Reencontrando Mundos: do Sertão à Amazônia, da Amazônia ao Sertão
Elomar cantador do sertão
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO BRASILEIRO
NOVEMBRO DE 2015 – SALVADOR / BAHIA
PROFESSORA: NÚBIA BENTO
ESTUDANTE: RUY AUGUSTO FAGUNDES DE AZEVEDO
ENTRE TROVAS E MARTELOS
ELOMAR: O CANTADOR DO SERTÃO BAHIANO
“já passei pur tantas prova/ inda tem prova a infrentá
vô cantando mias trova/ qui ajuntei no camiá”
cantiga do estradar
Elomar
Esse trabalho se propõe a fazer uma análise do imaginário do sertanejo a partir
do referencial teórico, de Euclides da Cunha, primeiro entre os pensadores do
século XIX que se debruçavam sobre o tema da identidade nacional,
baseando-se no sertanejo, e na sua formação racial, natural e cultural. O
trabalho dessa forma se debruçará a Obra do cantor e compositor Elomar
Figueira de Melo, como um representante dessa cultura sertaneja, e que busca
um retorno tanto físico quanto espiritual, para esse sertão, como o verdadeiro
berço dos valores e da identidade nacional. Tal debate será travado
dialogando-se com a literatura a respeito do tema, buscando-se assim chegar a
uma síntese inicial sobre tal discussão. Esse é um trabalho inicial a cerca
dessa discussão, tanto que não foi encontrado nenhum outro artigo que
discutisse a obra desse artista sobre esse viés, então o nosso texto tentará
muito mais construir um panorama da discussão a respeito da obra do artista e
da identidade sertaneja, dando um foco prioritário na análise do trabalho de
Elomar como um possível interprete desse Sertão, se é que essa categoria
existe e pode ser utilizada.
O pensamento acadêmico brasileiro foi centralmente construído durante o
processo de colonização, buscando como no ideal iluminista as luzes do
conhecimento na Europa colonizadora. Assim, sempre se enxergou o Brasil,
como um país dos Brancos portugueses que vieram trazer a civilização para os
“puros” nativos que aqui viviam, e os negros Africanos foram trazidos, para
trabalharem, por uma série de fatores que não se mostra necessário
aprofundar aqui os Africanos que foram escravizados, enquanto os nativos
indígenas, foram, massacrados ou assimilados, à cultura e a “civilização”. De
forma que durante o período imperial, as teorias de afirmação da identidade
nacional priorizavam o português, e o indígena como os elementos
construtores da nação deixando os Africanos invisibilizados.
No período seguinte, o pensamento cientificista e racialista, estavam em seu
pleno desenvolvimento na Europa, o que inspirou fortemente os autores locais
a buscarem a formação da identidade nacional, e o que garantiria a nossa
unidade a partir daí. Tivemos assim de um Lado, Nina Rodrigues Seguindo o
pensamento de Gobineu, defendendo a pureza racial, em detrimento da
mestiçagem. Silvio Romerio, defendendo a miscigenação, cultural, para
propiciar, um embranquecimento da população. E a terceira visão, finalmente é
a que pretendemos aprofundar um pouco: Euclides da Cunha (1866-1909),
estudante da escola de engenharia do exército, e jornalista, participou da
guerra de Canudos como primeiro repórter nacional a participar de um conflito
em nome de um jornal, para trazer sua leitura dos fatos. É nesse processo de
ida ao Sertão, e retorno que Euclides constrói a obra prima do seu
pensamento.
A sua principal obra: “Os Sertões”, que parte de uma linha argumentativa
fortemente positivista e naturalista, trás a visão de que o homem é mero
produto do meio, e secundariamente produto da sua história, ou seja:
primeiramente fundamental, seria o determinismo geográfico, na qual uma
sociedade em uma época, nada mais seria, do que uma expressão do homem
com a terra, e que isso criaria hierarquias de locais mais propícios e adaptados
ao progresso da civilização, e outros menos; Sendo um fator secundário,
porém ainda de muita importância o Darwinismo social, que partia de uma
visão geneticista, em que cada população seria uma expressão da sua “raça”,
havendo assim, raças que carregariam características mais positivas ou
negativas que outras, justificando assim as hierarquias sociais. Desse modo,
como os outros principais pensadores da época, Euclides legitimava com o seu
pensamento, uma visão de superioridade do branco Europeu, como a melhor
raça para o progresso, e a região Centro-Sul do país como a vanguarda que
nos traria a civilização. Como podemos exemplificar no trecho de ORTIZ:
“São, portanto, prioritariamente estas noções de clima e raça que vão dar
singularidade ao país e explicar o seu atraso e a sua lenta mobilidade, o calor dos
trópicos foi visto como um fator dificultador para adaptação do elemento europeu na
terra, aliado a isso se apresentava uma evidente mistura de raças. Aparece deste
modo, um quadro pessimista sobre a construção da nacionalidade e
consequentemente o progresso e a modernização do país. Se o mestiço (indolente) é
um dado concreto, o que é apontado como ideal para o progresso do país é a
possibilidade de um branqueamento da sociedade brasileira, numa tentativa de
processualmente ir minando as características negativas do nosso povo, para
finalmente construir um Estado Nacional. Neste sentido, a idéia de Nação aparece
muito mais como uma meta a ser alcançada do que como uma realidade (Ortiz,
1994).”
Entretanto na sua viagem a Canudos, Euclides se depara com algo novo, Os
Sertões, levando-o a ressignificar alguns pontos na sua teoria. Ao complexificar
a observação empírica e o cruzamento de dados, Euclides chega a apontar
como nos mostra Vasconcelos: “A exemplo disso via-se o negro do litoral
sendo mais malevolente, o homem do sertão mais sisudo e ríspido, a mulata
sensual...”, pois, para ele, o branco mais puro e tradicional, ficou mais
concentrado nos sertões do país, de onde os índios fugiram, foram mortos, ou
se “embranqueceram” mais, em contraste com as regiões mais ricas do país,
próximas ao litoral, com uma concentração maior de negros, que se misturaram
com os brancos degenerando-os com seus costumes e malemolência, como
nos disse a autora supracitada. Desse modo após sua experiência no sertão,
ele acaba por inverter o argumento apontando que o sertanejo sim seria o
verdadeiro portador da identidade nacional, que deveria ser valorizada, o
verdadeiro herói que o Brasil precisava valorizar, e que este apenas não se
desenvolvia pelas dificuldades bravamente enfrentadas no meio. Em contraste
ao litorâneo, um povo mais fraco e corrompido, e inclusive, mal acostumado
pelas condições geográficas favoráveis que o tornariam um preguiçoso.
Exemplificado com o trecho:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços
neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista,
revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura
corretíssima das organizações atléticas.” (CUNHA, 1984).
“Assim, a paisagem desoladora e desértica é a mesma paradisíaca, uma terra que vai
Da extrema aridez à exuberância extrema , e o seu habitante, o sertanejo, apesar de
ser o homem permanentemente fatigado , cambaleante e sem prumo, de um só
assalto pode se transformar em um titã acobreado e potente ágil e forte.” (CUNHA,
1984).
Assim, acabamos concluindo que levado ao limite o seu pensamento, Cunha
parece criticar o massacre dos sertanejos de canudos e a dominação cultural
que o litoral corrompido exercia sobre os sertões. De forma que a solução para
o país seria inverter essa lógica, valorizando o sertão, e que a sua cultura mais
pura e tradicional, fosse mantida, e utilizada como a cultura oficial brasileira. E
a nível mais físico, que os sertanejos, pudessem exercer seu potencial, indo
para regiões melhores geograficamente como o Centro-Sul, e assim tornar o
Brasil, uma nação mais sólida e firme. Irônico ou trágico, isso é o que acabou
por acontecer na nossa história com a ida dos imigrantes nordestinos a São
Paulo e Rio de Janeiro, especialmente nos seus períodos mais prósperos
consolidando assim o processo de industrialização e modernização do Brasil.
Percebe-se então a construção de um ideal de que o nordestino seria o
portador da verdadeira “brasilidade”, como a raça mais adequada, e que
guardaria melhor a nossa tradição portuguesa, sendo a verdadeira fonte a ser
valorizada para encontrar a essência nacional. Em oposição ao litorâneo,
acostumado, à produção para a exportação, para o mero lucro, e sempre em
contato e encantado com os estrangeiros, acabariam por serem as bases de
um Brasil, sem personalidade que acabaria sempre por copiar o que viria de
fora e não construindo uma verdadeira cultura local. O que pode ser observado
no seguinte trecho do historiador Albuquerque, que debate a invenção do
nordeste:
“O tipo nordestino vai se definindo como um tipo tradicional, voltado para a
preservação de um passado regional que estaria desaparecendo... se situa
na contramão do mundo moderno, rejeita as suas superficialidades, sua vida
delicada e histérica. Um homem de costumes conservadores, rústicos,
ásperos, masculinos; um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em
crise; um ser viril, capaz de retirar a sua região da situação de passividade e
subserviência em que se encontrava.” (ALBUQUERQUE 2003,).
E podemos confirmar com esse trecho do próprio Cunha:
É assim que o Brasil de cima se apresenta, forte, viril, duro e ríspido, influenciado
pelo meio ao desenvolver uma capacidade de enfrentar tudo e a todos para
sobreviver, sobreviver aqui no sentido de resistir, tanto a seca, que assola grande
parte da região, quanto no sentido de manter a pureza da brasilidade, se
resguardando, pela distância, das destruidoras influências
modernizantes/estrangeiras, a que o Sudeste estava sujeito. O abandono em que
jazeram os rudes patrícios dos sertões do Norte teve função benéfica. Libertou-os da
adaptação penosíssima a um estágio social superior, e, simultaneamente, evitou que
descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados. (CUNHA, 198)
De maneira quase que complementar, porém em uma linguagem artística, e
mais de cinquenta anos depois, produzido pelo próprio sertão, encontramos a
icônica presença do “cantador” Elomar Figueira de Melo. Baiano sertanejo,
nascido em Vitória da conquista e 1937, que após viver um tempo na capital do
estado, onde estudou arquitetura, e de forma autônoma música, ele retorna
para a sua terra natal, onde recluso em seu sítio, compõe suas peças, e livros,
uma verdadeira representação da tradição nordestina dessa região chamada
Sertão, ou a “sertaneza”. Possuindo assim um estilo bem característico da
tradição cultural a qual se propõe a ser porta voz fortes características como
aponta Guerreiro: “a criação artística de Elomar é composta de forma intuitiva e
original, e traz complexidade na poética e no delineamento dos acordes do
violão, aproximando, assim, linguagem poética, linguagem musical e
oralidade.”. Assim, a música de Elomar também carrega uma linguagem
popular vinculada à oralidade tradicional do sertão, sendo tanto cantados com
tais rimas, sotaques e vícios de linguagem próprios, quanto estão estes
mesmos presentes no encarte dos discos, da forma como são pronunciadas as
expressões, o que leva a um auto reconhecimento dentre aqueles que
compartilham tal cultura. Em relação à ambientação trazemos a visão de Canal
a respeito “Sua paisagem é povoada por andarilhos, ciganos, pessoas
humildes e deserdadas em condições de vida e sociedade de estruturas ainda
arcaicas. Há algo de surrealista nessa região, aludindo às estruturas e
condições de vida medievais”. Utilizando-se dessa forma do imaginário típico
dessa região do nordeste, fortemente atrelada à cultura tradicional portuguesa
medieval, próxima às histórias da cavalaria, como em vários cordéis as
representam. E ainda segundo Canal: “’O elemento medieval é trazido, por
exemplo, na figura do retirante, tratado como guerreiro em terras estranhas’. A
orquestração suscita um imaginário “épico” que se atrela à jornada sertaneja
através do trabalho artístico.”. O que podemos fortemente perceber pela
narrativa épica, de contos que para a história oficial, seriam insignificantes,
como histórias cotidianas de tropeiros, ou vaqueiros, mas que são
representados, como algo grandioso, até pelo formato musical, em óperas, ou
músicas de grande complexidade composicional. Finalmente é importante para
fechar essa avaliação da técnica de composição e construção da música e do
texto de Elomar levar em conta o seguinte trecho:
O compositor transita, assim, por um entre-lugar no qual prosaico e poético não são
categorias opostas, mas fluxos que se permeiam e se completam, desfazendo sua
própria delimitação. Os arranjos sofisticados são atrelados à “linguagem dialetal
sertaneza”, tornando-se um parte integrante e fundamental do outro, ambos
contraditórios e ao mesmo tempo inseparáveis dentro de cada composição. Em suas
apresentações, o autor afirma uma figura de vaqueiro cantador e menestrel. Ao trazer
a ideia de cancioneiro, deseja relacionar o sentido de cancioneiro à antiga poesia
lírica galego-portuguesa. Alia à performance teatral uma voz de timbre solene e
grave, responsável pela dramaticidade que imprime às execuções. (GUERREIRO,
2007).
Podemos assim perceber, que a sua música e musicalidade, se apresentam,
como uma totalidade complexa, que busca trazer-nos ao ambiente sertanejo,
em uma totalidade. Não baseada numa construção realista apenas como
muitos compositores modernos intentam trazer, mas sim num mágico sertão
espiritual, de estado de alma, de ideais, sonhos, e valores de forma gerais
vinculados a uma tradição ancestral medieval, de uma sociedade justa e
heroica. Podemos assim claramente observar essa perspectiva na própria fala
de Elomar concedida em entrevista realizada em campo por Guerreiro:
Nesse sentido, dinamiza um saber sobre pátria, arte, sertão e identidade, assumindo
lugar autoral próprio da modernidade: “Desde então compreendi a necessidade da
pátria sustentar a riquíssima música popular de que já é possuidora e mais ainda de
criar e produzir uma música orquestral coral e lírica que já vem sendo proposta a
partir de Carlos Gomes e até Villa Lobos e outros raros contemporâneos, para que
um dia, assim documentada com esta identidade, possa se apresentar e ser
respeitada pelas nações ricas do setentrião, as quais sempre nos viram como aldeia
de autóctones cuja maior expressão estética se dá nos remexeres de cadeiras e
bárbaros dançares” (GUERREIRO, 2007)
Buscando melhor exemplificar o estilo trazemos aqui um trecho de uma
música:
O Violeiro - Elomar
“(...) Cantado di trovas i martelo
Di gabinete, lijêra i moirão
Ai cantado já curri o mundo intero
Já inté cantei nas portas di um castelo
Dum rei qui si chamava di Juão
Pode acriditá meu companhero
Dispois di tê cantado o dia intero
O rei mi disse fica, eu disse não
Apois pro cantadô i violero
Só há treis coisa nesse mundo vão
Amô, furria, viola, nunca dinhero
Viola, furria, amo, dinhero não (...)”.
Seguindo a partir de uma temática central na musica anterior, Elomar se
considerava um cantador, fazendo assim uma referencia à tradição dos
menestréis, ou bardos medievais que viviam a cantar pelas localidades por
onde passavam, levando as histórias e tradições aprendidas em cada lugar,
sendo assim elementos centrais na coesão cultural das antigas sociedades, e
que desempenhou um papel importante para essa sociedade sertaneja cantada
por Elomar, sejam como Cantadores individuais ou que seguiam em grupos
juntamente com os tropeiros e vaqueiros, viajando por longas localidades,
difundindo notícias e as tradições. Tal tema e bastante discutido por KUEHN em
seu artigo: Elomar: o cantador nordestino, o qual reproduziremos uma parte:
Geralmente, o cantador é encarnado por uma pessoa do povo, simples e sem
formação específica. Sua tarefa é transmitir as mais diversas histórias, notícias e
poesias que falam da vida e da cultura de um determinado lugar ou região, seja em
linguagem poética livre, improvisada, seja de forma mais elaborada. De qualquer
maneira, a sua linguagem é direta e de fácil pelas pessoas que ali vivem.
Considerando-se que o dialeto catingueiro é deveras difícil de ser entendido por um
forasteiro, para a população local este representa o modo mais natural e acessível de
comunicação. Principalmente em razão da função de mediação sociocultural
importante que exerce até hoje naquela região, o cantador mantém viva a tradição
dos trovadores antigos, com os quais tem muito em comum. Por tudo isso, o cantador
é um dos poucos indivíduos que goza do privilégio de transitar por praticamente todas
as camadas da sociedade. Levando a sua história tanto aos "feudos" quanto aos
“casebres de barro”, as circunstâncias sociais e geográficas formaram uma espécie
de “fermento”, do qual o violeiro e o cantador puderam emergir como figuras centrais
da memória cultural e do pensamento coletivo. (KUEHN, 1996)
O que aponta para a sua expressão como discutida anteriormente como
representante dessa cultura ancestral e tradicional sertaneja, especialmente
pelas suas técnicas, de cantoria com a viola, que utiliza um sistema de rimas
que se parece com o Côco-Repente, um estilo comum no sertão, que evoca, à
música que trás fortemente essa tradição de umas histórias cantadas nas
feiras, ou locais de aglomeração pública, utilizando uma linguagem popular,
assim como temas que dialogavam com a realidade da população local. O que
no caso de Elomar, se da fortemente com temáticas que muito preocupavam a
população da época, objetivamente como a seca, e a necessidade de migrar
para o Sudeste do país, de forma mais espiritual, como a salvação, ou
temáticas religiosas. Tendo assim, o cantador a possibilidade de ser um
elemento permeável nessa estrutura social, que era capaz de transitar-nos
mais diversos meios sociais conseguindo assim portar uma série de histórias, e
contos, que despertavam o interesse de ambas as classes sociais. Para nos
aproximar ainda mais do artista sob essa temática, podemos trazer um trecho
de uma entrevista concedida pelo musico:
“Existe uma coisa que é o Estado do Sertão, que é enorme, um dos maiores estados
do mundo. Obviamente que há especificidades regionais dentro desse Estado do
Sertão, mas há mais semelhanças que dessemelhanças. A realidade que o sertanejo
vive não tem paralelo em nenhum outro lugar do mundo. Só o deserto se parece com
o sertão, eles são primos. Dentro dessa realidade o que se vê é um povo corajoso,
que luta com as maiores adversidades e não desanima, não abandona a luta.”
A partir do trecho, podemos seguir na discussão sobre a visão do autor a
respeito do que é o Sertão. Pensemos inicialmente que o termo “sertão” é um
derivado aumentativo de “deserto”. O que por um lado lembra o que foi
apontado por Cunha de tratar o sertão como uma terra ríspida e que inviabiliza
a vida sem titânicos esforços contra a natureza, o que torna a própria vida um
símbolo da força e da resistência desse povo. Isso o leva a compará-lo
compara-lo à terra santa (Israel, terra prometida por Jeová), como um local,
onde a eterna luta para a sobrevivência e as fortes relações tradicionais levam
o homem à redenção espiritual. Como podemos perceber neste trecho da
música “Pátria Veia do Sertão”:
Patra véa do sertão/ Terra donde eu nasci/ Teus campo de sequidão/ Me alembra
ôtro sertão/ Qui a Sagrada Letra canta/ Bem muito lonjo daqui/ Pl’as banda da Terra
Santa/ Nos campo de Abraão/ No sertão do Rei Davi” (MELLO: 1993, FAIXA 03 –
pátria veia do sertão)
Tanto pela entrevista transcrita acima, percebemos que o compositor, busca se
referenciar no sertão como uma unidade, que é muito além de espaços físicos,
e geográficos, determinados politicamente por interesses, mas tanto uma
cultura compartilhada pelos interiores do Brasil, com fortes semelhanças,
históricas, sociais, culturais, e políticas (Sertão como cultura, como estado de
espírito, cabendo assim inclusive definir a “Terra Santa” como sertão). De
forma que como mencionou em entrevista no disco Tramas do Sagrado o
compositor afirma que “Salvador fazia uma política bairrista em relação ao
resto do estado. A capital baiana para ele se tornou um gueto segregacionista
e o sertão ficou como uma coisa de província”; Apontando assim que haveriam
duas Bahias com grandes culturais e geográficas. Em suas palavras, “minha
cultura é a cultura de pés descalços, da precata salga bunda, chapéu de couro,
do vaqueiro, canônica mesmo é minha cultura”. Além disso, para ele a
formação cultural do interior (sertão) pautou-se mais por uma formação cristã.
Enquanto no litoral a formação foi mais heterogênea com grande influência de
religiões africanas. O que aponta para o seu íntimo diálogo com a tese de
Cunha, a qual haveriam dois espaços básicos para a compreensão da
formação brasileira, o Sertão e o Litoral, havendo uma dominadora do Litoral,
“corrompido” pela miscigenação para Euclides da Cunha. Enquanto Elomar, faz
uma critica que se baseia principalmente no Sertão, como um local, de
preservação das tradições, de uma vida, sem ambições, em contraste à
moderna vida Litorânea, que deturparia ao entrar fortemente em contato com o
estrangeiro, e os fortes interesses comerciais.
Nesse debate sobre a definição do sertão, trazemos para o debate mais atual
sobre essa formação do sertão, trazida por Canal a respeito da visão de Darcy
Ribeiro, ao dizia que:
“Essa região interiorana, a princípio, caracterizava-se como um local de criação de
gado para fornecê-lo aos engenhos de açúcar do litoral”. A penetração para o interior
fez-se seguindo os cursos dos rios. A população ia penetrando pelo interior do Brasil
à medida que o gado ia para o mesmo sentido. Com a grande distância dos centros
consumidores e população escassa, as relações com os proprietários das terras e do
gado tendiam a assumir “uma ordenação menos desigualitária que a do engenho,
embora rigidamente hierarquizada (RIBEIRO, 2009)”. (CANAL, 2013).
Seguindo nessa análise uma linha bem próxima a de Euclides da Cunha, no
sentido de apontar para a existência de uma unidade sertaneja que perpassa
por vários estados, entretanto diferencia-se desse último, pela perspectiva
sócio histórica da formação do sertão, a partir da sua ocupação territorial, e dos
trabalhos e relações humanas decorrentes destas que tenderiam a surgirem.
Apontando, para essa sociedade mais tradicional, cantada por Elomar,
povoada, de Vaqueiros e tropeiros, onde a relação com uma tradição
portuguesa medieval era íntima, como referido por Gilberto Freyre, que faz
alusão das propriedades rurais sertanejas, como os Feudos medievos.
Ainda nesse debate a cerca de diferentes visões sobre a formação do sertão,
podemos trazer a perspectiva do folclorista Câmara Cascudo. “Na atividade
pastoril, o vaqueiro que se destacava pelo brio e pela coragem, era exaltado
pelos companheiros, tornando-se lenda nas bocas populares” (CASCUDO:
1984). Assim, o papel do vaqueiro, como um elemento tradicional, dos Sertões,
que se expressava em todas as regiões, que compartilhavam dessa formação
sócia histórica, foi de certa forma desenvolvendo essa admiração pelos feitos
desses valentes guerreiros, que viviam da sua habilidade. “A labuta do dia-a-
dia para recuperar e apartar o gado nos campos dos sertões fazia-se, muitas
vezes, com a cooperação entre os sertanejos, mesmo com as grandes
distâncias entre estes. Nesses momentos os vaqueiros mostravam suas
habilidades, o que acabou por transformar-se em festas regionais. Os cultos
aos santos padroeiros e as festividades advindos do trabalho proporcionavam
às famílias um convívio social que resultava em festas, bailes e casamentos
(RIBEIRO: 2009,)”. Podemos assim perceber, a centralidade desse elemento
na unidade cultural, e na socialização dessa tradição local, na qual “O vaqueiro,
além de trabalhar no manejo do gado, tinha um papel importante na
transmissão de informação. Ao levar o gado para os entrepostos comerciais no
litoral, ficava sabendo de notícias que eram espalhado-transmitidas pelas
paradas das suas viagens.” (CANAL, 2013). Podemos visualizar claramente a
importância da cultura dos vaqueiros a partir desse trecho, dessa musica que é
dedicada ao heroísmo dessas míticas figuras:
História de Vaqueiros
Elomar Figueira Melo
Mais foi tanto dos vaquero
qui rênô no meu sertão
qui cantano um dia intêro
num menajo todos não.
João Silva do Ri-das-Conta
Antenoro do Gavião
Bragadá lá das Treis Ponta
Tiquiano do Rumão
ranca tôco ribadêro
matadô de lubião
turuna qui laça frechêro
nos iscuro pelas mão
mermo cantano um dia intêro
num menajo todos não
certa feita vô contá
só um feito desse vaquêro
foi chamado pra pegá
um levantado marruêro
Finalmente a principal ponte encontrada entre A representação que Elomar e
Cunha fazem do Sertão, apresenta-se na leitura, sobre a defesa da tradição
nordestina, esse povo, como um retrógrado, como disse Cunha, entretanto,
não num sentido pejorativo, ou negativo, e sim ambos buscam nessa tradição
conservada no sertão uma chave para identidade nacional, se afirmar,
encontrando assim o país, um rumo a ser seguido, não mais caindo nas
influencias estrangeiras, ou problemas da urbanização e/ou modernidade, tão
nocivas para a nossa cultura, segundo Elomar nessa entrevista a Miguel
Anunciação datada de 1998: “Na economia, ela [a globalização] é inevitável,
mas na cultura tem que haver fronteirização, manter as identidades, não a
força do dólar arrebentando com tudo. Eu não me globalizo... Eu vim ao mundo
pra marchar contra a multidão.” Assumindo assim, um papel de paladino antimoderno,
Elomar, grava os seus discos numa gravadora própria, vive em sua fazenda em Vitória
da conquista, onde mantem uma organização não governamental (ONG), Casa dos
Carneiros, que se preocupa em registar e conservar a tradição popular sertaneja.
Exemplificando tal crítica à modernidade podemos trazer a música:
Chula No Terreiro Elomar Figueira Melo
Mais cadê meus cumpanhêro
Qui cantava aqui mais eu, cadê
Na calçada no terrêro, cadê
Cadê os cumpanhêro meus cadê
Cairo na lapa do mundo, cadê
Lapa do mundão de Deus, cadê
Mais tinha um qui dexô o qui era seu
Pra i corrê o trêcho no chão de Son Palo
Num durô um ano o cumpanhêro se perdeu
Cabô se atrapaiano com a lua no céu
Num certo dia num fim de labuta
Pelas Ave-Maria chegô o fim da luga
Foi cuano ia atravessano a rua
Parou iscupiu no chão pois se espantô com
a lua
Ficô dibaixo das roda dos carro
Purriba dos iscarro oiano prá lua, ai sôdade
Finalizamos então essa breve discussão, apontado para fortes semelhanças
nas leituras, sobre O sertão, entre Elomar Filgueira de Mello e Euclides da
Cunha, ao tratarem do sertão como um local mais puro, e distante da
corrupção e das influencias negativas da cidade e da modernidade,
caracterizadas pela cultura do Litoral, como a região mais miscigenada do
Brasil, e sob mais influencias estrangeiras e da modernidade. Em contraste
com o Sertão como a fonte da cultura tradicional brasileira, onde estariam os
berços dos valores e costumes que o país necessitaria, para encontrar sua
identidade e firmeza para se tornar uma grande nação. Não podemos ficar a
críticos a essa visão, que carga em si, racismo beirando uma visão eugenista
por parte de Euclides da Cunha, enquanto que a visão de Elomar acaba,
caminhando para uma interpretação eurocêntrica da história, hipervalorizando
um passado medieval português, em detrimento da nossa formação completa,
miscigenada, e com forte contribuições indígenas e africanas que ficam de
certa forma invisibilizadas. Esse trabalho acabou sendo predominantemente
panorâmico, a respeito do debate, o que dificulta a afirmação categórica dos
resultados encontrados, nos dando mais pistas para uma próxima investigação
mais focal a respeito do tema num futuro.
BIBLIOGRAFIA:
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nordestino, uma invenção do falo, uma história do
gênero masculino (Nordeste 1920 1940). Maceió: Catavento. 2003.
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CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três 1984
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GUERREIRO, Simone. Tramas do Sagrado: a poética do sertão de Elomar. Salvador:
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