram uma decisão?
Lief e Barda olharam rapidamente para Jasmine. Ela parou, fez uma careta
e, depois, um leve gesto de assentimento. Barda deu um passo à frente.
— Sim — respondeu com firmeza. — Vamos jogar.
Os monstros gemeram e puxaram as correias excitados. Os olhos do
Guardião pareciam queimar.
— Excelente! — ele disparou e apontou para uma vela comprida e
apagada que se encontrava na mesa sob o espelho e uma bruxuleante chama
amarela se acendeu.
— A vida dessa vela será o tempo de que vocês irão dispor para abrir a
porta para o aposento que encerra o porta-jóias — ele avisou. — Se a porta ainda
estiver fechada quando ela se apagar, vocês admitirão a derrota e serão meus.
Concordam?
— Concordamos — os companheiros responderam em uníssono, sem
hesitar.
— Então eu lhes desejo uma boa noite — o Guardião devolveu, esfregando
as mãos. — Investiguem à vontade. Como eu disse, a primeira pista está neste
aposento. De certo modo, ela está escondida e, de outro, está embaixo do nariz de
vocês.
Ele atravessou a porta, mas antes de sair virou-se novamente.
— Permitam-me dar-lhes um conselho. Vocês têm somente uma
oportunidade de abrir a porta. Não a desperdicem com um palpite — o Guardião
sorriu levemente. — Eu os verei pela manhã... para reclamar a minha vitória.
Com essas palavras, ele deixou o aposento, seguido de suas criaturas.
Assim que desapareceu, ouviu-se a sua gargalhada triunfante que ecoou pelas
paredes de vidro do palácio como se fossem centenas de vozes e desapareceu
lentamente à medida que ele se afastava.
Os amigos examinaram o aposento durante uma hora à procura de
qualquer sinal, por menor que fosse, que lhes desse uma pista para o nome do
Guardião.
Os livros nas prateleiras eram inúteis. Eles se transformavam em pó assim
que Barda os tirava do lugar. Os papéis nas gavetas dos armários estavam
amarelados e quebradiços. Eles, também, se desfaziam e esfarelavam ao toque.
Os quadros não revelavam nenhum indício e, atrás das cortinas, não havia nada
além de vidro e névoa.
— Ele acha que tem tudo... mas não tem nada! — Jasmine exclamou. — A
sua comida maravilhosa são cinzas, os livros fantásticos são pó. Seus
companheiros são bestas repugnantes. O seu reinado é um lugar de sofrimento.
Como ele pode ser tão cego?
— Nós é que somos cegos — Barda disse entre os dentes cerrados, o olhar
pousado na vela que queimava lentamente. — Ele disse que havia uma pista nesta
sala e tenho certeza de que ele falou a verdade. Mas que pista? Onde?
— Ele disse que há uma pista escondida nesta sala! — Lief repetiu,
enterrando o rosto nas mãos, tentando se concentrar. — Procuramos embaixo,
atrás e dentro de tudo. Portanto, isso significa que está escondido de outra forma.
— Escondida por magia! — Jasmine olhou ao redor do aposento
desesperada. — E isso faz com que o que ele disse tenha sentido: que a pista está
escondida, mas ao mesmo tempo está tão visível quanto o nariz em nosso rosto.
— O nariz no nosso rosto! Mas claro! — Barda vociferou, erguendo-se de
um salto. Enquanto seus companheiros o observavam atônitos, ele atravessou a
sala e olhou no espelho. Por um momento, os outros viram o seu rosto,
estranhamente suavizado e jovial, refletido no vidro. Então, a imagem desapareceu
e foi substituída por palavras que emitiam um brilho esbranquiçado sob a luz
tremeluzente da vela.
O meu nome secreto aguarda no interior.
A minha primeira, a primeira do grande pecado da Vaidade.
A minha segunda e a última começam com a soma dos pecados dos gêmeos.
A minha terceira começa com uma faísca brilhante — O puro tesouro?
O ponto de luz?
A minha quanrta, a soma da felicidade daqueles que tentam
o meu nome adivinhar.
— Mas isso não faz sentido! — Jasmine gritou desanimada. — Nenhum
sentido!
— Faz, sim — Barda retrucou. — Já vi coisas parecidas antes. É uma
charada.
— Os versos nos dizem quantas letras há no nome do Guardião — Lief
começou devagar. — Eles nos dizem como descobrir que letras são essas. Mas é
muito mais difícil do que qualquer outra charada que resolvi.
Ele agarrou o Cinturão de Deltora, desejando de todo o coração que o
topázio estivesse com a sua força total. Muitas vezes, antes, a pedra havia aclarado
e aguçado a sua mente. Mas o seu poder aumentava durante a Lua cheia e
diminuía no quarto minguante. Naquela noite, não havia Lua alguma.
Se ele e os companheiros quisessem resolver o enigma, teriam que fazê-lo
sozinhos.
Após copiar as palavras do espelho em um pedaço de papel que jasmine
encontrou entre seus tesouros, os companheiros sentaram-se para conversar.
— O primeiro verso significa simplesmente que o nome pode ser
encontrado a partir de pistas existentes no palácio — Lief disse. — Vocês
concordam?
— Até eu posso ver isso — Jasmine exclamou, quando Barda assentiu. —
Mas e o resto?
— O verso seguinte diz que a primeira letra do nome que procuramos é o
mesmo que a primeira letra do grande pecado da vaidade.
— Bem, isso também parece simples — Barda disse. — A primeira letra de
Vaidade é V
— Mas que enigma é esse, então? — Jasmine objetou. — É claro que não
pode ser tão simples.
— E não é — Lief concluiu desanimado. — Você não percebe, Barda.
"Vaidade" está escrito com letra maiúscula. É um nome. O nome de um dos bichos
do Guardião.
— E ele nos disse que nenhuma de suas criaturas tem o nome da
imperfeição que apresentam. — Jasmine lembrou. — O pecado de Vaidade deve
ser o egoísmo, a ganância ou o rancor. Ah... começo a entender como essa
charada funciona. A primeira letra do nome do Guardião deve ser E, G ou R.
— Mas como saberemos qual é? — Barda explodiu. — Eu nem consigo
lembrar a diferença entre as criaturas. O Guardião não está sendo justo, apesar do
que ele disse.
— Tenho certeza de que está, sim — Lief replicou, batendo o lápis no papel.
— Do contrário, a vitória não teria significado para ele. Em algum lugar do palácio,
deve haver outra pista.
— É melhor que a encontremos, e depressa! — Jasmine exclamou,
erguendo-se de um salto, olhando nervosamente para a vela que queimava
assustadoramente depressa.
O medo que ela sentia era contagioso. Lief sentiu o coração começar a
bater mais depressa. Ele se obrigou a ficar tranqüilo e pousou a mão no Cinturão de
Deltora. Os seus dedos encontraram a ametista; quando a apertaram, o seu
coração desacelerou e uma suave calma o invadiu. Ele respirou fundo.
— Não podemos entrar em pânico e começar a correr por aí sem um plano
— ele disse devagar. — O pânico é nosso inimigo e não vai nos deixar pensar com
calma.
— O tempo também é nosso inimigo, Lief — Barda lembrou irritado. — Já
estamos há horas pensando nessa pista e não saímos do lugar.
— É claro que saímos — Lief discordou. — Sabemos que o nome do
Guardião tem cinco letras, porque os versos falam da "minha primeira", "minha
segunda", "minha terceira", "minha quarta" e "minha última". Sabemos que a
primeira letra é E, G ou R e que a segunda e última são iguais.
— Como sabemos disso? — Jasmine indagou irrequieta, ansiosa para sair
dali.
— Os versos nos dizem isso. — Lief leu as palavras em voz alta. A minha
segunda e última começam com a soma dos erros dos gêmeos.
Quando Jasmine assentiu aflita, Lief releu o resto dos versos e, de repente,
deu-se conta de outro detalhe.
— E acho que sei qual é a quarta letra! — ele exclamou. Outra vez, ele leu
em voz alta.
A minha quarta, a soma da felicidade daqueles que tentam o meu nome
adivinhar.
— Quanta felicidade atingiu os que tentaram adivinhar o nome do
Guardião? — ele perguntou.
— Nenhuma, pelo que sabemos — Barda tornou, sombrio.
— Exatamente, e, como a palavra "soma" é usada, acho que o Guardião
está usando uma pequena artimanha aqui. A quarta letra é, na verdade, um número.
Zero que, escrito, é igual a O.
Enquanto os amigos o observavam, ele começou a rabiscar sob os versos.
Quanto terminou, ele virou o papel para que eles pudessem ver o que tinha feito.
— Aí está — Lief mostrou. — Agora podemos começar a preencher os
espaços vazios.
Ele se ergueu, desejando sentir a mesma confiança que as suas palavras
transmitiam.
— Vamos procurar no palácio, quarto por quarto — ele sugeriu. — Vamos
procurar coisas que correspondam aos versos em todos os lugares em que
entrarmos.
Os amigos deixaram a sala juntos e começaram a busca. Os aposentos
visitados não apresentaram nenhuma pista, embora eles examinassem com
cuidado todos os móveis, tapetes e enfeites.
O palácio era amplo. Eles prosseguiram incansáveis, acompanhados pela
alegre melodia, tentando manter-se calmos e atentos. Por alguns instantes, eles
ouviram sons de movimentos que não os deles: sons distantes como passos
suaves e de portas se abrindo e se fechando. Mas, finalmente, a música parou,
com os demais ruídos.
Os companheiros passaram a trabalhar em completo silêncio. Era difícil
não se apressar, não começar a correr e realizar uma busca imperfeita. Nas mentes
de todos, estava a imagem da vela, pingando, pingando, queimando, implacável.
Finalmente, eles chegaram a um aposento que, como o gabinete do
Guardião, estava cercado por cortinas e fechado por uma porta de madeira. Uma
luz suave brilhava atrás da pequena janela de vidro colorido e decorado.
Lief girou a maçaneta devagar e olhou no interior do aposento. Apesar da
vela que queimava num pedestal ao lado da porta, a sala estava envolta na
penumbra e ele precisou de alguns momentos para distinguir uma imensa pilha de
almofadas em um canto.
O Guardião encontrava-se deitado ali, adormecido. Mas ele não estava só.
Os seus quatro animais de estimação partilhavam o seu leito, as correias carnosas
emaranhadas ao redor deles como pálidas serpentes. E as criaturas estavam
acordadas. Elas viraram as terríveis cabeças na direção da porta. Os seus dentes
reluziram quando soltaram longos e baixos grunhidos.
Rapidamente, Lief recuou e fechou a porta.
— Não podemos entrar aí — ele sussurrou. — É o quarto dele. E as
criaturas estão com ele.
— Vamos ter que enfrentá-las, cedo ou tarde — Barda sussurrou de volta.
— De que outro jeito podemos ter esperança de descobrir qual é o defeito de
Vaidade?
O grupo ficou parado indeciso, fitando a porta fechada. E, de repente,
Jasmine, a expressão surpresa, apontou para a janela de vidro colorido.
— Acabo de perceber que há algo estranho aqui — ela murmurou. —
Olhem!
— Realmente, é esquisito. Há um diamante ou uma estrela em todos os
quadrados, menos no último — Barda constatou, examinando o vidro.
— Sim! — Jasmine arrancou o papel da mão de Lief e leu dois versos: A
minha terceira começa com uma faísca brilhante — O puro tesouro? O ponto de
luz?
Ela olhou para cima ansiosa para ver se eles tinham entendido.
— Diamantes e estrelas são faíscas brilhantes — ela disse. — Os versos
estão nos perguntando qual deles deve ser colocado no último quadrado. O
diamante, que é um tesouro. Ou uma estrela, que é um ponto de luz.
— Então, a terceira letra do nome do Guardião é a primeira letra de um
desses dois. Um D ou um E — Lief apanhou o papel e fez uma anotação em seu
diagrama, mordendo o lábio, tentando controlar a excitação.
Eles olharam os painéis de vidro colorido até que o desenho se tornou uma
mancha desfocada diante de seus olhos, mas sem resultado.
— Isso não faz nenhum sentido! — Barda deixou escapar, afinal. — Há
dezesseis quadrados ao todo, mas eles parecem estar arranjados aleatoriamente
de acordo com o gosto de alguém.
Lief concordou. E Jasmine, agora que seu entusiasmo arrefecera, ficava
cada vez mais inquieta.
— Talvez o mistério tenha algo a ver com o número dezesseis — Barda
murmurou, recusando-se a ser derrotado. — Dezesseis é um número útil, pois pode
facilmente ser dividido em partes menores e iguais. Havia dezesseis pelotões no
palácio. Muitas vezes, quando marchávamos em formação, começávamos juntos e
então nos dividíamos em grupos de oito, de quatro e...
Barda parou de falar, devagar. Ele estava boquiaberto, olhando fixamente
para a janela.
— Vejam! — ele disse com voz rouca.
Com a ponta do dedo, ele traçou uma cruz no centro da janela, dividindo-a
em quatro partes iguais.
— O todo não faz sentido, mas se, em vez de enxergarmos a janela como
um grande quadrado composto de dezesseis quadrados menores, observarmos
quatro quadrados, cada um com quatro painéis menores, o que acontece?
Lief olhou e foi como se ele visse a janela com novos olhos. Agora ele via
quatro blocos, dois na parte superior e dois, na inferior.
No primeiro bloco, havia três estrelas e um diamante. No bloco ao lado,
duas estrelas e dois diamantes. No terceiro, diretamente abaixo do primeiro, havia
uma estrela e três diamantes. E no último, o que continha o quadrado vazio...
— Um diamante é acrescentado em cada um — Barda murmurou, os olhos
brilhantes de alívio — e uma estrela é retirada. Assim, o último quadrado deve
conter nenhuma estrela e... quatro diamantes!
— Sim! — Lief mal podia acreditar que fosse tão simples. Mas parecera
complicado até que Barda conseguiu decifrá-lo. "E tudo porque ele se lembrou de
seus dias como guarda do palácio", Lief pensou escrevendo um D no terceiro
espaço no papel.
Barda observava satisfeito.
— Descobrimos duas letras! — ele disse. -Agora... vamos enfrentar as
criaturas?
Os companheiros abriram a porta mais uma vez com delicadeza. O
guardião não se movera, mas os monstros estavam espalhados sobre ele. Ao
escutar os intrusos, todos ergueram a cabeça e rosnaram ameaçadores.
— Isso é impossível — Barda sussurrou. — Eles não vão permitir que a
gente se aproxime dele. Como poderemos descobrir alguma coisa sobre eles
daqui?
— Talvez possamos chamá-los pelo nome — Jasmine sugeriu. — Um de
cada vez.
— Bem, não chame Ganância primeiro, isso é tudo que peço — Lief
murmurou.
— Por quê? — Jasmine quis saber.
Lief ficou muito quieto. Ele falara sem pensar e deixara escapar o pedido
em tom de brincadeira por algo que não percebera que sabia.
— Porque... — ele começou, o coração acelerando — porque, quando
chegamos ao palácio, o Guardião nos disse que o monstro vaidoso e o egoísta
tinham medo de Ganância. Portanto, Ganância não pode ser egoísta nem vaidoso.
E também sabemos que Ganância não é ganancioso, pois nenhum dos monstros
recebeu o nome por causa de seu defeito.
Assim, isso significa que Ganância deve ser o mais perigoso, o que está
tomado pelo rancor.
Lief pôde sentir que seus amigos tentavam se lembrar de outros detalhes
que o Guardião oferecera. Coisas que não tinham considerado importantes quando
foram ditas, mas que agora eram realmente cruciais.
Sem nada dizer, recuaram para fora do aposento pela segunda vez e
fecharam a porta.
— Ele nos forneceu pistas e não percebemos! — Jasmine sussurrou.
— O que mais ele disse?
— Ele disse que, certa vez, Egoísmo quase matou o ganancioso, numa
briga por restos de comida — Barda lembrou com certeza.
— Se Egoísmo tentou matar o ganancioso, então ele mesmo não é
ganancioso — Lief concluiu. — E sabemos que ele não é egoísta...
— E não está cheio de rancor! — exclamou Jasmine. — Pois já
descobrimos que é Ganância que está tomado pelo rancor. Portanto, Egoísmo...
deve ser o vaidoso.
O grupo se afastava da porta e entrava em outro aposento com a certeza
de que não precisava enfrentar os monstros. Os três já sabiam o bastante para
decifrar a charada.
— O que mais o Guardião nos contou? — Lief perguntou em voz baixa,
esforçando-se para lembrar. — Ele disse...
— Ele disse que Rancor não é egoísta! — Jasmine disse triunfante.
— Ele nos contou esse detalhe quando vimos as criaturas pela primeira
vez.
— Sim! — Lief recordou — e que Rancor não é rancoroso. E não é vaidoso,
pois o vaidoso é Egoísmo. Assim, Rancor deve ser ganancioso.
— O que nos deixa somente um defeito para Vaidade — tornou Barda
devagar. — Vaidade é egoísta.
Sem nada dizer, Lief escreveu E no primeiro espaço do papel.
E agora restava somente uma letra a ser descoberta, pois os versos diziam
que a segunda e a última letras do nome eram iguais. Barda repetiu a pista: Minha
segunda e última começam com a soma dos erros dos gêmeos...
— Não tenho a menor idéia do que isso quer dizer — Jasmine confessou. —
Eu me sinto uma boba, mas...
— Se você é boba, então também sou — resmungou Barda. — Para mim,
isso tem sido um mistério desde o começo.
E Lief também não conseguiu atinar com o que os estranhos versos
poderiam significar. Tudo que sabia era que, em algum lugar daquele labirinto de
paredes de vidro, se encontrava a última pista, e eles precisavam achá-la.
Tomados por uma energia desesperada, os amigos correram de um
aposento reluzente a outro, procurando em todos os cantos algum sinal que os
ajudasse a resolver a charada. Mas eles nada encontraram. Nada além de um
suntuoso vazio.
Finalmente, eles viraram uma esquina e Jasmine soltou um gemido.
— Mas nós já estivemos aqui! — ela exclamou. — Nós já procuramos nesta
sala.
Lief e Barda olharam ao redor e perceberam que ela tinha razão.
— Não há mais lugares em que procurar! — o rosto de Barda mostrava o
quanto estava exausto e desesperado.
Do outro lado das janelas, a névoa movia-se na escuridão, vultos envoltos
pela sombra vagavam, dedos deslizavam sobre o vidro, olhares fantasmagóricos os
encaravam. Quanto tempo tinha se passado? Lief se deu conta de que não sabia.
Ele segurou o Cinturão sob a camisa quando sentiu o pânico se apossando dele
mais uma vez.
— A pista está em algum outro lugar. Nós sabemos disso — ele afirmou,
conseguindo manter a voz calma, a ametista sob os dedos.
— Vamos recomeçar a busca.
Os companheiros avançaram, verificando novamente todos os cantos até
chegarem ao gabinete coberto por cortinas onde tinham começado.
— Examinamos esta sala do teto ao chão — Barda murmurou.
— Certamente não tem sentido...
Mas eles tinham que entrar no gabinete. Nenhum deles conseguia resistir
ao desejo de espiar a vela, de saber quanto tempo lhes restava.
Lief havia se preparado para o que poderia encontrar, mas até ele não
conseguiu evitar um grito de horror quando constatou o quanto a vela tinha
queimado. Ela se transformara num simples toco, quase coberta por uma grossa
massa de cera endurecida. Ela não duraria muito tempo mais.
— Não podemos continuar com isso — Jasmine apelou insistente. —
Precisamos quebrar a porta de vidro, pegar o diamante e correr, não importa o que
você diga, Lief. Precisamos fazer isso já!
— Sinto, Lief, mas acho que ela tem razão — Barda concordou, o olhar fixo
na chama.
Lief sacudiu a cabeça desesperado. Ele sabia que aquilo seria um erro
terrível. No entanto, que escolha tinham? Era evidente que não havia tempo a
perder, nem para reiniciar a busca ou para pensar...
Jasmine começara a disparar pelo aposento, à procura de um objeto
pesado que pudesse usar para estilhaçar o vidro. Na falta de algo melhor, ela tirou
os livros de cima da mesinha e começou a arrastá-la em direção da porta com
determinação.
— Não! — Lief gritou. — Não faça isso!
— Eu preciso! — Jasmine respondeu, virando-se furiosa. — Você não
entende, Lief? O que está acontecendo com você? Agora, é tarde demais para se
preocupar com os conselhos de um livro velho. Não podemos conquistar o
diamante. Os versos do Guardião, com suas palavras confusas sobre gêmeos que
não existem, nos derrotou. Essa é a única maneira!
Ela se virou novamente e continuou a empurrar a mesa. Após uma breve
hesitação, Barda decidiu ajudá-la. Ele empurrou-a para o lado, ergueu a mesa e
carregou-a até a porta de vidro.
Lief pulou em cima dele, puxando-lhe o braço insistente. Mas ele não tinha
como vencer a força de Barda. O homenzarrão se livrou dele com rudeza,
jogando-o ao chão.
— Afaste-se! — Barda disse zangado. — O vidro vai se despedaçar. Cubra
os olhos.
Lief se pôs de joelhos, a cabeça girando. Barda já segurava a mesa para
trás, preparando-se para jogá-la. Lief abaixou a cabeça. O tapete, com suas flores,
frutas e pássaros, era macio sob suas mãos. Os dois eremitas o fitavam
solenemente. Dois pares de olhos. Duas barbas. Duas túnicas compridas e simples,
amarradas à cintura...
Lief observou o desenho. O sangue subiu-lhe ao rosto.
— Gêmeos! — ele gritou, erguendo-se com dificuldade. — Pare, Barda! Os
gêmeos. Eu os encontrei.
Ele apontou desesperadamente para o tapete enquanto Barda abaixava a
mesa devagar e Jasmine batia os pés frustrada e zangada.
— Eles estavam aqui o tempo todo — Lief balbuciou. — Nós mal os
notamos porque estavam debaixo da mesa e de nossos pés. Mas agora podemos
vê-los claramente. Os eremitas são exatamente iguais. Eles parecem gêmeos. Mas
não são iguais, de modo algum.
Barda e Jasmine já se encontravam ao seu lado, examinando o tapete. Lief
apanhou o pedaço de papel que enfiara no bolso.
— A soma dos erros nos gêmeos — ele leu. — Isso deve significar a
quantidade de diferenças entre os dois eremitas.
— Existem diferenças? — Jasmine indagou, olhando preocupada sobre o
ombro para a chama enfraquecida da vela. — Onde?
— Veja o cordão ao redor da cintura — Lief indicou. — Numa das figuras o
nó fica do lado esquerdo; na outra, do direito.
— E o pássaro! — Barda exclamou. — Somente um deles tem uma crista.
— Há mais abelhas saindo da colméia neste lado — Jasmine acrescentou
envolvida na procura, apesar do que sentia. — E, veja, uma das árvores tem frutos,
e a outra tem flores.
— Os cogumelos deste lado têm manchas, e os outros são lisos — Barda
mostrou.
— Até agora são cinco diferenças — Lief disse. — E há outra. Uma das
árvores tem um galho cheio de folhas no alto do canto esquerdo, o que não
acontece do outro lado. Seis diferenças.
— Numa das figuras, o eremita está segurando três galhos, enquanto o
outro tem apenas dois! Sete! — Jasmine sussurrou.
Eles observaram com atenção, mas nada mais encontraram.
— O número é sete — Barda murmurou, a voz rouca de alívio. — A letra
que procuramos é S.
— Não! — Jasmine apontava para o tapete. — Espere, estou vendo mais
uma coisa. O saco ao lado do homem. Um deles tem um laço, o outro não.
— Você tem razão! — Lief exclamou. — Oito! Isso quer dizer que a letra que
procuramos, a segunda letra do nome do Guardião e a última, não é S, mas O.
— Já temos um O — Jasmine reafirmou.
— Ah, ele é esperto! — Barda resmungou. — Ele pensou que iria nos
enganar e quase conseguiu.
Lief rabiscou no diagrama e mostrou-o aos amigos.
— Eodoo. O nome é Eodoo — Jasmine jogou-se no sofá atrás dele. —
Puxa, nós conseguimos!
No silêncio repleto de alívio que se seguiu, Lief repentinamente se deu
conta de que a música suave que haviam ouvido na noite anterior recomeçara. Isso,
sem dúvida, significava que o Guardião tinha acordado.
Ele observou a vela. O pavio queimava vacilante, nadando numa piscina
de cera derretida. A chama estava prestes a se apagar, mas isso não tinha mais
importância.
Os eremitas do tapete o fitaram com um olhar triste. "Não há motivo para
tristeza, amigos", ele pensou. "Nós quase..."
E então ele viu.
Um dos braços de um dos eremitas, aquele sobre o qual um pássaro estava
pousado, estava posicionado acima do nó da túnica, o que não acontecia com o
outro.
Lief olhou confusamente para o papel que tinha nas mãos. Ele sentiu o
coração se apertar no peito e respirar tornou-se uma tarefa difícil.
— Lief, o que aconteceu? — Jasmine indagou intrigada. Mas Lief não
conseguiu responder. Ele caminhou até a porta de vidro com passos incertos.
— Fale! — Barda gritou. — Diga, Eodoo!
— O nome não é Eodoo — Lief informou com voz rouca, molhando os
lábios. — As diferenças são nove e não oito. A letra que faltava é N. O nome... o
nome secreto do Guardião é... Endon.
A porta se abriu em silêncio. A mesa de vidro e o porta-jóias dourado
encontravam-se à espera. Mas Lief, Barda e Jasmine ficaram parados tomados
pelo pavor.
— Não pode ser! — Jasmine sussurrou. — O Guardião é velho demais para
ser o rei Endon! Ele parece ter séculos...
— Ele viveu como servo do mal durante dezesseis anos — Lief comentou
melancólico. — A perversidade o consumiu por dentro. Até mesmo o meu pai não o
reconheceria agora — o coração dele doía ao imaginar como o pai se sentiria se
soubesse no que o amigo se transformara.
— Jarred sempre disse que Endon era fraco — Barda grunhiu. — Tolo e
fraco. Protegido do mundo e acostumado ao poder e à bajulação. Mesmo assim,
ele o amava e tentou protegê-lo. Ele salvou Endon do Palácio e da morte certa. E
para quê? Para isso!
— Como o meu pai poderia adivinhar que Tora iria recusar ajuda? — Lief
gritou. — Como ele poderia saber que Endon se voltaria para o mal a fim de
recuperar o que tinha perdido?
— Não o chame de Endon — Barda murmurou. — Ele não é mais Endon,
mas sim o Guardião. E ele não recuperou nada! Ele foi enganado e usado. Ele está
só e não tem quem o ame...
— Ele está só — Jasmine repetiu, os olhos muito abertos e atentos.
— Só! Onde está a rainha? Onde está o herdeiro?
Os outros ficaram em silêncio. O choque afastara por um momento todos
os outros pensamentos de suas mentes. Só agora eles se davam conta de que
Jasmine tocara num ponto realmente importante.
— Meu pai disse que a rainha Sharn era forte — Lief contou. — Forte e
corajosa. Ela não tinha nada da boneca mimada e fútil que parecia ser. Talvez ela
tenha se recusado a ficar com Endon depois que ele passou a dar ouvidos ao
Senhor das Sombras, quando ele começou a se transformar no Guardião. Talvez
ela tenha fugido com a criança.
— E, se isso for verdade, se Sharn e o herdeiro estão vivendo em
segurança em algum outro lugar, não tem a menor importância no que Endon se
transformou — ele prosseguiu, voltando-se para os amigos.
— É o herdeiro que precisamos encontrar.
Naquele momento, de algum lugar do palácio, veio o som de passos e
grunhidos baixos que se aproximavam. A pele de Lief se arrepiou.
— Depressa! — ele murmurou.
Ele correu para o pequeno aposento seguido de perto por Barda e Jasmine.
Juntos, ele se aproximaram da mesa e ficaram parados diante dela.
Contudo, antes que Lief pudesse erguer a mão, eles ouviram um ruído na
porta. O Guardião estava lá parado, o rosto envelhecido e marcado retorcido por
perplexidade, fúria, orgulho e frustração. Atrás dele, os monstros rosnavam.
— Então — o Guardião disparou — vocês descobriram o meu nome.
Ficaram surpresos?
— Um pouco — Barda respondeu devagar.
O Guardião sorriu zombeteiro, mas Lief imaginou ter visto, no fundo dos
olhos vermelhos, um brilho de respeito relutante.
— Somente uma outra pessoa conseguiu igualar o seu feito — ele contou
—, mas considerou a verdade dura demais para ser aceita e se recusou a entrar
neste aposento e reclamar o seu prêmio. Ele deixou o Vale, amaldiçoando-me e
afirmando que ele e a sua causa, seja ela qual for, não queriam ter nada a ver com
algo que tivesse sido contaminado por minhas mãos.
Com um sobressalto, Lief percebeu quem poderia ser essa pessoa. O
homem que viajara grandes distâncias e atravessara Deltora à procura de aliados
para a sua causa e dinheiro para armas e suprimentos. O homem que os advertira
com tanta convicção sobre a ida ao Vale dos Perdidos. Que sempre dissera, com
tanta amargura, que a batalha por Deltora deveria ser enfrentada sem o rei, sem
mágica. Que lhes dissera que a busca deles não tinha sentido.
— Perdição — ele murmurou e sentiu Barda e Jasmine enrijecerem ao lado
dele.
— Eu nunca soube o nome dele — o Guardião riu sarcástico — embora ele,
no final, tenha descoberto o meu. É uma pena que ele não tenha ficado. O rancor e
o ódio que havia dentro dele aqueceram o meu coração e deixaram as minhas
criaturas felizes — ele afagou a barba e fitou os companheiros com astúcia. —
Vocês vão seguir o exemplo dele e correr?
— Não, de jeito nenhum — Barda respondeu audacioso. — Vamos ficar
com o nosso prêmio.
Lief pousou as mãos no porta-jóias e sentiu a nuca em fogo quando os
olhos vermelhos o fitaram da porta. O Guardião. Endon, amigo de seu pai,
terrivelmente mudado.
"Perdição sabia de tudo", ele pensou zangado. "E, no entanto, guardou o
segredo para si, assim como fazia com tudo, sem confiar em ninguém, além de si
mesmo. A qualquer custo."
As bestas que se encontravam na porta choramingaram e grunhiram. Lief
soube que elas podiam sentir-lhe a ira. Ela os alimentava e saciava a sua sede.
Mas aquele não era o momento de pensar em detalhes insignificantes. Ele apertou
o fecho e a tampa do porta-jóias se abriu.
Dentro dele, aninhado numa almofada de veludo negro, brilhava um
grande diamante.
Lief apanhou a pedra e se virou, agarrando-a com força.
— Saiam! — O Guardião grunhiu. — Peguem o seu prêmio e sumam!
A porta que conduzia ao Vale se abriu. A névoa penetrou no aposento
misturada ao som de vozes suaves e sussurrantes.
— Lief! — Barda insistiu, tentando empurrar o amigo para fora. Mas Lief
recusava-se a andar, sentindo o sangue subir-lhe ao rosto.
— Por que fica? — o Guardião rosnou. — Ter vencido não é suficiente?
Precisa zombar de mim, também?
— Você nos enganou! — com a voz trêmula de raiva, Lief mostrava a jóia
que reluzia na palma de sua mão. — Esta pedra pode ser um diamante, mas não é
o diamante do Cinturão de Deltora!
— Nunca lhes prometi mais do que havia no porta-jóias — o Guardião
vociferou. — Eu lhes disse claramente "vocês podem pegar o seu prêmio e partir".
Isso é tudo.
— Você nos disse que o seu tesouro era o diamante do Cinturão de Deltora
— Lief insistiu. — E a verdadeira pedra estava aqui, quando você nos mostrou esta
sala. Mas agora ela se foi.
Ele deu um passo na direção do homem, ignorando os rosnados dos
monstros.
— Você a tirou daqui, Guardião, assim que ficamos fora de seu caminho,
procurando em outras partes do seu palácio para que, mesmo que vencêssemos o
jogo, seu verdadeiro tesouro não estivesse perdido.
— Como você sabe disso? — o Guardião disparou, os olhos semicerrados.
— Não importa como sei — Lief bradou. — O que importa é que você
mentiu e trapaceou. Você, que faz tanta questão da obediência às regras.
— E vocês seguiram as regras? — o Guardião zombou. — Sim! Eu tirei
minha jóia da caixa e a escondi na neblina. A pedra que coloquei em seu lugar
deveria satisfazer a sua ganância.
Ofegante e irado, ele avançou na direção deles, as suas criaturas rugindo
em volta de seus pés.
— Mas quem estava me vigiando? — ele disparou. — Quem roubou o
diamante de seu esconderijo, assim que virei as costas? O quarto integrante de
seu grupo. O que se recusou a jogar e que fingiu partir do Vale!
— Neridah? — Lief se espantou. — Mas... não sabemos nada sobre isso!
— Isso é o que você diz — o Guardião retrucou.
— É claro que não sabemos! — Jasmine já se encontrava na porta quase
oculta pela neblina. — Se soubéssemos, acha que teríamos desperdiçado o nosso
tempo com o seu jogo estúpido? Onde ela está? Para que lado ela foi?
— Não importa a vocês — o Guardião deu de ombros. — Vocês têm o seu
prêmio.
Lief adiantou-se de punhos cerrados. Os monstros rosnaram.
— Lief, não! — Barda chamou. — Esqueça isso. Precisamos tentar
encontrar as pegadas de Neridah. Mas agora ela já deve estar horas à nossa frente.
Lief, porém, não lhe deu atenção. Os seus olhos estavam presos no
Guardião.
— Onde está Neridah? — ele perguntou em voz baixa. — Ela não deixou o
Vale, não é mesmo? Você sabe onde ela e o diamante estão.
— Se eu soubesse — devolveu o Guardião com a mesma suavidade —, eu
não contaria a você. Você acha mesmo que eu lhe daria a coisa mais importante de
minha vida? O objeto que simboliza a proteção do meu mestre? Que me deu poder
e riquezas?
— Ele lhe trouxe pó e cinzas, Guardião — Lief disparou. — Ele o cercou de
sofrimento. Você os conquistou com astúcia, trapaças, roubo e violência. A sua
maldição está sobre a sua cabeça. E, no fundo de seu coração, você sabe que é
verdade.
— Quem são vocês? — o Guardião murmurou, um brilho estranho nos
olhos vermelhos. — Quem são vocês, que sabem tanto?
— Eu li O Cinturão de Deltora, que está em seu poder.
— Acho que é mais do que isso — o homem respondeu. — Acho que vocês
são aqueles de quem me falaram — ele fez um gesto na direção de Jasmine que
relutante ergueu a mão e puxou o gorro da cabeça. Seus cabelos negros caíram
embaraçados nos ombros.
— E assim vocês me enganaram — o Guardião sorriu sombriamente. — O
pássaro preto, naturalmente, ficou fora da neblina. E o quarto membro do grupo, a
ladra, apenas os estava seguindo para lucrar com a sua inteligência. Ah... vocês
não me escaparam por pouco.
Mais uma vez, seus olhos vermelhos voltaram-se para Lief.
— Entregue-o para mim — ele ordenou. — Entregue-me o Cinturão de
Deltora!
Lief sentiu as mãos deslizarem para a cintura. Os seus dedos encontraram
o fecho do Cinturão. Com a testa porejada de suor, ele se obrigou a afastar os
dedos, empurrando-os com determinação por sobre as pedras encravadas nos
medalhões. A sua mão escorregou sobre o topázio, o rubi, a opala... e descansaram
sobre o lápis-lazúli, a pedra celestial, o talismã. Ele curvou os dedos sobre a pedra e
segurou-a com firmeza.
— Isso não irá protegê-lo — o Guardião rosnou e avançou para a frente
com Egoísmo, Ganância, Rancor e Vaidade grunhindo e babando ao redor de seus
pés. Ele estendeu as mãos que se prenderam ao Cinturão como garras.
Os olhos dele brilharam triunfantes e, de repente, arregalaram-se,
queimando como brasas. Olhando para eles, paralisado de terror, Lief pareceu ver
milhares de figuras saltando nas chamas.
O Cinturão, porém, estava frio como gelo.
A boca do Guardião abriu-se num grito de agonia. E os monstros... os
monstros pulavam ao redor dele, erguendo as cabeças e uivando, puxando as
correias, tentando se afastar dele.
Lief cambaleou. Ele estava livre do encantamento. O Guardião caiu de
joelhos, atirou a cabeça para trás, ainda agarrado ao Cinturão como se não
conseguisse soltá-lo. Egoísmo, Ganância, Rancor e Vaidade viraram-se para ele
exaltados, as bocas espumando, os terríveis dentes puxando e rasgando o antigo
mestre, fazendo a túnica em tiras, perfurando a carne cinzenta e engelhada.
E, então, com um estremecimento de terror, Lief notou o que estava oculto
sob a túnica. Ele viu os quatro nódulos imensos e gotejantes no peito do Guardião.
Ele viu as correias carnosas e pulsantes que nasciam deles, retorcendo-se e
serpeando pela mangas até os pescoços inchados das bestas selvagens e
violentas. O Guardião havia dito que Rancor, Ganância, Egoísmo e Vaidade eram
seus animais de estimação, mas eles eram parte dele. Produtos vis de seu próprio
corpo.
— Libertem-me! — gritava o Guardião. — Estou sendo comido vivo! Cortem
as correias! Por favor, eu imploro!
Lief empunhava a espada. Trêmulo, os ouvidos mal suportando os gritos
estridentes do homem e os rugidos das bestas, além dos gritos de horror dos
companheiros, ele atacou os cordões de carne e cortou-os.
Um líquido amarelo-esverdeado esguichou dos ferimentos. Os cordões
retorceram-se, as extremidades cortadas saltando horrivelmente no chão. Os
monstros balançaram e, por fim, caíram. Por um instante, eles permaneceram
contorcendo-se no solo e, finalmente, ficaram imóveis.
Os dedos do Guardião abriram-se. O seu rosto ressequido voltou-se para
Lief. Nos olhos vermelhos, o fogo se extinguia.
— O diamante — ele disse com voz rouca. — Pegue-o! Ele está com ela,
onde caiu. No riacho...
O Guardião se encolheu e caiu para trás. Lief, Jasmine e Barda viraram-se
e correram.
Neridah encontrava-se no riacho, de costas, a água correndo lentamente
sobre os olhos fechados, enquanto os seus cabelos moviam-se sobre a pedra em
que tinha batido a cabeça. Sobre a palma aberta da mão fria, encontrava-se um
imenso diamante.
— Parece que o Guardião não a matou — Jasmine murmurou, refletindo. —
Ela só teve a má sorte de tropeçar enquanto atravessava o riacho. Má sorte que a
fez bater a cabeça e se afogar.
Percebendo o que acabara de dizer, ela olhou para Lief e mordeu o lábio.
— Desculpe — ela murmurou. — Se eu tivesse feito o que pretendia,
certamente nós mesmos estaríamos deitados ali ou algo parecido. A maldição é
muito forte.
— Forte o bastante para que o Guardião soubesse que não precisava
temer um roubo — Barda acrescentou sombrio. — Ele acreditava que o diamante
agiria antes que o ladrão escapasse do Vale.
— Cuidado! — Jasmine gritou quando Lief colocou a mão na água.
— Não temos que ter medo de nada — Lief disse confiante. — O Cinturão
aqueceu-se em sua cintura quando ele ergueu a enorme pedra preciosa da água.
A névoa movia-se ao redor dele repleta de sombras e sussurros, quando
ele tirou o Cinturão e pousou-o no chão. As seis pedras reluziam em seus
medalhões de aço, e o último aguardava para ser preenchido.
Lief pressionou o grande diamante para baixo e com um leve clique ele
deslizou para o seu lugar. O lugar ao qual pertencia. O Cinturão estava completo.
Seguiu-se um momento de silêncio ansioso. Logo depois, os sussurros
recomeçaram cada vez mais altos. A névoa flutuava, aglomerando-se em colunas e
espirais, erguendo-se do chão e subindo ao céu entre as árvores como se tivesse
vida. E, enquanto subia, vultos eram deixados, piscando, no ar límpido. Homens,
mulheres e crianças fitavam-se alegres e desnorteados, as mãos que se aqueciam,
as túnicas que se coloriam devagar.
Então, ouviu-se um forte estrondo, um estilhaçar, como se vidros
estivessem se quebrando. Em poucos instantes, o Vale foi inundado de cores e por
uma luz ofuscante.
Assim, quando Lief, Barda e Jasmine tornaram a olhar, havia centenas,
milhares de pessoas regozijando-se entre as árvores sob o céu azul. Elas não eram
mais seres cinzentos e errantes de faces encovadas, mas sim cobertos de cores,
calor e vida.
A maioria eram pessoas altas e magras, com rostos compridos, olhos
escuros que reluziam sob sobrancelhas bem formadas. Cabelos negros e sedosos
caíam-lhes sobre as costas, as mangas largas das túnicas arrastando-se no chão.
Ao fitá-las, maravilhado, mal conseguindo aceitar os fatos que se apresentavam
diante dos próprios olhos, Lief lembrou-se das palavras do Guardião.
A grande maioria de meus primeiros súditos chegou até mim trazida por
uma forte ventania, o orgulho que causara a sua queda ainda forte dentro deles...
E então ele soube. Aquele era o povo perdido de Tora.
Os amigos caminharam em meio à multidão, e por toda a parte as mãos se
estendiam em sua direção. Mas elas, agora, estavam abertas, cheias de vida e
gratidão.
O povo de Tora vagara pelo Vale dos Perdidos desde o nascimento de Lief
e, no entanto, não tinha envelhecido ou mudado. Os velhos, os de meia-idade e os
jovens permaneceram exatamente como no dia em que haviam quebrado o
juramento. Lief, Barda e Jasmine andavam entre eles, ouvindo a história de sua
queda repetidas vezes.
A magia do túnel tinha protegido Tora do mal por tanto tempo que os
toranos passaram a acreditar que eles e a sua cidade haviam chegado à perfeição e
que qualquer decisão que tomassem seria a acertada. Quando a mensagem de
Endon chegou, eles a consideraram como consideravam a tudo: sem paixão, sem
ódio, sem ira, mas também sem calor, amor ou compaixão.
— A decisão não pareceu uma traição da confiança — murmurou um jovem
que segurava a mão de uma criancinha. — Ela pareceu sensata e justa. Pois, para
nós, o rei era um estranho. Mesmo os toranos que tinham ido a Del com Adin e os
que seguiram depois, haviam se tornado parte da vida do palácio há muito tempo.
Eles deixaram de ser uma ponte entre as duas cidades.
— Mas nosso orgulho nos fez esquecer a magia em que se baseava nosso
poder — suspirou uma velha mulher, alta e ereta em sua túnica escarlate. — O
antigo juramento e a maldição que o acompanhava era ainda tão forte como sempre
fora. Não contávamos com isso, pois, naquele tempo, olhávamos para o futuro,
nunca para o passado. Aprendemos uma grande lição.
Os companheiros caminharam por entre as árvores até a clareira diante do
palácio seguidos em silêncio pela multidão. À medida que se aproximavam da
clareira, Lief foi assaltado pela sensação de que estava vivendo um sonho. Ele
poderia despertar a qualquer momento e ver o palácio reluzente como uma jóia e o
Guardião com os olhos vermelhos fixos nele, acenando entre a névoa em
movimento.
Mas o palácio se fora como se nunca tivesse existido. Em seu lugar, havia
uma pequena cabana de madeira. Flores e capim cresciam à sua volta e, diante de
sua porta, encontrava-se um homem com uma longa barba que vestia uma túnica
rústica, amarrada à cintura com um cordão. Seus olhos tristes encontraram os de
Lief. Ele lhe parecia muito familiar.
Pousado em seu braço, encontrava-se um pássaro preto. Sentado em sua
mão, um montículo de pêlo cinzento.
Antes que Lief pudesse dizer algo, Jasmine correu até o homem com um
grito de alegria. Kree voou até ela e Filli saltou, guinchando para encontrá-la. Eles
haviam descido da beira do precipício no momento em que a névoa se desvanecera.
Eles haviam esperado pacientemente por ela com o novo amigo. Mas, agora que
viram Jasmine, não esperariam mais.
Juntos mais uma vez, os companheiros foram ao encontro do estranho.
— Você é o eremita... o eremita do desenho do tapete — Lief reconheceu.
O homem assentiu.
— E você é o Guardião.
O homem pôs a mão no peito, junto do coração, como se procurasse um
ponto sensível.
— Não mais. Graças a vocês — ele concluiu em voz baixa.
— Mas... você não é Endon, ou é? — Lief já sabia a resposta, mas queria
ouvi-la em voz alta.
— Não, não sou — o homem respondeu sorrindo. Eu me chamo Fardeep.
Fui um homem rico, é verdade. Um homem respeitado e muito satisfeito. Mas não
fui rei, apenas o dono de uma pousada num lugar chamado Rithmere, longe daqui.
A cidade foi invadida por bandidos, minha família foi morta e a pousada me foi
tomada. Parece que o Senhor das Sombras tinha um objetivo diferente para ela.
— O senhor estaria se referindo à Pousada Campeão? — Barda indagou
depois de trocar olhares com os amigos.
— Vocês a conhecem? — Fardeep perguntou. — Sim. A Pousada
Campeão foi minha. Eu sempre gostei de jogos.
A expressão dele demonstrou arrependimento quando os companheiros
estremeceram.
— Ouvi dizer que agora os jogos são diferentes em Rithmere — ele disse.
— E que a pousada está muito maior e gerenciada segundo outras normas e por
diferentes motivos — ele soltou um profundo suspiro. — Mas naqueles tempos eu
desconhecia os planos do Senhor das Sombras. Tudo aconteceu muito antes de ele
tomar posse de Deltora. Antes até de Endon ser coroado rei. Eu não sabia de nada
e também não me importava com nada que pudesse acontecer no futuro. Escapei
de Rithmere e me escondi neste vale à procura de refúgio e paz.
O homem curvou a cabeça.
— Mas a paz me foi negada. O meu sofrimento e a minha ira foram
sentidos e usados por aquele que sabe usá-los como ninguém. No início, eu não
sabia que fora ele que causara os meus problemas. Depois, à medida que recebia
incontáveis presentes, isso pareceu não ter mais importância. Eu lhe contei como
as coisas aconteceram. Orgulho, egoísmo, ódio e ganância cresceram dentro de
mim. E, à medida que o tempo passava, eu me transformei... no que vocês viram.
Mais uma vez, a sua mão pousou sobre o coração.
— Mas por que o seu jogo, o jogo do Guardião, nos fez pensar que o seu
nome era Endon? — Jasmine quis saber. — Por que esse nome abriu a porta?
— Foi um desejo do Senhor das Sombras — Fardeep disse simplesmente.
— Desde o início, ele quis que todos que viessem até aqui atrás do diamante
fossem enganados. Que pensassem que o rei Endon tinha se tornado uma criatura
do mal e se transformado em seu servo. Como Guardião, eu achei a idéia...
divertida. E, como lhes disse, sempre gostei de jogos. Essa minha característica
não mudou.
Ele ergueu o rosto, a expressão sombria.
— Até vocês chegarem, somente o homem com a cicatriz no rosto,
Perdição, tinha conseguido decifrar a charada. E o efeito que o resultado causou
nele foi exatamente o que o meu mestre esperava.
Ele lançou um olhar para onde os toranos haviam se reunido, murmurando
entre si. O velho endireitou os ombros e foi falar com eles.
— Aqui nós aprendemos uma lição importante — Jasmine disse assim que
ficaram a sós. — Descobrimos que o Senhor das Sombras desconhece o fato de
que não é Endon que é importante, mas sim o seu herdeiro.
— Ou, se sabe, ignora o fato de que nós também temos conhecimento
desse detalhe — Lief respondeu pensativo.
Fardeep e o povo aproximavam-se deles.
— Esperamos que vocês fiquem conosco para descansar o tempo que
puderem — Fardeep convidou um tanto constrangido, adiantando-se. — Não
podemos oferecer muito luxo, mas há bastante comida para todos agora no Vale. E
amizade em abundância.
— Isso é luxo suficiente — Barda afirmou sorrindo. — E nos sentiremos
felizes em ficar... por algum tempo. Precisamos enterrar a nossa companheira
Neridah. E temos muito sobre o que conversar.
Todo o corpo de Fardeep relaxou num suspiro trêmulo de alívio.
— Eu não os teria censurado se detestassem a simples idéia de ficar — ele
disse. O homem olhou sobre o ombro para a multidão. — Eles também me
perdoaram — ele confidenciou em voz baixa. — Isso é mais do que eu esperava. E
muito mais do que merecia.
— Nós o perdoamos de coração — disse em voz alta uma mulher
corpulenta vestida de azul que se encontrava entre a multidão. — A sua única culpa
foi a cegueira, assim como a nossa. Vamos ficar aqui durante o tempo que você
permitir. E lhe somos gratos, pois não temos para onde ir.
— Tora é o lugar perfeito, como sempre foi — disse Barda. — Ela está
esperando por vocês.
— Nunca poderemos voltar — a mulher de azul respondeu tristemente. —
A pedra que se encontra no coração da cidade está quebrada e o seu fogo se
extinguiu. O juramento foi quebrado e o mal nunca poderá ser desfeito.
"Podem sim", Lief pensou com certeza.
E ele acreditava saber como desfazer aquele mal. Mas ainda não era o
momento. Primeiro, o herdeiro de Deltora tinha que ser encontrado.
Mas onde? Onde, em todo aquele vasto reino, estaria o esconderijo que
mantivera Endon, Sharn e seu filho em segurança por tanto tempo? Como ele e
seus companheiros poderiam encontrá-los, se não tinham idéia de onde procurar ou
por onde começar?
Por um instante, ele sentiu o coração tomado pelo desânimo, mas então
tocou o Cinturão, novamente, pesado ao redor da cintura.
"Encontraremos o esconderijo", ele disse a si mesmo. "Esteja onde estiver,
não importa a que distância, pois agora temos a orientação do Cinturão. Ele está
completo e vai nos mostrar o caminho."