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Eixo A didática e a Prática de Ensino na relação com a Escola, Subeixo Currículo,subjetividade e cotidiano escolar, tratando do tema
CURRÍCULO E SUAS RELAÇÕES COM A DIDÁTICACleide Maria Quevedo Quixadá Viana - UnB
Introduzindo o tema ...
A discussão do tema proposto para esta mesa exige algumas considerações
iniciais para que seja possível adentrar na problemática proposta.
De antemão deixo claro que a primeira delas é a de que não sou especialista em
Currículo, meu campo de atuação é a Didática. Segundo, não vejo sentido na “disputa”
em “demarcar território” de uma e de outra, porque entendo que cada uma delas tem seu
objeto próprio e como professora de Didática defendo a importância do diálogo entre
ambas. Entretanto, reconheço a existência de uma disputa entre as duas áreas e
considero procedentes as observações de Libâneo (2002, p. 86) de que tanto uma como
a outra “têm objetos de investigação coincidentes”, embora “as duas áreas têm origem
em diferentes tradições culturais e teóricas, implicando diferentes percursos
epistemológicos e, portanto, uma impossibilidade de conjunção teórica”.
Por último, o que trago aqui são reflexões para serem compartilhadas com meus
pares, professores, pesquisadores e estudantes as quais considero fundamentais para
pensar a relação do Currículo com a Didática. E me refiro à relação, conforme o tema
proposto, por entender que uma área não exclui a outra, mas ambas podem contribuir
para o desenvolvimento de um projeto coletivo que caminhe na mesma direção,
comprometido com a qualidade da educação.
O texto está organizado em três momentos. No primeiro, apresento os conceitos
de Currículo e de Didática. No segundo momento discuto as confluências e divergências
do campo de estudo de cada uma das áreas. No terceiro, fecho com algumas
considerações finais apresentando minhas reflexões sobre as contribuições do Currículo
e da Didática para a formação do professor.
1- Pontuando conceitos ...
Para a discussão proposta, conforme anunciado no início, tomo como de partida
a conceituação de Currículo e de Didática no sentido de posicionar frente a tais
concepções.
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Assim sendo, é oportuno destacar que não farei aqui uma discussão exaustiva da
evolução de tais conceitos, por não ser esta a minha proposta e por este tipo de estudo
vir sido explorado com competência por vários pesquisadores das duas áreas.
Cabe por sua vez abrir parênteses para destacar que tais conceitos não existem
de forma estática, atemporal, a-histórica, descontextualizada das implicações e
determinações de ordem social, política e econômica. Eles são susceptíveis às demandas
e determinações do poder hegemônico do contexto social e do tempo histórico em que
se situam.
Nesse sentido, Pacheco (2001 e 2006), apud Leite (2013, p.199), considera que
“o conceito de currículo é polissênico, acarretando diferentes sentidos e finalidades de
acordo com distintos papéis atribuídos à escola, à educação escolar e aos seus agentes”.
Recorro, então, a Goodson (1995) e Moreira (2000) para conceituar currículo,
não desmerecendo a contribuição de outros autores que tratam da temática. Justifico
minha escolha pelo primeiro, porque este apresenta uma reflexão importante sobre o
conceito de currículo, mostrando, através da história, sua constituição como um artefato,
uma invenção social e histórica, que revela prioridades sociopolíticas na sua definição,
constituindo-se, nesses termos, como um processo social de preferências e privilégios
(GOODSON, 1995).
A Moreira (2000), por sua vez, não só por este autor ser referência nacional,
mas, por apontar em suas análises sobre currículo que este não deve se restringir a “uma
lista de disciplinas e conteúdos”, defendendo uma visão de currículo que abrange
praticamente todo e qualquer fenômeno educacional (MOREIRA, 2000, p. 75).
Nesse sentido, é importante complementar com Alves (2005, p.2) “que o
currículo não se resume àquilo que é determinado pela via oficial”, pois [...] “é no
espaço-tempo da escola que se desenha o currículo, através de acordo e mudanças que é
necessário rever quase cotidianamente, e não através de determinações legais”.
Na verdade, é possível perceber no currículo um espaço de tensão entre forças
culturais e políticas, sendo tecido por pessoas comprometidas com a construção de
conhecimentos e não como algo acabado para ser cumprido.
Em relação ao conceito de Didática, o ponto de partida não seria outro que não
Comenius, considerado o pai da Didática Moderna. Em sua Didáctica Magna inicia
afirmando que “Didáctica significa arte de ensinar” (COMENIUS, 1957, p.45). Embora
reconhecendo o mérito e a incontestável importância da obra de Comenius, em uma
época na qual, até então, a didática não havia sido sistematizada e ainda hoje sobre o
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que esta representa para a área da Didática, vale destacar que a natureza instrumental e
receituária identificada na sua gênese predomina, ainda hoje, na concepção da maioria
dos alunos de licenciatura que chegam para cursar esta disciplina, como também, no
trabalho que orienta a prática de muitos professores de Didática.
Assim sendo, a Didática é comumente considerada como sinônimo de métodos e
técnicas de ensino e a escola como uma instituição que “repassa” o conhecimento. Para
Martins (2009, p. 11), “a escola é uma instituição que veicula o saber sistematizado. A
transmissão é apenas uma das formas e práticas de interação entre professores, alunos e
conhecimento”.
No Brasil, a Didática, como uma disciplina de caráter instrumental, preocupada
apenas em como fazer, foi questionada no meio educacional, nas últimas quatro
décadas, inclusive por alguns educadores que defendiam até sua extinção como
disciplina no curso de pedagogia e nos cursos de licenciatura e sua “inutilidade” ao
defenderem a ideia de que “ninguém educa ninguém”. Na verdade, muitas
interpretações equivocadas foram decorrentes, talvez, do viés de interpretação da ideia
defendida por Paulo Freire de que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém
se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo"
(FREIRE, 1978, p. 79), algo bem diferente ao atentarmos para a complementação da
frase que para muitos, parava no meio do caminho.
Entre os momentos marcantes do enfrentamento da Didática vale destacar os
seguintes movimentos: (a) Década de 1980, I Conferência Brasileira de Educação
(CBE), em 1980 e I Seminário “Didática em Questão”, em 1982 (Candau, 1983),
embrião do ENDIPE; (b) Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE),
em 2014 na sua décima sétima edição; Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd), na 36ª Reunião Anual em 2013; como marcos para a
afirmação da Didática como disciplina da Educação.
Na superaração da fase de contestação da Didática, que alguns estudiosos da
área como Martins e Candau se referem “à busca de sua identidade”, a Didática passa a
assumir o status de uma área de conhecimento, apresentando como objeto de estudo
próprio, o processo de ensino e suas relações.
O que é possível perceber no avanço da discussão sobre a concepção e o objeto daDidática é que,
dependendo das circunstâncias e dos momentos históricos, pode serconsiderada a ciência do ensino; a arte do ensino; uma teoria dainstrução; uma teoria da formação ou mesmo uma tecnologia para dar
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suporte metodológico às disciplinas curriculares. De alguma forma,esteve sempre ligada às questões postas pelos processos de ensino(FUSARI; FRANCO, 2010, p. 7). (Grifos meus).
Foi nesse contexto de conflitos e questionamentos sobre a identidade da Didática que
os estudiosos deste campo passaram a considerar a questão política como determinante
no tratamento das questões pedagógicas com a proposta de uma Didática Fundamental e
não mais em uma Didática Instrumental.
Assim, concordo, ainda, com a observação de Fusari e Franco de que “a Didática
surge do e no enfrentamento das contradições políticas, éticas e sociais” e que, em
ambos os campos, teórico e da prática social, ela “funciona como caixa de ressonância e
de reverberação dos desafios que o contexto socioeconômico e político propõem à tarefa
educativa”, como acontece até hoje (Ibidem, 2010, p.10).
Completando tais ponderações, vale destacar, ainda, que para Fusari e Franco
(2010, p.8),
A Didática é, acima de tudo, a construção de conhecimentos quepossibilitem a mediação entre o que é preciso ensinar e o que énecessário aprender; entre o saber estruturado nas disciplinas e osaber ensinável às circunstâncias e aos momentos; entre asatuais formas de relação com o saber e as novas formaspossíveis de reconstruí-las.
No que pese todo este movimento de reconstrução da Didática, alguns
estudiosos, como é o caso de dois autores acima citados, consideram que, ainda na
atualidade, a Didática se encontra “em questão”. Muitas discussões ocorrem em relação
ao seu campo conceitual, à ressignificação do papel do ensino, da aprendizagem, da
escola e dos professores para o enfrentamento das demandas contemporâneas.
2- Tecendo relações entre os campos do Currículo e da Didática
Considero necessário para a compreensão do tema em tela, refletir acerca das
confluências e divergências do campo de estudo de cada uma das áreas, como também a
respeito das subjetividades da experiência pessoal e cultural que envolve o Currículo e a
Didática.
Com o intuito de estabelecer as relações entre os campos do currículo e da
didática necessário se faz considerar o contexto histórico. Para isso, é importante
começar lembrando que a partir das últimas duas décadas do século e milênio passados,
temos vivido um rápido e espetacular avanço tecnológico na história da humanidade
(VEIGA; QUIXADÁ VIANA, 2010). Se, por um lado, a evolução da ciência trouxe
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benefícios incontestáveis à humanidade, por outro lado, é possível constatar “o uso
pernicioso que o homem faz da sua capacidade criadora, provocando danos irreparáveis
à humanidade, à sociedade, a si mesmo e ao planeta (VEIGA; QUIXADÁ VIANA,
2010, p.14).
Mas, não foi apenas o avanço tecnológico o responsável pelas profundas
transformações que veem acontecendo desde então em escala mundial. O impacto da
crise de acumulação do capital que tem início nos anos de 1970, identificada por
Mészáros (1995) como “crise de acumulação do capital”, passou a exigir novas formas
de reorganização das sociedades em escala mundial. As medidas adotadas para conter a
crise e recompor a perda de lucro nos países capitalistas foram proclamadas por meio do
que ficou conhecido como Consenso de Washington, realizado em 1989, sendo
apresentadas por meio de um decálogo de exigências aos países devedores, como forma
de garantir o ajuste estrutural a estes países, para ser possível o pagamento de suas
dívidas externas. Tal política ficou conhecida pelo que se convencionou chamar de
projeto neoliberal, com o aval de uma sociedade regida pela globalização, sendo
“orientada” segundo a agenda de organismos financeiros internacionais, capitaneados
pelo Banco Mundial.
Entre as medidas apontadas para a superação da crise podemos citar:
a flexibilização do processo produtivo; a desregulação e a liberdade demercado; a valorização de desigualdades; a privatização e a política doestado mínimo, em que o Estado assume o papel de regulador etransfere para o mercado e a sociedade a sua responsabilidade com osgastos sociais (VEIGA; QUIXADÁ VIANA, 2010, p.15-6).
O Brasil, como país devedor, passou a direcionar suas reformas em função de
tais exigências. Nesse contexto, tivemos o crescimento acelerado do que ficou
conhecido como terceiro setor, ou terceira via, e da iniciativa privada na educação,
amparado por uma reforma educacional que contemplou uma concepção de gestão, de
escola e de currículo afinadas com a política do Estado mínimo, com o objetivo de
formar um novo “tipo de trabalhador”. Tal demanda aponta para uma formação
aligeirada, retomando com mais vigor o tratamento do conhecimento do modo técnico-
instrumental de um fazer acrítico e alienado. Nesse sentido, a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB n. 9394/96, ainda em vigor, promoveu várias mudanças
no sistema educacional afinadas com a agenda neoliberal, no sentido de o professor ser
preparado para atender às novas demandas do mercado, pautadas em uma nova
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concepção de currículo, de avaliação e de gestão para formar com competência o aluno
para o mundo do trabalho.
Em meio a esse cenário orientado por diretrizes neoliberais, tivemos, por outro
lado, um movimento no sentido contrário no meio educacional brasileiro.
Pesquisadores, professores, contrários à “nova ordem”, assumiram a defesa de um
movimento contrário, na defesa de uma educação e de uma formação comprometida
com a emancipação do aluno. Assim, o Currículo e a Didática passam a ser
influenciados nos dois sentidos no contexto brevemente delineado. Também é oportuno
salientar que o surgimento da disciplina de Currículo, gerou um embate com a
disciplina de Didática, pela disputa de domínio de território.
Qual tem sido então, a posição assumida por pesquisadores dos dois campos?
Inicio lembrando que, historicamente, no Brasil, o campo do Currículo voltava-
se predominantemente para as questões relacionadas à seleção e a organização do
conhecimento escolar, enquanto que o campo da Didática priorizava o ensino como seu
objeto de estudo. De acordo com Sacristán (1998), Currículo e Didática são “campos
superpostos”. Para Libâneo, conforme mencionado no início do texto, “a didática e o
currículo têm objetos de investigação coincidentes, isto é, abarcam a mesma
problemática e os mesmos campos de atuação prática” e o Currículo torna-se “um
campo de projeção da didática” (LIBÂNEO, 2002, p. 86).
Nóvoa (1997) afirma que o Currículo apresenta-se como sendo um campo mais
geral do que o campo da Didática, sendo esta um objeto de estudo do Currículo. Na
visão de Oliveira e Pacheco (2013, p. 34-5),
[...] mesmo na posição apresentada de a Didática ser um objeto doCurrículo, e por mais que o campo do Currículo tenha alcançadoestatuto de maioridade acadêmica, ‘não restam dúvidas quanto àexistência da didática como área de conhecimento que integraquestões (objetivos, competência, conteúdos, metodologias, avaliação,planificação etc.) ligadas aos processos formais de ensino e deaprendizagem’. E assim, o campo da Didática é autônomo em relaçãoao do Currículo.
Leite (2013), por sua vez, defende que a formação na área dos estudos
curriculares não pressupõe a eliminação de estudos e intervenções do campo da
Didática, por entender ser essencial na formação de professores o “domínio de modos
de trabalho pedagógico-didático” para ser possível responder às demandas da
aprendizagem devido à diversidade de alunos.
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A respeito da distinção entre os dois campos, a citada autora recorre, por sua
vez, ao estudo de outros autores que tratam da problemática no livro “Currículo,
Didática e Formação de Professores”, publicado pela Editora Papirus em 2013, do qual
ela é a autora do último artigo. Nos seis outros textos que completam o livro há
referências às duas áreas serem campos distintos, embora apresentem interseções em
determinados pontos do conhecimento. Este é o caso de José Augusto Pacheco e Maria
Rita N. S. Oliveira que defendem essa posição ao sustentarem que a Didática toma
como referência “o processo de ensino como um todo”, enquanto o Currículo toma
como objeto de estudo “a seleção e a organização do conteúdo escolar”. Assim, na visão
dos dois autores, a Didática teria um campo mais abrangente do que o Currículo.
Na opinião de Leite (2013) acontece exatamente o inverso, embora esta
defenda o diálogo entre as duas áreas e seus estudiosos no qual se mantenha a
“identidade de origem”, pois dessa forma, o resultado será o enriquecimento de ambas e
a contribuição no processo de formação de professores.
Diante do exposto, discordo da afirmação de ser a Didática e o Currículo
campos superpostos, como defendem alguns autores. Na verdade, identifico uma via de
interlocuções entre os dois campos, cada um com sua especificidade, embora reconheça
a disputa por limites e avanços de territórios em cada um deles.
Em relação às divergências entre Didática e Currículo considero importante
destacar algumas apontadas por Libâneo (2002):
Descrença dos teóricos críticos do Currículo quanto à importância dos conteúdos
escolares. Com o foco na análise das relações entre conhecimento e poder, o
saber escolar e a ideologia, o currículo oculto, a teoria curricular crítica tomou
para a reconceitualização do campo do currículo, a cultura e as vozes dos alunos
e as narrativas dos membros da comunidade escolar.
Nesse sentido, é necessário esclarecer que a argumentação de Libâneo a favor
dos conteúdos está centrada na abordagem crítico-social, na qual o autor considera “as
implicações de seus determinantes históricos e sociais”, reconhecendo a importância de
analisar os elementos explicitados pelos teóricos críticos do Currículo como também a
ideologia que permeia as disciplinas e as práticas escolares. Na verdade, Libâneo
reconhece a importância do “saber sistematizado e a aquisição de conhecimentos”, mas
também a habilidade de os alunos lidarem “criticamente com eles, inclusive ligando-os
ao seu mundo vivido”.
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• Ausência de uma análise mais contextualizada na caracterização do professor
pelos teóricos do Currículo em relação aos “aspectos institucionais do ensino e da
profissão de professor”, no controle da competência do Estado sobre o sistema de
ensino e os docentes, em função dos seus interesses.
• “Rejeição da razão universal como critério de orientação da conduta humana”.
Deve-se levar em conta não só a razão, mas a afetividade, a estética, entre outras.
• Defesa de alguns curriculistas de que a maneira adequada de lidar com o
Currículo e a Didática é somente pela prática e não, pela teoria.
É possível identificar, por sua vez, alguns pontos de convergência:
A defesa de uma educação crítica, democrática, emancipadora, embora com
divergências de interpretações sobre o conceito de educação emancipadora, entre
curriculistas e didatas.
Recusa da concepção tecnicista no desenvolvimento do conhecimento básico e
elaboração de projetos curriculares enquanto outros apenas cumprem na prática
esses projetos.
Ambos são contrários à pedagogia liberal que defende a homogeneização
cultural e educativa, na qual predomina a reprodução de valores dominantes e
desigualdades sociais.
Defesa do caráter intencional da prática educativa, na qual a investigação e a
prática educativa assume um compromisso moral com a emancipação política.
Defesa da investigação de ambas a áreas com uma perspectiva histórica que
contempla uma construção social e histórica, considerando a cultura
institucional e os determinantes externos e internos que condicionam as práticas
docentes no sistema educativo.
As duas áreas consideram os professores como sujeitos de seus conhecimentos e
de suas experiências, com capacidade de assumirem uma atitude crítico-
reflexiva em relação ao seu trabalho, como gestores de sua própria atuação,
comprometidos com uma análise crítica da sua prática.
Atenção com as questões da produção e difusão do conhecimento, de forma
especial em relação à transformação do saber científico em saber escolar.
“Inclusão da cultura escolar, a cultura do professor – que se reflete na questão do
projeto pedagógico, na autonomia da escola, na construção do currículo e da
didática”.
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Considerando as divergências e as convergências aqui mencionadas, considero
que a análise da Didática e sua relação com o Currículo exige um permanente exercício
de problematização, sobretudo no que se refere a responder: que sentidos de Currículo,
de conhecimento e de Didática são tecidos e partilhados nos saberes e nos fazeres de
professores e pesquisadores no cotidiano das escolas e das salas de aula?
3- Algumas Considerações Finais: Contribuições do Currículo e daDidática para a formação do professor
Passo às considerações finais retomando as seguintes afirmativas iniciais aqui
expostas: (a) não vejo sentido na “disputa” em “demarcar território” na área de
Currículo e na área da Didática, porque entendo que cada uma delas tem seu objeto
próprio e defendo a importância do diálogo entre ambas; (b) reconheço a existência de
uma disputa entre as duas áreas e considero procedentes as observações de Libâneo
(2002, p. 86) de que as duas áreas “têm objetos de investigação coincidentes”, embora
ambas tenham na sua origem “diferentes tradições culturais e teóricas, implicando
diferentes percursos epistemológicos e, portanto, uma impossibilidade de conjunção
teórica”.
Sobre tais afirmações deixo claro que não sou ingênua em desconhecer que este
embate existe, pois se trata de uma luta pelo poder. De outra forma, muito menos sou
ingênua em acreditar que esta luta consiga ter fim nos marcos do regime capitalista, no
qual valores como competição e individualismo são estimulados e bem aceitos nos
diferentes segmentos sociais. Apesar desse reconhecimento, não compactuo com isso.
Emancipação, exercício da cidadania só existirão com uma alteração profunda dos
valores sociais e a mudança de sistema por outro que tome por base valores como
solidariedade e cooperação. As relações que se estabelecem na sociedade e, por sua vez,
no meio educacional, são relações fincadas em interesses de poder. Ingenuidade maior
seria acreditar que existe mudança na realidade pelo fato delas constarem em um
discurso.
Em relação aos campos da Didática e do Currículo, entendo a importância de
ambos serem tratados tomando o trabalho como complexo fundante do ser social ou de
uma sociedade e a educação como complexo fundado. Se não é comum este tratamento
aos dois campos na base da relação trabalho-educação, o problema é suficientemente
tratado no contexto da relação educação e sociedade. E não, na gênese do ser social.
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Tratando articuladamente a relação trabalho-educação chega-se à gênese do ser social e
dos desdobramentos históricos que esse ser social sofreu no processo de
complexificação constante até chegar à sociedade que temos hoje, inclusive indicando
possibilidades do devir dessa sociedade. Assim, defendo que tanto a Didática quanto o
Currículo, precisam considerar o contexto da relação trabalho-educação de forma mais
radical, partindo de sua gênese.
Para que se tenha uma educação que, de fato, faça a diferença, contribua para a
humanização do homem e uma Didática e um Currículo que tenham um peso
significativo com a formação de um educador formado nesse horizonte, em última
análise é preciso a superação do tipo de trabalho vigente, pelo trabalho livre e associado.
Por fim, considero esses pontos importantes porque é a abordagem
fundamentada nesta relação que vai permitir um entendimento mais pleno, mais
rigoroso das possibilidades e dos próprios limites da Didática e do Currículo, tomando-
se assim, a relação fundante-fundado que diz do próprio estatuto ontológico histórico da
educação, pois não se pode dar a devida configuração da dimensão mais específica do
processo da prática pedagógica, que é a dimensão didática que está engajada com o
processo ensino-aprendizagem, como também do Currículo, para entendê-los no chão
da escola e da sala de aula e, por extensão, o próprio papel da Didática e do Currículo na
formação do professor.
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Currículos pensadospraticados e emancipação social: pensando adidática das práticas emancipatórias cotidianas nas escolas
Inês Barbosa de Oliveira (UERJ)*
Pensar o Currículo em suas relações com a didática na perspectiva do currículo
como criação cotidiana dos praticantespensantes (OLIVEIRA, 2012) das escolas,
professores e alunos, nos coloca diante de um estranho desafio, pois ao mesmo tempo
em que nos deixa à vontade, nos dificulta a argumentação. Sentimo-nos à vontade, em
virtude do fato de a didática, em sua compreensão mais corrente, ser exatamente o
campo de estudos dedicado a refletir sobre os “melhores” modos de aprenderensinar e,
mais concretamente do que isso, o próprio modo “eficaz” e apropriado de fazê-lo. O
currículo seria o campo de estudos que se dedica a pensar o que ensinar, selecionar e
organizar conteúdos de ensino. A associação automática entre as escolhas sobre o que
ensinar e o como fazê-lo criam uma zona de conforto para pensar e falar sobre as
relações entre um e outro campo.
Por outro lado, o desconforto e a dificuldade surgem quando percebermos que
este mundo paradisíaco em que a indissociabilidade entre didática e currículo se coloca
como zona de conforto ideal é ameaçado pelo aprofundamento e complexificação das
reflexões em um e outro campo. O campo da didática já há muito tempo não pode ser
identificado apenas com a busca de bons métodos do ensino. Assumiu um perfil mais
crítico, voltado para a compreensão ampliada e aprofundada das escolhas e dos seus
significados políticos, sociais e epistemológicos, saindo do campo da mera técnica de
ensino. Por sua vez, o campo do Currículo, a partir do diálogo com as teorias sociais
críticas dos anos 1970 e 1980 e da emergência do pensamento pós-crítico dos anos 1990
e seus desdobramentos no século XXI vem produzindo inúmeras abordagens que
extrapolam em muito as questões clássicas colocadas pelas teorias tradicionais ou
mesmo por outras perspectivas que associam de modo imediato currículo com ação
pedagógica. Nos dias de hoje, o campo se caracteriza mais pelas novas epistemologias e
discursos teóricos do que por qualquer vínculo imediatista com o fazer pedagógico
concreto.
Assim, se do ponto de vista histórico a associação entre ambos é simples e
evidente, na contemporaneidade a discussão se complexifica e dificulta, em virtude das
* Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ. Pesquisadora 1D doCNPq, Cientista do Nosso Estado FAPERJ, secretária-geral da Associação Brasileira de Currículo (2011-2014) emembro do GT Currículo da ANPEd.
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redes de produção de conhecimentos nos dois campos, que ao mesmo tempo em que
torna cada um deles mais complexo, cria um distanciamento entre eles. Poucos são hoje
os pesquisadores do campo do Currículo no Brasil que desenvolvem suas reflexões em
torno da ação pedagógica desenvolvida nas escolas e, no campo da didática, as reflexões
também vêm extrapolando o debate simplista sobre “o melhor modo de ensinar”,
assumindo uma face mais plural, politizada e socialmente situada. Em recente obra que
busca o diálogo entre os dois campos, Nilda Alves e José Carlos Libâneo chamam
atenção para o debate instalado entre eles.
Se historicamente podemos perceber que o pensamento sobrecurrículos tem algumas questões das didáticas em sua origem, os doiscampos foram, gradativamente, se estabelecendo com preocupações,conteúdos, metodologias e ideias diferentes, embora mantendointeresses próximos (ALVES, N.; LIBÂNEO, J. C., 2012, p. 22-23).
No campo do currículo, como já afirmamos anteriormente,
temos que os estudos atuais no campo do Currículo no Brasildialogam com diferentes teorias sociais e abordagens filosóficas,inscrevendo-se nas diferentes tendências identificadas por Silva(1999), ou criando novas referências, como atestam muitos dostrabalhos apresentados em eventos recentes da área e publicados emlivros e periódicos. Para além das possíveis classificações eenquadramentos dessas diferentes produções, essa proliferação atestaa riqueza dos debates e a relevância que o campo, em sua pluralidadede possibilidades, assume para um grupo crescente de educadores(OLIVEIRA, 2012, p. 81).
Quanto à Didática, deixemos para José Carlos Libâneo (2012) o esclarecimento
do que seria, hoje, para ele uma compreensão possível do campo. Primeiramente, o
autor esclarece que, embora próximas, a Pedagogia e a didática não são sinônimas.
Defende a ideia de que a Pedagogia “é uma reflexão sobre a atividade educativa, uma
orientação para a prática educativa, uma direção de sentido das práticas de formação
humana (p. 38)”. Depois define o que entende como sendo o próprio da Didática.
A didática, assim, realiza objetivos e modos de intervençãopedagógicos em situações específicas de ensino e aprendizagem. Temcomo objeto de estudo o processo de ensino-aprendizagem em suaglobalidade, isto é, suas finalidades sociais e pedagógicas, osprincípios, as condições e os meios da direção e organização do ensinoe da aprendizagem, pelos quais se assegura a mediação docente deobjetivos, conteúdos, métodos, formas de gestão do ensino, tendo emvista a apropriação das experiências humanas social e historicamentedesenvolvidas (p. 39). (E conclui:) Pedagogia e didática formam umaunidade, se correspondem, mas não são idênticas, pois, se é fato quetodo trabalho didático é trabalho pedagógico, nem todo trabalho
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400172
pedagógico é trabalho didático, já que há uma grande variedade depráticas educativas além da escola (p. 39).
Ou seja, a didática seria mais restrita. Sem a pretensão de envolver as finalidades
sociais e políticas almejadas – próprias da pedagogia – a didática seria um campo de
reflexões a respeito do “como se faz”. De minha parte, sem aderir a uma compreensão
ingênua que tornaria os modos de fazer autônomos em relação aos objetivos desse fazer
– selecionados por critérios múltiplos, epistemológicos, políticos, ideológicos e mesmo
pedagógicos – entendemos ser fundamental perceber essa articulação entre o que
escolhemos fazer nas diferentes situações escolares cotidianas, com base em nossos
conhecimentos, crenças e valores e os modos que escolhemos para tal. Nesse sentido,
apesar do distanciamento progressivo entre os dois campos, dos limites que as
diferentes trajetórias trazem para a interlocução produtiva entre eles e de outros
conflitos e questões colocadas a ambos e às suas relações, entendemos que para os
estudiosos do campo do Currículo centrados na busca de compreensão dos cotidianos
escolares – preocupados com a compreensão daquilo que se passa no cotidiano das
escolas, como a própria Nilda Alves, mantendo-as no centro da reflexão curricular – o
diálogo entre os dois campos se mantém vivo e necessário.
Mais ainda, quando consideramos o currículo como criação cotidiana dos
praticantespensantes das escolas, necessariamente nos remetemos às buscas destes
pelos melhores modos de promover aprendizagens, de tecer redes de conhecimentos de
modo a atingir os objetivos do fazer pedagógico cotidiano. Assim, as relações se
evidenciam e podem ser percebidas como um enredamento entre aspectos indissociáveis
de um mesmo fazerpensar. Em “conversa” com uma das principais autoras do campo da
Didática no país, Selma Garrido Pimenta, Carlos Eduardo Ferraço mostra que as
preocupações dos estudiosos dos dois campos se unem em torno da melhor
compreensão dos fazerespensares dasnas escolas. Pimenta (2010, p. 26) se junta às
nossas preocupações de pensar os dois campos vinculados um ao outro a partir dos
cotidianos escolares e daquilo que neles se cria quando afirma que:
as novas pesquisas em Didática têm que recolher, articular einterpretar o conhecimento prático dos professores, não para criar umaliteratura de exemplo, mas para estabelecer princípios, pressupostos,regras em campos de atuação (apud FERRAÇO, 2012, p. 115).
Ainda dialogando com Pimenta, o mesmo Ferraço conclui:
O balanço das pesquisas e da produção teórica em Didática no âmbitodo GT da ANPEd no período referido e nos últimos anos possibilita
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400173
concluir que, em sua maioria, as pesquisas estão privilegiando aanálise de situações da prática e dos contextos escolares, revelando aimportância que a perspectiva inovadora da “epistemologia da prática”vem assumindo, apontando outras que darão significativodesenvolvimento para a área, mostrando caminhos orgânicos econvergentes para a ressignificação da Didática: o entendimento doensino, objeto de estudo da Didática, como fenômeno social, concreto,complexo e multirreferencial, e consequentemente a realização depesquisas sobre professores e sobre os contextos escolaresconsiderados em suas múltiplas (e novas) determinações (Pimenta,2010, p. 34).
É, portanto, apostando na interlocução proposta por Pimenta e percebida por
Ferraço que, neste texto, procurarei trazer uma perspectiva de compreensão das
dimensões didáticas dos currículos pensadospraticados em escolas onde pesquisamos,
eu e colegas do grupo de pesquisa que coordeno, naquilo que trazem de contribuição à
emancipação social.
Criação curricular cotidiana e emancipação social: ecologia de saberes, justiçacognitiva e cidadania horizontal
Na perspectiva em que vimos pensando essa criação curricular cotidiana, a do
desenvolvimento efetivo de currículos que contribuam à emancipação social, é que
desenvolvo minha argumentação em torno dessa relação: sendo os currículos uma
criação cotidiana dos praticantespensantes dos cotidianos escolares, didaticamente como
se “praticampensam” currículos com esse perfil? Para tal, faz-se necessário,
primeiramente, definir o que entendemos por práticas emancipatórias para, em seguida,
mostrar a associação proposta entre essas criações curriculares e a didática a partir de
experiências concretas desenvolvidas nas escolas.
Antes mesmo de pensar essas práticas cabe esclarecer um ponto importante em
relação ao que chamamos, a partir de Boaventura de Sousa Santos (1995), de
emancipação social. É preciso deixar clara a diferença entre essa noção e a emancipação
racional individual preconizada pelo pensamento moderno, sobretudo em sua vertente
liberal. A emancipação social não é concebida, nessa perspectiva, como uma soma de
emancipações individuais de sujeitos que vivem em sociedade, nem uma meta a ser
atingida em definitivo, como um último degrau de um desenvolvimento linear e
progressivo. Para Boaventura, faz-se necessária, para superar a teoria moderna da
emancipação e seu individualismo, uma nova teoria da emancipação. O autor entende
que a impossibilidade de se determinar, teleologicamente, o que será o futuro se
inscreve nesta nova concepção como um alerta para os riscos que a sociedade
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400174
contemporânea enfrenta, e que nos levam a saber melhor o que não queremos do que o
que queremos, formulando a ideia de que o socialismo é a democracia sem fim,
evidenciando a indissociabilidade entre democracia e emancipação. Isso tudo porque
a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, semfim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é osentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para ocampo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento daslutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática socialconforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada(SANTOS, 1995, p. 277).
Nessa perspectiva, a emancipação deixa de ser uma busca racional individual de
alguma verdade pré-definida sobre o bem e o mal, o certo e o errado para assumir um
caráter social, coletivo, de responsabilidades e direitos partilhados e da construção
cotidiana dessa equalização entre sujeitos, grupos sociais, conhecimentos, culturas,
modos de estar no mundo e de compreendê-lo. Ela não é, portanto, a emancipação
social dos sujeitos, mas a emancipação da sociedade das injustiças e desigualdades que
ainda persistem nela, rumo a uma consciência da responsabilidade de todos e de cada
um por essa construção, bem como sua impossível finalização. Deixa de ser pensada
como uma conquista dos sujeitos e passa a ser entendida como um processo social
permanente. Também ultrapassa a mera esfera das relações sociais no espaçotempo da
cidadania tradicionalmente concebida para ser pensada e tecida socialmente, em todas
as dimensões da vida social. A horizontalização do conjunto das relações sociais e a sua
refundação em processos equalizados de interação, e não mais nas hierarquias
apriorísticas, seriam processos privilegiados de construção da emancipação social.
Para o autor, precisamos, na contemporaneidade, reinventar o pensamento
emancipatório e, mais do que isso, a vontade de emancipação, que percebemos ativa em
muito(a)s professore(a)s, mas que precisa ser potencializada e socialmente recuperada.
Para isso, é preciso, também, produzir um novo paradigma científico, o de uma ciência
pós-moderna, segundo o qual
não há uma única forma de conhecimento válido. Há muitas formas deconhecimento, tantas quantas as práticas sociais que as geram esustentam. (...) Práticas sociais alternativas gerarão formas deconhecimento alternativas. Não reconhecer estas formas deconhecimento implica deslegitimar as práticas sociais que assustentam e, nesse sentido, promover a exclusão social dos que aspromovem (Santos, 1995, p. 277).
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400175
Esse processo de exclusão de formas de conhecimento não científico se fez
presente no processo de expansão europeia, que incluiu muitos "epistemicídios", ou
seja, aniquilamento ou subalternização, subordinação, marginalização e ilegalização de
práticas e grupos sociais portadores de formas de conhecimento "estranhos", porque
sustentados por práticas sociais ameaçadoras. Boaventura (1995) considera o
epistemicídio um dos grandes crimes cometidos contra a humanidade, por entender que
este significou
um empobrecimento irreversível do horizonte e das possibilidades deconhecimento (...), o novo paradigma propõe-se revalorizar osconhecimentos e as práticas não hegemónicas que são afinal aesmagadora maioria das práticas de vida e de conhecimento nointerior do sistema mundial (p. 329).
Só através da instauração do que ele chama de concorrência epistemológica leal
entre os diferentes conhecimentos é que se poderão reinventar as alternativas de práticas
sociais que poderão balizar a construção da democracia e as lutas emancipatórias, na
medida em que isso permitiria superar a verticalidade e a hierarquia hoje predominante
nas relações entre os diferentes conhecimentos. Esta é a noção fundadora do que hoje o
autor propõe como a Ecologia de saberes (SANTOS, 2010). Nesse sentido, a questão da
democratização dos saberes deixa de ser apenas a democratização do acesso a
determinados saberes sistematizados e estruturados numa ordem reconhecida, que
podem funcionar como auxiliares tanto na compreensão da realidade social como na
melhoria da respeitabilidade social, em função do valor que é socialmente atribuído a
esses saberes, mas também, e sobretudo, a democratização das relações entre os
diversos saberes numa perspectiva de revalorização social dos saberes chamados “não-
formais”, “cotidianos” ou do “senso-comum” que integram nossas competências de
ação social e que podem nos permitir pensar processos de tessitura do conhecimento-
emancipação. Este seria aquele centrado na solidariedade e em formas de
relacionamento social fundadas não na ordem e na hierarquia, mas em possibilidades de
criação de uma “ordem” social auto-organizada, a partir de processos de negociação
permanentes mediados por relações de autoridade partilhada. Com relação à questão da
solidariedade como forma do conhecimento-emancipação, a noção fundamental à qual
podemos associá-la é a de cidadania horizontal, a ser discutida adiante.
A noção de Ecologia de saberes, desenvolvida por Boaventura mais
recentemente (2004; 2006; 2010) surge como uma formulação bastante esclarecedora da
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400176
questão acima. Para ele, o procedimento de superação das hierarquias e a instauração da
ecologia de saberes repousam sobre a ideia chave de que
não há, pois, nem ignorância em geral nem saber em geral. Cadaforma de conhecimento reconhece-se num certo tipo de saber a quecontrapõe um certo tipo de ignorância, a qual, por sua vez, éreconhecida como tal quando em confronto com esse tipo de saber.Todo saber é saber sobre uma certa ignorância e, vice-versa, toda aignorância é ignorância de um certo saber (Santos, 2000, p. 78).
Nesse sentido, aquilo que na perspectiva hierarquizada é ignorância, passaria a
ser percebido como saber complementar, validado por sua aplicabilidade na solução de
problemas reais. Os diálogos entre diferentes conhecimentos, presentes em muitas
criações curriculares cotidianas – com o reconhecimento da operacionalidade daqueles
cujo estatuto científico é considerado menor e a sua revalorização – são um importante
contributo ao desenvolvimento dessa Ecologia de saberes. Mais do que a
democratização das relações entre os saberes em si, a ecologia de saberes promove
maior justiça cognitiva ao superar os epistemicídios modernos em benefício de relações
mais ecológicas entre os diferentes conhecimentos.
A abordagem ecológica privilegia uma concepção de mundo vista deforma integrada, interligada e interdependente (entre o físico e osocial). Se o paradigma dominante modelou a ciência moderna,sobrepondo a razão à matéria, a ecologia propõe uma concepçãoholística ou articulada, conforme as versões, da razão, da matéria e davida, sendo os seres humanos vistos como parte de uma rede semcentro (SANTOS, 2005, p. 29).
O que o autor defende e formula é a necessidade de um diálogo permanente
entre diferentes formas de estar no mundo e de compreendê-lo de modo a que possam
ser encontrados e criados mecanismos e modos de interação que permitam, hoje e agora,
transformar o que existe e é hegemônico em outras existências, mais democráticas e
plurais, provisórias e circunstanciais sobre as quais continuar-se-á atuando
coletivamente, através dos mesmos procedimentos, reinventando permanentemente o
presente, criando, a partir do exercício da imaginação epistemológica, mais e mais
justiça cognitiva através da tradução entre saberes e, a partir da imaginação
democrática, criar mais e mais justiça social global através da tradução entre práticas e
seus agentes (Santos, 2000), tecendo assim a emancipação social. A construção de uma
ecologia entre saberes é, portanto, fundamental para a democratização e a emancipação
da sociedade, porque a justiça cognitiva faz-se necessária para que haja justiça social. A
injustiça social global está intimamente ligada à injustiça cognitiva global. Daí que A
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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luta pela justiça social global deve ser também uma luta pela justiça cognitiva global.
(SANTOS, 2010, p.40). É no seio desta luta que nos inserimos, entendendo que a
ruptura com a relação hierárquica entre os conhecimentos se dará por meio de
políticaspráticas que busquem a justiça cognitiva pela construção de uma ecologia entre
saberes.
O caráter ecológico das relações entre diferentes saberes estaria no
reconhecimento da validade de cada saber, não pelo seu possível significado científico,
mas pela sua “aplicabilidade social”.
A ecologia de saberes não concebe os conhecimentos em abstrato,mas antes como práticas de conhecimento que possibilitam ouimpedem certas intervenções no mundo real (SANTOS, 2010, p. 59).
Fundada no contratualismo rousseauniano, a noção de cidadania horizontal1 é
entendida como a relação solidária entre os indivíduos, no pacto entre eles presente no
compromisso de uns com os outros em nome do bem-estar de todos, comprometendo-os
uns com os outros independentemente ou para além do Estado e das obrigações e
direitos que os cidadãos tenham em relação a ele. É uma solidariedade movida
pela consciência de humanidade e de alteridade. Não olha apenasinteresse das partes em relação ao todo, mas também os interesses daspartes entre si. O despertar da consciência de cidadania além de levarà exigência de status civitas por parte do indivíduo, conduz àdescoberta do compromisso de colaboração para que todos possamalcançar tal status. (SILVA NETO, 2006, p. 118).
Nessa perspectiva, o exercício da cidadania horizontal está indissociavelmente
atrelado à tessitura da justiça social. Isso porque, ao reconhecermos a legitimidade da
alteridade e associarmos a ela práticas sociais de solidariedade como meio de tessitura
de uma sociedade mais igualitária, contribuímos para a redução das desigualdades que
caracterizam nossa sociedade. Por outro lado, entre os modos mais significativos de
prática social solidária estão a ajuda a quem necessita dela e a ação coletiva na solução
de problemas comuns. Muitos movimentos sociais se constroem e atuam com base em
uma dessas duas perspectivas que podem ser consideradas complementares, pois no
primeiro caso, quando há desigualdade, aqueles que podem ajudam os que necessitam e
no segundo, todos atuam em prol do bem comum. Cabe ressaltar que essa ajuda
dispensada por quem pode a quem dela precisa diferencia-se da caridade porque, ao
contrário desta, não se caracteriza pela bondade de alguém superior em atenção a um
1 Esta reflexão a respeito da cidadania horizontal foi extraída de um texto já publicado em 2013 (OLIVEIRA, 2013,p. 192 - 193). Retomo-a tal qual por considerar que atinge perfeitamente os objetivos de apresentá-la neste texto.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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seu inferior. É reconhecimento do direito daquele que precisa a receber ajuda, numa
perspectiva de busca de equalização, é uma ajuda politicamente situada, que faz com
que a cidadania horizontal seja, em si, uma cidadania de forte conteúdo político na
medida em que colabora para a superação das exclusões, das situações de ausência de
cidadania. Pressupõe olhar para as injustiças cotidianas e combatê-las, compromete o
cidadão com a tessitura da justiça social, única possibilidade de uma sociedade
assegurar a todos os seus membros a condição cidadã em sua integralidade.
Considerando a cidadania como a condição sem a qual não hádemocracia, conclui-se que ela é ativa e responsável atividade dossujeitos que buscam a sociedade em que as leis se preocupam com oimpério da justiça. [...] o povo de qual emana o poder não é umamassa de indivíduos desarticulados, mas a coletividade da cidadaniaque supõe engajamento social e político. (SILVA NETO, 2006, p.120).
Assim, o desenvolvimento cotidiano de práticas participativas e solidárias na
criação curricular cotidiana nas escolas, bem como a busca de ampliação de sua
institucionalidade assumem importância capital na tessitura da emancipação social. Os
currículos pensadospraticados cotidianamente, nos quais essa perspectiva esteja
presente, pela importância que possuem na formação daqueles que deles participam,
aparecem, portanto, como fundamentais. Desinvisibilizá-los e aos modos como são
tecidos, com seus objetivos e especificidades, torna-se necessário se pretendemos
combater as estruturas sociais de desigualdade no sentido de sua transformação
emancipatória. Considerar a pluralidade, heterogeneidade e impossível aprisionamento
desses currículos em modelos do que deveriam ser as práticas emancipatórias também.
Mantenho a convicção de que é possível desinvisibilizar e valorizar elementos
de emancipação social, encontráveis na criação de currículos nos cotidianos, tecida na
perspectiva da ecologia de saberes, da cidadania horizontal e da justiça cognitiva e
pretendo, neste texto, demonstrar a pertinência dela a partir de uma narrativa docente
que expressa não só uma criação curricular, mas também os elementos de aproximação
com aspectos didáticos que nela podemos encontrar. Isso porque entendemos que
quando pensamos a produção de conhecimento acadêmico no campo das criações
curriculares cotidianas e da compreensão ampliada dos processos cotidianos de
produção e de circulação de conhecimentos, o campo da Didática emerge com suas
reflexões em torno das questões que dizem respeito aos fazeres cotidianos nas escolas,
naquilo se aprendeensina por meio desses fazeres.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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Vimos buscando valorizar a criação curricular cotidiana, seja em concepções e
compreensões das necessidades e possibilidades circunstanciais de praticá-los, seja em
relação à escolha dos modos de tecer essas práticas pedagógicas que contribuam para os
objetivos de promoção da ecologia de saberes. Entendemos que essa valorização e
reconhecimento das invenções cotidianas de professores e alunos nas salas de aula
contribuem para a credibilização dos fazeressaberes com potencial emancipatório que
habitam as escolas. Tanto no sentido do processo educativo em si, quanto no sentido
mais amplo de uma possível contribuição da escola à tessitura da emancipação social
democratizante, o trabalho de reflexão sobre os modos de criar e desenvolver currículos
cotidianamente são de grande interesse para os campos do currículo e da didática.
Práticas emancipatórias no cotidiano das escolas
Dentre muitas histórias, observadas, narradas, vivenciadas por professoras em
diferentes escolas, públicas e privadas, escolhi para este texto a história autobiográfica
narrada por Graça, amiga e colega do grupo de pesquisa e, atualmente, doutoranda sob
minha orientação. A narrativa de Graça tem como ponto de partida o incômodo
vivenciado por ela em relação à pouca consciência social de seus alunos. Na escola
particular em que lecionava na época, os alunos pareciam desconhecer a dura realidade
de grande parte da população do país, a imensa injustiça social em que vivemos e Graça
entendeu ser necessário buscar essa consciência social como meio de levá-los a
compreender não só o contexto social do país, mas o valor dessas populações
discriminadas e desqualificadas pelo pensamento e pelas práticas sociais hegemônicos.
Se possível, seria bom que a consciência da injustiça social tornasse a preocupação com
o tema parte das questões importantes para os meninos e meninas da turma.
Sem explicitar nenhuma consciência dela mesma em relação ao fato de a
injustiça cognitiva estar na base dessa injustiça social que conhece e quer combater,
Graça se preocupa em pluralizar as fontes de conhecimento para seus alunos, praticando
justiça cognitiva por meio de um trabalho que não hierarquiza conhecimentos. É ela
quem conta.
Este trabalho foi desenvolvido numa escola particular no município doRio de Janeiro. Carrego comigo a certeza de que preciso discutir commeus alunos a vida que fica separada deles pelos muros dos prédios econdomínios onde vivem trancados em seu mundo de classe média,muitas vezes julgando o outro sem saber nada sobre ele. Separando desi aquele que é diferente, pelo simples fato de haver uma diferença,sem procurar saber nada sobre a história do outro ou sobre o quesignifica aquela diferença. Aprendem, desde cedo, o preconceito.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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Na continuidade de seu relato, ela recupera texto meu (OLIVEIRA, 2003),
afirmando que esta ideia está presente no trecho:
Numa história política e cultural de transformação de diferenças emdesigualdades, característica da cultura burguesa ocidental, vamosperceber processos de aprendizagem que criam preconceitos ehierarquizam sujeitos e culturas, valorizando os princípios fundadoresde umas em detrimento das outras (p. 19).
E segue narrando sua preocupação.
Buscando mexer com estes processos discriminatórios, deciditrabalhar com as crianças a questão das diferenças que acontecemdentro de um Brasil a que eles não têm acesso. Por que tantosmigrantes nordestinos vêm para o Rio de Janeiro? Este fato estárelacionado ao inchaço das favelas cariocas? Quem são estas pessoas?Onde trabalham? Como vivem? Mesmo sabendo que não é possíveldeterminar e controlar aprendizagens e que a escola, como um fio detoda uma rede que forma a sociedade, não tem o poder de transformarsozinha, apostei e aposto, sempre, que é necessário trazer estasquestões para dentro dela e discuti-las, como forma de ampliar ideias ediscutir relações.Levei para a sala de aula um material retirado do jornal O Globo. Erauma série de oito reportagens com o título “Vida Severina” quecontava um pouco da vida de migrantes nordestinos que vêm para oRio de Janeiro.Durante 15 dias, lemos todas as reportagens e fizemos debates sobreelas. As conclusões foram sendo registradas em mapas do Brasil, juntocom as notícias. As respostas para as perguntas iniciais foramaparecendo e, no meio do caminho – e tem sempre um meio docaminho em sala de aula – apareceram necessidades e novas perguntasque foram ampliando o trabalho de forma significativa.
Interrompo a narrativa para registrar aqui um elemento importante: o modo
como Graça decidiu iniciar o trabalho, mesmo que de modo implícito, promove uma
ecologização das relações entre os diferentes conhecimentos. Ao buscar em reportagens
jornalísticas e não em textos acadêmicos a “fonte” para suas aulas, ela demonstra
acreditar na validade dos conhecimentos produzidos e narrados desta forma, apostando
nesta validade para trabalhar os conteúdos que escolheu tratar sem recorrer aos
compêndios e livros didáticos ou acadêmicos de História. Por outro lado, clara é a
opção didática por um modo de trabalhar o conteúdo selecionado que privilegia o
interesse possível dos alunos e facilita o diálogo entre o que já sabem e o que ela espera
que eles aprendam. Não só estamos diante de uma criação curricular emancipatória,
como percebemos seu aspecto didático como indissociável dos objetivos emancipatórios
que Graça assume. O surgimento de novas questões e a preocupação de não
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400181
negligenciá-las pode ser percebida como a adesão à noção de enredamento entre os
diferentes conhecimentos, sem necessariamente hierarquizá-los, importante aspecto da
noção de ecologia de saberes e da busca da justiça cognitiva, como adiantei acima. Os
problemas do país, que atingem essas populações são discutidos por meio de um
trabalho que evidencia as dificuldades sociais que as vitimam em lugar de culpabilizá-
las como fazem muitos.
Primeiro, fomos pesquisar que parte do Nordeste era aquela queproduzia tanta pobreza e tanta miséria; problemas como seca, fome,falta de escolas, falta de médicos e dentistas foram levantados pra quese pudesse compreender a origem daquelas pessoas. A política, ageografia e a história foram trazidas para a sala de aula de uma formadiferente, agora a vontade de descobrir sobre estas coisas era deles enão trazida ou imposta por mim.Depois, pesquisamos músicas de diferentes compositores brasileirosque escreveram sobre o nordeste e as suas dificuldades e elegemos oLamento Sertanejo, do Gilberto Gil, como a música que melhorretratava aquela realidade que estávamos descobrindo. Esta músicafala sobre a dificuldade do migrante em viver nas grandes cidades,tema bastante debatido na série jornalística. Esta música éverdadeiramente um lamento e mexeu muito com os sentimentos dascrianças, eles/elas pediam para ouvi-la todos os dias e aprenderamrapidamente a cantá-la. Com que sentimentos eles/elas entraram emcontato ao ouvir, na voz tão linda de Gilberto Gil, aquela música?
Músicas, mapas e reportagens. Problemas sociais, escolhas políticas e
sentimentos. Tudo se mistura nesse conjunto de atividades voltadas para a ampliação do
entendimento dos alunos a respeito dos problemas que estão na origem das
desigualdades sociais vividas no país. Diante dessa incipiente, mas já informada
compreensão da situação de muitos dos cidadãos pobres que vivem no Rio de Janeiro,
ouvi-los pareceu boa ideia. E assim foi feito.
Entrevistamos uma moça que mora na comunidade do Rio das Pedras,em Jacarepaguá, lugar onde a reportagem do O Globo foi iniciada eeles ficaram impressionados com as coisas que ela lhes contou, poisfalava de trabalho infantil, falta de escolaridade, separação de família(ela mora aqui e seus pais e alguns irmãos moram lá). Tudo aquilo queé inexistente em seus mundos tão seguros. Puxaram fios erelacionaram sua história ao projeto desenvolvido no ano anterior,sobre trabalho infantil. Desta vez, porém, puderam ouvir um relatooral de alguém que estava ali, presente. Aquela era uma pessoa real,que tinha uma história real e que, além de tudo, morava numa favela enão era nada daquilo do que seu imaginário entendia como umapessoa moradora de uma favela. Mostro aqui um desenho feito por umdos alunos na volta da entrevista.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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Imagem 1
A solidariedade a partir dessa consciência se materializa e substitui as ideias de
caridade entre desiguais. O trabalho infantil ganha outro sentido, redes se tecem. Os
direitos da entrevistada a uma vida digna aparecem como realidade necessária e
verossímil, não é mais possível naturalizar a inexistência deles.
Mas nem só essas populações eram protagonistas do estudo que faziam. Afinal,
as reportagens lidas foram produzidas por alguém. Como? Por quê? Mais uma vez, uma
inovação didática vem dar suporte aos objetivos dessa criação curricular: o uso da
internet.
Entrevistamos, também, os jornalistas que montaram aquela série dereportagens, só que desta vez usando uma linguagem diferente, aInternet. Ali, a descoberta de uma profissão foi marcante, elesperguntaram muito sobre o jornalismo e sobre as emoções destesprofissionais ao lidar frente-a-frente com a miséria das favelas (lugaronde a maioria das pessoas entrevistadas mora) e dos lugares doNordeste onde foram realizadas as pesquisas. Um outro fatorsignificativo na entrevista foi a descoberta de que uma reportagemdessas, com duração de oito dias, levou seis meses para ser elaboradae ficar pronta.
A ideia de usar linguagens diferentes para potencializar as aprendizagens, ao
mesmo tempo em que faz parte dos “conteúdos oficiais” de língua portuguesa dos anos
iniciais do ensino fundamental, favorece a compreensão ampliada daquilo que se estuda,
pois muitas vezes a arte possui recursos mais amplos do que os da linguagem
acadêmica. Mais um enredamento entre conhecimentos não hierarquizados, mais uma
inovação didática associada a um objetivo “não formal” do trabalho pedagógico. Assim,
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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Graça narra o trabalho que desenvolveu com a poesia, com as artes plásticas e com o
cinema e apresenta-nos sua leitura dos resultados obtidos.
Lemos um trecho do poema “Morte e Vida Severina” de João Cabralde Melo Neto e através de desenhos os alunos representaram seussentimentos.
Imagem 2
Analisamos o quadro Os Retirantes, de Portinari, e a partir dele, ascrianças registraram palavras que buscaram traduzir as suas emoções.
Imagem 3
A manipulação e transformação de uma linguagem em outra – do verbal ao
imagético e vice-versa é digna de registro, pois mais uma vez horizontaliza as relações
entre as duas formas de expressão ao mesmo tempo em que mostra o potencial didático
da operação.
Vimos o filme Narradores de Javé, de Eliane Caffé e Luiz Alberto deAbreu, para que pudéssemos “ver”, através de imagens, um pouco doBrasil que eles estavam descobrindo naquele momento de suas vidas.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
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Foi muito interessante perceber como este filme trouxe, para eles,lembranças de um outro trabalho desenvolvido anteriormente.Havíamos trabalhado, no ano anterior, uma reportagem da RevistaÉpoca que mostrava um grupo de quilombolas que está lutando contrao governo, pois está sendo transferido de sua terra de origem, noMaranhão, em função da construção de uma base militar. Isto tambémacontece no filme, os habitantes daquela pequena cidade terão que seretirar por causa da construção de um açude. Esta relação foidiscutida, era a segunda vez que se deparavam com este tipo dequestão. Concluíram que algumas pessoas não têm seus direitosrespeitados e que isso só acontece em lugares pequenos, onde apopulação é pobre e não tem condições de lutar contra esta injustiça.
É nessa apresentação analítica do trabalho realizado e de seus resultados que ela
explicita suas metas e sua satisfação com o feito dela e da turma, em parceria,
solidariamente. Sem jamais se colocar como proprietária daquilo que propôs, mas que
foi coletivamente efetivado, ela relata:
Com tantos fios sendo puxados, o trabalho já estava durando quasedois meses, e nele havíamos envolvido diferentes sentidos elinguagens: a pintura, a música, a poesia, o texto jornalístico, ocinema, a entrevista, o computador... Através deles, puderamreconhecer a diversidade existente em nossa sociedade e busquei levaraté eles a ideia de que uma cultura não pode se considerar superior aoutra.Para finalizar, as crianças apresentaram suas descobertas para asoutras crianças da escola. Toda a apresentação foi produzida por eles:espaço, arrumação dos trabalhos, forma de apresentação... Tudo foifilmado e, em seguida, assistido por eles, que gostaram muito daexperiência e falaram dias seguidos sobre ela.
Concluída a atividade, as interrogações a respeito do sucesso do trabalho em
relação aos objetivos que ela confessou ter ao propor tudo isso, e que nada têm a ver
com a aprendizagem dos conteúdos formais de história, geografia, língua portuguesa ou
outros emergem. A consciência dos limites do nosso fazer como transformador daqueles
com quem trabalhamos emerge da reflexão, evidenciando, mais uma vez, a adesão à
compreensão de que conhecimentos são tecidos pelos sujeitos em função dos
enredamentos possíveis entre aquilo que já sabem e aquilo que lhes chega de novo
como informação ou experiência. A tessitura dessas redes não é controlável por aqueles
que fazem do ensino formal sua profissão. O que podemos é desenvolver práticas que
favoreçam determinadas aprendizagens – como a da injustiça social, do valor das
populações pobres, da importância de irmos além das aparências quando queremos
compreender algo e, sobretudo, da necessidade de compreendermos que os
conhecimentos que circulam no mundo e que podem nos ajudar a aprender coisas e
tecer novas redes de conhecimentos são múltiplos, plurais, enredados. As hierarquias
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sob as quais vivemos, nesse sentido, mais nos atrapalham do que ajudam a tecer essas
redes de compreensão do mundo, de solidariedade e de reconhecimento mútuo.
Quantas aprendizagens foram acontecendo ao longo do processo?Quanto cada um aprendeu ou recolheu para si daquilo que estavaacontecendo? Não sei responder a estas perguntas, não “medi” oconhecimento de cada um, não era este o meu objetivo, mas tenhocerteza de que os seus sentidos foram tocados, suas emoçõesafloraram e que os saberes que foram construídos nesse momentoforam enormes e significativos para as suas vidas. “Avaliarcomportamento humano, por mais e melhores instrumentos quepossamos utilizar, nem sempre é possível nem mensurável por meiode resultados imediatos e quantificáveis” (Leite, 2002, p. 116).
Graça não tem certeza da eficiência de sua “didática”, não sabe se o modo como
decidiu trabalhar os “conteúdos” foram apropriados para que os objetivos fossem
atingidos. Ela optou por essas formas porque as considerou as melhores, mas sabe que
não tem controle sobre as aprendizagens, sabe da imprevisibilidade das redes, da
impossibilidade de assegurar resultados. Criou seus “currículos” ao tentar ensinar aos
alunos um pouco mais sobre a realidade da injustiça social do país, sobre os problemas
daqueles que são vitimados por elas. De modo indissociável, ao “inventar” conteúdos de
ensino, Graça criou a didática que lhe pareceu boa para ensiná-los. Ou seja, criação
curricular cotidiana envolve, sempre, o aspecto didático e a adequação dos modos de
ensinar, não só aos conteúdos como aos objetivos do ensino, mostra que as interfaces
entre os dois campos estão presentes.
A certeza de que algo importante ficou não tardou – embora pudesse nunca ter
vindo. A dedicação, competência, seriedade de Graça em sua criação curricular e
didática foi recompensada. Ela fecha seu relato contando.
Um dia meu aluno Gabriel me disse o seguinte:_ Descobri que meu porteiro é nordestino e você sabe qual é o seunome? Severino!Fiquei feliz com sua descoberta, assim como ele estava feliz também.Percebi que aquela criança, que via seu porteiro todos os dias, tinhadado a ele uma identidade, tinha olhado para ele com olhos novos,transformando aquele porteiro em sujeito.
Considerações finais
Ao aprendermos com Graça sobre modos de se trabalhar em busca de mais
justiça social e cognitiva, praticando ambas nos modos como trabalhou aquilo a que se
propôs somos levadas a reafirmar o que dizemos sempre em relação à importância de se
pesquisar os cotidianos, com aqueles que os fazem, de aprender com os
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praticantespensantes da vida cotidiana sobre suas criações, seus modos de colocá-las
em prática. Juntamo-nos aqui à discussão que Ferraço traz com Selma Garrido Pimenta,
e que já referimos aqui, para reafirmar, com base nesse relato e no seu estudo, nossa
permanente convicção de que, seja para o campo do currículo seja para o da didática,
aprender com os cotidianos é uma obrigação daqueles que buscam pensar a qualidade
da escola e contribuir para a sua melhoria.
Pensar o quanto experiências de práticas “ecológicas” já em cursovêm contribuindo para essa tessitura da ecologia entre saberes eampliação da cidadania horizontal, desinvisibilizá-las e investir no seupotencial de multiplicação e espalhamento são atitudes úteis aosnossos objetivos de emancipação social. Reconhecer, nas realidadescotidianas narradas, possibilidades emancipatórias traz, ainda, apossibilidade de certo otimismo, pois permite reconhecer que nãoestivemos parados, que a luta pela democracia tem aliados emdiferentes campos de saber/pensar/sentir/fazer e já está em andamento.Nesse sentido, penso ser possível afirmar que a desinvisibilização depráticas curriculares de caráter emancipatório já em andamentocontribui para a recuperação da esperança em “um mundo melhor”(OLIVEIRA, 2103, p. 12)Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o estatuto daespera, tornando-a simultaneamente mais activa e mais ambígua. Autopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permitelutar pelo conteúdo da espera, não em geral, mas no exacto lugar etempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, numprincípio geral que providencia um futuro geral. Reside antes napossibilidade de criar campos de experimentação social onde sejapossível resistir localmente às evidências da inevitabilidade,promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos ostempos e excepto naqueles em que ocorreram efetivamente. É este orealismo utópico que preside às iniciativas dos grupos oprimidos que,num mundo onde parece ter desaparecido a alternativa, vãoconstruindo, um pouco por toda parte, alternativas locais que tornampossível uma vida digna e decente. (Santos, 2000, p. 36)
Referências
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LIBÂNEO, José Carlos. Ensinar e aprender, aprender e ensinar: o lugar da teoria e da práticaem didática. ALVES, Nilda; LIBÂNEO, José Carlos. (Orgs.). Temas de pedagogia: diálogosentre didática e currículo. São Paulo: Cortez, 2012, p. 35-60.
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OS CURRÍCULOS ‘PRATICADOSPENSADOS’ E SUAS RELAÇÕES COM OSPROCESSOS DIDÁTICOS
Nilda Alves**
Introdução
Para começar a discutir as relações dos currículos com as didáticas1 convido a que juntos
assistamos a um “powerpoint”. Nele e com ele poderemos, espero, mostrar as inúmeras
relações que possuímos nesses dois campos, bem como algumas de nossas diferenças.Para
fazê-lo, usei imagens que foram obtidas em um curso de Pedagogia, na UERJ, no
componente curricular PPP (Pesquisa e Prática Pedagógica), no já longínguo ano de 2005,
em torno de possibilidades pedagógicas em trabalhos com as culturas de afro-descendentes.
http://1drv.ms/1lhi2Gl
‘Espaçostempos’ comuns e diferentes
As imagens mostradas nos fazem identificar uma sala de aula cujos participantes estão em
plena ação – são inúmeras as atividades que nela se dão e os movimentos de seus
praticantespensantes (OLIVEIRA, 2012) são diferentes de uns para outros, embora se
perceba conexões entre eles. Além disso, os artefatos pedagógicos presentes são bastante
variados: panos, linhas, tintas, papel, lápis etc. Também, indicam momentos diferentes da
ação pedagógica definida pelo grupoque era fazer estandartes com a vida de Clementina de
Jesus, cantora negra que se consagrou no Rio de Janeiro, nas décadas de 60/70 do século
XX. Nas fotografias aparecem: momentos iniciais de pensar o quê e como se iria executar o
trabalho; momentos de começar fazendo os riscos dos estandarte; momentos de executar o
que foi planejado; momentos de guardar o material, pois o trabalho continuaria na aula
** Professora visitante senior e professor titular (aposentada) da UERJ (Universidade do Estado do Rio deJaneiro), com atuação na graduação e na pós-graduação. Pesquisadora 1 A/CNPq e Cientista do nossoestado/FAPERJ. Coordenadora do Laboratório Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br), noProPEd/UERJ (www.proped.pro.br).1Na corrente de pesquisa em que trabalho – pesquisas nos/dos/com os cotidianos – buscando indicar os limitesdo pensamento generalizador e baseado em dicotomias, herdado da Modernidade, temos colocado inúmeraspalavras no plural já que suas práticas, dentro da generalização imposta tem sido sempre diversificadalocalmente. Pela mesma razão, temos escrito juntos termos que nos ensinaram a perceber dicotomizados –como o praticandospensadosque podemos ler no titulo deste trabalho, bem como muitos outros: dentrofora(das escolas), espaçostempos(curriculares), localglobaletc
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seguinte; momentos de apresentar o que foi criado; momentos de confraternização no meio
desses momentos todos.
Processos didáticos ocorrem nas fotografias mostradas e há currículos em andamento. Em
Didática podemos, provavelmente, falar em: “métodos ativos”; trocas didáticas; estudantes
que aprendem a planejar e executar coletivamente; liberdade de ação didática de docentes e
discentes; e muito mais.
O que aí está se dando, em currículo, nos indica: que há processos criativos de
docentesdiscentes nos cotidianos escolares, como aprendemos em tantos estudos realizados
por mim e outros, dentro da corrente de pesquisa a que pertencemos. Isto significa que, para
além do currículo oficial – aprovado pelo Colegiado da Faculdade de Educação, pelo
CSEPE (Conselho Superior de Ensino e Pesquisa) da UERJ (Universidade do Estado do
Rio de Janeiro) e pelo Conselho Estadual de Educação, do Estado do Rio de Janeiro, outras
ideias curriculares, outros currículos estão em articulação nos processos que são
desenvolvidos nesta sala de aula.
Como uma das professoras que dirigiu este movimento era eu2, sei que tínhamos, naquele
momento – como temos no momento presente3 - uma grande preocupação de promover
ações pedagógicas e culturais diversas que permitam aos estudantes em formação a melhor
se prepararem para enfrentar os desafios que colocam as leis sobre a obrigatoriedade da
aprendizagemensinodas culturas de origem africana e indígena.
Além disso, as pesquisas sobre formação de professores que desenvolvemos, nos
mostraram que muitas são as redes que esses
praticantespensantesdocentesdiscentesformam e nas quais se formam. Essas redes: têm
características próprias; existem ocupando espaçostempos diferentes; são responsáveis
2A outra professora era Mailsa Passos que, naquela época, era bolsista de pós-doutorado e que, hoje,apósconcurso público, é professora adjunta da UERJ.3 Neste segundo semestre de 2014, dentro do projeto de pesquisa atual, cujo título é “Redes educativas, fluxosculturais e trabalho docente – o caso do cinema, suas imagens e sons”, contando com apoio CNPq, FAPERJ eUERJ, desenvolvemos um cine-clube em torno do cinema africano, com responsabilidade de Erika Arantes,bolsista pós-doc/Faperj, Aldo Victorio, professor no ProPEd e no Instituto de Artes/UERJ, e Nilda Alves.Conta ainda com o apoio de outras bolsistas pós-doc: Marly Silveira (UnB), Virginia Silva (UFParaíba) eMaritza Maldonado (UEMatoGrosso). Além disso, conta com o apoio de mestrandos, doutorandos e bolsistade IC e AT.
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pelas relações existentes entre os diferentes dentroforadas escolas, nas quais estes
profissionais trabalham. Além disso, entre elas existem relações diversas e complexas,
permitindo que, a partir delas, sejam exercidas hegemonias diferenciadas e existam
diversos tipos de negociações. No ENDIPE 2010, realizado na UFMG, atualizando ideia
trabalhada há muitos anos, eu identifiquei essas redes/contextos do seguinte modo:
o das ‘práticasteorias’ da formaçãoacadêmica; o das ‘práticasteorias’pedagógicascotidianas; o das ‘práticasteorias’ das políticas de governo; o das‘práticasteorias’ coletivas dos movimentossociais; o das ‘práticasteorias’ daspesquisasemeducação; o das ‘práticasteorias’ de produção e ‘usos’ de mídias; o das‘práticasteorias’ de vivênciasnascidades, no campo e à beira das estradas (ALVES,2010 a).
Esses múltiplos espaçostempos articulados formaram/continuam formando cada um de nós
para o exercício do magistério. Os modos como se relacionam em cada momento concreto
de nossa formação, as hegemonias diferentemente neles exercidas, os praticantespensantes
que neles agem e outros tantos aspectos dessas relações é que nos fazem muito diferentes
uns dos outros. São esses aspectos que estabelecem limites diferentes tanto para a execução
de currículos oficiais, como para a possibilidade de outras ações curriculares sincrônicas ou
diacrônicas que neles vão aparecer.
Assim, sobre nossos espaçostempos comuns creio que as salas de aula representam nossa
aproximação possível. Já em nossas diferenças, segundo vejo, que essas se fazem os
espaçostempos principais para as didáticas comas relações existentes entre os seus
participantespensantes principais – os docentes e os discentes. Já para os que trabalham
com os currículos, ganham importância as relações dentrofora das salas de aula e das
escolas com as diversas redes educativas e os inúmeros processos de negociação entre elas
e entre os seus tantos praticantespensantes.
Sobre artefatos pedagógicos curriculares e didáticos
Tanto os trabalhos em currículos, como aqueles realizados no campo das didáticas, têm
buscado compreender como os artefatos culturais múltiplos se transformam em artefatos
pedagógicos, bem como os ‘usos’ que lhes são dado e em que circunstância.
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No campo das pesquisas em currículos, ganha um certo destaque, a materialidade desses
artefatos, sua presença ou não nos espaçostempos cotidianos de aprenderensinar,bem como
os motivos pelos quais isto se dá.
Em currículo, assim, seus “usos” têm a ver menos com sua aplicação – como, entendo,
acontecer no campo das didáticas – do que com as possibilidades de criação de tecnologias
diferenciadas das instruções encontradas nas ‘bulas’ (manuais) que os acompanham com as
ações recomendadas pelos seus produtores que, através de propagandas poderosas, nos
fazem consumir, em quantidades expressivas, até mesmo o que não precisamos ou
precisamos pouco. É por isso que, com Certeau (1994), estabelecemos diferenças entre os
processos de consumir e de usar, entendendo que os ‘usos’ possibilitam, permanentemente,
a criação de novas ideias (CERTEAU, 1994) e novas tecnologias.
Assim, nossas pesquisas com os cotidianos têm permitido compreender que os modos de
‘uso’ de artefatos diversos que estão dentrofora das escolas são sempre criativos e têm
permitido aparecer novos conhecimentos e novas significações que permitem articulações
antes desconhecidas. Quando falamos de artefatos culturais estes podem ir de linhas e
agulhas – como os das imagens que mostramos no início - àqueles que são considerados
mais tecnológicos e mais mobilizadores – tal como os celulares, os computadores, câmaras
de filmar e gravar sons etc - com os tantos aplicativos que permite. Dos primeiros, vistos
nas fotografias mostradas, em uma turma na qual encontrávamos homens e mulheres,
fomos percebendo que para uns e outros não somente era possível usar este material
entendido, há muito, como “das mulheres”, como isto era muito divertido. Quanto aos mais
“recentes” sua presença tem sido, de modo variado, coberto por alguns grupos de pesquisa
do qual citaria Gpdoc (Grupo de Pesquisa em Docência e Cibercultura), coordenado por
Edméa Santos, na UERJ, preocupado em compreender os modos curriculares de ‘uso’ dos
computadores.
Além disso, a multiplicidade dos artefatos culturais que podem se transformar em artefatos
pedagógicos é infinita: de um jornal velho a tintas a serem aplicadas sobre tecidos, de um
mapa a contas e cordões. A “humilde razão” dos cotidianos escolares consegue transformar
em algo útil e precioso, possível de ser ‘usado’ criativamente, tudo o que aparece e para aí é
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levado por seus praticantespensantes, sem que isto tenha sido sequer pensado em qualquer
“currículo oficial”.
Sobre a ordem e o caos: relações pedagógicas complexas
Se para as pesquisas em didáticas buscamos estabelecer a ordem e os modos como os usos
de artefatos – com os conteúdos disciplinares neles incluídos - se dão e devem se dar nas
salas de aula, nas pesquisas em currículos com os cotidianos interessa-nos, justamente, os
modos caóticos com que aí aparecem. Perceber este caos existente nas salas de aula nos
ajuda a compreender as tantas redes que fazem com estejam aí, bem como os modos como
fazem sua introdução, através de tudo aquilo que dentrofora das escolas marcam os corpos
que nelas entram e “habitam” as mentes que nelas estão, trazendo e levando ideias, valores,
sentimentos, conhecimentos e significações.
Esses múltiplos e complexos movimentos, vamos percebendo em nossas pesquisas, sempre
se dão caoticamente. Permito-me lembrar a tantos de nós que discutem em seus cursos as
semelhanças e as diferenças entre os seres humanos,quanto a tantos aspectos, a história
recente, quase diria o “acontecimento”4, com base em Foucault. Com tantos dizendo: “os
estudantes não aprendem nada” ou “não sabem nada” ou “são pouco políticos”, fomos
todos surpreendidos quando, em setembro de 2014, para apoiar um/uma estudante que
sendo transexual estava indo ao colégio de saias, mas tendo nome “masculino”, foi
chamado à Direção e informado/a que deveria comparecer às aulas de calças, muitos
estudantes se puseram de saias e foram assim ao colégio. Sem sabermos bem se ouviam as
aulas em que isto poderia ter sido discutido e a que outras redes pertenceriam, um dia
aconteceu...
Nessas pesquisas com os cotidianos em currículossão, justamente, as entradas dos
artefatosmúltiplos – aqui muitas saias em pernas masculinas – e esses “acontecimentos”
4Mais uma vez, lembro que Foucault (1971) diz: “acontecimento – é preciso entendê-lo não como umadecisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poderconfiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, sedistende, se envenena a si mesma, e outra que entra, mascarada. As forças em jogo na história não obedecemnem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como asformas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecemsempre no aleatório singular do acontecimento”(145-172).
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que nos permitem compreender o caos existente. Com isso, para desenvolver nossas
pesquisas sobre os currículos, cotidianamente, praticadospensados perguntamos: porque a
existência deles é vista por muitos – a maioria? – como ameaçadora? Por que tantos não
reconhecem situações caóticas como criadoras? Trago, ainda uma vez, uma imagem5 que
tanto gosto de usar para conversar sobre isto:
Percebam a posição tão à vontade do senhor nela presente (técnico?) que introduz a
televisão na sala de aula. Percebam os pescoços esticados dos estudantes e suas cabeças
voltadas para este artefato que estava entrando na sala naquele momento – fins da década
de cinquenta, início da de sessenta, na França. Percebam a posição encolhida da professora
a quem o técnico dá as costas e na mesa de quem se apoia, provavelmente, sem pedir
licença, mesmo sendo francês. Desse modo, se pode ver que os modos como esses novos
artefatos foram entrando nos espaçostempos curriculares: sobre uma aparente ordem,
entram sempre sem pedir licença e dentro de movimentos caóticos que desestabilizam os
momentos anteriores aí vividos. Isto nos mostra que o caos pode ser percebido a partir de
movimentos de estudantes, de docentes e mesmo das “autoridades estabelecidas”, como é o
caso que aparece nesta fotografia: este senhor aí está porque alguém que podia – uma
5 Essa imagem foi obtida nos arquivos do Musée national de l’Éducation/CNDP (Centre national deDocumentation Pégagogique), localizado em Rouen, onde desenvolvemos pesquisas, há muitos anos. O usodesta e outras imagens me foi autorizado pelo seu diretor Yves Gaulupeau. Não consegui o nome do fotógrafoque a fez, até hoje.
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autoridade – mandou que aí fosse e, por isto, foi recebido pela professora que, constrangida,
abriu espaçotempo de sua aula para que este “acontecimento” aí se desse.
Mas mesmo em momentos mais tranquilos – como os que vimos no power point
apresentado – os processos pedagógicos em curso se dão nesse caos, que não é só aparente.
As professoras, das aulas apresentadas nas fotografias, entendem que é assim que deve ser e
os estudantes se movimentam em seus grupos e intergrupos, sem muita atenção ao que os
outros fazem...
Querem outro exemplo? Trago uma fotografia de Robert Doisneau6 para mostrá-lo:
Ao mesmo tempo em que a professora conduz alguma atividade com um grupo de
estudantes, atentos ao que ela diz e faz, um outro grupo – que o fotógrafo quis colocar em
primeiro plano – discute um dentinho mole ou um novo dentinho de um deles, assunto
muito mais importante para aquele grupo, naquele momento.
6 Robert Doisneau é um fotógrafo francês muito conhecido que entra nos anos 50 se dedicou a fotografar asescolas francesas que se reconstruíam, naquele então – anos posteriores à Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Remeto a artigos que publiquei com outras fotografias deste artista: Alves (2004); Alves (2010 b), estecom fotografias, também, de Sebastião Salgado.
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Com esses exemplos, desejo mostrar como para nós, que estudamos os currículos
nos/dos/com os cotidianos, é importante compreender que esses movimentos caóticos
também fazem parte das ações pedagógicas, sendo trazidos de e levados para outras redes
educativas. Suas origensinternasexternas exigem compreender os movimentos que
provocamdentrofora das escolas, os modos como nelas se introduzem e aqueles como
escapam de seus ambientes e se “jogam” nas ruas, para que possamos compreender os
modos rizomáticos de tessitura dos conhecimentos e das significações criados nos tantos
cotidianos vividos. Entendemos, assim, que o caos está implantado, firmemente,nas
escolas. Por isso,é necessário - com a força que esta palavra possui –compreendê-los para
que conheçamos de modo mais articulado esses cotidianos e os conhecimentos e
significações que neles são criados.É o que, de modos variados, os grupos que pesquisam
com os cotidianos escolares vêm fazendo.
Repetimos, então: os artefatos, entendidos por nós como curriculares, por sua
materialidade, sua visibilidade e pelos inúmeros ‘usos’ que são feitos deles, têm permitido
compreender esses movimentos diversificados – caóticos – curriculares nos cotidianos
dentrofora das escolas. Seja uma televisão que chega, de repente, na sala de aula; seja um
dentinho novo; seja o material diversificado que se precisa para criar estandartes para
contar a vida de Clementina de Jesus; seja com estudantes que usam saias para apoiar
um/uma deles que é transexual.
Creio que esta forma de conduzir pesquisas e expor a importância do caos em processos
pedagógicos mostra um pouco algumas diferenças entre o que estudamos e pesquisamos,
em currículos e didáticas.
As múltiplas relações de docentes e discentes: discutindo a ideia de “docênciadiscência”
Creio ser necessário destacar um outro aspecto que tem sido desenvolvido pelos
pesquisadores em currículos que me parecem diferir do modo como isto se dá nas didáticas:
refiro-me às múltiplas e diferentes relações entre docentes e discentes nos processos
pedagógicos. Com as didáticas ganharam ênfase ideias como: “os alunos estão no centro do
processo educativo”; “precisamos quebrar os muros das escolas que separam a vida real dos
conhecimentos escolares”; “os professores precisam aprender a melhor ensinar”; “os alunos
podem aprender de formas mais dinâmicas”.
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Pensemos, no entanto, um pouco sobre isto, no modo como essas questões são vistas a
partir do que nas pesquisas com os cotidianos buscamos compreender.
Uma das lições que temos tirado comessas pesquisasé a de que osespaçostempos das aulas
sempre permitiram o exercício dadocência coletiva. Se não havia/nunca houve a docência
única do professor e se os movimentos dos estudantes podiam ser, como até há pouco,
entendidos somente como indisciplina, hoje, a ideia que compreende os processos
pedagógicos como trocas permanentes está vindo à tona pela compreensão de que nas aulas
estão presentes, sempre, os tantos “eus” que cada um dos praticantespensantes presentes é.
Desta maneira, talvez fosse possível falar emredes de docência e mesmo que todos aqueles
presentes nas aulas são, ao mesmo tempo, docentesdiscentes. Espaçostempos de trocas, nas
aulas – em todas elas - se aprendeensina todos a todos, o tempo todo.Naturalmente, que o
que se aprendeensina – aquilo que chamamos “conteúdos” ou “modos de ser e fazer” -
pode variar a cada momento, como varia também o sentido da troca, de quem aprende e
quem ensina.
Sendo assim, ao contrário da ideia hegemônica que tem conduzido muitas pesquisas em
Educação no que se refere a compreensão de processos de aprendizagemensino e muitas
ações pedagógicas –ade que a teoria tem anterioridade sobre as práticas – vamos
percebendo, em nossas pesquisas que elas estão sempre juntas. Pode não nem as teorias que
eu quero, nem as práticas que reputo as melhores, mas em todos os processos de
aprenderensinar as teorias e as práticas estão lá. Explicando com outras palavras, nas
formas hegemônicas de pensar se a prática é proclamada com central nesses processos, o
pressuposto é que a teoria “baseia” o início da formação e que a prática, de fato “entraria”
na fase em que “aparecem” as “disciplinas” ligadas ao ensino-aprendizagem, ou seja,
depois da teoria.
Nossas pesquisas, no entanto, nos indicam, permanentemente, que não há prática sem uma
certa compreensão e mesmo criação de teorias – aprendidas ou criadas, muitas vezes, de
forma caótica – e todas as teorias que circulam nesses processos o fazem a partir de uma
necessidade básica: entender porque se faz assim e não de outra maneira ou porque quero
fazer assim e não de outro modo – sempre há explicações teóricas para isto; nem que seja
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porque minha experiência mostra que é melhor, ou seja, porque criei minha própria teoria
de explicação.
Desse modo, assumimos que esses termos, criação de uma certa interpretação teórica da
realidade pedagógica, estão indissociavelmente ligados e devem ser enunciados a partir da
prática e a ela retornando sempre: práticateoriaprática, seria preciso dizer/escrever.
Os próprios termos, que centralmente buscamos discutir –aprendizagem e ensino – vêm
sendo escritos e pensados, pensados e escritos, ao sabor de contextos e conjunturas
variados. Se nos dermos ao trabalho de buscá-los, como há muito eu fiz, tanto em livros
teóricos da área, como nos tantos manuais usados em aulas das “disciplinas” interessadas,
podemos encontrar: ensino (sem aprendizagem); aprendizagem (sem ensino); ensino-
aprendizagem; ensino x aprendizagem; ensino+aprendizagem; etc. De minha parte, busquei
grafar, já há bastante tempo,aprendizagemensino, invertendo a maneira como os termos
eram predominantemente ditos e fazendo deles uma só palavra e buscando superar o modo
dicotomizado que herdamos da Modernidade.
O incômodo e a materialidade da crise que estamos passando, nessa instituição a que se
chamou ‘escola’ – que nas pesquisas com os cotidianos queremos sempre no plural: escolas
- nunca esteve longe dela, pelo menos em nosso país, e está nesses tantos usos desses dois
termos, muito bem representada. Arespeito dessa crise, a alguns isto parece grave. São os
que entendem que crise é problema que precisa ser eliminado/resolvido. Vendo a crise
como negativa e superável, acreditam que “passa”, como uma doença, se encontrarmos o
remédio correto. Em geral, vêem que o remédio é uma nova política oficial ou novo método
de ensinar e se dedicam, carinhosamente e na maior parte das vezes com grandes
sacrifícios, a produzi-la ou a produzi-lo. Outros, no entando, pretendem – e vêm
conseguindo – fazer disto comércio: têm para vender, uma boa apostila que poderá ser
aplicada em qualquer lugar para que os níveis, nas provas nacionais subam, e, com isto,
certos dirigentes municipais e estaduais pensam que mais verbas chegaram a seus cofres.
Pensando diferente, e estando muito bem acompanhada nisso, entendo que estamos sempre
em crise e que esta, pelas tensões que cria, exige que encontremos “soluções” criadoras em
todos os espaçostempos pedagógicos – neste setor, pelo menos, nada se faz por milagres e
muito menos com “bulas de remédios salvadores”.
Didática e Prática de Ensino: diálogos sobre a Escola, a Formação de Professores e a Sociedade
EdUECE - Livro 400198
Mesmo entendendo a necessidade de algumas políticas oficiais reguladoras,
crescentemente, vou trabalhando com a idéia de que com ou sem elas, nos cotidianos dos
espaçostempos escolares e educativos, os praticantespensantes que neles circulam,
trançando suas redes de conhecimentos e significações, criando diversos modos
deconvivência, fazendo isso porque esses processoslhes são necessários.
Tudo isso se faz, crescentemente, com trocas entre professores/professoras e estudantes,
nos dando modos de pensar este personagem complexo que vem habitando, no presente,
nossas salas de aula: os docentesdiscentes e os discentesdocentes. Sabemos que esta
situação cria inúmeras dificuldades de trabalho e nas relações entre os
praticantespensantesque circulam nas escolas, mas, decididamente, precisa ser entendida,
sabemos bem, os que trabalham nas pesquisas com os cotidianos escolares e das inúmeras
redes educativas nas quais estão docentes e discentes de nossas escolas.
Pela facilidade com que nossos estudantes lidam com os novos artefatos tecnológicos, pelos
quais criam relações com quem está longe, por distâncias e línguas diferentes – mas
próximos por interesses comuns – criando formas de comunicação gráficas e imagéticas
novas, bem como pelo tempo livre que têm, muito superior a de seus docentes, vamos
concordar que as possibilidades que têm de nos ensinar coisas que aprenderam em outras
redes é grande. E nós, os docentes?
Continuamos a ser aqueles que – contra as dificuldades de ação e nas dificuldades dos
processos escolares, com suas tantas faltas – conseguem reunir os estudantes para trabalhos
em comum, em torno de modos de fazer – estudar, escrever, ler, pensar, articular etc – e dos
conteúdos a saber. Quando necessário temos fôlego para explicar o porquê de um
movimento qualquer: de uma greve nossa ou dos outros; de movimentos de milhões nas
ruas em protesto; de uma Copa de futebol perdida; de um massacre de um ser humano ou
de populações que migram sem saber para onde ir; de uma flor que nasce no meio do
asfalto; de porque um transexual tem direito a usar saia; do que as cotas raciais devem
existir – tudo aquilo que, sorrateiramente, faz aparecer os acontecimentos da vida que
muda, sempre.
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EdUECE - Livro 400199
Trazendo a questão de nossas diferenças e proximidades para o contexto da pesquisa queestamos fazendo no momento presente
Para nós, os dois livros mais conhecidos de Certeau e auxiliares (1994 e 1997) nos ajudam
a compreender como os movimentos, nos espaçostempos cotidianos, surgem e
desaparecem, num instante. A isso, ele deu o nome de “táticas” que nos explicou serem
a ação calculada que é determinada pela ausência de um ‘próprio’.(...) A tática não temlugar senão o do outro. (...) Não tem meios para se manter em si mesma, à distância, numaposição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento ‘dentro docampo de visão do inimigo’, (...), e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto apossibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaçodistinto, visível e objetivável.Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as‘ocasiões’ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade eprever saídas. (p.100)
Nesses movimentos, em suas múltiplas redes cotidianas, os seres humanos vão criando
conhecimentos e significações sobre as coisas, os acontecimentos e os outros seres
humanos, sempre em processos de relação. Essas relações, como aquilo que criam, são
sempre efêmeras, mas deixam marcas naqueles que as vivem. Assim, falando sobre os atos
de leitura, Certeau (1994) os descreve assim:
de fato, a atividade leitora apresenta, ao contrário, todos os traços de uma produçãosilenciosa: flutuações através da página, metamorfose do texto pelo olho que viaja,improvisação e expectação de significados induzidos de certas palavras, intersecções deespaços escritos, dança efêmera. Mas incapaz de fazer um estoque (salvo se escreve ouregistra), o leitor não se garante contra o gasto do tempo (ele esquece lendo e esquece o quejá leu) a não ser pela compra do objeto (livro, imagem)que é apenas o ersatz (resíduo oupromessa) de instantes “perdidos” na leitura. Ele insinua as astúcias do prazer e de umareapropriação no texto do outro: aí vai caçar, ali é transportado, ali se faz plural como osruídos do corpo. Astúcia, metáfora, combinatória, esta produção é igualmente uma“invenção” da memória.Faz das palavras as soluções de histórias mudas. O legível setransforma em memorável: Barhtes lê Proust no texto de Stendhal7; o espectador lê apaisagem de sua infância na reportagem de atualidades. A fina película do escrito se tornaum remover de camadas, um jogo de espaços. Um mundo diferente (o do leitor) se introduzno lugar do autor (p.49)
No presente projeto, no qual fazemos do assistir filmes e conversar sobre eles nosso
principal modo de desenvolver os processos metodológicos necessários, vamos conhecendo
os “mundos culturais” dos docentes e compreendendo as maneiras como se dão os
movimentos e a criação nos processos curriculares pelas relações entre os inúmeros e
7 Nota de Certeau (1994, p. 321): Roland Barthes. Le plaisir du texte. Paris, Seuil, 1973, p 58.
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diferentes dentrofora das escolas. Com alguns elementos que acentuam suas possibilidades
– imagem, som, palavras, gestos, possibilidades de trocas entre os que, juntos, vêem filmes
etc - o cinema funciona, para nós, do mesmo modo como Certeau indica que acontece com
a atividade leitora. Também o cinema é produção silenciosa, que permite interpretações
diversas e múltiplas, permite instantes perdidos e criação de memórias. O mundo do
espectador é diferente do lugar do diretor do filme ou de cada um que participou da feitura
do mesmo: atores/atrizes, técnicos diversos, múltiplos diretores etc.
Entendemos que em torno dessas ideias é que podemos melhor compreender as relações
que se dão nos dentrofora das escolas, em ‘conversas’ com os docentes em torno de filmes.
A precaução de possuir uma posição crítica com relação as questões das culturas, tal como
aprendemos com Yúdice (2004), tem aparecido nos trabalhos com os cotidianos, em
especial aqueles que, como esse projeto, pretende discutir os “mundos culturais” dos
praticantespensantes de redes educativas específicas como é o caso dos docentes,
entendendo que somos todos praticantes híbridos, reprodutores, transmissores e criadores
de cultura. Nesses processos, é importante, também, que diferentes modos de pensar a
noção de cultura estão, de certa forma, associados a diferentes modos de pensar a educação,
o que nos permite perceber que isso orienta as possíveis propostas curriculares oficiais,
tanto quanto orientam práticas educativas que visem preparar as novas gerações ou formar
seus docentes. Podemos, assim, perceber, as culturas existentes como: produtos em
processos sociais o que nos faz usuáriosprodutores dos artefatos criados e dos significados
que emergem em meio a negociações e traduções entre grupos e indivíduos, que ora são
consensuais, ora conflituosas (BHABHA, 1998). Mas isto as faz, também, serem projeto
como reivindicação, como enunciação, como diferenciação.
Com Yúdice (2004) entendemos, também, que as culturas sãorecurso, isto porque, na era
da globalização, elas são invocadas para resolver problemas que, anteriormente, eram da
competência da economia ou da política. Assim, a cultura passa a ser o eixo de uma nova
epistême, de modo que o gerenciamento, a conservação, o acesso, a distribuição e o
investimento em cultura tornaram-se prioritários.
Desse modo, independente de ser processo, produto, projeto ou recurso, ou ainda tudo isso
ao mesmo tempo, as culturas são, sempre, modos de ser e estar no mundo que se concretiza
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em meio às redes de práticasteorias, com seus conhecimentos e significações múltiplos,
tecidos por toda a humanidade, com seus conflitos e contradições. Ou dizendo de outro
modo, como nos ensinou Santos (1998), o mundo que nos cerca não é apenas criação do
espírito, ele existe concretamente. Para ele, a realização humana exercida na relação com
seu entorno, que agora deve ser chamado de ‘espaço’, na medida em que é cada vez menos
natural, acaba sendo uma ação da inteligência sobre a inteligência, já que as coisas
encontradas e com as quais se interage resultam da inteligência dos seres humanos em
momentos anteriores.
Assim, a análise e a crítica da sociedade contemporânea possibilitam ao educador
compreender as várias formas de instrumentalização de seu trabalho: a instrumentalização
pelo mercado, pelas militâncias, pelo público, pela mídia, pela carreira. Da mesma forma, a
análise e a crítica, quando consideram as técnicas no contexto da história possível e não
somente da história existente, nos levam a acreditar que outro mundo é viável.
Desse modo, as lógicas operatórias que emergem com os usos da cultura, nos diversos
mundos culturais que todos frequentamos, organizamos, formamos e nos quais nos
formamos nos levam a Certeau (1994) e às pesquisas nos/dos/com os cotidianos como
possibilidade para a compreensão da e a intervenção na constituição do social com um todo
e das práticas educativas em particular, a partir delas, com as imagens surgidas nas práticas
curriculares e culturais amplas e com as narrativas sobre as mesmas feitas pelos seus
praticantespensantes - docentes, no caso desta pesquisa.
Pensamos com Certeau, ao trabalharmos com os praticantespensantes desses tantos
“mundos culturais” em nossas pesquisas que eles são
produtores desconhecidos, poetas de seus negócios, inventores de trilhas nas selvas daracionalidade funcionalista, os consumidores produzem uma coisa que se assemelha às“linhas de erre” de que fala Deligny8. Traçam “trajetórias indeterminadas”, aparentementedesprovidas de sentido por que não são coerentes com o espaço construído, escrito e pré-fabricado onde se movimentam. São frases imprevisíveis num lugar ordenado pelas técnicasorganizadoras de sistemas. Embora tenham como material os vocabulários das línguasrecebidas (o vocabulário da TV, o do jornal, o do supermercado ou das disposiçõesurbanísticas) embora fiquem enquadradas por sintaxes prescritas (modos temporais doshorários, organizações paradigmáticas dos lugares, etc.), essas “trilhas” continuam
8Pedagogo francês que, em inúmeras experiências pedagógicas que desenvolveu, registrou e pensou o quevivia, deixando-nos um importante e interessante legado práticoteórico.
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heterogêneas aos sistemas onde se infiltram e onde esboçam as astúcias de interesses e dedesejos diferentes. (CERTEAU, 1994: 97)
Nesses mundos, então, vamos aprendendo, há ressignificações, lutas, negociações,
cumplicidades e refuncionalizações nos usos dos conteúdos e formas da indústria cultural
pelos praticantespensantes.Estes espaçostempos possibilitam, assim, por esses
movimentos e ações, a reprodução, a transmissão e a criação de teoriaspráticas
curriculares e pedagógicas que se realizam por meio do encontro e que não visam o
consenso e sim e, sobretudo, a criação e a ampliação das possibilidades para trocas de
conhecimentos e significações, nos tantos movimentos da vida.
Com essa perspectiva, no projeto que desenvolvemos atualmente, nos interessa pensar as
possibilidades para articulações múltiplas e diversificadas entre as escolas e seus
praticantespensantes com outras redes e os que nela vivem e as fazem, ou seja, nas
múltiplas redes educativas, que se nos apresentam como “mundos culturais” diversos mas
que se articulam de modos inesperados e que precisamos compreender.
Ao nos decidirmos trabalhar com o cinema para desenvolver essas compreensões nos
perguntamos: o que o cinema vai significar nesta pesquisa? Como ele pode ajudar a
compreender os “mundos culturais” de docentes?Por que isto tem alguma importância nos
processos possíveis de mudanças em currículos de cursos de formação de professores e em
currículos da Educação básica?
Para começar, entendemos que as escolas, assim como outras instituições sociais, são
atravessadas por redes educativas e produtos comunicacionais. Docentes e discentes, de
modos variados, estabelecem relações com ambientes comunicacionais complexos e
diferentes. Vivem assim, complexamente, nos cotidianos das escolas com essas relações
neles incorporadas – isto aparece em cada instante em observações que fazemos.
Com tudo isso pensado, entendemos que não nos bastava usar, nas discussões, somente
filmes que tratassem das escolas, de seus professors e estudantes, mas de todos aqueles que
permitissem discutir e trazer às “conversas” todas as questões que relacionam os tantos
dentrofora das escolas. Desse modo, os filmes serão escolhidos em relação aos problemas
culturais da contemporaneidade presentes nas escolas: diferenças e identidades raciais;
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diferenças e identidades de gênero; vivências urbanas e rurais; questões de trabalho e
emprego; relações com as múltiplas mídias; espaçostempos acadêmicos de formação de
docentes; as políticas governamentais em suas relações com os cidadãos; os movimentos
sociais em suas reivindicações por escolas; práticas escolares e contemporaneidade.
Há ainda um outro aspecto interessante a destacar e que encontramos em Rincón (2002) e
que interessa diretamente às possibilidades de mobilizar os participantespensantes do
projeto. Este autor propõe que se as culturas são redes de significação compartilhadas em
diferentes espaçostempos nos quais são tecidas múltiplas paisagens simbólicas e
possibilidades de identidades, as culturas audiovisuais contemporâneas, sem referência de
território, juntam experiências instantâneas sentimentais e narrativas que produzem estilos
de habitar sem chegar a conformar identidades plenas. As culturas audiovisuais produzem
uma paisagem caracterizada por outras formas de significação, novas maneiras de perceber,
representar e reconhecer, constituindo inéditas formas de experiência, pensamento e
imaginação. Elas articulam um entorno que faz pensar com as imagens e os sons,
constituindo espaçostempos diversos de sensibilidades e de pensamentos.Ora, para este
autor, as sensibilidades se fazem potentes para reinventar a vida, particularmente nestes
tempos marcados pelas políticas da instabilidade e pelas imagens da ambiguidade.
Ainda para Rincón (2002), sensibilidade é a idéia-chave para a compreensão das formas
audiovisuais. Sensibilidade não mais como uma forma de razão que se embasa em
argumentos estéticos, mas como via de expressão. Isto significa, segundo o autor, um outro
modo de compreender as dinâmicas da vida social: um modo que se interessa pelo
movimento, que estabelece novas relações e que se dirige a um novo regime de
reconhecimento e imaginação. Uma maneira de caracterizar este novo regime de
sensibilidade, propõe o autor, é pensá-la a partir das formas subalternas de produzir
sentidos e de inscrever a vida na atualidade: gênero, sexo, ecologia, etnia, juventude,
música, futebol, telenovela, carnaval, classe etc. Para Rincón, são sensibilidades que
afirmam uma resistência afetiva-sensível, que deslocam até o dramático e sentimental os
âmbitos de produção e expressão de conhecimentos e suas significações, que operam como
táticas de bufão que se atreve a incomodar as maneiras clássicas do saber e da cultura.
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Ora, como muitos de nós, os docentes estão no “olho do furacão”, inicialmente, tanto como
pelo que precisam ser – “estar por dentro”; “participar de tudo” -, como o que representam
para aqueles com que lidam no dia a dia – os estudantes – com suas exigências crescentes.
Também aí estão, quando, em uma paisagem urbana precisam comprar e usar o que muitos
dos estudantes têm e usam, ou como, por vivências no campo ou a beira das estradas,
partilham a falta desses artefatos, mas precisam lidar com a existência deles por essafalta,
com seus estudantes.
Com Ricón (2002) aprendemos, ainda, que os relatos audiovisuais são competentes para
permitir as novas expressividades sociais porque sempre foi um modo de expressão instável
e aberto para os criadores que se atrevem a aventurar-se pela vida sem segurança e sem
caminhos definidos, já que podem ser entendidos como um “supermercado simbólico de
estilos de vida para habitar esses tempos desalmados de razões”. Nesse cenário, o cinema é
o rito para onde ir para imaginar a existência e criar a ilusão; o vídeo, a tática para a
aventura, o tempo pessoal; e a televisão, a experiência massiva mais cômoda para
sobreviver imaginativamente ao caos. Assim pensando, entendemos que a potência do
cinema constitui-se na possibilidade que ele cria para se imaginar a existência, para se
pensar numa história possível, para além da história existente, como propôs Santos (1998).
Por outro lado, é preciso compreender que na América Latina, por mais estranho e perigoso
que possa parecer a alguns, a maioria das pessoas está se incorporando à modernidade por
meio das gramáticas das indústrias culturais, o que é assim dito por Martín-Barbero (2000):
por mais escandaloso que nos soe, é um fato que as maiorias na América Latinaestão se incorporando à modernidade não sob o domínio do livro, mas a partir dosdiscursos e das narrativas, dos saberes e das linguagens da indústria e daexperiência audiovisual. E esta transformação nos coloca questões graves quedeixam obsoletos, tanto os ilustrados como os populistas, modos de analisar eavaliar. Pois, se as maiorias estão se apropriando da modernidade sem deixar suacultura oral, é porque essa cultura incorporou a ‘oralidade secundária’(Ong,1998)tecida e organizada pelas gramáticas tecnoperceptivas do rádio e do cinema em umprimeiro momento, e está incorporando na atualidade a visualidade eletrônica datelevisão, do vídeo e do computador. (...) De modo que a cumplicidade e ainterpenetração entre oralidade cultural e linguagens audiovisuais não remetem –como pretende boa parte de nossos intelectuais e nossos anacrônicos sistemaseducativos – nem às ignorâncias, nem ao exotismo do analfabetismo mas adescentramentos culturais que em nossas sociedades estão produzindo os novosregimes de sentir e de saber, que passam pela imagem catalisada pela televisão e ocomputador. (p. 83-34)
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Por fim, lembramos que a comunicação audiovisual, como explica Rincón (2002), foi
construída como linguagem e estética a partir do cinema
Trago então, para fechar este texto, duas cenas de um dos filmes apresentados e sobre os
quais conversamos: Ao mestre com carinho(1967; direção: James Clavell, Reino Unido).
Com essas duas cenas poderemos perceber: os tantos dentrofora das escolas; a existência
permanente do caos nos processos pedagógicos; a presença de múltiplos artefatos culturais,
transformados em artefatos pedagógicos; e as diferentes relações entre os diversos
praticantespensantes dos processos didáticos e curriculares.
Um engenheiro-professor chega ao colégio
Uma aula de ciências-culinária
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