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EM BUSCA DE UMA TRAJETÓRIA DO VISÍVEL: DESENHOS ANARQUISTAS E
ANTICLERICAIS AO REDOR DO MUNDO
Caroline Poletto1
O presente artigo pretende, através de um enfoque transnacional, demonstrar os
ganhos e avanços que tal tipo de análise pode proporcionar para a historiografia do
movimento operário, uma vez que, através desse olhar ampliado, é possível perceber como os
desenhos, artefatos importantes da imprensa libertária e anticlerical, circularam e foram (re)
utilizados, adaptados e modificados por essa imprensa ao longo dos anos. Para dar conta desse
objetivo, serão analisados alguns desenhos (alegóricos ou não) que circularam em periódicos
anarquistas e anticlericais argentinos, espanhóis e brasileiros durante as três primeiras décadas
do século XX; de forma a tentar mapear, mesmo que sucintamente, parte do caminho
percorrido por esses traços repletos de significado e conteúdo combativo, tratando a imprensa
libertária com um viés internacionalista, já que ela mesma se constituía através de
intercâmbios e redes globais. Através desse estudo também se pode perceber mais claramente
a dinâmica da imprensa libertária e anticlerical, as trocas constantes, a existência de uma rede
de comunicação e transmissão de dados de certa forma eficaz (tendo em vista as investidas
repressivas por parte dos Estados em desarticular essa rede) e a tentativa empregada por essa
imprensa subalterna de criar um imaginário próprio, condizente com suas bandeiras de luta.
[...] novos movimentos de trabalhadores e a crescente consciência da
interdependência mundial (One World) pareciam exigir um novo tipo de
historiografia, uma história que “ultrapassasse” o trabalho tradicional da
América do Norte e da Europa, incorporando as suas conclusões em uma
nova abordagem orientada globalmente. Isto é, na verdade, um projeto
extremamente ambicioso, que mal começou. Muitos dos objetivos desta nova
partida precisam de elucidação. Estamos em uma situação excitante de
transição, na qual a disciplina está envolvida em sua reinvenção. A “velha” e
a “nova” história do trabalho dão espaço à história do trabalho “global”.
(LINDEN, 2010, p. 51)
Nesse contexto, o estudo dos periódicos anarquistas sob um olhar transnacional
fornece possibilidades de entender essa imprensa como ela mesma se autodenominava:
internacionalista e para todos, ou seja, não era uma imprensa destinada a ficar trancafiada
dentro dos limites da nação ou região, pelo contrário, se dirigia a um grupo/ público ampliado:
os trabalhadores do mundo. De forma que “o internacionalismo não permaneceu restrito à
sua retórica ou aos seus artefatos culturais; foi vivenciado nessas práticas cotidianas. Foi um
componente tático na dinâmica do movimento” (GODOY, 2013, p.50).
1 Doutoranda no PPGH da Unisinos –RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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Além dessa intenção de abranger questões relativas ao “internacionalismo cultural”
anarquista e anticlerical, o presente trabalho pretende se basear em representações visuais,
tendo em vista que a contemporaneidade não escapa às imagens, uma vez que se vive na era
do visual, em que os televisores e computadores emitem centenas de imagens por minuto, de
maneira que seu estudo também reflita uma carência atual de orientação; carência essa que
impulsiona os seguintes questionamentos: como essas imagens circulam e se reproduzem
tanto no espaço (diferentes cidades e países) como no tempo? O que permanece? O que se
transforma? Como se dá o processo de (re) apropriação, (re) construção imagética? Qual a
importância do recurso visual nesse tipo de imprensa? As imagens detêm a primazia da
comunicabilidade? As representações visuais podem ser trivialmente reduzidas em palavras?
Como representações do mundo, as imagens figurativas têm no real o seu
referente, seja para confirmá-lo, transfigurá-lo, negá-lo, combatê-lo, seja para
acenar a outros mundos possíveis, e pode-se dizer que o modo de representar
uma realidade faz parte do comportamento social de uma época.
(PESAVENTO, 2008:104).
De forma que o presente texto pretende se “enquadrar” entre os novos estudos e
problemáticas possibilitados por esse “novo olhar” sobre as fontes do anarquismo e do
anticlericalismo, uma vez que procura demonstrar o interesse pelos estudos de circulação de
ideias nessa imprensa subversiva, as tentativas investidas por essa imprensa na formação de
uma cultura e estética própria, a importância da utilização da imagem para a formação dessa
cultura libertária e anticlerical e a conseqüente (des) construção do “outro” baseada na
formação de estereótipos claramente verificados. Alerta-se ainda o fato de que, ao analisar
elementos do discurso estético propagandístico dos periódicos libertários e anticlericais em
questão, se estará comparando/analisando discursos políticos que precisam constantemente se
reafirmar para enfrentar os discursos dominantes (discursos dos periódicos burgueses, da
imprensa oficial, do Estado, da Igreja, etc). De forma que a tentativa de desconstrução dos
seus inimigos é evidente nas páginas da imprensa libertária e anticlerical, sendo, ela própria,
um dos objetivos principais dos periódicos aqui tratados. As investidas de desumanização do
outro são claramente verificadas, uma vez que se está em guerra permanente contra esse outro
que tanto prejudica a evolução humana e a revolução social (segundo a visão anarquista e
anticlerical).
A característica fundamental do discurso político é que este necessita para
sua sobrevivência impor a sua verdade a muitos e, ao mesmo tempo, é o que
está mais ameaçado de não conseguir. É o discurso cuja verdade está sempre
ameaçada em um jogo de significações. Ele sofre cotidianamente a
desconstrução, ao mesmo tempo só se constrói pela desconstrução do outro.
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É portanto, dinâmico, frágil e, facilmente, expõe sua condição provisória.
(PINTO, 2006: 89)
E em guerra, como se sabe, “não se limpam armas”, “tiram-se as luvas”, que
é como quem diz: adeus sutilezas, olá simplificações. O outro passa a ser o
inimigo, pelo que não só é permitido como até útil desumanizá-lo. O que só é
justo porque, desde logo, o nosso inimigo é desumano – não são as suas
ações a prova mesma disso? É de uma lógica à prova de bala: se o meu
inimigo é desumano, eu não faço nada de mais em desumanizá-lo. Na
verdade, limito-me a tirar-lhe a máscara (ou a retirar os óculos que me
vendavam os olhos) e a vê-lo tal qual ele é: a encarnação do Mal, uma besta
fétida, um macaco, um inseto contaminado, um polvo tentacular. (ZINK,
2011:52)
Tendo essas questões em vista se partirá para a análise de dois exemplos concretos e
de duas “ideias-imagens” que foram constantemente empregas nos periódicos aqui analisados:
a primeira delas está intimamente ligada ao estereótipo clerical criado e fomentado pelos
veículos da imprensa anticlerical, cuja imagem reflete vários abusos da Igreja, sendo o roubo
um dos mais destacados deles; e a segunda diz respeito à utilização da alegoria feminina como
porta-voz da Revolução Social, visualizada, principalmente, nos exemplares em homenagem
ao Primeiro de Maio.
O roubo abençoado
O primeiro exemplo apresenta a circulação de imagens anticlericais tanto em veículos
anarquistas como em outros de caráter predominantemente anticlerical. A incorporação de
periódicos anticlericais na presente análise é importante, pois esses estabeleciam intensos
contatos tanto com os periódicos libertários como com os colaboradores destes e, assim como
os anarquistas o fizeram, constituíram um imaginário próprio ligado às suas crenças e
percepções. Além disso, essa relação de proximidade existente entre anarquistas e
anticlericais no decorrer do século XX ainda foi pouco explorada pela historiografia e se
acredita que há muito a ser dito sobre essa afinidade (embora nem todo anticlerical seja
anarquista, uma vez que o anticlericalismo é um movimento complexo e incorporador de
distintas tendências).
El anticlericalismo desarrolló un imaginario propio, reproducido en prácticas,
rituales, sociabilidades, medios de difusión e instituciones que habilitaron su
permanencia y reproducción en el tiempo. Una verdadera cultura anticlerical
se consolidó en distintos espacios sociales iberoamericanos. […] Los ámbitos
de sociabilidad propios de la modernidad: masonería, sociedades de
librepensadores, organizaciones vinculadas al socialismo o al anarquismo
sirvieron para transmitir un ideario y un conjunto de imágenes compartidas.
(DI STEFANO; ZANCA, 2013, p.19-20)
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As imagens anticlericais foram uma constante tanto nos periódicos analisados de
Buenos Aires, Madri, São Paulo como nos de Porto Alegre. O ataque à Igreja era direto e
forte, de maneira que a crítica era facilmente entendida e visualizada. Vale ressaltar ainda que
o aspecto visual representado pelo desenho tinha uma grande importância nos periódicos
desse período, uma vez que ele é um forte elemento doutrinador, dotado de crítica mordaz,
irônica, satírica e principalmente humorística do comportamento humano; ainda mais num
contexto rodeado por analfabetos, em que muitas vezes o traçado dos caricaturistas era o
único elemento do periódico que atingia esse público desprovido das habilidades da leitura e
da escrita. As imagens apresentam ainda um forte poder de sedução e comoção, bem como o
caráter do imediato, ou seja, transmitem suas mensagens numa fração de segundos e se fixam
na mente do seu observador. Pesavento, ao elencar as características do discurso visual,
constata que:
E a essa condição de retenção de memória e de potencial evocativo, talvez
pudéssemos agregar mais uma propriedade que caracteriza as imagens: elas
seduzem, cativam, encantam; elas possibilitam uma comunicação imediata;
são intensas; despertam a atenção; prendem o olhar; emocionam. [...] Assim,
na sua propriedade de sedução, as imagens detêm uma primazia em
comunicabilidade. Elas circulam mais, atingindo um público mais amplo de
receptores. Afinal, se nem todos leem livros ou revistas, todos veem imagens
e as armazenam na memória. (PESAVENTO, 2008, p.119)
Figura 1: O “burro” roubado Figura 2: O “burro” roubado
Fonte: El Motín, 05/01/1911 nº1 p.1 Fonte: A Lanterna, 18/01/1934 nº370 p.1
Podemos englobar, dentre essas imagens “sedutoras” de que fala Pesavento, as
imagens anticlericais que circularam intensamente em várias partes do globo durante as três
primeiras décadas do século XX. Uma das imagens anticlericais mais difundida na imprensa
anarquista e anticlerical é aquela que alude ao roubo clerical, ou seja, aquela em que a figura
clerical realiza o papel de ladrão enquanto que, ao fiel, cabe a personificação daquele que é
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enganado, roubado. Temos assim, nas figuras 1 e 2, o fiel retratado com cara de burro – um
forte indicativo da imbecilidade e ingenuidade deste – sofrendo a ação de roubo por parte do
clérigo. Este, por sua vez, rouba o bolso do fiel enquanto o distrai apontando para o sétimo
mandamento que diz exatamente o inverso daquilo que ele (o clérigo) pratica: “- não
furtarás”. Os demais dizeres escritos na caixa de doação continuam a ironizar o pobre fiel:
“dinheiro de São Pedro para as almas benditas”. Assim, a representação visual,
conjuntamente com os breves escritos que funcionam como legenda (pois conduzem o olhar),
alertam, ironicamente, para os abusos cometidos pelo clero no que concerne ao
enriquecimento ilícito, uma vez que tanto o dinheiro doado pelos fiéis como aquele
imperceptivelmente furtado serviriam exclusivamente para aumentar as riquezas dos clérigos
e para ser utilizado em benefício da classe religiosa e não em benefício dos fiéis ou de pessoas
carentes em geral. A tradução para o português dos dizeres contidos na imagem original (do
jornal espanhol El Motín) é bastante fiel à esta. Apenas se verifica a incorporação de um
título à imagem que reforça a crítica contida no traçado do caricaturista: “exercícios práticos
de educação clerical”.
Importante ainda salientar dois aspectos acerca das figuras acima: o primeiro diz
respeito à circulação e permanência da representação visual na imprensa contestatória, já que
ela foi visualizada em 1911 no jornal anticlerical de Madri El Motín e, reproduzida
novamente, mais de duas décadas depois, em 1934, no periódico anticlerical paulista A
Lanterna. A imagem é reproduzida no jornal paulista sem mencionar a origem da mesma
(essa falta de referência à fonte original era muito comum na imprensa anticlerical e,
principalmente, na anarquista). O segundo aspecto que merece destaque concerne à utilização
da linguagem irônica na imagem anticlerical, de forma que a própria burla do fiel enganado se
traduz em uma crítica feroz tanto ao comportamento clerical como ao do ingênuo fiel. Embora
a ironia possa, na maioria das vezes, confundir os significados, percebe-se que a ironia aqui
utilizada está desprovida da sua profundidade embaraçadora, uma vez que a ironia “pode
zombar, atacar e ridicularizar; ela pode excluir, embaraçar e humilhar. Isso também pode
irritar e não necessariamente num nível altamente intelectual” (HUTCHEON, 2000:33). A
ironia na representação acima é explícita, uma vez que ela afirma o contrário daquilo que
realmente acontece (na indicação do mandamento “não furtarás”), evidenciando uma
discrepância entre aquilo que parece ser verdade (o dito) e o que realmente ocorre (que
aparece somente quando se revela a ironia da enunciação):
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A ironia é comumente utilizada como um instrumento que consiste em dizer
o contrário daquilo que se pensa, deixando entender uma distância
intencional entre aquilo que dizemos e aquilo que realmente pensamos. Por
esse caráter dúbio, a ironia é vista como a arte de satirizar com alguém ou
com alguma coisa, com vista a obter uma reação do leitor, ouvinte ou
interlocutor. É, pois, uma estratégia retórica e estrutural que pode ser
utilizada, entre outras formas, com o objetivo de denunciar, de criticar ou de
censurar algo. (AGRA, 2009: 193)
A ironia também se fará presente nas figuras 3 e 4, as quais também aludem ao roubo
clerical. De forma que a ironia não está ligada, necessariamente, à zombaria, ao
descompromisso, ao descaso, a um simples jogo de palavras sem propósitos; podendo, pelo
contrário, realizar uma crítica severa e bastante séria através da inversão de valores, da
confusão de significados.
Muitos adversários do pós-modernismo consideram a ironia como sendo
fundamentalmente contrária à seriedade, mas isso é um equívoco e uma
interpretação errônea sobre a força crítica da dupla expressão. Conforme
Umberto Eco disse a respeito da sua própria metaficção historiográfica e de
sua teorização semiótica, o “jogo da ironia” está intrinsecamente envolvido
na seriedade do objetivo e do tema. (HUTCHEON, 2000:62)
Figura 3: O Paraíso dos padres Figura 4: O Paraíso dos pobres de espírito
Fonte: Lúcifer, 20/09/1907 nº02 p.3 Fonte: Revista Liberal, fevereiro 1921, nº1 p.3
Nas figuras acima, a figura clerical está distraindo o fiel que se encontra em posição de
oração (com as mãos juntas em sinal de contemplação) e roubando seu bolso. A representação
visual é bastante semelhante àquela das imagens 1 e 2. No entanto, nessa representação,
merece destaque a forma física exagerada da figura clerical (gordo, corpulento). Nesse
sentido, para ilustrar a figura clerical os desenhistas exageravam nos seus traços físicos para
aludir a vícios sociais e desvios que estes sujeitos cometiam. Ou seja, ridicularizavam e
exageravam os traços físicos para traduzir questões /problemas sociais. Não quer dizer, na
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prática, que todos os padres/bispos eram obesos, mas há um exagero proposital, a fim de
transpor uma característica física para um tipo de comportamento baseado em exageros e
excessos. De acordo com Bergson o exagerado tamanho dos padres transmitiria comicidade à
caricatura, uma vez que “é cômico todo incidente que chame nossa atenção para o físico de
uma pessoa estando em causa o moral” (BERGSON, 1987:33). Também merece destaque o
fato de o jornal anticlerical Lúcifer de Porto Alegre citar, na edição de 1907, o nome do
jornal que publicou a imagem originalmente e que serviu de fonte para o periódico gaúcho.
No caso em questão trata-se do jornal Asino de Roma. Já na reprodução da imagem em 1921,
pela Revista Liberal, também de Porto Alegre, não há menção da aparição da imagem no
jornal italiano Asino e nem no Lúcifer. No entanto, pela menção do jornal italiano no Lúcifer
se constata que a imagem circulou pelo menos em dois países distintos e por mais de duas
décadas: Itália (Roma) e Brasil (Porto Alegre). As legendas das duas representações, embora
diferentes, mantém a mesma linha de raciocínio: mostrar que a garantia do paraíso celestial
era apenas mais uma falácia dos clérigos para garantir os prazeres terrenais deles próprios. A
figura 3 traz como legenda o seguinte diálogo entre padre e fiel: “-Olha lá em cima... – Mas
eu não vejo nada. – Pois...aquele é o Paraíso”. Já o desenho da Revista Liberal apresenta a
seguinte constatação como legenda: “Lá em cima está o Paraíso, o reino dos pobres
d’espírito”. Talvez essa suave mudança nas legendas seja um indício, ou uma tentativa, de
manter certo grau autoral em cada publicação. No mesmo sentido, a Revista Liberal não
copia o título que acompanha a imagem no exemplar do Lúcifer (O Paraíso dos Padres),
deixando a imagem sem titulação.
Percebe-se assim, na estética anticlerical, a constante utilização da ironia, bem como
de exageros físicos nas representações visuais que pretendiam aniquilar, ridicularizar a figura
clerical. Outras representações anticlericais criticam o ensino católico, marcado pela
obediência cega e outras ridicularizam a figura clerical através da representação desta com
traços animalescos: porcos, burros, aranhas, entre outros, debochando e transmitindo ideia de
perigo através desses riscos dotados de humor e sarcasmo. No segundo exemplo de circulação
e permanência na estética libertária e anticlerical, os traços irônicos estarão menos presentes,
enquanto a crença fervorosa e sempre otimista na Revolução Social se destacará em
representações utópicas.
A Libertadora: a utilização da alegoria feminina como estratégia discursiva
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Um tipo de representação visual bastante significativa devido à sua recorrência nos
exemplares referente ao Primeiro de Maio apresenta os ideais de liberdade e justiça através da
figura feminina. A alegoria feminina é utilizada para caracterizar a liberdade, a justiça, a
revolução social e a anarquia. Martins (2009), no seu estudo acerca das caricaturas anarquistas
encontradas nos periódicos de São Paulo e Rio de Janeiro entre o período de 1910 a 1920, dá-
se de encontro, assim como a presente análise, com a figura feminina representando alegorias
e afirma que a utilização da figura feminina expressando um ideal, ou “aquilo que deve vir a
ser atingido, almejado” tem origem ainda na tradição clássica da época da Grécia Antiga, mas
foi consideravelmente difundida alcançando uma maior expressão na França. De acordo com
Carvalho “[...] da Primeira à Terceira República, a alegoria feminina domina a simbologia
cívica francesa, representando seja a liberdade, seja a revolução, seja a república” (1992:505).
Burke reforça a assertiva acima quando afirma que “conceitos abstratos têm sido
representados através da personificação desde a época da Grécia antiga, se não antes. As
figuras da Justiça, da Vitória, da Liberdade, etc. são usualmente femininas” (2004:76). Isso
demonstra que as alegorias libertárias eram, na sua maioria, (re) criações de simbolismos
antes empregados pela tradição revolucionária francesa, e essa, por sua vez, inspirava-se nas
representações da Grécia Antiga de ideais abstratos como a Liberdade, a Justiça e a Igualdade.
As imagens que seguem, além de estamparem a alegoria feminina como representante
da Liberdade e da Revolução Social, também estão dotadas de uma crença utópica na vitória
da Anarquia, que se elevaria sob os escombros da sociedade capitalista. “[...] As utopias são a
mais pura manifestação do desejo, surgindo como forma de evasão de uma realidade
considerada insatisfatória. Nesse sentido a utopia se pressupõe totalizante da alteridade em
relação ao mundo vivenciado” (SCHMIDT, 1999: 117). A utopia libertária também inventa
seus inimigos: o Estado, a Igreja, a polícia ou os militares, a tríplice sustentadora do
capitalismo. “Toda escatologia, toda utopia deve inventar a face de um adversário para
imputar-lhe o atraso da felicidade universal. Toda utopia é, portanto, maniqueísta”
(STAROBINSKI, 1988:148).
Figura 5: Folheto “El Cancionero Revolucionario”
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Fonte: Biblioteca Criolla – Instituto Iberoamericano de Berlin
A mulher visualizada na Figura 5 representa a alegoria da liberdade e aparece
destruindo os símbolos dessa sociedade maligna que a precede (leis, armas, coroa) enquanto
seu olhar ao horizonte alude à Nova Era. A figura feminina traz a luz e a sabedoria
necessárias para construir a nova sociedade sobre os escombros da antiga. Além disso, a
imagem apresenta vários traços da cultura clássica, que se traduziam tanto nas vestes da
mulher, como na coluna em estilo jônico na qual a mulher aparece apoiando a sua mão direita
e na tocha erguida bravamente (a tocha da sabedoria). Vale lembrar que a própria
representação da tocha está ligada à significação de armamento, uma vez que ela é a arma
utilizada por Hércules contra a hidra na mitologia grega. De acordo com Suriano, a utilização
da figura feminina para representar a liberdade seria também uma (re) significação de uma
imagem do cristianismo, de forma que a ideologia libertária, ao (re) significar tanto imagens
quanto o próprio vocabulário cristão, invade a esfera do sagrado e procura conferir um sentido
político para as crenças míticas.
En realidad, la mujer, representativa de la libertad, era la resignificación
profana de una imagen de claro simbolismo espiritual utilizada por la
iconografía cristiana. En ella, la heroína coloca sus pies sobre un hombre o
serpientes y dragones en clara alusión al triunfo del bien sobre el mal. En
nuestra imagen la mujer-libertad (el bien) está parada sobre los símbolos de
la sociedad capitalista (el mal). (SURIANO, 2001:304).
Esse quadro, descrito acima por Suriano, apresenta a Libertadora (a alegoria feminina)
sobre os escombros do capitalismo e começou a circular ainda nos tempos da Primeira
Internacional e, de lá para cá, foi amplamente difundido e modificado. Uma dessas
modificações aparece no Suplemento de La Protesta de 1899 (de Buenos Aires) e está
assinado por Marius, um dos colaboradores do suplemento. Segundo Suriano, Marius realiza
algumas modificações na imagem que circulara na Europa nos tempos da Internacional,
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mantendo sua essência. Infelizmente não se teve acesso ao referido exemplar do Suplemento
de 1899, no entanto, Suriano descreve detalhadamente a representação visual:
La iconografía anarquista local, que generalmente reproducía la circulante en
Europa, también abonaba la imagen violenta y generalmente hacía referencia
a la destrucción del capitalismo. Precisamente, una imagen de profusa
difusión en la prensa libertaria porteña titulada “El derrumbe de la sociedad
burguesa” mostraba en su centro a la mujer, símbolo de la libertad, que con la
antorcha en alto guiaba al proletariado hacia su redención; parada sobre los
emblemas más representativos del sistema (semejantes a escombros): la cruz
y la mitra papal de la iglesia, la espada y las insignias militares del ejército
así como la galera y el bastón del burgués. Completaban la alegoría, a cada
costado de la libertad, los edificios en ruinas de la cárcel y los tribunales. Así,
el mensaje que se desprendía de la imagen era sencillo, claro, contundente y
de enorme peso simbólico: los enemigos más odiados del anarquismo yacían
a sus pies destruidos en forma drástica por la revolución social. (SURIANO,
2001, p.303-304).
Uma nova adaptação dessa imagem aparece num folheto intitulado “El Cancionero
Revolucionário”, que foi impresso em Barcelona no ano de 1909 e circulou por Buenos
Aires; além da imagem, o folheto era composto por poemas e canções revolucionárias que
eram escritos em duas línguas: italiano e espanhol, se destinando também ao público
imigrante de Buenos Aires, ainda não dominante do idioma portenho. No entanto, não se sabe
se esse folheto chegou a circular em Barcelona ou se apenas foi ali impresso para, logo em
seguida, ser remetido à América. Encontrou-se um desses folhetos na Biblioteca Criolla
(coleção particular do cientista alemão Lehmann-Nietsche que reúne folhetos, poemas e
canções que circularam em Buenos Aires nas décadas iniciais do século XX)2.
De acordo com Gloria Chicote, sabe-se que esse folheto foi impresso em Barcelona
em 1909 e é de autoria do artista (espanhol, francês, algeriano ou marroquino, não há
consenso sobre sua nacionalidade nas fontes pesquisadas) Ângelo de Las Heras ou Lasheras,
demonstrando assim a existência de uma importante rede de trocas na imprensa subalterna
que englobava e conectava as cidades de Barcelona e Buenos Aires. Infelizmente, no artigo de
Glória Chicote, não é mencionado o ano preciso em que esse folheto foi encontrado em
Buenos Aires e coletado por Lehmann Nitsche, mas se acredita que ele tenha sido encontrado
em solo portenho logo após sua impressão em Barcelona. Sobre o desenhista Angelo Las
Heras sabe-se que:
Segundo a polícia, sua origem é incerta, provavelmente tendo nascido em
Marrocos. Em 1936, quando Angelo foi preso, contava com 46 anos e
2 Para informações mais detalhadas sobre a coleção da Biblioteca Criolla ver CHICOTE (2011) e LISI &
MORALES-SARAVIA (1987).
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declarou ao delegado ter chegado no Brasil há 43 anos e só ter passado para
as fileiras anarquistas há oito anos. Ou seja, Angelo Las Heras chegou ao
Brasil por volta de 1893, com três anos de idade, e tornou-se anarquista em
meados de 1928. (SILVA, 2005, p.69)
Mais curioso ainda é o fato de Angelo Las Heras ter vivido, praticamente quase toda a
sua vida no Brasil (emigrou para esse país quando tinha apenas 3 anos de idade) e, tudo leva a
crer, que realizava as atividades de propaganda ácrata desde as cidades brasileiras em que
fixou residência, articulando uma rede de trocas que englobava tanto a Espanha (local de
impressão de folhetos) como a Argentina (local de distribuição dos impressos). A imagem
acima ganha popularidade no Brasil na década de 1930 e muitos autores acreditam que ela
começou a circular apenas nesse momento, quando, na realidade, ela já se difundira vinte anos
antes, através do folheto “El Cancionero Revolucionário”.
No mesmo ano da impressão do folheto, 1909, essa imagem de autoria de Las Heras já
está sendo divulgada na imprensa libertária brasileira, mais especificamente no jornal A Luta
de Porto Alegre, em um exemplar especial de 1º de Maio, o que demonstra a rápida circulação
que essa alegoria teve nos veículos da imprensa libertária, bem como a aparição do desenho
primeiramente num jornal gaúcho de caráter mais local e, somente alguns anos depois, nos
jornais anticlericais e libertários paulistas. De forma que um provável caminho (porém não o
único possível) percorrido por essa alegoria possa ser o seguinte: Barcelona, Buenos Aires,
Porto Alegre e São Paulo.
Figura 6: A Libertadora
Fonte: A Luta, 1º de maio de 1909 nº44 p.01
A imagem estampada na primeira página do jornal A Luta apresenta uma
incorporação de elementos visuais em comparação à imagem original publicada no folheto
“El Cancionero Revolucionário” uma vez que o fundo da imagem passa a contar com um
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tribunal e com uma outra construção em ruínas (elementos ausentes no folheto, porém
presentes na imagem de Marius no Suplemento de La Protesta de 1899, descrita por
Suriano).
Figura 7: A Libertadora e retratos de heróis libertários
Fonte: A Lanterna, 1º de Maio de 1916, nº289 p.04
Conforme visto acima, a imagem de Angelo las Heras foi encontrada na capa do
periódico gaúcho A Luta durante o 1º de Maio de 1909 e é reproduzida novamente no
periódico anticlerical paulista A Lanterna no primeiro de Maio do ano de 1916 (Figura 7) e,
outra vez mais, reproduzida nos anos de 1917 e 1927 no periódico anarquista paulista A
Plebe; o que demonstra a grande circulação e repetição dessa imagem na imprensa operária
(lembrando também da sua aparição na forma de folheto em Buenos Aires nas décadas
iniciais do século XX). Além dessa constante circulação e permanência da imagem nas
páginas da imprensa subversiva também é importante observar o fato de que, embora a
imagem fosse a mesma, cada periódico modificava sua apresentação: seja através de
incrementos ou supressões de elementos na imagem ou na mudança dos títulos e ou das
legendas que acompanhavam a representação iconográfica. Temos assim, na figura 7, a
incorporação dos retratos de pensadores anarquistas ao redor da imagem criada por Las
Heras, emoldurando a mesma.
O desenho de Las Heras é (re) apropriado, no ano de 1921, pelo periódico portenho La
Protesta e, embora apareça assinado pelo pseudônimo J.Speroni, percebe-se que a imagem
foi, possivelmente, inspirada nos traços do folheto “El cancionero revolucionário” ou ainda
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na imagem de Maurius, do Suplemento de La Protesta de 1899. Na (re) criação de Speroni o
desenho original é reproduzido com traços mais simples e grosseiros e ocorre a adição de
novos elementos à representação visual no fundo da imagem, a qual passa a apresentar os
enforcados de Chicago, ao mesmo tempo em que altera o cabelo solto da alegoria feminina
pelo preso; a impressão de movimento que o cabelo solto concedia à representação se mantém
através da tocha que deixa de estar estaticamente erguida para encontrar-se em movimento na
mão esquerda da mulher, enquanto a mão direita está com o punho fechado. No entanto, a
essência da imagem é a mesma: a vitória da anarquia e o início da nova sociedade. Há,
portanto, uma (re) apropriação, uma (re) criação da imagem de Las Heras pelo artista do
periódico argentino.
Acontece uma simplificação da imagem e isso, de maneira alguma, pode ser entendido
como carência de espírito artístico ou subestimação do papel da estética no jornal La
Protesta, uma vez que o mais importante na arte anarquista é o conteúdo e não a forma.
Aliás, essa última deveria ser a mais singela possível e garantir, através de traços pouco
complexos, a transmissão dos ideais ácratas.
Figura 8: A libertadora por J. Speroni
Fonte: La Protesta, 1º de Maio de 1921 nº3866 p.01
A relação com o Primeiro de Maio é nítida na própria imagem, tanto por trazer escrito
“1º de Mayo” quanto pela representação dos enforcados, ao fundo da imagem. Os enforcados
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podem ser entendidos como um acréscimo na imagem, caso parta-se da suposição de que o
desenho inspirador de Speroni tenha sido a criação gráfica de Las Heras. A postura da mulher,
na representação icônica, transmite a ideia de ação, tanto pelo punho cerrado quanto pela
tocha em movimento.
O jornal paulista A Plebe, na edição de 1924, traz novamente a imagem da figura
feminina pisando sobre as armas do capitalismo, da destruição, da guerra (canhão, revólver,
espada, faca) e, enquanto esmaga essas armas, a alegoria feminina segura, fervorosamente, os
instrumentos com os quais construirá a Nova Sociedade (pá, picareta, enxada, entre outros).
Ocorre novamente uma (re) criação, uma modificação na forma como a alegoria feminina é
utilizada pela imprensa libertária; muito embora a mensagem continue sendo similar:
necessidade de destruição para criar. A própria legenda traduz esse ato duplo de
destruição/criação: “A revolução social tende para o extermínio dos instrumentos da
opressão e da barbárie dignificando as ferramentas do trabalho útil e fecundo para o bem
estar de toda a humanidade”. Nessa representação a tocha erguida pela alegoria feminina (no
desenho de Las Heras) é substituída por ferramentas de trabalho que servirão para construir a
nova sociedade Uma observação mais atenta da imagem permite perceber que a alegoria
feminina está com a boca aberta, o que alude diretamente ao ato de gritar, de evocar os
operários para a ação, de forma que a imagem também passa, através de uma gestualidade
específica, uma ordem ao observador atento. A boca aberta da alegoria não é, de forma
alguma, uma casualidade estética, mas sim um ato intencional do seu criador. A mesma
imagem aparecida em 1924 no jornal paulista A Plebe é, alguns anos depois, novamente
visualizada no jornal anarquista espanhol Tierra y Libertad. É estampada nesse jornal no
ano de 1937, o que demonstra a permanência dessa imagem na imprensa anarquista. O
desenho não sofre modificações, mas a legenda sim.
Figura 9: A Revolução Social Figura 10: Revolução Social x Fascismo
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Fonte: A Plebe, 1º de Maio de 1924 nº234 p.03 Fonte: Tierra y Libertad , 1/05/1937 nº16 p.09
A legenda também faz alusão direta a nova vida que se ergueria após a revolução
social e adiciona um inimigo à representação visual: o fascismo. Elemento ausente das
imagens libertárias até a década de 30, quando passa a aparecer constantemente. A legenda
faz a seguinte previsão (sempre otimista) do futuro “nuestra guerra contra el fascismo
internacional y contra las democracias capitalistas es la muerte de la civilización burguesa.
Nuestra vitoria levantará un nuevo mundo de trabajo, paz y orden social. ¡Nuestro triunfo
hará vivir una nueva civilización! ¡A LA VICTORIA! Trata-se de mais uma imagem que
reforça a crença na revolução social e na força do operariado e que, ao mesmo tempo,
incorpora inimigos contemporâneo s (no caso, o fascismo) à uma representação visual antiga,
conferindo novos usos à imagem e a ligando às novas interpretações; de forma que há sim
permanências valorosas na estética libertária e anticlerical, mas há também acréscimos,
alterações, incorporações.
Tanto a ligação da figura clerical com o roubo e com uma vida de excessos, como a
utilização da alegoria feminina como anunciadora da Revolução Social contribuem para a
formação de um imaginário próprio que procurava tanto destruir seus inimigos e a sociedade
vigente como apontar para um futuro próximo, para a nova era.
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