Educação Revessa
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João Henrique Bordin
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Educação Revessa
João Henrique Bordin
Educação Revessa
Pelotas, 2010
Obra publicada pela Universidade Federal de Pelotas
Reitor: Prof. Dr. Antonio Cesar Gonçalves Borges Vice-Reitor: Prof. Dr. Manoel Luiz Brenner de Moraes Pró-Reitor de Extensão e Cultura: Prof. Dr. Luiz Ernani Gonçalves Ávila Pró-Reitora de Graduação: Prof. Dra. Eliana Póvoas Brito Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Manoel de Souza Maia Pró-Reitor Administrativo: Prof. Ms. Élio Paulo Zonta Pró-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Admin. Tânia Marisa Rocha Bachilli Pró-Reitor de Recursos Humanos: Admin. Roberta Trierweiler Pró-Reitor de Infra-Estrutura: Mario Renato Cardoso Amaral Pró-Reitora de Assistência Estudantil: As. Social Carmen de Fátima de Mattos do Nascimento
CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Carla Rodrigues Prof. Dr. Carlos Eduardo Wayne Nogueira Profa. Dra. Cristina Maria Rosa Prof. Dr. José Estevan Gaya Profa. Dra. Flavia Fontana Fernandes Prof. Dr. Luiz Alberto Brettas Profa. Dra. Francisca Ferreira Michelon Prof. Dr. Vitor Hugo Borba Manzke Profa. Dra. Luciane Prado Kantorski Prof. Dr. Volmar Geraldo da Silva Nunes Profa. Dra. Vera Lucia Bobrowsky Prof. Dr. William Silva Barros
Editora e Gráfica Universitária R Lobo da Costa, 447 – Pelotas, RS – CEP 96010-150 Fone/fax: (53) 3227 8411 E-mail: [email protected] Diretor: Carlos Gilberto Costa da Silva Gerência Operacional: João Henrique Bordin Secretaria: Isabel Susan Cochrane Designe: Karina Crochemore Pereira e Douglas Meireles Veiga
Seção Gráfica: Alexandre Passos Moreira, Arlete Xavier de Farias e João José Pinheiro Meireles.
Editoração Gráfica: João Francisco Ferreira Pinto Capa: Gilnei da Paz Tavares Revisão de texto: Anelise Heidrich Impresso no Brasil Edição: 2010 ISBN: 978-85-7192-708-7 Tiragem: 300 exemplares
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação: Bibliotecária Daiane Schramm – CRB-10/1881
B238r Bordin, João Henrique
Educação Revessa. / João Henrique Bordin; prefácio de Avelino da Rosa Oliveira – Pelotas: Editora Universitária/UFPEL, 2010.
150p.
ISBN 978-85-7192-708-7
1. Educação. 2. Dialética Idealista. 3. Dialética Materialista. 4. Concepção Educacional Omnilateral. I. Título.
CDD 370
Dedico este livro a todos os
que, de uma forma ou de outra,
estão preocupados com a educação,
especialmente aos que, mais do que preocupados,
estão com ela ocupados.
Agradeço aos que, sabendo ou sem saber,
contribuíram para a execução deste trabalho,
com especial dedicação à
Cláudia Beatriz Borges Bordin, esposa
e às filhas Francine Borges Bordin,
Karen Borges Bordin e
Rafaele Borges Bordin
Sumário
Prefácio .......................................................................................... 9
Introdução .................................................................................... 15
Reflexões Preliminares ................................................................ 19
Dialética Idealista ......................................................................... 25
Georg Wilhelm Friedrich Hegel ............................................... 25
Dialética Materialista ................................................................... 31
Karl Heinrich Marx .................................................................. 31
Semelhanças e diferenças entre Marx e Hegel ............................. 39
No que se assemelham ............................................................. 39
No que diferem ......................................................................... 41
Método Dialético de Marx ........................................................... 43
Dialética e Educação .................................................................... 55
Um Pouco de História .................................................................. 65
Comunidades tribais ................................................................. 67
Grécia ....................................................................................... 71
Roma ........................................................................................ 73
O Feudalismo ........................................................................... 76
Renascimento ........................................................................... 80
Capitalismo .............................................................................. 85
Proletariado .............................................................................. 91
Nova Educação ........................................................................ 96
Concepção Educacional Omnilateral ......................................... 101
Adorno ................................................................................... 105
Freinet .................................................................................... 108
Gramsci .................................................................................. 110
Makarenko ............................................................................. 113
Pistrak ..................................................................................... 116
Snyders ................................................................................... 117
Suchodolski ............................................................................ 120
Educação Omnilateral ............................................................ 123
Disciplina na Educação .............................................................. 127
Referências bibliográficas ......................................................... 147
9 Educação Revessa
Prefácio
os últimos anos, temos assistido a um colossal
esforço dos educadores. Somos
constantemente interpelados por uma sociedade que se move
em ritmo cada vez mais veloz e paradoxal. O acelerado
progresso econômico anda lado a lado com a injustiça na
distribuição de seus frutos, com os ataques ao meio ambiente,
que põem em risco a humanidade toda e com o descalabro da
miséria absoluta, que transforma imensos contingentes de
seres humanos em quase sub-raças. De um lado, a ciência
avança em vertiginosa velocidade e oferece respostas em
todas as frentes; de outro, os próprios avanços tecnológicos
daí decorrentes tornam ociosos milhões de trabalhadores. De
um lado, a comunicação vence as determinações de espaço e
reúne todos os povos; de outro, as guerras ainda impõem-se
como argumentos de força e aniquilam milhões de pessoas.
Em contexto tão conturbado e repleno de incertezas,
a educação contemporânea vem recebendo uma variadíssima
N
10 João Henrique Bordin
quantidade de demandas sociais. Para o mercado, que cada
vez menos necessita de trabalhadores fixos, deseja-se educar
para a empregabilidade, buscando alunos capazes de adaptar-
se habilmente a diferentes tarefas, aptos a tomar decisões
frente a variados contextos e capazes de encontrar soluções
para quaisquer problemas. Mas busca-se também educar para
a desempregabilidade, formando espíritos empreendedores
que dispensem o salário regular e vão em busca de caminhos
próprios, que desonerem os empregadores. Para dar conta de
novas tecnologias, que proliferam em velocidade vertiginosa,
é necessário aprender a aprender, pois qualquer
conhecimento destina-se à obsolência e reclama sempre um
novo e rápido aprendizado, que tão logo começa já perdeu a
vigência. Para a sociedade, que assiste estarrecida a milhares
de erupções superficiais a denunciar a irracionalidade de suas
entranhas, são múltiplas as demandas a atender. Se a quebra
da repressão sexual faz-se acompanhar da morte transmitida
ou das vidas indesejadas: educação sexual. Se a indústria
automotiva insufla o consumo desenfreado de um novo
veículo a cada ano e se a mais elementar das leis físicas não
permite a circulação: educação para o trânsito. E se tantas
outras mazelas acumulam-se, tantos mais são os remédios
solicitados: educação para a paz, educação para os direitos
humanos, educação para a tolerância, educação para a
11 Educação Revessa
sustentabilidade, educação para o consumo. Educação para
tudo. Educação para corrigir o incorrigível, para domar o
indomável, para aplacar o insaciável. Educação para nada.
Pois o livro de João Bordin não entra nesta corrente,
resiste ao fluxo, não o aceita como curso natural. Só mesmo
uma Educação Revessa pode afrontar a lógica onímoda do
sistema. Mas o que há de revolucionário na Educação
Revessa não é propor qualquer outro princípio, estranho,
como articulador de uma nova síntese social. O inesperado e
desconcertante para o modelo social que se orgulha de ter
universalizado a liberdade é exigir que ela mesma, a
liberdade, em sua plenitude, seja tomada a sério como
horizonte da sociabilidade. Não mais a liberdade apenas de
comércio, de mercado. Não a liberdade unideterminada, de
seres humanos unilaterais. A liberdade que João Bordin
advoga é aquela de seres humanos onilaterais. É o horizonte
da emancipação humana.
A Educação Revessa, portanto, é um exercício de
liberdade: afronta a tirania escravizante da liberdade
mutilada, concedida unicamente dentro dos limites do
cálculo, e orienta-se pela liberdade que, ultrapassados os
simples remendos ao status quo vigente, pode andar em
direção ao ainda não existente. Reafirmar a liberdade, porém
12 João Henrique Bordin
não mais comprometida com a lógica do capital, é propor um
movimento tal como o da luva, que tirada ao revesso de uma
mão, encaixa-se perfeitamente na outra.
É com base neste projeto socioantropológico
fecundo que João Bordin anuncia seu rumo. “Liberdade não
consiste em se livrar de todas as contingências que afligem a
vida em determinada situação pessoal, no grupo de amigos,
ou sistema social, tampouco é fazer tudo o que se quer, como
se quer e onde se quer. Liberdade é saber posicionar-se frente
às intempéries da vida e responder de forma coerente às
investidas que tendem a manobrar o caráter e deformar a
personalidade. A disciplina, a priori, com suas regras e
normas, ensina e conduz no caminho da liberdade. Liberdade
pressupõe a disciplina formadora do caráter e da
personalidade autêntica e consciente. Disciplina deve ser o
horizonte no qual se espelha todo o modo de ser e de viver
em liberdade. Não há liberdade sem disciplina.” (pg.145)
E se vierem os cépticos e os desiludidos a perguntar
de onde tiro a convicção de que não estamos condenados ao
eterno retorno do mesmo, não apelarei às demonstrações
históricas, sequer farei recordar os argumentos racionais, que
já são conhecidos à farta e, por isto mesmo, rebatidos.
13 Educação Revessa
Deixar-me-ei guiar unicamente pela sensibilidade e cantarei
os versos do poeta Vladímir Maiakóvski.
Tu não vês nada?
Franzes os olhos? Queres ver?
Teus olhinhos — como duas fendas
abre-os!
Olha,
em meus grandes olhos
abertos como o pórtico duma catedral.
Homens!
Amados e não amados,
conhecidos e desconhecidos,
desfilai por este pórtico num vasto
cortejo!
O homem
livre —
de que vos falo —
virá,
acreditai,
acreditai-me!
Avelino da Rosa Oliveira
14 Educação Revessa
15 Educação Revessa
Introdução
século vinte e um
está sendo marcado
por um extraordinário avanço
tecnológico, especialmente dos
eletroeletrônicos, em que a
computação consegue adicionar milhares de informações, com
inúmeras funções, em apenas um microchip. Avanço bem-vindo,
que ajuda muitos, aproxima outros e integra cada vez mais o
mundo globalizado. No entanto, há uma disparidade com relação a
outras áreas do desenvolvimento e do conhecimento humano.
Uma dessas áreas, que é tema deste trabalho, é a educação, que,
em alguns aspectos, ainda está no início do século vinte, enquanto
a tecnologia se avizinha a um futuro distante.
Na tentativa de aproximação da educação ao modo
contemporâneo, futurista e tecnológico, em que é projetada a nova
maneira de ser do homem, faltam recursos à razão para engendrar
O
16 João Henrique Bordin
uma maneira de equalizar o que seria novo no processo de educar.
Este ato educativo inovador deve ter a mesma aceitação nas
crianças e jovens, quanto o é a tecnologia.
Não sabemos o que diria Marx a respeito da educação no
mundo de hoje, tão diferente do seu tempo, mas na certa iria além
de uma educação elementar e de o manejo das ferramentas de
trabalho. Os pós-marxistas avançaram muito nesse sentido e em
certo período até parecia que a educação tomaria as rédeas de um
ensino igual para todos, em todas as sociedades. Entretanto, de um
tempo para cá, por volta das décadas de oitenta e noventa, do
século passado e início deste, houve um desvirtuamento no que
tange à formação disciplinar em sala de aula. Como resultado, o
que se vê dia a dia, no geral das escolas deste País, é um ensinar
nem muito preocupado com o conteúdo transmitido e bem menos
com o educar para a formação do cidadão.
Na intencionalidade de fomentar a reflexão neste campo,
apresentamos de início, o que vem a ser dialética no contexto
histórico, como surgiu e para o que serviu. Hegel nos ensina a
usá-la idealisticamente e Marx a nível real material. Tanto Hegel
como Marx nos fornecem elementos para um aprofundamento
reflexivo da razão e da práxis humana. No entanto, nos atemos
mais ao método dialético marxista, pois nos faz ver além do
17 Educação Revessa
estabelecido e programado mundo contemporâneo e perceber a
possibilidade de sua superação.
Concordando com Marx de que o materialismo dialético
considera o pensamento e a matéria como elementos de uma
mesma natureza, abordamos a educação dialética com o intuito de
perceber as amarras que fazem o sistema educacional ser mais
ideológico do que filosófico. O estudo da história da educação nos
revela como aconteceu, em cada época, o processo mantenedor,
ou de mudança, dos valores e da cultura de cada povo. Também
nos situa, contemporaneamente, como vivendo um momento de
transição, em que está em nossas mãos a possibilidade de
implementar o novo – uma nova forma do homem ser no mundo.
O novo é viabilizado pela educação omnilateral, como
nova maneira do homem pensar e se posicionar frente ao sistema
do capital e rever o atual quadro de desigualdades sociais. A
educação omnilateral marxista é a possibilidade que o homem tem
de dar início à construção da nova sociedade.
Por fim, e para dar sustentabilidade a toda essa nova
maneira de conceber o mundo, precisamos rever a forma com que
é abordado o tema da disciplina na sala de aula. Sem disciplina
não há liberdade. Atrelada à disciplina está a autoridade do
professor - sem ela a escola desautoriza a família e desaparece o
18 João Henrique Bordin
respeito pelo outro. É a consciência coletiva, já conhecida, porém
esquecida, que precisa ser fomentada para que a educação seja um
instrumento que auxilie a sociedade a mudar.
19 Educação Revessa
Reflexões Preliminares
propósito desta pesquisa, no campo da educação,
não é a pretensa ideia de apontar erros, indicar
acertos e nem criar uma teoria nova. Apenas parte do
entendimento que a educação pode ser o norte, ou a possibilidade
de ser o caminho de superação das desigualdades sociais,
cristalizadas e pacientemente aceitas por todos aqueles que vivem
e sobrevivem do Capitalismo. De início, para ter arrimo científico-
filosófico, estabelece relação com uma teoria que dê suporte à
fomentação de uma discussão e que seja uma alternativa de
prática libertadora.
Com esta intenção, percebemos tal possibilidade, que
também pede ser encontrada em outros pensadores, no sistema
filosófico de Karl Marx, pois, através dele e de seu método,
muitos pretenderam e ainda são motivados a procurar uma saída
para a dominação do capital. Marx, sem dúvidas, mantém relação
com as questões contemporâneas, visto que “a fecundidade da
O
20 João Henrique Bordin
teoria marxista reside nela instigar o pensamento presente,
dirigindo-o à busca de alternativas de práxis transformadoras em
todos os campos da vida”1. Para compreender melhor a dialética
marxista será necessário um breve estudo da dialética hegeliana.
Partindo do preceito da filosofia de Friedrich Hegel e
admitido na filosofia de Karl Marx, que partilham o princípio de
que toda coisa tem dois níveis de realidade, o da essência e o das
manifestações. Que a essência determina sua manifestação por
contradições que se exteriorizam e se manifestam de forma
diferente do que é. Que a dialética, como ciência, descobre porque
ao se exteriorizar se inverte numa contraposição de identidade e
diferença fundamental. Este trabalho pretende colaborar na
reflexão sobre a educação em sua essência e em sua manifestação
por dupla contradição, a do indivíduo e a do social.
Para a colocação deste problema faz-se necessário
adentrar na mente humana para detectar os mecanismos pelos
quais a educação forma o pensamento e a maneira como ele se
exterioriza com suas contradições na sociedade vigente. A
dialética ajuda na percepção dos mecanismos do pensamento,
torna explícita a manifestação das contradições e conduz a mente
na compreensão de como a educação ajuda no processo de
1 - Oliveira, Avelino da Rosa. Marx e a Liberdade. Porto Alegre: EDIPUCRS, (Coleção
Filosófica; 62), 1997. P.180
21 Educação Revessa
emancipação. Partimos da premissa de Karl Marx, colocada como
um “proceder por análise e síntese, propondo um método de
pesquisa e um método de exposição”2. Convêm inicialmente
mostrar o significado de análise, síntese, método, pesquisa,
exposição e dialética, termos que fazem parte e sustentam o
método dialético.
Para começar vamos a um dicionário, qualquer
dicionário, e vemos que a palavra “análise” aparece como a
decomposição de um todo nos seus componentes, ou o exame,
estudo, pesquisa, investigação, ou classificação desse todo. O
termo “síntese”, entre outras definições, é a reunião dos elementos
simples para formar o composto, que parte do princípio e chegam
às consequências, é a organização mental de um sistema, resenha,
ou resumo. O “método” é significado como a maneira de ordenar
a ação segundo certos princípios na investigação, no estudo, na
persecução de quaisquer objetivos. Um modo de agir com
disciplina, técnica e organização. A expressão “pesquisa” se refere
à busca, à indagação e à investigação. O vocábulo “exposição” é a
exibição pública de algo ou alguém, uma declaração,
manifestação, narrativa, ou revelação. A dicção “dialética” é
especificada como a arte do diálogo e da discussão. O diálogo e a
2 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.17
22 João Henrique Bordin
discussão subentendem ideias divergentes. O diálogo é a forma de
expressão da linguagem em sua concretude.
Diante desses significados podemos aprioristicamente
conceituar a “Educação Dialética” como o método de ordenar a
ação, principiada pela análise, e através
da pesquisa investigar e reunir, na
síntese, os elementos mais simples da
educação, para, na exposição, revelar a
sua forma em si, ou a totalidade com
todas suas contradições.
Essa é a definição dos dicionários, onde podemos notar
que as palavras análise e pesquisa se assemelham e são ordenadas
pelo método, a síntese aparece na exposição e a dialética exerce a
função de ser mediadora e fomentadora das discussões de todo o
processo. Na verdade, é a dialética que faz a ligação e a
intermediação de toda a metodologia através das contradições que
se apresentam na explanação do sistema analisado. Mas para ter
uma maior compreensão desses termos, precisamos entender a
dialética de Hegel e como Marx passou a utilizá-la na luta do
proletariado para tentar superar o sistema do capital.
A palavra dialética já era usada na Grécia Antiga como
um modo específico de argumentação. Formada por dois termos
23 Educação Revessa
“dia”, que expressa a ideia de dualismo, de troca; e “lektikós”, que
quer dizer “capaz de falar”. Significa duas opiniões divergentes e
pode ser entendida como a arte do diálogo e da discussão. Para
Platão, era um método de ascender ao inteligível e para Aristóteles
apenas auxiliar da filosofia3. Neste estado, de auxiliar da filosofia,
permaneceu até a época moderna, perdendo seu poder
argumentativo. Hegel é que a retoma e a coloca no centro da
filosofia.
Para uma melhor compreensão do termo dialética,
começamos expondo o conceito hegeliano. Em seguida faremos
uma explanação de como Marx o utiliza no sistema do capital e
tentar estabelecer a relação entre os dois sistemas dialéticos para
ver que colaboração um e outro oferecem à Educação Dialética,
para depois aprofundar esta a partir da metodologia marxista.
É possível estabelecer uma “Educação Dialética” no atual
sistema do capital? Qual a relação e as consequências de uma
“Educação Dialética” com o indivíduo, com a sociedade e com o
sistema capitalista? Pode alguém que passa pelo processo de
“Educação Dialética” se submeter ao capital? Essa submissão,
depois de passar pela “Educação Dialética”, pode revolucionar a
sociedade? Na hora do “vamos ver”, a sobrevivência fala mais
alto e anula esse processo educacional, ou não?
3 - Raízes Jurídicas – Curitiba, v.3, n.1, jan/jun. 2007, p. 291
24 João Henrique Bordin
Essas e outras indagações despontam na mente durante o
processo de pesquisa e as respostas não cabem ser explanadas
neste trabalho, embora diversas pistas possam aparecer.
Entretanto, o processo prático da “Educação Dialética”, com a
constatação das contradições e de sua possível superação, pode
dar margem a tais respostas e veracidade a todo o processo.
Portanto, iniciamos aprofundando a dialética em Hegel e em
Marx.
25 Educação Revessa
Dialética Idealista
Georg Wilhelm Friedrich Hegel
O mais importante filósofo do
idealismo alemão pós-kantiano e um
dos que mais influenciaram o
pensamento de sua época e o
desenvolvimento posterior da filosofia.
Nasceu em Estugarda (Alemanha) no
ano de 1770. Em 1790 obteve o grau
de Magister Philosophiae no seminário
Teológico de Tübingen, onde estudou
com o poeta Friedrich Hölderlin e o
filósofo Schelling. Os três estiveram
atentos ao desenvolvimento da Revolução Francesa e colaboraram em uma
crítica idealista de Kant. Em 1795 publicou “A Vida de Jesus” e em 1805 é
nomeado por Goeth para ser professor extraordinário em Jena e ensina que só
o todo é verdadeiro e o todo é identidade entre pensamento e ser. Em 1806
publica a “Fenomenologia do Espírito. Em 1811 casa-se com Marie Von
Tucher e em 1816 é nomeado para a Cátedra de Filosofia da Universidade de
Heigelberg. Em 1817 publica a “Enciclopédia das Ciências Filosóficas” e em
1818 torna-se Catedrático de Filosofia na Universidade de Berlim. Em 1821
são publicados os “Princípios da Filosofia do Direito” e em 14 de novembro
de 1831, acometido de cólera, morre na cidade de Berlim, na Alemanha.
Hegel construiu um dos maiores sistemas filosóficos de todos os tempos e
pode ser considerado o último grande sistema da tradição clássica. (Os
Pensadores, Hegel, São Paulo; Nova Cultura, 1999)
26 João Henrique Bordin
ara explicar a inversão da essência das coisas ao se
exteriorizar em suas manifestações, Hegel parte da
mente, da categoria mais simples e abstrata, o ser puro, e apreende
a contradição dos fenômenos como unidade da essência, na ideia,
como a “existência de uma estrutura universal da totalidade do
ser”4. Para isso, retoma a dialética, que até então era apenas
auxiliar, e a faz o centro da filosofia. “Hegel chega ao real, ao
concreto, partindo do abstrato: a razão domina o mundo e tem por
função a unificação, a conciliação, a manutenção da ordem do
todo. Essa razão é dialética, isto é, procede por unidade e oposição
de contrários”5.
Para chegar à essência é necessário conhecer o modo de
ser de cada coisa. Por exemplo, para conhecer uma pessoa é
necessário abarcar em toda sua história de vida, do nascimento até
sua idade atual. Só o todo é real, é verdadeiro e é identidade entre
o pensamento e o ser. É a totalidade da razão, um sistema
ontológico fechado no qual a história se modela sobre o processo
metafísico do ser e determina que o racional é real e o real é
racional.
Para Hegel, a natureza e o espírito, que formam o todo,
são contraditórios. A dialética é o movimento pelo qual o espírito,
4 - Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1978. P. 70 5 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.18
P
27 Educação Revessa
a razão e o divino se realizam através da história em três fases: a
afirmação, ou a tese, ou posição; a negação, ou antítese; e a
negação da negação, ou a síntese. A antítese é a contraposição da
afirmação e a síntese é a superação da contradição, negar e
conservar. O idealismo hegeliano considera a história como a
realização do pensamento humano, visto que a dialética é o motor
do pensamento e da própria história.
Na lógica as “determinações da reflexão” partem da
contraposição da identidade e diferença absolutas, distintas e
diversas uma da outra na pura identidade consigo mesma. “Esse
processo dialético pode ser percebido quando se pensa no ser
humano: a criança pode ser vista sob a perspectiva da tese; o
adolescente seria então a antítese e o adulto representaria a
síntese. Nesse exemplo é fácil perceber que o adolescente, além
de ser diferente da criança, nega-a, pois não quer mais fazer
muitas das coisas que uma criança faz, procurando distanciar-se
do que era e cria uma nova identidade. Isso mostra uma antítese
que não se encerra nesse ponto. O adulto vem contradizer
novamente, negando o que era como adolescente: uma dupla
negação. Mas o adulto não apenas nega novamente, pois apesar
de, em certo sentido, ser diferente da criança e do adolescente,
reconcilia e mantém algo ao mesmo tempo em que deixa de lado
28 João Henrique Bordin
outras coisas”6. Essa reconciliação, negação da negação, negar
conservando, é a síntese que reconcilia as contradições.
A dialética começa com a diversidade, onde existe
alteridade e movimento de uma coisa a outra. A negação recíproca
das coisas as define; algo é por não ser o que não é; uma cadeira é
uma cadeira porque não é uma mesa, e vale o contrário; afirmação
e negação. Na oposição cada coisa tem em si o positivo e o
negativo, que se diferenciam; e cada um, como um todo, abarca
contraditoriamente a sua negação; afirmar negando-se. O trabalho
é o conceito chave para compreender essa superação dialética.
Hegel usou a palavra alemã “aufheben”, um verbo que significa
“suspender”7, em três significados: primeiro é anular, negar,
cancelar; segundo é suspender e manter algo erguido; e terceiro é
promover a passagem de algo a um nível superior. No entanto são,
para Hegel, usados ao mesmo tempo, por exemplo, na fabricação
de uma cadeira a matéria-prima é negada e ao mesmo tempo
conservada para assumir uma forma nova. A unidade viva, o
trabalhador, é a compreensão da determinação positiva e ao
mesmo tempo negativa. O fundamento é contraditório e no
conflito criativo, do positivo e negativo, “funda”, a partir de si,
outra coisa, e se “afunda” na contradição, não se anula, o faz para
6 - Raízes Jurídicas – Curitiba, v.3, n.1, jan/jun. 2007, p. 295 e 296 7 - Konder, Leandro. O que é Dialética. Editora brasiliense. Rio de Janeiro. P. 28
29 Educação Revessa
superar e repor continuamente a contradição enquanto força
criadora.
Esse movimento pode ser compreendido através do
exemplo de uma flor: “o botão é, numa planta, a negação
determinada da semente, e a flor a negação determinada do botão
(...) nosso conceito vê que a semente é potencialmente botão e que
o botão é potencialmente flor”8. Portanto, conceito em Hegel é a
possibilidade máxima de realização de algo. “O conceito
adequado revela não a natureza de um objeto (...) nos diz o que a
coisa é em si mesma”9. O conceito mostra o “em si” de algo no
processo concreto da realidade que se dá de forma histórica. Por
exemplo, o conceito de semente é sua potencialidade de se tornar
árvore.
O positivo e negativo são totalidades excludentes, um
inclui o outro; se um exclui o outro exclui a si próprio. Hegel
eleva a substância real a sujeito através da reflexão, do dobrar-se
sobre si. Mistifica a dialética colocando a superestrutura das
representações mentais como produtoras das bases materiais da
sociedade. Ao pensar o real descobre a mútua determinação de
identidade e diferença, mas mistifica o real ao estabelecer que a
identidade predomina para compor o mundo do uno em sua
8 - Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1978. P. 70 9 - Idem. P. 71
30 João Henrique Bordin
diversidade e conflitos só aparentes. “A dialética é um processo
num mundo onde o modo de existência dos homens e das coisas é
engendrado por relações contraditórias; assim, cada conteúdo
particular só se expande ao mudar-se no seu oposto”10
, cada coisa
possui determinadas qualidades que as distingue das outras e são
sua contradição. Por exemplo, dizer que uma cadeira é azul
significa que ela é algo que não é ela mesma, a qualidade azul.
Dizer que determinada pessoa é alta, ou gorda, estas qualidades
são contraditórias com o ser que é ela mesma e isso poderia causar
desunião no meio social. Por isso, o Estado é a totalidade dialética
que dá coesão à sociedade civil, em suas múltiplas carências
individuais e numa unidade política. “O indivíduo só poder ser
livre como um ser político”11
e algumas mentes mais evoluídas
reúnem essa vontade geral, que é o resultado e não a origem do
estado, para que a grande maioria possa seguir. O mundo constitui
um todo e a verdade é reconstruir esse todo.
10 - Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1978. P. 73 11 - Idem. P. 88
31 Educação Revessa
Dialética Materialista
Karl Heinrich Marx
Marx nasceu em Trier (Trevès, em
Frances), em 1818, na Renânia, então
província da Prússia, limite com a
França, hoje sul da Alemanha. De
origem judaica, era filho do brilhante
jurista Hirschel, que chegou a ser
conselheiro da justiça, que em 1824
converteu a família ao Cristianismo e
adotou o nome Heinrich, mais
germânico. O pai faleceu quando tinha
vinte anos e dele recebeu vigorosa
formação, pois cresceu enquanto se estruturava a indústria fabril e no entorno
da qual surgiam as duas classes sociais que seriam o centro de sua obra, o
proletariado e a burguesia. A essas circunstâncias sociais, se vinculam as
ideias do iluminismo francês, do qual o pai era adepto. Em 1835, com 17
anos, Marx termina o ensino secundário e vai para a Universidade de Bonn,
onde inicia o curso de Direito, mas não o termina; e em 1837 vai para a
Universidade de Berlim, onde se encanta pela filosofia de Hegel, que tudo
explica a partir de uma ideia, de um princípio único. Estudou Hegel como
ninguém, encontrando em seu sistema não só a explicação lógica e abstrata
das coisas, mas a maneira de analisar a sua produção. O sistema hegeliano
abrange e explica tudo a partir da liberdade. Só não foi hegeliano de maneira
estrita, pelo seu espírito inquieto e inclinado às ideias anticonservadoras.
Marx formou-se em Jena, cidade da Turíbia, em 1841, com a tese de
32 João Henrique Bordin
doutorado, “Diferenças entre as Filosofias da Natureza de Demócrito e
Epicuro”. Nessa tese, Marx demonstra sua identificação com o método
empregado pelos atomistas, que é o mesmo que Hegel usa em seu sistema
filosófico. “Tudo é manifestação da liberdade”. Em 1844 escreve “Sobre a
Crítica da Filosofia do Direito” de Hegel, em 1847 escreve “A Miséria da
Filosofia”, em 1852 “O Brunário de Luís Bonaparte”, em 1859 “Sobre a
Crítica da Economia Política”, e em 1867 o primeiro volume de “O Capital”.
Os volumes II e III de “O Capital” foram publicados em 1885 e em 1894,
por Engels, após a morte de Marx em 1883. Juntamente com Engels publica,
em1845, “A Sagrada Família”, entre 1845 e 1846 “A Ideologia Alemã” e em
1848 “O Manifesto Comunista” (O Capital. tradução de Regis Barbosa e
Flávio R. Kothe e apresentação de Jacob Gorender; Volume 1, Tomo I. São
Paulo: Nova Cultura, 1996).
mesmo princípio defendido por Hegel, de que
toda coisa tem dois níveis de realidade, o da
essência e o das manifestações, Marx admite. No entanto, traz
essa dialética para o mundo material e afirma que apenas certos
tipos de relações sociais historicamente constituídas são
contraditórios; em geral o das sociedades de classe e em particular
a sociedade capitalista. A partir do capital, Marx analisa a
realidade concreta, pois este influencia “todas as relações
humanas, desde as mais insignificantes até as mais complexas do
modo de ser das pessoas”12
. Parte do princípio de que o
conhecimento já está presente na realidade e cabe ao pensamento
apreendê-lo enquanto síntese de múltiplas determinações
contraditórias. Com o materialismo histórico se apreende as
12 - Raízes Jurídicas – Curitiba, v.3, n.1, jan/jun. 2007. P. 300
O
33 Educação Revessa
contradições do real concreto e resgata o crítico da dialética de
Hegel.
A unidade do Estado só acontece no plano jurídico, como
um todo identitário, em que todos são iguais perante a lei, mas
repousa e se determina numa desigualdade social entre
proprietários e trabalhadores livres, juridicamente iguais. É
ilusório pensar que só exista igualdade e liberdade e negar a
desigualdade. “A dialética, em Marx, é vista a partir do capital
que é responsável pela existência da contradição da sociedade de
classes: uma que detém o capital (burguesia) e a outra que não
detém (proletariado)”13
.
O Capitalismo se assenta na ideia de que tudo vira
mercadoria com valor abstrato, na ideia da mais-valia, ou seja: o
“valor do que o trabalhador produz menos o valor do seu próprio
trabalho”14
. A abstração acontece pelo fato do capital se
fundamentar em convenções: “uma cédula de papel-moeda, só por
convenção, é assumida como valendo 100 reais”.15
É conveniente
que haja igualdade jurídica dos vendedores e compradores na
circulação de mercadorias em contraposição à desigualdade social
13 - Raízes Jurídicas – Curitiba, v.3, n.1, jan/jun. 2007. P. 302 14 - Mais-Valia em: Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o
dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 15 - Raízes Jurídicas – Curitiba, v.3, n.1, jan/jun. 2007. P. 301
34 João Henrique Bordin
entre trabalhadores e capitalistas na produção. O que importa é a
igualdade jurídica sustentada pelo Estado.
As diferenças profundas compõem o todo e se
determinam na identidade externa. Pensar é transformar o real,
descobrir o princípio de suas diferenças e encontrar sua solução. A
análise dialética constitui e transforma o objeto, o social,
desmascarando seu fetiche, suas contradições e seus movimentos.
O capital é a totalidade e a mercadoria geral (trabalho) sua
oposição. “O mundo das mercadorias é um mundo falsificado e
mistificado, e a análise crítica dele deve começar por acompanhar
as abstrações que o constituem, devendo, pois, partir dessas
relações abstratas para atingir o seu conteúdo real”16
. Enquanto
totalidade o capital inclui seu oposto, o trabalho vivo (o
trabalhador); e enquanto momento corporificado nos meios de
produção ele o exclui, para que não faça parte da mercadoria
produzida.
O trabalho, não capital, não objetivado, negativamente
apreendido, excluído das riquezas objetivas, do não valor, não
como objeto, mas como atividade, é fonte de vida do valor. O
trabalho e capital condicionam-se mutuamente; o trabalho não
objetivado vivo é o oposto do capital como existência oposta e por
outro lado pressupõe o capital. Os meios de produção, trabalho
16 - Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1978. P. 286
35 Educação Revessa
morto, são vivificados pelo trabalho vivo. O capital e trabalho
morto se apresentam como totalidade e se opõem ao trabalho vivo.
O capital inclui em si a força de trabalho como momento
variável para se valorizar e se definir como capital e a exclui
enquanto possível totalidade, que poderia deixar de produzir para
ele e com isso deixaria de ser capital. Excluir seu oposto implica
excluir-se a si mesmo, negar a si próprio, contradizer-se. É o
“caráter negativo da realidade”17
que despertou tanto Marx como
Hegel. Na contradição, o capital enquanto totalidade inclui o
trabalho e simultaneamente o exclui de si. Substancialmente,
enquanto valor, o capital é constituído pelo trabalho, que
formalmente o subordina e o define como pobreza absoluta,
despojado dos meios de produção e sendo mera parte integrante
do todo.
A contradição unilateral do capital nunca se resolve de
modo pleno, visto que o aspecto positivo está inserido no
negativo, não há solução idealista, só crítica e revolucionária. O
capital não é a substância real. A força de trabalho, fonte efetiva
do valor, é que deveria ser elevada à substância, a sujeito, e para
isso precisa se apropriar dos meios de produção. O capital se
apresenta como sujeito, vampirescamente roubando a vitalidade
criadora da força de trabalho.
17 - Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1978. P. 285
36 João Henrique Bordin
Há uma inversão do movimento dialético; a força de
trabalho é negatividade referida a si, na relação de trabalho vivo,
com o objeto criado que não lhe pertence mais. Retorna, assim, o
trabalho de mãos vazias e resulta na sua exclusão da riqueza
objetiva e o impede de passar o sujeito, para conferir essa posição
ao capital. Marx “aponta que a negação da negação, o estágio
final, acontecerá desde que a totalidade do estado negativo vigente
seja anulado”18
. A contradição profunda não se resolve porque
consiste em uma torção, em que a subjetividade é um poder alheio
à substância.
A dialética de Hegel estaria de cabeça para baixo ou
como uma luva, que ao ser tirada da mão fica do avesso. Assim,
vê o pensamento como o que concebe o real e a contradição está
na mente; a identidade seria o que está do lado de dentro da luva
determinado pelo que está do lado de fora. Marx coloca a dialética
de Hegel de cabeça para cima, corrige o viés idealista e apresenta
corretamente a vida material como produto das representações
mentais; a contradição está no material.
“A análise que Marx faz não é do ser em geral, ou das
coisas em geral, mas das relações produtivas, responsáveis por
conduzir a sociedade ao estado em que se encontra”19
. Na análise,
18 - Raízes Jurídicas – Curitiba, v.3, n.1, jan/jun. 2007. P. 305 19 - Idem. P. 303
37 Educação Revessa
leva em conta as condições materiais, concretas, econômicas e
sociais que conduzem a humanidade a uma sociedade de classes
marcada por conflitos. Descobriu que a luva está do avesso e a
identidade está no lado de fora da luva, que precisa ser desvirada
para que o real apareça, e é determinada pelo que está do lado de
dentro.
38 João Henrique Bordin
39 Educação Revessa
Semelhanças e diferenças entre Marx
e Hegel
No que se assemelham
sistema filosófico de Marx recebeu grande
influência do pensamento de Hegel, pois se sentiu
muito atraído pelo método de explicação da totalidade. Foi
colocado, no início deste trabalho, que Hegel e Marx concordam
com o princípio de que toda coisa tem dois níveis de realidade, o
da essência e o da sua manifestação por contradições, e que a
dialética descobre porque que ao se exteriorizar a essência se
inverte numa contraposição de identidade e diferença
fundamental. A concordância também se dá no caráter histórico
em que para conhecer algo é necessário compreender o processo
pelo qual esse algo ocorre e como é transformado pelo
movimento. “Ambos sustentam a tese de que o movimento se dá
O
40 João Henrique Bordin
pela oposição dos contrários, isto é, pela contradição”20
. Outro
ponto de convergência está na análise da realidade, em que são
despertados pelo caráter negativo. Percebem, assim, que só
abarcando todas as contradições de algo é possível compreendê-lo
na sua essência. Para ambos a verdade das coisas só é encontrada
na solução de sua contradição, que está oculta no conflito e não
naquilo que se apresenta, ou na sua negação.
O trabalho é outro ponto que ambos utilizam para
explicar a transformação do real, apesar de ser de ângulos
diferentes. A dialética, para ambos, começa com a diversidade,
com a análise das contradições e segue uma metodologia rigorosa,
para abarcar todas as determinações e chegar à totalidade. Hegel
sustenta a existência de um conceito, ou princípio, como sendo o
máximo que alguém pode atingir; aquela possibilidade oculta que
será alcançada com a solução das contradições. Marx se
assemelha, ao entender que a história efetiva da humanidade
começará quando o capital for superado e o comunismo
instaurado, acabando assim com os conflitos. Por último, podemos
dizer que ambos, de uma forma ou de outra, pretenderam
contribuir concretamente para a transformação do mundo e que a
dialética ajuda o homem a chegar ao conceito, ou a alcançar a
verdade.
20 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.20
41 Educação Revessa
No que diferem
ma primeira diferença fundamental que
encontramos de Hegel para Marx é com relação à
explicação da realidade. A percepção dialética hegeliana acredita
poder explicar toda a realidade, a partir do ser puro. A visão
marxista diz respeito apenas à realidade concreta, ou seja, ao
capital, visto que este influencia todas as relações humanas. Hegel
parte da mente, da categoria mais simples e abstrata, o ser puro.
Marx parte do capital, do concreto, da sociedade e todas as
relações humanas, traz a dialética para o real. Quanto à análise,
em Hegel temos a ontológica, em que considera o ser de uma
forma geral; e Marx leva em conta apenas as condições que
levaram a sociedade ao atual estado. O movimento histórico, em
Hegel, é percebido como um todo; e em Marx a preocupação
histórica é centrada em sua época, especialmente na luta de
classes, com a intenção de mostrar quais acontecimentos levaram
a tal momento. O movimento, pela oposição dos contrários, em
Hegel se localiza na idéia; enquanto “Marx a localiza no seio da
própria coisa, de todas as coisas, e em íntima interação com
elas”21
.
21 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.20
U
42 João Henrique Bordin
Com relação à negatividade, em Hegel é vista como algo
natural, de tudo aquilo compreendido pela contradição da
realidade. No entanto, Marx atribui um aspecto negativo à
contradição da realidade, ao ser imposta pelo capital, e só com sua
superação a humanidade poderá viver sua história verdadeira. Para
Hegel a dialética é um movimento lógico do real apresentado na
tese, antítese e síntese, sendo que neste último estágio acontecerá
a reconciliação, rejeita e aceita partes dos estágios anteriores e
ainda este pode se apresentar como uma nova tese. Por outro lado,
aceitando esse esquema lógico, Marx não pensa em reconciliação,
mas que a negação da negação, último estágio, é a anulação da
totalidade do estado negativo vigente, a eliminação do capital, e
conduzirá a humanidade ao comunismo onde não haverá mais
conflito. Portanto, a dialética não mais se manifestará. Hegel
acredita que o estado é a totalidade dialética que mantém unida
politicamente a sociedade em suas carências individuais. Marx
esclarece que a unidade acontece só juridicamente e que a
sociedade repousa na desigualdade social.
43 Educação Revessa
Método Dialético de Marx
omo foi colocado no início deste trabalho, Marx
parte da premissa do proceder por análise e síntese
e para isso propõe um método de pesquisa e um de exposição. A
pesquisa, que leva à análise, é lançar o olhar por entre as coisas
que me rodeiam, entre elas e as pessoas inseridas no sistema
capitalista, e perceber, pouco a pouco, a quantidade de
contradições existentes. Após essa percepção, faz-se a exposição
de todos os contrários e elabora-se a síntese, que remete
novamente a uma nova pesquisa, com um rigor mais apurado.
Para Marx a “pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria,
analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão
íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor
adequadamente o movimento real”22
. A síntese é a exposição da
pesquisa de forma detalhada e refletindo a totalidade
22 - Marx, Karl - O Capital. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe e Apresentação de
Jacob Gorender; Volume 1, Tomo I. São Paulo: Nova Cultura, 1996. P.140
C
44 João Henrique Bordin
Essa análise nos faz ver além do estabelecido e
programado mundo contemporâneo, não com a intenção de negar
e propor um novo sistema, mas sim desencadear a sua superação.
O método dialético de Marx “assume toda a realidade
contraditória e até vê no desenvolvimento das contradições, no
emergir do lado negativo, antagônico, a única via histórica de
solução”23
. A concepção de Marx é anti-ideológica, ele não aceita
retornar a uma solução ideal de equilíbrio anterior e nem eliminar
a atual sociedade industrial burguesa. A solução é sua superação,
através da exposição de suas contradições materiais.
“A dialética não é um movimento espiritual que se opera no interior do
entendimento humano. Existe uma determinação recíproca entre as ideias da
mente humana e as condições reais de sua existência: o essencial é que a
análise dialética compreenda a maneira pela qual se relacionam, encadeiam e
determinam reciprocamente as condições de existência social e as distintas
modalidades de consciência. Não se trata de conferir autonomia a uma ou
outra dimensão da realidade social. É evidente que as modalidades de
consciência fazem parte das condições de existência social” (Gadotti, Moacir:
Concepção Dialética da Educação, p.21).
A exposição dialética materialista é aplicada em toda
trajetória marxista, em especial na obra “O Capital”, quando essa
metodologia já está claramente dominada. A derivação dialética
opera com as contradições imanentes dos fenômenos, não suprime
a derivação dialética própria da lógica formal, baseada justamente
23 - Manacorda, Mário Alighiero – Marx e a Pedagogia Moderna – São Paulo: Cortez,
1991. P.114
45 Educação Revessa
no princípio da não contradição. Marx não descansava enquanto
não se esgotassem todas as fontes informativas de que tinha
conhecimento. O fim último da investigação consiste em se
apropriar em detalhes da matéria investigada, analisar suas
diversas formas de desenvolvimento e descobrir suas verdades
internas. Neste caso a matéria investigada é o sistema educacional,
inserido no sistema capitalista. Somente depois seria possível a
sua reprodução real na prática no mundo do capital. Esta é a
construção “a priori” que Marx utiliza para analisar a estrutura
social do Capitalismo burguês. Seu método configura o “todo
artístico” ou a “totalidade orgânica”, o que pressupõe a aplicação
da lógica hegeliana.
A exposição não se orienta pela sucessão histórica, mas
por categorias abstratas e determinações preconcebidas. A
exposição historiográfica configura uma contraprova para tornar a
investigação inserida no real. Portanto, entre a lógica hegeliana e
o resumo histórico, que explica o acúmulo originário do capital,
há um entrelaçamento, cruzamento e circularidade que dão à
pesquisa maior clareza em sua exposição24
, pois o lógico é o fio
orientador da exposição e o histórico oferece a contraprova.
24 - Marx, Karl - O Capital. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe e Apresentação de
Jacob Gorender; Volume 1, Tomo I. São Paulo: Nova Cultura, 1996. P.24 e 25
46 João Henrique Bordin
Tal rigor, na exposição de Marx, se deve ao fato de sua
obra ter a finalidade de descobrir o desenvolvimento das leis
econômicas da sociedade burguesa, seu nascimento,
desenvolvimento e provável fim do modo de produção capitalista.
Para Marx só importava descobrir a lei dos fenômenos. Provar,
mediante escrupulosa pesquisa científica, a necessidade de
determinados ordenamentos das relações sociais e apontar, de
modo irrepreensível, os fatos que lhe servem de ponto de partida e
de apoio. O movimento social é um processo histórico-natural
dirigido por leis que determinam a vontade, a consciência e as
intenções dos indivíduos. A crítica limita-se a confrontar um fato
com o outro. A pesquisa, portanto, tem de captar detalhadamente a
matéria, avaliar as suas várias formas de evolução e rastrear sua
conexão intima25
. Só depois podemos expor adequadamente o
movimento real.
Marx atribui a dialética um “status” filosófico (o
materialismo dialético) e científico (o materialismo histórico)”26
,
substituindo assim o idealismo de Hegel, fechado no mundo das
ideias, por um realismo materialista, coloca-a na matéria. Marx,
no contexto materialista, considerava a matéria como a única
realidade e negava a existência da alma, de outra vida e de Deus.
25 - Marx, Karl - O Capital. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe e Apresentação de
Jacob Gorender; Volume 1, Tomo I. São Paulo: Nova Cultura, 1996. P.138 a 140 26 - Idem. P.19
47 Educação Revessa
A filosofia que apresentou era revolucionária ao demonstrar as
contradições internas da sociedade de classes e a exigência de sua
superação. “A dialética de Marx não é apenas um método para se
chegar à verdade, é uma concepção do homem, da sociedade e da
relação homem – mundo”27
. Essa concepção desfaz a ideia de que
só o pensamento, em suas abstrações, elabora o conhecimento.
Marx busca integrar o real ao pensamento, pois o conhecimento
não é mais do que a matéria, o real, transposto para a mente do
homem.
O modo de produção capitalista
“é o próprio homem que figura como ser
produzindo-se a si mesmo, pela sua
própria atividade, pelo modo de
produção da vida material. A condição
para que o homem se torne homem
(porque ele não é, ele se torna) é o trabalho, a construção da sua
história. A mediação entre ele e o mundo é a atividade material”28
.
Pela existência da matéria o homem nasce, cresce, se desenvolve e
morre, como qualquer outro ser vivo, mas é através do trabalhar a
matéria que se torna homem e constrói sua história.
27 - Marx, Karl - O Capital. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe e Apresentação de
Jacob Gorender; Volume 1, Tomo I. São Paulo: Nova Cultura, 1996. P.138 a 140 28 - Idem. P.20
48 João Henrique Bordin
Para Marx as leis do pensamento correspondem às leis da
realidade. A dialética, pensamento e realidade, a um só tempo, na
contradição da sociedade de classes, a partir do capital, estabelece
a existência de uma que detém o poder (burguesia) e de outra que
obedece (proletariado). A Revolução Industrial causou profundas
transformações em todos os níveis sociais e Marx vê esse
momento e assume uma “postura consciente da historicidade das
relações sociais e do seu reflexo na ideologia, é prontidão para
captar, no dado histórico, a tendência do movimento”29
. Mas não
se lamenta, não assume uma aceitação a-histórica e nem formula
uma realidade utópica, mas se empenha em elaborar um método
dialético para superar a situação de negação da subjetividade
humana no objeto produzido.
A matéria e seus conteúdos é que dita a dialética do
marxismo como momento contraditório de um movimento
histórico. Para Marx a dialética é ciência que mostra como as
contradições podem ser concretamente idênticas e passam uma
pela outra. Por isso, a razão deve considerá-las, não como mortas
ou imóveis, mas vivas, móveis e lutando uma contra a outra. Para
entender e superar as contradições Engels segue alguns princípios
da dialética, muito criticados pelos críticos marxistas, mas hoje
aceitos como ponto de partida para este estudo.
29 - Manacorda, Mário Alighiero – Marx e a Pedagogia Moderna – São Paulo: Cortez,
1991. P.123
49 Educação Revessa
O primeiro princípio “da totalidade”, “lei da ação
recíproca e da conexão universal”, diz que tudo se relaciona. O
segundo princípio “do movimento”, “lei da transformação
universal e do desenvolvimento incessante”, diz que tudo se
transforma. O terceiro princípio “da mudança qualitativa”, “lei da
conversão da quantidade em qualidade e vice-versa”, diz que com
o acúmulo de elementos quantitativos produz-se o
qualitativamente novo. E princípio da contradição “dos
contrários”, “lei fundamental da dialética”, diz que os contrários
coexistem na realidade e um não pode existir sem o outro30
.
Portanto, a relação intrínseca das coisas, na totalidade,
desencadeia sua transformação contínua e no processo a
quantidade, em seu cruzamento e desdobramento, adquire novas
qualidades.
O método que Marx utiliza em suas pesquisas tem um
fundo atomista, quando expõe as coisas, o sistema, e vê qual a
relação, o que é a favor e o que é contra, etc., em todas as suas
partes. “Método” para Marx é, simultaneamente, a exposição da
totalidade do sistema em partes para através destas fazer a crítica.
Na obra “Para a Crítica da Economia Política”, procura analisar o
processo produtivo, dentro do sistema capitalista, em seu esquema
30 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.24 a 26
50 João Henrique Bordin
e produção, distribuição, troca e consumo. A lógica da Economia
Política estabelece que na produção o homem, em seu estágio
primário, trabalha a natureza para retirar-lhe a sua subsistência. A
distribuição, de acordo com o modelo de produção, de
determinada sociedade, é dar a cada um o que lhe cabe, segundo a
posição social que ocupa. Da troca vem a satisfação das
necessidades individuais. O homem troca o que produziu, e lhe
coube na distribuição, pelas mercadorias que mais lhe satisfaz os
desejos. O consumo é o desfrutar do que se conseguiu no processo
de produção, distribuição e troca. O consumo, por sua vez, vai
determinar a nova produção e a isso Marx se opõe, pois pode
conduzir à supervalorização de determinada mercadoria, a qual
todos vão querer produzir, ocasionando escassez e desinteresse
para com os demais produtos.
Essa breve compreensão da Lógica da Economia Política
é necessária para poder entender a relação estabelecida entre o
sistema de produção capitalista, o trabalhador assalariado e o
produto do seu trabalho. Relação que gera uma mercadoria de
troca com valor sobre todas as demais mercadorias, o dinheiro, a
“forma equivalente geral é uma forma do valor em si”31
. É com
esta mercadoria, o dinheiro, e por ela, que todo o trabalhador se
submete ao sistema, vendendo sua mão de obra, para poder
31 - Marx, Karl - O Capital. Trad. de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe e Apresentação de
Jacob Gorender; Volume 1, Tomo I. São Paulo: Nova Cultura, 1996. P.195
51 Educação Revessa
recebê-lo em troca. Com a mercadoria “dinheiro” o indivíduo
pode trocar (comprar) por outra que lhe convier, inclusive uma
boa educação. O método de Marx utiliza a dialética da contradição
das classes sociais a partir do capital, seu contraditório. O capital é
a tese, a situação, o proletariado sua antítese, sua negação e, na
síntese, negação da negação, o contraditório, o capital, é superado
e a sociedade vive uma nova ordem social.
Para melhor entender a Educação Dialética convém
esclarecer a diferença da concepção da educação metafísica e
dialética. Na concepção metafísica a educação se insere na
realidade daquilo que deve ser o indivíduo em sua essência e
concebe o “homem como um caso individual”32
. O homem realiza
a educação como um bem particular, através de seus esforços a
adquire como uma conquista pessoal. A concepção dialética da
educação opõe-se fundamentalmente à concepção metafísica.
Na concepção dialética da educação “a formação do
homem se dá pela elevação da consciência coletiva realizada
concretamente no processo de trabalho (interação) que cria o
próprio homem. A educação é o que se pode fazer do homem de
amanhã”33
. É dentro dessa concepção dialética que a pedagogia
deve elaborar seu método, a fim de, superando todas as
32 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.148 33 - Idem. P.149
52 João Henrique Bordin
contradições, elevar a educação de um aspecto abstrato e irreal
para uma realidade concreta, real e verdadeira.
Esta nova educação, revolucionária, cria o homem de
amanhã, com a realização da consciência coletiva e uma interação
igualitária nas condições de trabalho e nas relações sociais. Marx,
ao se mostrar preocupado com a situação do trabalhador, sem
instrução no manejo dos instrumentos de trabalho, sugere um
ensino ao trabalhador. Afinal “trata-se de um trabalho produtivo,
prático de manejo dos instrumentos essenciais de todos os ofícios,
associado à teoria com o estudo dos princípios fundamentais das
ciências”34
. O trabalhador, assim, teria condições de produzir mais
e melhor e teria a possibilidade da formação de sua consciência.
A contradição, própria da dialética, sempre esteve
presente, mesmo que escondida, nos discursos filosóficos. A
matéria (mundo real, concepção dialética) e o espírito (mundo das
ideias, concepção metafísica) constituíram-se como contrários,
opostos, em que o espírito seria a fonte da verdade e a matéria a
sua anulação. “Enquanto Hegel localiza o movimento
contraditório na lógica, Marx a localiza no seio da própria coisa,
de todas as coisas, e em íntima integração com elas”35
. Não é uma
34 - Manacorda, Mário Alighiero – Marx e a Pedagogia Moderna – São Paulo: Cortez,
1991. P.125 35 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.20
53 Educação Revessa
negação do espírito, o mundo das ideias, e afirmação ou elevação
da matéria como única que contém a verdade. É uma adequação
do pensamento e da matéria para a apreensão do conhecimento.
Trazer a Lógica para a coisa, a matéria, o mundo real, é
superar as suas contradições e colocá-las no mesmo mundo, em
que, pela sua íntima integração, se superam superando todos os
contraditórios de todas as coisas e, consequentemente, as
contradições do espírito em si e deste com o da matéria. O que
Marx mais criticava era a questão de como compreender o que é o
homem. Não é pela razão, nem por ser um animal político que o
homem expressa sua singularidade, mas por ser capaz de produzir
suas condições de existência, tanto material quanto ideal. Como o
homem é historicamente determinado pelas condições, se torna
responsável por todos os seus atos, pois ele é livre para escolher.
Por outro lado, o homem não é
só um ser material, portador do dom
espiritual, ele é, também, essencialmente
um ser social. A Educação Dialética é
social, científica... “voltada para a
construção do homem coletivo, voltada, portanto, para o futuro”36
.
Sendo dialética, a educação afronta a questão da própria formação
36 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.149
54 João Henrique Bordin
do homem como tarefa social, com suas condições reais e
múltiplas determinações. Na confrontação, com o único fim de
superar os contrários e aperfeiçoar o social, estabelece a questão
central da educação que é “o homem enquanto ser político, a
libertação histórica, concreta, do homem contemporâneo”37
. Ser
político significa estar engajado no social, estar sendo o sujeito de
sua libertação histórica e das manobras do sistema vigente,
tornando-se, assim, indivíduo consciente de sua concretude e que
pode fazer a diferença em seu meio social.
Uma das conclusões da obra de Marx, com relação ao
sistema de trabalho, se encontra quando ele fala “de modificar o
mundo, isto é, de uma atividade na qual a sociedade humana está
fortemente empenhada e que representa de certa maneira todo o
processo da sua história: apropriar-se da natureza de modo
universal, consciente e voluntário, modificá-la e, ao modificar a
natureza e seu próprio comportamento em relação a ela, modificar
a si próprio como homem.”38
Trazendo isso para a educação, o
apropriar-se se apresenta como um ver o sistema com olhos
atentos e detectar, dialeticamente, os seus contraditórios na
tentativa de superá-los, superando-se, numa modificação do
homem e seu comportamento e do sistema social universal.
37 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.149 38 - Manacorda, Mário Alighiero – Marx e a Pedagogia Moderna – São Paulo: Cortez,
1991. P.126
55 Educação Revessa
Dialética e Educação
“Educação Dialética” deve, em sua análise,
levar em conta toda a realidade, com sua
diversidade nas relações e condições sociais, em especial o modo
como se constitui a consciência do homem, cidadão do mundo.
Portanto, “o essencial é que a análise dialética compreenda a
maneira pela qual se relacionam, encadeiam e determinam
reciprocamente as condições de existência social e as distintas
modalidades de consciência”39
. É certo que as condições de
existência social determinam as modalidades de consciências. Um
indivíduo, por exemplo, que vive em uma cidade onde o respeito
pelo outro, o público, o que é privado, pelos idosos, mulheres,
crianças, etc., é considerado um dever supremo, onde todos têm as
mesmas condições de trabalho, estudo, lazer e atendimento à
saúde, tem um nível ou modalidade de consciência diferente
daquele que vive em uma cidade abandonada social e moralmente.
39 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.21
A
56 João Henrique Bordin
Para Marx “o materialismo dialético não considera a
matéria e o pensamento como princípios isolados, sem ligações,
mas com aspectos de uma mesma natureza, que é indivisível e que
se exprime sob duas formas diferentes: uma material e outra ideal;
a vida social, una e indivisível, também se exprime sob duas
formas diferentes: uma material e outra ideal; eis como devemos
considerar o desenvolvimento da natureza e da vida social. O
materialismo dialético considera a forma das ideias tão concreta
quanto à forma da natureza”40
.
A “Educação Dialética” se vale dessa concepção e, como
o marxismo, “não separa em nenhum momento a teoria
(conhecimento) da prática (ação), e afirma que a teoria não é um
dogma, mas um guia para a ação. A prática é o critério de verdade
da teoria, pois o conhecimento parte da prática e a ela volta
dialeticamente”41
. Essa modalidade oferece um toque especial à
Educação e lhe oferece o movimento. O movimento adquirido
através da prática é experimentado e elaborado como
conhecimento prático, consequentemente, a prática é
aperfeiçoada.
A Educação, utilizando o “método dialético”, faz a
análise do sistema capitalista como uma “realidade objetiva,
40 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.22 41 - Idem. P.23
57 Educação Revessa
analisa, metodicamente, os aspectos e os elementos contraditórios
dessa realidade (considerando, portanto, todas as noções
antagônicas então em curso, mas cujo teor ninguém ainda sabia
discernir)”42
. Depois de feita a distinção dos aspectos ou dos
elementos contraditórios, sem negligenciar as suas ligações, sem
esquecer que se trata de uma realidade, a Educação vai
reencontrar o sistema capitalista na sua unidade, isto é, no
conjunto do seu movimento. Essa nova visão, mais rica em
detalhes e conhecimentos, oferece, agora, a possibilidade de
aplicar, com mais rigor, o “método de pesquisa” e com mais
veracidade o “método de exposição”.
O método de pesquisa é esta
volta à realidade para a apropriação,
em pormenores, de todos os
elementos contraditórios da realidade.
É a “análise que colocará em evidência as relações internas, cada
elemento em si”43
. O método de exposição é a reconstituição desta
realidade em forma de síntese de todos seus fenômenos.
A realidade “revela-se gradativamente segundo as
peculiaridades próprias”44
. O atual sistema educacional da era
42 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.31 43 - Ibidem.
58 João Henrique Bordin
tecnológica “tende a reunificar a ciência e o trabalho: apoiada na
cibernética e na automação, exige cada vez menos operários e
cada vez mais técnicos e pesquisadores de alto nível; exige, ao
mesmo tempo, conhecimentos específicos para cada uma das
estruturas – disciplinas, aparelhamento – e capacidade de integrar
mais estruturas ou de dominar as relações que as une”45
. Como
fica o ensino técnico para todos, se cada vez menos se precisa
deles? Ao se oferecer conhecimentos específicos apenas, não se
está esquecendo aqueles da formação própria do ser humano?
Essas e outras são as questões para as quais a educação precisa
encontrar respostas.
Essa maneira de analisar a realidade que Marx nos
oferece e que, pela “Educação Dialética”, aplica em todo seu
sistema, não pode ficar na fase de pesquisa e exposição. Para ser
verdadeiramente dialética a educação deve fomentar o surgimento
do novo. O método dialético foi utilizado por Marx para fazer a
análise e fornecer ao proletariado uma arma revolucionária contra
a burguesia. “O verdadeiro revolucionário é aquele que, como
dialético, cria as condições favoráveis ao advento do novo”46
. Por
44 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.31 45 - Manacorda, Mário Alighiero – Marx e a Pedagogia Moderna – São Paulo: Cortez,
1991. P.129 46 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.33
59 Educação Revessa
isso, não podemos compreender o método dialético fora do
pensamento marxista.
Não queremos dizer com isto que devemos ser marxistas,
mas sim, como homens esclarecidos, assumir, através da prática
dialética na educação, a posição de filosofia da práxis. Que cada
educador realize “constantemente o reexame da teoria e a crítica
da prática”47
, em si mesmo e no educando. A educação que cada
educador recebeu e transmite ao educando deve ser “aberta,
inacabada, superando-se constantemente”48
. A superação da
educação acontece na contínua reciprocidade com a sua
realização.
A concepção da educação dialética parte do princípio da
igualdade de condições que as crianças normais têm em sua mente
de aprender todas as formas de conhecimento. A “Educação
Dialética”, acreditando que “o desenvolvimento humano se dá
pela interação de determinantes internos e externos, negando a
existência de uma natureza a priori da criança, que não seja a
genérica natureza humana, suscetível de todos os
desenvolvimentos”49
, faz a análise dessa estrutura, tanto dos
47 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.37 48 - Idem. P.38 49 - Idem. P.150
60 João Henrique Bordin
determinantes internos quanto externos, não para eliminá-los, mas
para compreender e estar consciente de seu funcionamento.
Com o método de pesquisa a educação se apropria de
toda a realidade, sem deixar de considerar “os elementos internos,
as contradições no interior do indivíduo e da própria instituição
educacional”50
. Desse modo pode, com o método de exposição,
revelar desde os anseios, indagações e conflitos do indivíduo, até
as mais profundas falhas do sistema educacional. Com essa
exposição volta à realidade do indivíduo e do sistema, com um
amplo arsenal educativo, capaz de restabelecer a educação como
meio de levar o homem a se tornar o sujeito da ação
transformadora.
A “Educação Dialética” está inserida num meio social
dividido em um lado conservador que, a qualquer custo, pretende
manter a ordem estabelecida, e uma emergente potência de uma
classe que encontra na escola a possibilidade de um instrumento
de luta para poder vencer os obstáculos impostos.
Para Marx “o esforço pedagógico em direção à
constituição de uma educação do trabalho e dos trabalhadores é
parte do processo complexo de questionamento e luta contra a
50 - Gadotti, Moacir – Concepção Dialética da Educação – um estudo introdutório. 2ª Ed.
São Paulo: Cortez, 1983. P.150
61 Educação Revessa
organização imposta pela burguesia à sociedade”51
. Com relação à
imposição, atualmente nos referimos ao Capitalismo, que não
mudou em nada, ou melhor, o lado dominante aperfeiçoou a
forma de impor suas normas. O Capitalismo continua com o
objetivo de treinar as crianças, da classe trabalhadora, para o
serviço manual e para que no futuro possam exercer seu lugar
aonde o sistema necessitar.
Nesse processo a “escola participa da reprodução das
forças de trabalho; ela é posta a serviço dos interesses do
capital”52
. A educação, nas últimas décadas, avançou muito, mas
ainda não conseguiu se desvencilhar das amarras dos interesses do
sistema e obter sua liberdade e independência. Sabemos que para
isso precisaria abrir mão dos recursos do Estado, o que seria um
caos, já que esse só financia porque ajuda a manter sua ideologia.
Mas, mesmo dentro do sistema, através da dialética, a educação
aos poucos pode levar o indivíduo a se libertar das amarras do
sistema e, quando a direção do Estado tiver influência nessa
educação, o sistema do capital poderá iniciar a superação.
A educação para ser verdadeiramente dialética precisa
adequar pedagogia, educando e educador na realidade social atual,
tendo em mente a formação do homem novo. O método de Marx,
51 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.16 52 - Ibidem
62 João Henrique Bordin
aplicado hoje, é descobrir “a contradição entre o elevado nível
tecnológico exigido ao moderno produtor, bem como na condição
social e, assim, detectar as exigências da formação técnica,
cultural e social a serem satisfeitas”53
.
Com a “Educação Dialética” é possível fazer essa análise
no sistema educacional, detectando a existência de um alto nível
de ensino para uns e para a maioria, que são as escolas primárias,
com um ensino precário. Através de tal constatação a educação
analisa as contradições e encaminha sua superação. Por
conseguinte estabelece qual formação técnica deve ser aplicada
em determinada região e qual educação precisa ser universal,
igual em todas as sociedades, lembrando que a contradição é o
princípio fundamental da dialética.
A aplicação prática da dialética na educação pode, nos
parece, seguir o caminho traçado por Marx na obra “Para Uma
Crítica da Economia Política”, no capítulo terceiro “O Método da
Economia Política” e transcrevê-lo para a Educação. Para isso
precisamos estabelecer claramente a divisão dos nossos estudos de
maneira a não deixar nada no esquecimento. Como a Educação
não é algo abstrato, fora da realidade, ou separado dela, nossa
análise deve situá-la na sociedade contemporânea. Com isso a
53 - Manacorda, Mário Alighiero – Marx e a Pedagogia Moderna – São Paulo: Cortez,
1991. P.129
63 Educação Revessa
pesquisa inclui as contradições da Educação e todos os seus
esquemas internos e externos, e as contradições do Sistema
Capitalista com sua complexa superestrutura e variações de
sociedade em sociedade.
O primeiro passo é determinar as abstrações gerais mais
ou menos válidas, tanto para a Educação como para o
Capitalismo, e detectar a principal contradição, ou seja, a
existência de ricos e de pobres. Um segundo passo é analisar as
categorias que constituem a estrutura, interna e externa, do
sistema educacional e do sistema capitalista sobre as quais
repousam todos os seus membros. Nesta etapa da pesquisa faz-se
o levantamento das contradições, desde a precariedade das
escolas, das moradias e da infraestrutura social, contrapondo ao
desleixo do sistema capitalista, até a formação do método
pedagógico ditado por esse sistema, em si mesmo contraditório, e
passando pelos salários, condições de atuação do professor e
aprendizagem do aluno, etc. A terceira etapa é uma síntese da
relação do sistema educacional e do Capitalismo, sob forma de
Estado, considerada a relação entre os dois. A aplicação dos
impostos, ou não, a capacidade do educando, a qualidade dos
alunos, o abandono escolar, etc. Numa quarta etapa, a Educação e
o Capitalismo são comparados a nível internacional, já que
estamos num mundo globalizado, verificando os intercâmbios.
64 João Henrique Bordin
Para finalizar, juntamente com o mercado mundial, a pesquisa
analisa a Educação e o Capitalismo em suas crises mundiais.
Toda esta pesquisa e explanação da contraditoriedade
social e educacional precisam acompanhar todo o processo de
aprendizagem do indivíduo, pois, assim, o acúmulo quantitativo
de conhecimentos, acompanhado dialeticamente do
amadurecimento qualitativo, levará à formação do homem
consciente, sujeito de sua história e em busca do novo.
65 Educação Revessa
Um Pouco de História
educação por si só já é dialética, pois se situa no
limiar da diversidade social, cultural e ideológica,
de um determinado grupo, em determinado lugar. A educação
ajuda a sustentar uma sociedade, a explicar sua cultura e a
defender a ideologia dominante. Por outro lado, pode a educação
questionar as culturas, pôr em conflitos os modos de vida social e
desestruturar as ideologias. Portanto, cabe-nos perguntar: que tipo
de educação queremos? E mais profundamente: o que entendemos
por educação? O que é educação? Queremos a educação que
mantém as coisas como estão; que não gosta de mudanças e tem
medo do novo; ou a que tudo questiona e tem a visão do novo
como possibilidade de ser realizado? Por educação entendemos
apenas a forma de transmitir conhecimento, ou a maneira do
homem se portar como presença no meio social? Educação é a
forma com que alguns modelam o comportamento e o agir da
A
66 João Henrique Bordin
maioria a seu gosto, ou é o modo como o homem assume sua
postura de ser cidadão no mundo.
Já expusemos e ficou clara a questão da dialética. Em
Hegel vimos como funciona a dialética idealista e em Marx como
é aplicada para explicar o funcionamento do capital. Ambas
sustentam que a dialética atua com as contradições, seja ela para
explicar a totalidade do ser, como fez Hegel, ou para discernir o
funcionamento social, econômico e político da atualidade. Assim,
o enfoque da dialética na educação é a contradição, tanto a nível
estrutural como na sua aplicabilidade social.
Na educação, entendida como o caminho mais seguro
para superar as desigualdades sociais, precisamos, em primeiro
lugar, descobrir qual a contradição que está na sua estrutura e que
mantém estreito o horizonte da mente humana. Após esta
descoberta, a análise se estende às contradições em todo o sistema
educacional, desde os conhecimentos repassados, passando pela
autoridade do professor na sala de aula, pelas perspectivas dos
alunos, até os objetivos da educação.
Para a proposição da “Educação Dialética” faz-se
necessário analisar a história da humanidade e perceber como a
educação mudou no decorrer do tempo e a que ou a quem serviu.
Não vamos aqui fazer uma descrição pormenorizada das
67 Educação Revessa
civilizações, mas brevemente traçar um perfil histórico do homem
nas sociedades em sua ação de transmitir ou modificar culturas e
perceber como foram surgindo as grandes contradições.
Comunidades tribais
omeçamos bem lá no princípio com as
comunidades tribais. Elas surgiram como
aglomerações de famílias com o objetivo primeiro de garantir sua
sobrevivência.
Nessa ocasião, as
crianças aprendiam
imitando os gestos
dos adultos, nas
atividades diárias e
nos rituais místicos.
“Nas comunidades
primitivas, as mulheres estavam em pé de igualdade com os
homens e o mesmo acontecia com as crianças... A sua educação
não estava confiada a ninguém em especial, e sim à vigilância
difusa do ambiente”54
. É a influência natural que vai moldando o
54 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.18
C
68 João Henrique Bordin
indivíduo e sua maneira de pensar conforme as necessidades
particulares do grupo. As atividades eram executadas em
conjunto, ninguém podia ficar de fora sem se abster da repartição
dos víveres. “A execução de determinada tarefa, em que um
membro da comunidade não podia realizar, deu lugar a um
precoce começo de divisão do trabalho de acordo com as
diferenças existentes entre sexo”55
. Aparecem, assim, as primeiras
desigualdades tribais sem que, com isso, houvesse submetimento
por parte da mulher.
Com o passar do tempo, em que “o dever ser, no qual
está a raiz do fato educativo, lhes era sugerido pelo meio social
desde o momento do nascimento”56
, foram acontecendo mudanças
e começaram a aparecer diferenças entre os membros da
comunidade tribal. “Qualquer desigualdade de inteligência, de
habilidade ou de caráter, poderia servir de base para uma
diferença que, com o tempo, poderia engendrar um
submetimento”57
. Assim com o crescimento da comunidade, surge
a necessidade de um líder e “a direção do trabalho se separa do
55 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.18 56 - Idem. P.20 e 21 57 - Idem. P.24
69 Educação Revessa
próprio trabalho, ao mesmo tempo em que as forças materiais se
separam das físicas”58
.
Na sociedade em formação, a educação se sistematiza, se
organiza, se torna violenta e surge no momento em que perde seu
primitivo caráter homogêneo e integral. O rito tribal de oferendas
aos deuses e de uma relação natural, aos poucos, é substituído por
uma crença em deuses dominadores e crentes submissos.
Começam as diferenças entre os membros privilegiados e o povo.
Com uma educação imposta, os nobres se encarregam de difundir
e reforçar seus privilégios.
Com o surgimento das primeiras cidades e consequente
divisão entre cidade e campo, houve a necessidade de uma
educação mais elaborada. O primeiro registro histórico nos vem
da península itálica. “Os jovens eram forçados a viver no campo
com os pastores, dividindo com eles seu árduo labor e, através
desse método, desenvolviam as habilidades que eram
fundamentais para as atividades básicas de sua vida: a agricultura,
a caça, a pesca e o pastoreio”59
. Assim, o homem ia se
fortificando, aumentando a produção e as cidades iam crescendo.
A autoridade paterna subjugava a mulher e os filhos e os sábios se
58 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P. 24 59 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.13
70 João Henrique Bordin
separavam cada vez mais dos trabalhadores, justificados por uma
religião e educação secreta. Mas faltava “uma instituição que não
só defendesse a nova forma primitiva de adquirir riquezas, em
oposição às tradicionais comunidades da tribo, como também que
legitimasse e perpetuasse a nascente divisão em classes e o direito
de a classe proprietária explorar e dominar os que nada possuíam.
E essa instituição surgiu: O Estado”60
, que aparece para amenizar
as emergentes contradições nas desigualdades sociais, ou seja, uns
que detêm o poder e a riqueza e a maioria que obedece e vive na
miséria.
Com o surgimento do Estado vieram suas leis e preceitos
como sendo de inspiração divina. A religião foi o meio adequado
e necessário para apaziguar os ânimos do povo que por ventura se
exaltasse. Para assegurar lealdade dos súditos, a educação imposta
pelas classes proprietárias devia “cumprir três finalidades
essenciais: 1ª- destruir os vestígios de qualquer tradição inimiga;
2ª- consolidar e ampliar a sua própria situação de classe
dominante; 3ª- prevenir uma possível rebelião das classes
dominadas”61
. Assim germina e se consolida o comando de uma
classe em detrimento das demais e vai passando de sociedade em
sociedade até culminar na atualidade da dominação capitalista.
60 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.32 61 - Idem. P.36
71 Educação Revessa
Grécia
sociedade grega se destaca das demais, entre
outras coisas, pelas artes e pela filosofia. A Grécia
pode ser considerada o berço da pedagogia, a “Paidéia” –
paidagogo – aquele que conduz a criança. No entanto a classe
dominante, classe da
beleza, do poder e do
saber, precisava manter
este status e para isso
criou seus exércitos
com o próprio povo.
Transformou assim a
“sua organização social
num acampamento militar e fez com que a sua educação
estimulasse as virtudes guerreiras”62
. Através da disciplina, pela
prática da ginástica austeramente controlada, mantinha
superioridade militar sobre a classe subalterna e as demais cidades
da região. Até os sete anos a criança vivia com os pais, após o
Estado se apoderava dela e até os quarenta e cinco anos pertencia
ao exército. Depois, até os sessenta, era posto na reserva, mas,
como não sabia fazer outra coisa, a ele pertencia à vida toda63
.
62 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.40 63 - Idem. P.41
A
72 João Henrique Bordin
Os filósofos, que também pertenciam à classe dominante,
exerciam grande influência e explicavam porque as coisas
funcionavam daquela maneira. “Platão estabeleceu o princípio da
divisão do trabalho... mostrando que o homem não poderia ser
eficiente no atendimento de suas necessidades se dispensasse seus
esforços em atividades tão diferentes como cozinhar, costurar suas
roupas e trabalhar a terra. Por essa razão, ele deveria concentrar-se
naquelas atividades para as quais mostrasse mais talento, em
benefício da comunidade”64
. O saber estava destinado apenas para
a classe dominante e Platão “reservou o estudo da dialética para
um pequeno número de jovens selecionados que seriam
preparados para serem os futuros
magistrados”65
. Os magistrados teriam a
missão de instruir o “Estado” no saber e
no conhecimento, e conformar a classe
subalterna de sua situação predestinada.
É a filosofia a serviço da ideologia na
justificativa dos contrários.
Aristóteles reforça a ideia da superioridade de alguns,
afirmando que “a escravidão estava na natureza das coisas”66
. O
64- Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.14 65 - Idem. P15 66- Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.59
73 Educação Revessa
homem já nascia com a condição de ser livre, aristocrata, escravo,
camponês, etc. Por isso cada um devia se conformar com sua
situação, pois “as classes industriais são incapazes de virtudes e de
poder político”67
. Ainda afirmava que a visão do divino estava
reservada para muito poucos. Nesta justificativa do
funcionamento do sistema fez sua profecia involuntária. “Quando
os teares funcionarem sozinhos e as cítaras tocarem por si
mesmas, então já não necessitaremos de escravos, nem de patrões
de escravos”68
. Essa é a visão grega do mundo justificada por seus
filósofos, com a garantia de dar sustentabilidade ao poder
dominante.
Roma
sociedade romana, como todas as demais, também
estava baseada na escravidão. “Grandes
proprietários, os patrícios, monopolizavam o poder, a expensas
dos pequenos proprietários, os plebeus, que, apesar de livres,
estavam excluídos dos postos dirigentes”69
. Como os plebeus,
insistentemente, reivindicavam seu posto no poder, os patrícios
67 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.59 68 - Ibidem. 69 - Idem. P.61
A
74 João Henrique Bordin
“lhes deram, no ano 287 AC, a igualdade política”70
. A junção
tornou Roma superior às demais nações e em pouco tempo
conquistou toda a região.
Como na Grécia havia os magistrados para instruir o
povo e formar a classe dominante, em Roma havia o orador. “O
orador, diz Quintiliano, é o verdadeiro político, o homem nascido
para a administração dos assuntos públicos e privados, capaz de
reger um estado com os seus conselhos, de estabelecê-lo mediante
leis e de reformá-lo pela justiça... o homem de bem”71
. O homem
de bem, na concepção romana, é aquele que pela educação
desenvolveu as qualidades necessárias para cuidar dos interesses
da classe dominante contra as ameaças dos motins da população.
A educação no império romano, de maneira geral, passou
por três fases. A latina original, de natureza patriarcal, onde os
ensinamentos e a tradição era passada no berço da família. Depois
veio a influência do helenismo, que, com a dominação de Roma à
Grécia, se espalhou por toda a região e era muito criticada pelos
defensores da tradição. Por fim, a cultura helênica e a romana se
fundem e os valores gregos ficam nitidamente na supremacia.
Com a fusão, desde o século IV AC, a educação sofrera uma
reforma por ser insuficiente o estilo ministrado aos nobres até
70 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.61 71 - Idem. P.63
75 Educação Revessa
então. Nessa época surgiram “os ludimagister, para a educação
primária, os gramáticos, para a média, e os retores, para a
superior”72
. A educação primária era destinada as grandes massas,
com o intuito de apaziguar seus espíritos. Eram escolas
rudimentares, com uns bancos e uma cadeira para o mestre,
poucos recursos, esferas e alguns mapas e cubos. A situação dos
gramáticos e retores, que
eram dirigidas aos nobres,
estavam subsidiadas de
todas as formas de
aprendizagem e muitos
recursos73
. Aqui nota-se o
surgimento da contradição da educação institucional, com um tipo
de ensino para os nobres e outro para os plebeus.
A religião não podia ficar de fora do sistema de educação
romana. Usando a forma universal, é a vontade dos deuses, o
corpo de professores, como um regimento que defende os
interesses do Estado, e caminha com ele aos mesmos passos, usa
esse método para legitimar o poder dominante. A escravidão e a
submissão do povo são tão bem aceitas, no meio, que a única
esperança que lhe resta é a boa vida após a morte. “Em uma
72 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.67 73 - Idem. P.67 a 80
76 João Henrique Bordin
comédia de Plutarco, chamada Os Cativos... um escravo
encarregado de vigiar os outros escravos dirige as seguintes
palavras:... Desde que esta é a vontade dos deuses... um amo
jamais se equivoca, até o mal que nos faz deve ser olhado como
um bem”74
. Um escravo cuidando do outro escravo, parece
comédia, mas era o cúmulo do domínio de um estado e uma
religião que encasulava a mente do homem e o fazia acreditar que
os deuses lhe traçaram essa vida.
O Feudalismo
pós essa fase greco-romana, a educação entra
numa fase mórbida na história da humanidade.
Com uma superestrutura religiosa, o Feudalismo se perpetua
durante séculos. Só por volta de 1450 alguns corajosos se
aventuram a contradizer esse sistema e, em muitos casos,
acabaram nas mãos da inquisição. Na “Idade Média, o Feudalismo
conhecia três variedades sociais: os bellatores, ou guerreiros, os
oradores, ou religiosos, e os laboratores, ou trabalhadores”75
. Cada
uma dessas classes sociais deveria agir sensatamente dentro de sua
74 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.80 e 81 75 - Idem. P.86
A
77 Educação Revessa
situação e pela piedade divina um trabalhador, por exemplo,
poderia passar para outra, se assim Deus o quisesse.
A superestrutura religiosa feudal, como todas as
anteriores, só que com
mais veemência, domina o
espírito humano. “O
Cristianismo canaliza para
um mundo extraterreno as
suas inquietações e as
suas esperanças. Enquanto
o escravo e o servo sofriam sob os seus senhores, o Cristianismo
proclamava que eles eram iguais diante de Deus. Descoberta
maravilhosa que respeitava o status quo terreno, enquanto não
chegava o momento de alterá-lo, mas no céu”76
. A ganância da
Igreja era tanta que, para evitar que sua riqueza acumulada
passasse a herdeiros particulares - filhos dos padres e bispos que
casavam e formavam nova família, longe da igreja - impôs o
celibato a todo o clero.
As escolas, no sistema feudal, estavam centradas nos
monastérios e divididas em duas categorias. Uma para instruir os
religiosos e se baseava no estudo da Bíblia, em algumas obras
76 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.87
78 João Henrique Bordin
literárias e na aprendizagem da língua oficial da Igreja, o latim. A
outra era dirigida a manobrar a população. A “finalidade dessa
escola não era instruir a plebe, mas familiarizar as massas
campesinas com as doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo, mantê-
las dóceis e conformadas”77
. Com a instituição do celibato
surgiram as escolas externas, isto é, situadas fora dos muros dos
conventos, mas com domínio destes, e se destinavam ao clérigo
secular e a alguns nobres que queriam estudar sem pretender usar
o hábito. Com esse esquema educacional, semelhante ao das
escolas romanas, o Estado, aliado à Igreja, pretendeu justificar o
ter e o poder de alguns em detrimento da grande maioria.
O conhecimento saindo dos Conventos passa a fomentar
novas maneiras de se ver o mundo. Por exemplo, podemos citar
Rebelais (1495-1553) que “introduz em sua proposta pedagógica a
importância do conhecimento das coisas e da natureza através da
observação direta”78
. De outro lado temos Montaigne (1533-
1592), dizendo que “na aprendizagem (em grande parte baseada
no interesse em conhecer a natureza e incluindo a prática de
exercícios físicos), era necessário não sobrecarregar a criança com
excesso de informações. Ele preferia uma cabeça bem feita a uma
77 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.91 78- Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.24
79 Educação Revessa
cabeça muito cheia”79
. Também temos o revolucionário padre
Tomaso Campanella (1568-1639), com sua obra Cittá Del Solle
(Cidade do Sol). A sua forma pedagógica parte do princípio da
defesa da “emulação, a competição e a rivalidade entre grupos e
indivíduos como um elemento de motivação na prática
educacional... Defende a coeducação e rejeita a discriminação
entre os seres, atribuindo alto valor à educação científica, numa
era de domínio do obscurantismo clerical”80
. Com essas ideias o
padre Campanella sofre duras perseguições da inquisição. Na
mesma linha revolucionária aparece Thomas Morus, com a obra
“A Utopia”, e Francis Bacon, com a obra “Nova Atlântida”.
Já há alguns séculos existiam as
Escolas Catedráticas em que o centro
das suas preocupações pedagógicas era,
sem dúvida, a teologia. Amar e venerar a
Deus eram a suprema aspiração do
sábio. No século XI essas escolas
germinaram e surgiram as universidades,
como cobrança da burguesia nascente
que reivindicara sua parte na educação. “A fundação das
universidades permitiu que a burguesia participasse de muitas das
79 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.23 80 - Idem. P.21
80 João Henrique Bordin
vantagens da nobreza e do clero que até então lhe tinha sido
negadas”81
. Começa então a diminuir o poder da superestrutura do
sistema feudal. Nos meados do século XIII, “os magistrados das
cidades começaram a exigir escolas primárias, que as cidades
custeavam e administravam. Tratava-se de uma iniciativa que se
dirigia diretamente contra o controle mantido pela Igreja”82
.
Começa o declínio do Feudalismo e surgimento da
burguesia, que a princípio se mostra dócil, humana e capaz de
superar as contradições sociais. “Se para o Feudalismo a virtude
dominante era a submissão, para a burguesia mercantil do
renascimento passa a ser a individualidade triunfante, a afirmação
da própria personalidade... O renascimento se propôs a formar
homens de negócio que também fossem cidadãos cultos e
diplomatas hábeis”83
.
Renascimento
movimento renascentista inicia na Idade Média, se
consolida a partir do século XIV, e lança as bases
da burguesia moderna. O Renascimento pretendia um retorno à
81 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.101 82 - Idem. P.104 83 - Idem. P.110
O
81 Educação Revessa
antiguidade clássica, com a retomada do pensamento greco-
romano em sua origem, não o interpretado e adaptado.
Humanismo e reforma é o que pretendia o Renascimento. Surgia
uma nova maneira de encarar a religião, com a derrocada da
concepção teocêntrica do universo. A reforma protestante,
movimento que valorizava a individualidade, se opôs às normas
da Igreja. É certo que Martinho Lutero “foi o primeiro a afirmar
que a instrução constituía uma fonte de riquezas e de poder para a
burguesia, também não é menos certo que ele nem de longe
pensou em estender esses benefícios às massas populares”84
.
A ciência, abandonando o método especulativo, volta-se
para a investigação da natureza e adota o método da
experimentação. Nessa época Galileu (1564-1642) descobre os
satélites de Júpiter e Harvey e prova, afirmando a descoberta de
Copérnico, que a terra gira em torno do sol. Bacon (1561-1626)
afirma que a realidade muda com o tempo e o poder aumenta com
o conhecimento. Descarte (1596-1650) ensinava que só colocando
a evidência em dúvida e pela análise e síntese chega-se à verdade
eterna – penso, logo existo. Pascal (1623-1662) diz que a
experimentação era o único critério seguro no campo científico.
84 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.120
82 João Henrique Bordin
A filosofia e a ciência refletiam as profundas
modificações que a economia ia introduzindo na estrutura social,
preocupadas com as consequências para o ser humano. Enquanto
isso nas escolas da burguesia continuava-se ensinando a ciência
dos antigos, quer dizer, uma anatomia sem dissecações e uma
física sem experimentos. A indústria e o comércio se desenvolvem
a largos passos e quando a máquina de fiar substitui o fuso, o tear
mecânico o manual, a produção deixou de ser uma série de atos
individuais, para se converter numa série de atos coletivos85
, como
predisse Aristóteles.
No século XVII “a incorporação da Geografia, da
Aritmética, da História e do Direito Civil à educação do jovem
gentlemen indicava que a nobreza havia mudado completamente
de orientação”86
. A indústria e o comércio haviam diminuído a
distância entre o burguês e o nobre e necessitavam de novos
métodos na educação. A liberdade do comércio trouxe, como
consequência, a liberdade de crenças e ideias. Com isso
desestabiliza a nobreza, e a burguesia começa a introduzir seus
novos comandos.
Em toda a história podemos observar que “cada vez que
num regime social se vislumbra a possibilidade iminente de uma
85 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P126 86 - Idem. P.129
83 Educação Revessa
derrocada, surge sempre, como um sintoma infalível, a
necessidade de um retorno à natureza”87
. Quando o mundo antigo
desabou, os Estóicos pregavam a urgência de uma vida mais
simples. O Renascimento, fim do Feudalismo, proclama a volta ao
antigo, ao paganismo da carne e da
beleza. Agora, com a queda da
monarquia, Rousseau (1712-1773)
escreve o Evangelho da Natureza, no
qual explica o surgimento, com mais
vigor, do individualismo dos sofistas, dos
estóicos, a volta ao antigo dos
renascentistas88
.
No combate às contradições instauradas pela sociedade
feudal, Rousseau foi um grande pedagogo da educação
tradicional. Ao lado de Rabelais e Montaigne, foi um crítico do
Feudalismo e também da sociedade civil burguesa em
desenvolvimento. No Contrato Social deixa claro que não pode
existir liberdade sem igualdade. “Para ele igualdade não era
apenas necessária, mas essencial a uma sociedade justa e moral. A
desigualdade era intrinsecamente imoral”89
. A informação e a
87 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.130 88 - Ibidem. 89- Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.31
84 João Henrique Bordin
politização do povo eram essenciais para que fosse capaz de
expressar a vontade geral. Na vontade geral cada indivíduo
renuncia parte da liberdade natural e a soma, de todas essas partes
de liberdade individual, abdicadas, constitui uma força maior.
A força maior do povo acontece na soberania da sua
reunião em assembleia. O povo sempre detém em suas mãos o
poder real para manter ou transformar as instituições sociais. Essa
concepção de Rousseau é de uma educação revolucionária com
plena participação política. Na discussão político-pedagógica
mostra ser possível uma verdadeira síntese entre duas correntes
opostas, através de sua superação verdadeira. Nessa contribuição
as correntes opostas são trocadas e se fundem reciprocamente. A
superação dialética implica numa ultrapassagem, num ir além, que
só se dá pela incorporação do que se supera. A educação
tradicional de Rousseau está centrada na ideia de um mundo
corrompido e a nova educação deseja, ao contrário, confiar no
mundo e no homem. O homem não pode pensar-se a si mesmo
como um ser isolado, essa autossuficiência hipotética se equipara
a um mineral. Por fim, podemos dizer que Rousseau pretendia um
ensino de experiência. É tirando vantagens das oportunidades, que
se lhe apresentam no presente, que a criança se prepara para o
futuro, mas o faz vivendo essas experiências como sua própria
vida, não apenas para capacitar-se a viver num futuro distante e
85 Educação Revessa
imaginário. Isso implica em que a educação é vida hoje para o
educando, não apenas preparação para uma vida futura90
.
Capitalismo
epois de tantos séculos de sujeição feudal, a
burguesia afirmava os direitos do indivíduo.
Direito à liberdade absoluta para contratar, comercializar, crer,
viajar e pensar. É justo reconhecermos que a burguesia comandou
o assalto ao mundo feudal e à monarquia absoluta com tanto
brilho e entusiasmo que, por um momento, ela assumiu, diante da
nobreza, o papel de defensora
dos direitos gerais da
sociedade91
. Essa manobra
política da burguesia
culminou com a Revolução
Francesa, no século XIX, e
consequentemente com a Revolução Industrial. O novo regime
investe pesado para manter sua hegemonia. “Formar indivíduos
aptos à competição do mercado foi o ideal da burguesia
90 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P33 a 46 91 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.130
D
86 João Henrique Bordin
triunfante”92
, com o objetivo único de formar trabalhadores para
suas fábricas. Assim, com esse ideal a burguesia pretendeu, e
consegue até hoje, esconder a grande contradição do capital, ou
seja, a existência de ricos e pobres. Não que ninguém veja a
existência de ricos e pobres, muito pelo contrário, mas não sabem
o porquê da necessidade de sua existência.
A burguesia pensa em seus próprios interesses. Para isso
afirmava que “os filhos das classes superiores devem e podem
começar bem cedo a se instruírem e, como devem ir mais longe do
que os outros, estão obrigados a estudar mais... as crianças
plebeias necessitam de menos instrução do que as outras e devem
dedicar metade do seu tempo aos trabalhos manuais”93
. A
educação superior mantinha sua independência, mas o ensino
primário era dirigido e vigiado pelo Estado. Assim, a burguesia se
apoderava da máquina administrativa.
Nesta época, século XVIII, meados do século XIX, a
burguesia se dá conta de que a liberdade religiosa concedida ao
povo e que a ajudou a derrubar a monarquia poderia se levantar
contra ela própria e a derrubar. Voltaire, pedagogo burguês, certa
noite discutindo religião com amigos, interrompe a reunião para
impedir que os criados escutem, com medo de represália durante a
92 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.135 93 - Idem. P.137
87 Educação Revessa
noite. Ele afirmava que “era necessário impedir, mediante a
religião e a ignorância, a ascensão das massas”94
. A burguesia não
tolerava a Igreja, mas ao mesmo tempo precisava dos seus
serviços. Então a fez sua sócia, pagando-lhe um alto custo para
que lhe servisse de um “poderoso instrumento para inculcar nas
massas operárias a sagrada virtude de se deixar tosquiar sem
protesto”95
.
Com o aumento e modernização da indústria torna-se
necessário instruir os trabalhadores com uma educação elementar,
para que possam satisfazer o seu padrão de vida e saber que a livre
concorrência exige uma modificação constante das técnicas de
produção e uma necessidade permanente de invenções.
Começaram a surgir as escolas politécnicas. Uma educação
primária para as massas e uma educação superior para os técnicos.
Reservava, todavia, para os seus filhos outra forma de educação –
o ensino médio – em que a ciência ocupava um lugar discreto, em
que o saber continuava livresco e bastante divorciado da vida
real96
. A burguesia e sua indústria instalam um novo sistema de
exploração, o Capitalismo. “O triunfo do Capitalismo sobre o
Feudalismo, apenas significou realmente triunfo do método de
94 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.145 95 - Idem. P.154 96 - Idem. P.146
88 João Henrique Bordin
exploração burguesa sobre o de exploração feudal”97
. A educação
também deveria estar de acordo com esse novo sistema para
garantir seu progresso. A burguesia sabia bem que uma educação
adequada deveria dispor das Ciências Naturais, da História, da
Matemática, da Economia, da Estatística, da Filosofia, da
Arqueologia, etc. As humanidades e as letras “são o próprio
homem, eliminá-las da educação é como que eliminar o homem
do próprio homem”98
. Isso gerou um conflito entre seus temores e
os seus interesses, que solucionou “dosando com parcimônia o
ensino primário e impregnando-o de um cerrado espírito de classe,
como para não comprometer, com o pretexto das luzes, a
exploração do operário, que constituía a própria base da sua
existência”99
.
Por outro lado, enquanto o Capitalismo insurge e se
instaura, começa a se formar uma nova corrente de pensadores
socialistas, preocupados com os rumos tomados pelo novo mundo
materialista. Suas reflexões não se dão numa tentativa de voltar a
um passado distante ou a uma volta à natureza, mas, de uma
forma ou de outra, apontam para uma tentativa de superar,
avançar ou inovar o frio e calculista método de produção do novo
sistema. No que se refere à educação, o objetivo é tirar da inércia
97 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.148 98 - Idem. P.149 99 - Idem. P.150
89 Educação Revessa
o ensino dirigido às massas. Dentre eles destacamos Charles
Fourier (1772-1837), que tinha um ideal socialista fundido a uma
concepção utópica e visionária da
transformação social e a defesa do
absolutismo político. Fourier “acreditava
que a miséria da humanidade resulta da
supressão das paixões humanas”100
. A
felicidade se alcança na forma natural de
expressão dos sentimentos. Propôs “um
sistema educacional com um elevado respeito pela liberdade das
pessoas, no qual a educação para o trabalho recebeu grande
ênfase, como pareceria natural. Conhecendo-se seus pontos de
vista mais gerais sobre a sociedade”101
alcançaria a convivência
pacífica de todos os membros da comunidade.
Outro precursor do socialismo,
Saint Simon (1760-1825), refletia uma
maneira de superar a decadente sociedade
medieval. “Estava interessado em
oferecer à sociedade em crise os meios
para que se organizasse segundo o que
considerava uma forma nova e superior.
100 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.61 101 - Idem. P.70
90 João Henrique Bordin
Tal ordem nova deveria se basear no mais elevado princípio – o
da indústria”102
. Essa forma industrial, proposta por Simon, não é
a mesma da burguesia. Para ele, o Estado, segundo o princípio
industrial, deveria ter em mente sempre o social. “Acreditava na
organização racional e na planificação, encontrou o conceito
fundamental de toda sua teoria na indústria. Seu sistema mantinha
o interesse individual e os privilégios da riqueza, com a condição
de que fossem aplicados à indústria”103
, que daria suporte para a
organização da sociedade. Para Simon a educação estava em
“segundo nível de governo, enquanto a direção da produção
estava no mais alto nível da administração”104
. Quando toda a
sociedade participar ativamente do sistema industrial poderá
chegar a um nível educacional mais elevado.
Robert Owen (1771-1858),
também precursor do socialismo,
acreditava no cooperativismo industrial,
“nega a ideia generalizada de que o
homem constrói seu próprio caráter.
Segundo ele, o caráter dos seres humanos
é moldado pelas circunstâncias nas quais
102 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.74 103 - Idem. P.75 104 - Idem. P.77
91 Educação Revessa
nasce e no meio em que vive e trabalha”105
. Nesse sentido, a
cooperativa de trabalhadores melhoraria as condições de vida do
operário, método que aplicou nas indústrias New Lamarck, que
comprou com sócios em 1799 e deu grande resultado. O
“humanismo se expressa através do respeito pelo que a criança
tem de natural e pela renúncia a qualquer manipulação de sua
vontade através do esforço, externo e artificial, a diferentes
comportamentos e ações, porque seria injusto e prejudicial fazê-
lo”106
. A liberdade natural da pessoa precisa ser respeitada como
sagrada. A realidade escolar, em sua unidade, faz parte da
realidade social. Para isso “o ambiente escolar deveria ser
encorajador, receptivo e nunca repressivo”107
. A criança, com
isso, respeitada em sua individualidade, cresceria com um
entendimento maior do seu papel na sociedade e na indústria.
Proletariado
m 1830, com
as promessas
de igualdade de direito dos
indivíduos para comercializar, crer, viajar e pensar, satisfazendo
105 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.84 106 - Idem. P.88 107 - Idem. P.90
E
92 João Henrique Bordin
assim seus interesses, a burguesia conquistou o apoio do
proletariado. No entanto, alguns anos mais tarde, o proletariado
cobra o cumprimento dessas promessas. A burguesia, que havia se
separado da Igreja, porque esta manipulava as massas, viu-se
obrigada a reatar com ela para, em conjunto, manterem seus
privilégios. Assim “a burguesia e a Igreja se estornam
mutuamente muitas vezes, mas como tem um inimigo comum
pela frente seria insensato que elas se separassem demasiado uma
da outra”108
. O proletariado, que agora é inimigo, novamente é
manipulado pela educação que recebe e pela religião que o rodeia.
Entretanto, a liberdade já havia sido decretada e muitos
pensadores conseguiram ir além das manobras do capitalismo
burguês e pensar um novo sistema. Vitor Considerant (1808-1893)
foi um desses pensadores e levantou
questionamentos sobre a educação
burguesa. Entre elas “se incluíram a
crítica à educação sob o capitalismo, ao
elitismo, à reprodução educacional dos
padrões da sociedade maior, à educação
como instrumento de hegemonia
ideológica, à educação como repressão e ao caráter
discriminatório de uma educação popularesca e instrumental para
108 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.155
93 Educação Revessa
a classe trabalhadora”109
. No capitalismo os filhos dos
trabalhadores tendem a assumir posições ocupacionais similares a
de seus pais, pela falta de incentivo material para a sua
sobrevivência antes de sua educação. Considerant afirmava que é
necessário o “estabelecimento de um nível de vida aceitável,
incluindo o direito de todos a um trabalho digno e adequadamente
remunerado”110
, para que a proposta da “Nova Educação” se torne
realidade. Na “Nova Educação sob-harmonia, defende a
participação do próprio estudante na organização e administração
efetiva do sistema educacional”111
. O aluno, razão de ser da
escola, junto com o professor, estabelece o tipo de ensino
desejado para aquela ocasião.
No estado burguês “a escola primária está orientada de
tal modo que afastam do proletário os poucos filhos de operário
que a frequentam. Mediante um ensino habilmente dirigido e
continuado, ela os leva a compreender a sua superioridade em
relação aos seus pais e faz com que se esqueçam ou se
envergonhem da sua origem modesta. Formar uma aristocracia
operária arrivista e dedicada é uma das intenções mais claras do
109 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.99 110 - Idem. P.101 111 - Idem. P.102
94 João Henrique Bordin
ensino popular dentro da burguesia”112
. É um ensino selvagem de
negação das origens e formação de seres alienados. Para tentar
superar essa forma educacional, Marx e Engels, no século XIX,
elaboram a teoria marxista. “O
marxismo em si mesmo é, não uma
ciência contemplativa, mas a
análise científica da realidade e, ao
mesmo tempo, o guia para a ação política transformadora dessa
realidade”113
. O marxismo, “no processo histórico de
autocompreensão, do autoconhecimento do homem e da
humanidade”114
, é uma tentativa de expor o capital como conceito
explicativo da sociedade burguesa e a existência de sua
contradição, ricos e pobres.
Nessa época surgiram outros
pensadores, que conceberam a educação
como forma de superação de um ensino
classista. O poeta cubano, escritor,
jornalista e educador, José Marti (1853-
1895), “acreditava profundamente no poder
112 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.156 113 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.116 114 - Idem. P.116
95 Educação Revessa
e na importância da educação”115
, não das classes mais pobres,
mas que todos fossem bem educados, com as mesmas condições e
possibilidades. A ideia central do seu pensamento educacional
consiste em uma educação para a vida, uma educação inovadora e
ativa. A nação mais feliz é aquela cujos filhos têm a melhor
educação e para todos. Todo o homem tem o direito de ser
educado e obrigação para educar os outros. José Marti defendia
uma educação leiga, não religiosa, devido a sua necessidade de
honestidade116
. Outro pensamento, nessa linha educacional, vem
de Lenin (1870-1924), no qual sua preocupação era de um
processo de politização para atingir um maior nível de consciência
política. Lenin “reintroduz a abordagem dialética do próprio
Marx, na qual são os próprios indivíduos que, através de sua
prática (sua atividade produtiva), não apenas mudam o mundo,
mas também atingem uma maior compreensão deles e nesse
processo mudam a si próprios também”117
. É uma ideia de
educação socialista, com possibilidade de aplicação no
capitalismo, para tentar superá-lo.
115 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 1 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.144 116 - Idem. P.150 117 - Idem. P.169
96 João Henrique Bordin
Nova Educação
or volta de 1900, surgem duas correntes do
movimento pedagógico da “Nova Educação” – a
metodológica e a doutrinária. Na corrente metodológica, com suas
raízes no marxismo, aparece o respeito pela atividade livre e
espontânea da criança. A nova didática consiste principalmente
em substituir o trabalho escolar individual pelo trabalho coletivo.
A corrente doutrinária aceita os mesmos postulados
metodológicos. No entanto, para respeitar o que a criança tem de
mais íntimo, afirma que é necessário o Estado obter autonomia do
ensino. A escola aparece como negação de todo o partido e de
toda a seita, bem como das igrejas e seus dogmas, porque a escola
é a vida do espírito e o espírito vive na plenitude de sua liberdade.
A escola deve ser o órgão do espírito humano no qual esse
expressa o seu conteúdo atual118
. Nessa
linha José Ortega Y Gasset (1883-1955
afirma que “se educação é a transformação
de uma realidade, de acordo com certa ideia
melhor que possuímos, e se a educação só
pode ser de caráter social, resultará que a
pedagogia é a ciência de transformar sociedades”119
. Até então a
118 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.167 e 168 119 - Idem. P.168
P
97 Educação Revessa
educação era o processo no qual a classe dominante prepara na
mentalidade e conduta da criança as condições fundamentais de
sua própria existência.
Após a Revolução Socialista e implantação do primeiro
governo em 1917, na Rússia, um grupo de pedagogos, entre eles
Pistrak (1888-1940), elaborou a proposta pedagógica
revolucionária conhecida como a “Escola do Trabalho”. Pistrak
afirmava que não pode haver neutralidade na educação, “Se se
pensa que a educação não é política e, baseando-se nessa
premissa, não se age politicamente como educador, essa inação
tem o mesmo significado da ação conservadora... Se não se age
para mudar a realidade social, então se a está mantendo,
justificando e legitimando”120
. O educador deve reeducar-se ou ser
reeducado para, só após, criar seu próprio método. Para Pistrak, a
educação é uma tarefa coletiva, envolvendo os professores que
entendem seu papel político na construção da nova sociedade,
participação na qualidade de analistas críticos do que se está
processando, mediante a incorporação e desenvolvimento de um
referencial teórico, pedagógico e social, que dará sentido a suas
ações. Tanto o professor como o aluno e a sociedade deve ter em
mente que a educação sempre satisfaz as necessidades de um
120 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 2 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.21
98 João Henrique Bordin
determinado regime, e se não o faz é eliminada121
. Um educador
deve sempre pensar que “o que realmente importa não é a
quantidade, mas a qualidade de conhecimento que permitiria ao
estudante possuir um controle sólido dos métodos científicos
fundamentais para elaborar as manifestações da vida”122
, afirma
Pistrak.
Durante a primeira guerra mundial, Antônio Gramsci
(1891-1937), líder revolucionário socialista, na Itália, concebe o
homem como “sujeito da história e que, como tal, tem a iniciativa
revolucionária, a iniciativa da ação transformadora... Os
intelectuais têm a missão de organizar a cultura e de tornar
possível o acesso das massas a essa vontade coletiva – consciência
de classe – que é fundamental como instrumento da ação
realmente voltada para a transformação social... a escola é o
instrumento para elaborar os intelectuais em diversos níveis”123
.
Sua educação alternativa supera o humanismo tradicional para
fundar as bases do “Novo Humanismo”. O humanismo tradicional
era um instrumento de alienação, o novo “é capaz de preservar o
121 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 2 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.24 a 26 122 - Idem. P.59 123 - Idem. P.80 e 81
99 Educação Revessa
alto valor do homem como sujeito da história e centro das
preocupações sociais”124
.
O proletariado, nesse sistema capitalista, de divisão das forças
intelectuais e forças físicas, se torna assim o instrumento de
superação da sociedade classista. Na autêntica escola proletária as
fábricas adquirem o ritmo da escola e “a teoria aviva a cada
instante a marcha da prática e a prática se ilumina sem cessar com
a teoria”125
. No sistema capitalista burguês de divisão da
sociedade em classes, com predominância de uma em detrimento
das outras, o instrumento capaz de se opor é a educação.
“Enquanto a sociedade dividida em classes não desaparecer, a
escola continuará sendo uma simples engrenagem dentro do
sistema geral de exploração e o corpo de mestres e de professores
continuará sendo um regimento, que, como os outros, defende os
interesses do Estado”126
. A educação tem a possibilidade de ser
um instrumento revolucionário, de superação de um sistema que
nega a humanidade do homem para tornar este sujeito o construtor
de sua própria história.
A “Educação Dialética”, ao perceber a contradição nela
contida e a contradição do capital, através da análise e exposição
124 - Rossi, Wagner Gonçalves – Pedagogia do Trabalho 2 – Raízes da Educação no
Socialismo. São Paulo: Moraes, 1981. P.82 125 - Ponce, Aníbal – Educação e Luta de Classes. Tradução de José Severo de Camargo
Pereira; 11 ed. São Paulo: Cortez, 1991. P.174 126 - Idem. P.182
100 João Henrique Bordin
de todas as contradições da sociedade, pode se tornar um
instrumento nas mãos do povo para superar o atual sistema. O
novo, que surge desse processo, é o revolucionário homem novo,
social, verdadeiro, livre e sujeito consciente de sua ação.
101 Educação Revessa
Concepção Educacional Omnilateral
ma sociedade como a nossa, eminentemente
capitalista e hierarquicamente dividida em classes,
desde a dominante até a mais popular, trabalhadores ou
desempregados, estabelece a concorrência, muitas vezes desleal,
que reproduz e concretiza a desigualdade em todos os níveis de
todos os setores sociais. A escola, sendo uma parte dessa
sociedade e a serviço da ideologia dominante, não foge à regra.
No entanto, partindo da concepção educacional marxista que tem
como horizonte as relações socioeconômicas, mostra que é
possível reverter o processo, diminuindo as diferenças sociais, a
partir de uma educação que contemple o homem em sua totalidade
e omnilateralidade e que atenda aos interesses do povo como um
todo, dos pais, dos alunos, dando preferência à classe
trabalhadora, mas estendida a todas as classes, ou seja, uma
educação revolucionária.
U
102 João Henrique Bordin
A história nos mostra que, em cada época, surgiram
diferentes maneiras de abordar o tema da educação. Muitos
pensadores desenvolveram sua visão educacional a partir de sua
visão de mundo e do modo como concebiam o homem em sua
conduta social. Assim, neste capítulo, abordaremos, brevemente, a
concepção educacional marxista, já que a teoria de Marx foi
escolhida para dar suporte a nossa reflexão. Na sequência,
seguindo nesta linha, aprofundamos a compreensão com alguns
educadores que buscaram essa direção, uns declaradamente e
outros que, embora omitindo, desenvolvem o mesmo caminho, ou
seja, uma educação para além do horizonte do capital, com
atenção às necessidades individuais e sociais de cada um e
estendida a todos.
Conforme os primeiros capítulos deste livro, ao estudar o
filósofo alemão Karl Heinrich Marx (1818-1883), na tentativa de
entender o mecanismo de estruturação do capital, de início
percebemos sua atração pela filosofia de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831), por encontrar nela um princípio único que
tudo explica a partir do conceito de liberdade. Somos todos
historicamente livres. Estudando a filosofia hegeliana como
ninguém, Marx fez a crítica da sociedade alemã, mas percebeu
que o Capitalismo não se explica com o sistema filosófico de
Hegel. Assim se propõe a produzir uma teoria crítica do capital e
103 Educação Revessa
da sociedade moderna que fosse um instrumento nas mãos do
proletariado para a revolução social.
“O Capital” é a mais importante obra de Marx e
verdadeiro método dialético, pois simultaneamente faz a
explanação do sistema e através dela realiza a sua crítica. Sua
metodologia inicia com a pesquisa que “(...) tem de captar
detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de
evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído
esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento
real”127
. Dessa forma tem-se uma visão adequada da realidade do
capital e a possibilidade de superar sua fria existência ou
conscientemente aceitá-lo. Um processo educativo só se define
com a compreensão de toda a estrutura da sociedade.
O pensamento marxista pressupõe, antes de qualquer
coisa, a convicção de que tudo se encontra em permanente
conexão material e universal e, em tal condição, a filosofia social
de Marx nos indica como deve ser a educação socialista. Marx
afirma que “por um lado, é necessário modificar as condições
sociais para criar um novo sistema de ensino; por outro, falta um
sistema de ensino novo para poder modificar as condições
sociais”128
. A educação deve ser uma ferramenta de aglutinação
127
- Marx, Karl H. O Capital. São Paulo. Nova Cultura. 1996. P.140 128 - Marx e Engels - Textos sobre Educação e Ensino. 5ª Ed. São Paulo. Centauro, 2006. P.107
104 João Henrique Bordin
social e escolar para emancipar o homem em sua
omnilateralidade, articulando o trabalho manual e intelectual em
todos os sentidos e com a consciência de que a história está em
constante movimento e nos encaminha a superar o capital.
A educação envolve a totalidade intelectual, física,
corpórea e sensível com a finalidade da emancipação humana,
ligando as partes ao todo e sua compreensão simultânea e
recíproca. Assim, o princípio de uma teoria educacional marxista
comporta um ensino omnilateral que leve o indivíduo
multifacetado à humanização tendo no horizonte a totalidade. Esse
fundamento educacional marxista pode, hoje, ser aplicado na
reformulação do sistema educacional, tendo em vista amenizar as
desigualdades sociais e tornar o Capitalismo mais humano.
Na linha marxista de pensar a educação encontramos
vários autores, como Adorno, Freinet, Gramsci, Makarenko,
Pistrak, Snyders e Suchodolski, que acreditando numa sociedade
“(...) onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe
aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva, é
a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer
hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde,
pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a
meu bel prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador,
105 Educação Revessa
pescador ou crítico”129
, e preocupados com a situação do povo de
suas épocas, desenvolveram, a partir da concepção educacional de
Marx, como poderia ser uma escola, uma sociedade e seus
indivíduos se o ensino tomasse por base a formação em sua
omnilateralidade e em sua totalidade.
Adorno
alemão Theodor Wiesengrund
Ludwig Adorno (1903-1969),
com sua obra “Educação e Emancipação”,
afirma que é necessária uma educação que
evite a barbárie e simultaneamente busque a
emancipação humana. A questão da barbárie é
identificada por Adorno a partir do nazismo que banalizou a
violência física forçando as pessoas a se identificarem com ela.
Com o fim da grande guerra, a barbárie passou a se revestir da
autoridade, com seus poderes estabelecidos, para “(...) praticarem-
se precisamente atos que anunciam, conforme sua própria
configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a essência
129 - Marx e Engels - Textos sobre Educação e Ensino. 5ª Ed. São Paulo. Centauro, 2006. P.25
O
106 João Henrique Bordin
mutiladora da maioria das pessoas”130
e o papel da educação é
precisamente evitar a proliferação dos atos bárbaros. Atos que
num primeiro momento parecem inocentes, mas que aos poucos
desencadeiam um relacionamento antipático e que podem
culminar na barbárie. Um exemplo destes atos é o costume que os
alunos têm de se acotovelarem ou se soquearem e para Adorno é
necessário “(...) desacostumar as pessoas de se darem
cotoveladas”131
e se soquearem por ser uma expressão bárbara.
A barbárie, hoje, muitas vezes inicia com a mania que os
alunos têm de se atribuírem apelidos, quase sempre pejorativos.
Para superar essa barbárie Adorno concebe uma educação que
ajude o indivíduo a pensar com a própria cabeça - para isso a
família e a escola devem andar juntas e levar o aluno a formar sua
maioridade ou sua emancipação. Essa autonomia só é alcançada
através do “esclarecimento”, tema que retoma de Kant e que
sempre é atual, pois é devido à “(...) falta de decisão e de coragem
de servir-se do entendimento, sem a orientação de outrem”132
, que
o indivíduo permanece alienado e o “esclarecimento é à saída dos
homens de sua autoinculpável menoridade”133
. Isto pressupõe que
130
- Adorno, Theodor W. L. Educação e Emancipação. São Paulo. Paz e Terra. 1995. P.159 131
- Idem. P.162 132
- Idem. P.169 133
- Ibidem.
107 Educação Revessa
o indivíduo tenha vontade própria e coragem para fazer uso do
próprio entendimento.
Para Adorno, a maioridade começa a ser alcançada
quando a identidade é descoberta e isso acontece no encontro com
a autoridade na qual a criança se identifica, a princípio, e na
sequência do processo de maturidade ocorre o rompimento com a
mesma. A criança necessita do pai. Portanto, uma autoridade se
apropria dela e a interioriza, mas ao descobrir, “(...) por um
processo sempre muito doloroso e marcante, que o pai, a figura
paterna, não corresponde ao eu ideal que aprendeu dele, liberta-se
assim do mesmo e torna-se, precisamente por essa via, pessoa
emancipada”134
(Adorno, 1995, p.177). Nesse sentido a escola,
que não pode ser concebida sem professores e muito menos sem
sua autoridade, “(...) mas que, por sua vez, o professor precisa ter
clareza quanto a que sua tarefa principal consiste em se tornar
supérfluo”135
. Essa posição do professor faz com que o aluno sinta
o apoio autoritário e ao mesmo tempo a necessidade de se
emancipar, pensar com a própria cabeça.
Adorno afirma que a ”(...) emancipação precisa ser
acompanhada por certa firmeza e unidade do eu”136
, para que
134 - Adorno, Theodor W. L. Educação e Emancipação. São Paulo. Paz e Terra. 1995. P.162 135
- Idem. P.177 136 - Idem. P.180
108 João Henrique Bordin
possa formar uma representação sólida de sua personalidade e da
própria profissão. Por isso “(...) a única concretização efetiva da
emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas
nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja
uma educação para a contradição e para a resistência”137
, a
começar pela formação da consciência do aluno, da situação real
da sociedade em que vive e de todas suas manobras para
acostumá-lo em sua precária situação.
Freinet
francês Célestin Freinet (1896-1966), em sua obra
“Para uma Escola do Povo”, questiona a escola da
época, que até então tinha sido mais ou menos
perfeita na “(...) adaptação do indivíduo ao
âmbito estreito de seu novo destino
econômico”138
, mas que já está ultrapassada.
Alguns do povo tomam consciência da
necessidade de uma mudança. No livro, afirma que no século XX
a criança necessita de “(...) uma educação que corresponda às
necessidades individuais, sociais, intelectuais, técnicas e morais
da vida do povo na era da eletricidade, da aviação, do cinema, do
137 - Adorno, Theodor W. L. Educação e Emancipação. São Paulo. Paz e Terra. 1995. P.183 138 - Freinet, Célestin. Para uma Escola do Povo. São Paulo. Martins Fontes. 1996. P.02
O
109 Educação Revessa
rádio, do jornal, da imprensa, do telefone, num mundo que
esperamos não tardará a ser o do socialismo triunfante”139
. Como
o mundo está em constante mudança, e no Capitalismo a
tecnologia avança dia a dia, a educação necessita a todo o
momento se atualizar e renovar seus conceitos, para não ficar
aquém das necessidades que vão surgindo. Assim, o professor
saberá encaminhar o aluno na busca de respostas para suas atuais
indagações.
Para Freinet a educação não pode ser apenas uma “(...)
instrução suficiente para enfrentar os exames, ocupar cargos
cobiçados, ingressar em determinada escola ou em determinada
administração”140
, como a maioria dos pais desejam para seus
filhos, fazendo com que eles se esforcem para atingir o objetivo.
Para isso a escola de amanhã, como costumava designar o novo
modelo de educação pretendido, precisa estar “(...) centrada na
criança enquanto membro da comunidade”141
, essas deveriam
satisfazer, reciprocamente, suas necessidades e possibilitar “(...) à
criança alcançar, com uma pujança máxima, seu destino de
homem”142
. Isso requer mais que centrar a atenção na matéria a
ser ensinada e estabelecer o que é essencial e necessário para o
139
- Freinet, Célestin. Para uma Escola do Povo. São Paulo. Martins Fontes. 1996. P.07 140 - Idem. P.08 141 - Idem. P.09 142
- Ibidem
110 João Henrique Bordin
desenvolvimento manual e intelectual e atender às necessidades
individuais e da comunidade.
Na escola de amanhã “o trabalho será o grande princípio,
o motor e a filosofia da pedagogia popular (...)”143
, dizia Freinet,
uma nova maneira de se ver o mundo e a relação com ele, de
maneira que o respeito pelo outro transpareça na escola, no
trabalho e na sociedade, fazendo com que um indivíduo e sua
comunidade estejam em constante sintonia. Para isso colocará
toda a formação da criança em uma disciplina que será “(...) a
expressão natural e a resultante da organização funcional da
atividade e da vida da comunidade escolar”144
. Com uma
formação assim, a criança poderá reconstruir um mundo melhor
do que aquele que deixamos ruir, pensava Freinet, e que pelo
convencimento de um processo eficiente e com entusiasmo a
escola se adaptará ao novo mundo que há de surgir.
Gramsci
italiano Antônio Gramsci (1891-
1937), fundador do Partido
Comunista italiano e antifascista, tinha como
143 - Freinet, Célestin. Para uma Escola do Povo. São Paulo. Martins Fontes. 1996. P.11 144 - Idem. P.12
O
111 Educação Revessa
preocupação uma educação capaz de desenvolver intelectuais
trabalhadores, através de uma “(...) escola única de cultura geral,
humanista, formativa, que equilibre de modo justo o
desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente
(tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das
capacidades de trabalho intelectual”145
. É a necessidade de criar
uma cultura do trabalhador que faça parte da vontade das massas.
O povo intelectualizado tem condições de decidir os rumos que
sua vida, sua comunidade e seu País devem seguir.
Para Gramsci todos os homens são intelectuais e
racionais, mas nem todos exercem esse papel. Intelectual não é só
o letrado, mas os diretores e organizadores na construção da
sociedade. Assim, “(...) a escola unitária significa o início de
novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não
apenas na escola, mas em toda a vida social”146
e que desmistifica
os intelectuais tradicionais, aqueles que se veem como uma classe
à parte da sociedade, para, junto com os intelectuais orgânicos,
grupo de pensadores produzidos por cada classe social, articular o
senso comum e a filosofia propriamente dita, a cultura de massa e
a erudita. Dessa forma as ideias hegemônicas a prevalecer não
145 - Gramsci, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo.
Jornalismo. Rio de Janeiro. Civilização Brasiliense. 2006. P.33 146
- Idem. P.40
112 João Henrique Bordin
seriam as de um grupo social dominante, mas do conjunto das
classes sociais.
Os intelectuais fazem o trabalho da hegemonia e ao
mesmo tempo são hegemonizados pelas ideias hegemônicas. Ao
incorporem uma ideia hegemônica a defendem, mesmo sem ter
consciência disto e o que dizem não é verdade deles, mas de ideias
já disseminadas, estabelecidas e que se tornaram senso comum e
atribuíram hegemonia a todo um grupo social. Isso requer a
criação de uma nova camada de intelectuais, com a consciência de
que “(...) existem graus diversos de atividade especificamente
intelectual (...) não se pode separar o homo faber do homo
sapiens”147
. Ou, todo o homem que exerce uma atividade
intelectual, de qualquer grau, precisa saber expressar sua
intelectualidade na realidade e através do fazer, da prática, renovar
e justificar o saber, a teoria.
Em Gramsci a educação assume o papel de devolver ao
povo a intelectualidade e a cultura que a todos pertence. Para ele,
“(...) todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma
atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo, um artista,
um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo,
possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim
147
- Gramsci, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo.
Jornalismo. Rio de Janeiro. Civilização Brasiliense. 2006. P.52-53
113 Educação Revessa
para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é,
para suscitar novas maneiras de pensar”148
. Todo o povo pode
colaborar na formação, manutenção e/ou modificação das ideias
hegemônicas.
Makarenko
ucraniano Anton Semionovich Makarenko (1888-
1939) organiza a escola como
coletividade tendo em vista a felicidade da
criança e a expressão de seus sentimentos,
sempre com rigidez e disciplina formadora da
personalidade, com uma clara responsabilidade
de seus direitos e deveres no convívio social.
Assim, constituiu uma pedagogia profundamente humana e
exigente, segundo o que afirma em seu livro Problemas da
Educação Escolar Soviética, “(...) pedir el máximo a cada persona,
pero también hacerle objeto del mayor respeto posible”149
. Exigir
de cada um o máximo possível, respeitando suas limitações e seus
sentimentos, sem que estes se sobressaiam ao coletivo, transforma
a personalidade do indivíduo, tornando-o um adulto mais
148 - Gramsci, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo.
Jornalismo. Rio de Janeiro. Civilização Brasiliense. 2006. P.53 149
- Makárenko, Antón S. Problemas de La Educacion Escolar Soviética. Moscú/URSS, Editora
Progresso, s.d. P.10
O
114 João Henrique Bordin
responsável e apto a enfrentar tudo o que vai contra seus
princípios socialistas.
Dessa forma, Makarenko consegue reestruturar a vida de
dezenas de jovens infratores, muitos órfãos, que mal sabiam ler e
escrever, num modo socialista de ver o mundo, onde o espírito de
grupo e o trabalho coletivo eram levados às consequências mais
radicais. Para ele a educação soviética “(...) debe ser organizada
sobre la base de crear coletividades unificadas, fuertes, influentes.
La escuela debe ser una coletividad única, en la que estén
organizados todos los processos educativos y en la que cada
miembro sienta su dependência de ella, sea fiel a los interesses de
ésta, defienda esos interesses y, en primer término, los
salvaguarde”150
. A unicidade escolar advém da união do seu grupo
de alunos, em que sendo bem organizados adquirem força e
influenciam todo o processo educativo. O fazer parte da educação
desenvolve a fidelidade entre alunos e professores, haja vista que
ambos, e em conjunto com a comunidade local, defendem os
mesmos interesses, fazendo com que se desencadeie uma luta
coletiva para manter o que a todos pertence.
Esse processo educacional não se limita à escola, mas
comporta toda a vida da coletividade local e familiar com reuniões
150
- Makárenko, Antón S. Problemas de La Educacion Escolar Soviética. Moscú/URSS, Editora
Progresso, s.d. P.37
115 Educação Revessa
constantes entre pais, alunos e professores, para juntos decidirem
os principais rumos a serem seguidos. Com esse modo de
organizar a educação, Makarenko disciplina não só os alunos, mas
toda a coletividade. Como ele mesmo afirma, “la disciplina en la
coletividad es la defesa completa, la seguridad plena de su
derecho, de las vias y possibilidades que precisamente existen
para cada indivíduo”151
. A preocupação de resguardar os direitos
individuais e coletivos dá respaldo para que a disciplina seja
aceita por todos, não uma disciplina de agressão corporal ou
moral, mas de fazer o infrator sentir, sendo colocado diante da
infração, que com essa atitude está contrariando toda a
coletividade. A coletividade resguarda os direitos de cada um e
“(...) la disciplina ensalza a la coletividad”152
- há uma
cumplicidade recíproca entre individual e coletivo que garante o
êxito do processo educacional socialista.
A educação para Makarenko é um processo coletivo que
deve abranger a totalidade individual e social para a formação
humana completa, seguindo as exigências e subordinação da
coletividade, mantendo-se fiel aos princípios da educação
marxista. Para Makarenko, como em Marx, a educação é uma
151 - Makárenko, Antón S. Problemas de La Educacion Escolar Soviética. Moscú/URSS,
Editora Progresso, s.d. P.53 152
- Idem. P.60
116 João Henrique Bordin
ferramenta que leva o indivíduo a seu desenvolvimento pleno,
com o objetivo de superar as desigualdades.
Pistrak
russo Moisey Mikhaylovich Pistrak (1888-1940),
em sua obra “Fundamentos da Escola do
Trabalho”, apresenta como formação básica do cidadão “(...) a
soma de conhecimentos ou de hábitos e o grau de técnica
adaptados a uma determinada idade, que
conduzam direta e plenamente à compreensão
marxista da vida moderna”153
. Esse devia ser o
objetivo do ensino com atenção especial ao
trabalho social da escola, ou seja, formar
crianças para serem trabalhadores completos.
A escola do trabalho, apresentada por Pistrak, deve fazer
uso da ciência “(...) apenas como meio de conhecer e de
transformar a realidade de acordo com os objetivos gerais da
escola”154
, que ensina apenas o que pode ser útil mais tarde e
oferece ao aluno conhecimentos que não sejam esquecidos, mas
que cientificamente lhes sirvam em suas necessidades no trabalho
153
- Pistrak, M.M. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo. Expressão Popular. 2003. P.117 154
- Idem.P.119
O
117 Educação Revessa
e na vida social. Para isso, a escola deve ser organizada de
maneira que “(...) nenhuma disciplina escolar tem e pode ter uma
finalidade em si mesma (...) ”155
, cada disciplina tem uma parte da
verdade e só tem sentido sua existência no conjunto com as
demais e subordinadas aos objetivos gerais da escola.
Mais que programas de estudos, o ensino, para Pistrak, é
um “plano de vida escolar” que envolve todas as situações do dia
a dia e o sistema de complexos estabelece “(...) que cada
disciplina escolar analisa uma parte determinada de uma matéria
geral concreta, propondo-se, antes de tudo, a dar ao aluno o
domínio dos métodos experimentais próprios das ciências”156
-
assim o papel do complexo é treinar a criança no método
dialético. Para atingir seu objetivo, a compreensão marxista da
vida moderna, faz-se necessário que toda a vida escolar, todo o
trabalho e atividade das crianças, tenha uma concepção comum a
fim de atribuir unidade a toda a produção social.
Snyders
francês Georges Snyders
(1917-...), que nos mostra
155
- Pistrak, M.M. Fundamentos da Escola do Trabalho. São Paulo. Expressão Popular. 2003. P.145 156
- Idem. P.153
O
118 João Henrique Bordin
que é possível que haja alegria na escola e satisfação na
aprendizagem, apresenta em sua obra “Escola, classe e luta de
classes” o monopólio da classe dominante para que a escola lhe
sirva na manutenção do poder estabelecido. Assim, “(...) a escola
acaba por participar na manutenção das relações de classe; reflete
as divisões sociais existentes, tende a perpetuá-las, até a acentuá-
las; da mesma forma como tende a perpetuar o poder da classe
dominante”157
. Tal fato é percebido quando a escola tem uma
posição de domínio sobre os alunos, para perpetuar o poder da
classe dominante de certos docentes, ou quando deixa a educação
a Deus dará, dividindo os alunos e professores segundo interesses
pessoais e negligenciando o convívio social e a boa educação.
Para Snyders, a escola ao mesmo tempo em que mantém
a ideologia pode desestruturá-la, isso porque a própria classe
dominante necessita de “(...) uma qualificação capaz de responder
ao progresso técnico, à revolução técnica, às constantes
modificações técnicas”158
; nesse sentido ela pode ser
revolucionária visto que “(...) a cultura é um dos fatores que pode
impedir a escola de pender para as classes dominantes (...)”159
.
Cultura dispensada por pertencer à classe trabalhadora que está
relacionada com a verdade, e que com as reivindicações das
157
- Snyders, Georges. Escola, classe e luta de classes. 2ª ed. Lisboa-Portugal. Moraes, 1981. P.101 158 - Idem. P.102 159
- Idem. P.103
119 Educação Revessa
massas podem ajudar o professor a contestar a escola como
mantenedora do poder e imprimir-lhe um “(...) sentido
progressista (...)”160
, com a certeza de que o trabalhador estará
colocando seu filho numa escola por ele reivindicada, “(...)
realmente aberta a todos; a sensibilidade às injustiças da escola
agudiza-se paralelamente com a convicção de que é possível uma
outra sociedade”161
. É de suma importância que o social, como um
todo, participe do pleno desenvolvimento educacional,
respeitando as diferenças, mas na busca do bem comum. Os
professores, os alunos e os pais precisam dialogar a respeito do
que pensam da educação e juntos construírem um processo
educacional em vista do bem comum.
São as ideias progressistas, segundo Snyders, que
detectam que “a escola é simultaneamente reprodução das
estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia oficial,
domesticação – mas também ameaça à ordem estabelecida e
possibilidade de libertação”162
, e que aos poucos, numa luta pela
igualdade social, diminuem as distâncias entre as classes, dentro
da própria escola, “(...) conquistando largas camadas da
população, em que as forças progressistas se vão afirmando e
impondo que a escola pode efetivamente renovar-se sem chocar a
160
- Snyders, Georges. Escola, classe e luta de classes. 2ª ed. Lisboa-Portugal. Moraes, 1981. P.103 161 - Idem. P.104 162
- Idem. P.106
120 João Henrique Bordin
imensa maioria dos pais”163
. Com isso a sociedade efetivamente
pode desenvolver-se formando indivíduos conscientes de suas
responsabilidades. Portanto, a escola só tem êxito em ser
revolucionária se realizar tarefas progressistas em união com os
alunos, os pais e que contemple as classes populares. A escola,
com sua pedagogia, “(...) só pode triunfar junto dos alunos do
povo e fazê-los triunfar se for capaz de comunicar uma alegria
atual àquilo que lhe ensina (...)”164
. Alegria que é prazer que o
aluno sente em participar, não só dos conhecimentos e
ensinamentos obtidos do professor, mas de toda a vida escolar que
deve ser um reflexo do social e este um reflexo da escola.
Suchodolski
polonês Bogdan Suchodolski (1907-1992) que em
sua obra “La Educación Humana del Hombre”
destaca a importância de Marx e Engels na nova
perspectiva de desenvolvimento social em que a
atividade humana deve descobrir, através da
análise científica, o melhor modo de
desenvolvimento social. Foi com eles, segundo
Suchodolski, que “(...) la educación se convierte en un elemento
163
- Snyders, Georges. Escola, classe e luta de classes. 2ª ed. Lisboa-Portugal. Moraes, 1981. P.108 164
- Idem. P.395
O
121 Educação Revessa
de orientación conciente de los indivíduos y de su preparación con
vistas a acometer las tareas que plantean las condiciones históricas
y sociales en un período determinado”165
, com isso questiona a
tarefa da educação em seu tempo e que também vale para a
análise educacional no tempo atual, visto que a sociedade em que
vivemos hoje só difere da sociedade do tempo de Marx e de
Suchodolski no que se refere ao avanço tecnológico, mas as
artimanhas do capital permanecem as mesmas.
A educação, para Suchodolski, deve emancipar o ser
humano a começar pelas relações de produção, relações sociais e
através da cultura. Tudo o que o homem produz, no trabalho ou
em seu tempo livre e a relação que mantém com esta produção,
sua cultura, o que apreende ou deixa de apreender na escola e fora
dela, as relações sociais, o convívio com os amigos, colegas de
trabalho, associações, etc., “(...) constituyen el fator dundamental
que forma su conciencia, su postura, sus conceptos y sus
experiências”166
. Uma educação, no estilo marxista, transforma
toda a sociedade, questiona suas relações, pois parte do princípio
de que a cultura não é privilégio de alguns para o dominio das
relações de trabalho e sociais. Com uma educação no estilo
marxista a cultura deixa de ser um complexo conteúdo espiritual
165 - Suchodolski, Bogdan. La educación humana del hombre. Barcelina. Laia, 1977. P. 75 166 - Idem. P.76
122 João Henrique Bordin
de alguns escolhidos para se converter “(...) en una realidad
cotidiana relacionada con el trabajo y la actividad social de los
indivíduos”167
. A cultura existe e deve se expressar em todas as
relações da sociedade.
Para chegar a uma realidade social concreta no estilo
marxista, segundo Suchodolski, o homem deve superar-se
criativamente superando o desenvolvimento histórico e não
limitar-se a simples repetição dos fatos. Na época contemporânea,
os indivíduos e o mundo criado por eles enfrentam um problema
filosófico e que vem a ser o mesmo da educação. A saber: “?es
que y en qué sentido el hombre contemporâneo puede acceder a la
conciencia del pleno sentido y valor de la existência y de qué
manera há de integrarse en una actividad en la cual se encuentre a
si mismo y cómo y hasta qué punto sabrá estabalecer los contactos
sociales con la comunidad de los demás indivíduos?”168
. A
ascensão da consciência ao pleno sentido e valor da existência
está na relação concreta que o indivíduo mantém consigo mesmo,
com sua atividade e com o outro. São os três estágios da mesma
consciência, ou seja, a consciência subjetiva, objetiva e coletiva.
A resolução deste dilema, para Suchodolski, bem como
em Marx, só é possível com uma sociedade sem classes em que
167
- Suchodolski, Bogdan. La educación humana del hombre. Barcelina. Laia, 1977. P.82 168 - Idem. P.84
123 Educação Revessa
nesta “(...) surgen las possibilidades de una vida en la que el
hombre real se convierta en un hombre verdadero, y el hombre
verdadero en un hombre real; entances surgen asimismos las
condiciones necessárias para educar a unos hombres plenos y
concretos, puesto que es posible liquidar y superar los factores que
constituyen la fuente de la esclavitud humana y es posible
asimismo solventar realmente los problemas de la liberdad
humana que hasta la fecha se han venido solucionado de un modo
mitológico”169
. Portanto, na atual sociedade capitalista dividida
em classes, em que uma domina as outras, a solução parece ser
impossível, pelo menos enquanto a educação estiver a serviço da
ideologia dominante, a menos que, dentro do próprio sistema do
capital, encontre o modo de superá-lo e talvez a solução seja a de
formar educadores mais que simples transmissores de
conhecimento.
Educação Omnilateral
om esta breve análise da educação em Adorno,
Freinet, Gramsci, Makarenko, Pistrak, Snyders e
Suchodolski, afunilam-se o entendimento na concepção
educacional marxista a partir do momento que todos prescrevem
169 - Suchodolski, Bogdan. La educación humana del hombre. Barcelina. Laia, 1977. P.90
C
124 João Henrique Bordin
um ensino de união entre escola e sociedade, com articulação do
trabalho manual e intelectual, para formar a consciência de que a
história está em constante movimento e não podemos repetir fatos
históricos, mas sim superá-los, para diminuir as desigualdades
sociais e tornar o capital mais humano.
Adorno apresenta uma educação que evite a barbárie, ou
a não violência, e emancipe o homem, ao levá-lo a pensar com a
própria cabeça. Freinet uma educação centrada na criança
enquanto membro da comunidade. Gramsci uma escola que
concilie trabalho manual e intelectual. Makarenko uma educação
em vista da felicidade da criança com disciplina formadora da
personalidade. Pistrak uma educação que seja a soma de
conhecimentos, hábitos e técnicas que conduzam à compreensão
marxista da vida moderna. Snyders uma educação reivindicada
pelo trabalhador e que comunique alegria àquilo que ensina.
Suchodolski uma educação do estilo marxista, questionadora, com
base na cultura do povo e que ascenda a consciência ao pleno
sentido da existência. Todas essas maneiras diferentes de conceber
a educação sintetizam-se na educação omnilateral, que leve o
indivíduo multifacetado à humanização tendo no horizonte a
totalidade intelectual, física, corpórea e sensível, com a finalidade
de construir uma nova sociedade.
125 Educação Revessa
A concepção de uma educação marxista omnilateral é a
chance que o homem tem de revolucionar a maneira de pensar e
de se posicionar frente ao sistema capitalista, possibilitando,
assim, reverter o quadro de desigualdades da atual sociedade. A
educação não faz a revolução, mas com certeza nenhuma
revolução acontece sem ela. O primeiro passo para garantir uma
mudança social e evitar o retorno ao momento histórico anterior é
fazer com que todo o povo esteja bem preparado intelectualmente,
com uma cultura por ele formada, seja consciente dos percalços
que virão e tenha sabedoria e entendimento para posicionar-se na
nova maneira de conceber o mundo.
Essa nova concepção do mundo é o de uma sociedade
sem classes, mas não se pode esperar esse momento acontecer,
visto que jamais acontecerá no atual sistema do capital. Mesmo
assim, aqui e agora é possível começar a revolução intelectual,
devolvendo ao povo o livre pensar e ajudando-o a organizar sua
cultura de forma que ele mesmo seja criador e construtor de sua
história. Para dar início a este processo é preciso que os docentes
que assim pensam se empenhem o máximo para, em sua escola,
começarem uma silenciosa revolução e de escola em escola
garantirem a mudança, primeiramente no sistema educacional e
depois certamente acontecerá, pacificamente, a revolução social.
126 João Henrique Bordin
A educação marxista omnilateral é a possibilidade que o
homem tem de dar início à construção da nova sociedade onde,
como citado no início deste artigo, “(...) cada indivíduo pode
aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver, não tendo por isso uma
esfera de atividade exclusiva, é a sociedade que regula a produção
geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar
de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da
refeição, e tudo isso a meu bel prazer, sem por isso me tornar
exclusivamente caçador, pescador ou crítico”170
. Devemos
lembrar sempre que a educação deve ser uma ferramenta de união
entre escola e a comunidade, pois não é possível educar as
crianças com diferentes posições diante da realidade existente.
170 - Marx e Engels - Textos sobre Educação e Ensino. 5ª Ed. São Paulo. Centauro, 2006. P.25
127 Educação Revessa
Disciplina na Educação
processo de construção deste trabalho inicia com a
colocação da teoria marxista, pois vimos nela,
especialmente na dialética, a possibilidade de encontrar suporte na
reflexão das contradições do Capitalismo, do sistema educacional
e na apresentação da educação omnilateral. Em seguida, passando
pela história, tivemos uma breve visão de como o ato de educar
foi se modificando de tempo em tempo. Tudo isso formou o
horizonte no qual engendramos a omnilateralidade como forma do
homem se desenvolver em sua totalidade. No entanto, para que
isso aconteça no atual sistema de ensino, constatamos a
necessidade da reflexão de um ponto crucial: a disciplina e rever a
questão da autoridade do professor.
A educação, segundo o dicionário da Língua Portuguesa
de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é o "Processo de
desenvolvimento da capacidade física, intelectual ou moral do ser
O
128 João Henrique Bordin
humano”171
, visando a sua melhor integração individual e social.
Complementando podemos entender a educação como o modo de
formar a personalidade da criança e do ser humano em geral, bem
como sua conduta no meio social, tendo sua iniciação no interior
da família e sua continuidade na escola.
Analisando estas duas instituições, família e escola, que
formam a base da sociedade, percebemos o quanto são
contraditórias no trato dos temas que estão em pauta na mente das
crianças, jovens e adolescentes. A mídia - TV, rádio, internet,
jornais, revistas e todos os demais meios de comunicação social -
apresenta diariamente milhões de informações que precisam ser
digeridas de forma a esclarecer e enriquecer o crescimento pessoal
de cada um. No entanto, o que se constata é que nem a família e
nem a escola sabem oferecer uma posição correta ou adequada a
toda essa situação, pois não estão e nunca foram preparadas para
oferecer alguma solução. Os pais, não sabendo lidar com os
problemas dos filhos, vêm pedir ajuda à escola que também não
sabe oferecer um posicionamento adequado. A escola, por sua
vez, quando um aluno está com dificuldades na aprendizagem,
convoca a família para um auxílio. É a família repassando à escola
a educação que lhe cabe, e a escola empurrando à família o ensino
que lhe pertence.
171 - Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 – Educação.
129 Educação Revessa
Temos, por um lado, um sistema educacional
desatualizado para a geração atual e sem perspectivas para as
gerações das futuras sociedades. De outro lado temos uma geração
que só pensa no presente, e no prazer que dele pode usufruir, sem
a mínima preocupação em planejar seu futuro. E ainda temos uma
escola com professores despreparados e uma família com pais que
não sabem o que fazer. Este último ponto, a escola e a família, é o
que interessa neste capítulo, por entendermos que as duas
instituições, apoiadas por uma disciplina formadora do caráter e
da personalidade responsável, levam o indivíduo a valorizar o
“eu” em relação ao respeito pelo outro, objetivando a igualdade
social.
O respeito pelo outro é o ponto de partida na tentativa de
solucionar o problema aqui apresentado e entendemos que a
disciplina na educação, tanto em sala de aula como além dela, na
família e na comunidade em geral, pode ajudar a superar o atual
sistema de desigualdades sociais, no qual o sentido da existência e
a liberdade só existem atrelados ao consumismo. Entendemos que
a solução não está apenas atrelada a uma instituição ou em alguns
indivíduos iluminados. Esses têm o dever do envolvimento ativo
na sua execução, mas são especialmente a escola e a família, em
sintonia, que podem deflagrar o ponto inicial da superação desse
dilema social.
130 João Henrique Bordin
Num primeiro olhar na situação das escolas constata-se a
falta de interesse tanto por parte dos alunos como dos professores.
Os alunos estão dispersos, em outro mundo; e o professor por sua
vez está noutro bem diferente - e ambos
não se encontram no mundo real. O
mundo do aluno gira em torno da
tecnologia que avança dia a dia. A TV e
toda a mídia criam a ilusão de que tudo
é fácil, basta apertar um botão, como no
videogame ou no controle remoto. O mundo do professor ainda é
muito antigo - com giz e apagador – e não desperta a atenção do
aluno. O professor não consegue o domínio da classe.
Por outro lado, a família não tem colaborado. Seus filhos
vão para a escola sem limites e se o professor tenta impor alguma
ordem os pais lhe tiram a razão. É aluno rebelde e professor que
não sabe o que fazer, pois punição a direção, o Estado e os pais
não permitem. Na escola também se refletem as impunidades
sociais e com isso o jovem não vê perspectivas do porquê e para
que estudar. A impunidade, na sociedade em geral, soa como um
“pode fazer o que quiser que nada vai te acontecer”. Nesse
contexto o professor se desmotiva, não planeja direito suas aulas
e, devido a seu despreparo, postura e métodos inadequados à
131 Educação Revessa
realidade atual, não encontra motivos para engendrar mudanças. É
claro que sempre há os que se importam.
No decorrer dos últimos trinta anos aconteceram muitas
investidas na tentativa de salvar um sistema que só se preocupa
com a transmissão de conhecimentos, que com certeza são muito
importantes, mas a educação perdeu no que tange à formação do
caráter e da personalidade do cidadão. Houve um grande avanço a
nível tecnológico e o corpo docente, em sua didática pedagógica,
não conseguiu acompanhar a evolução. Até então o esforço
educacional girou e gira em torno de manter todas as crianças na
escola e evitar que sejam repetentes, mediante a perda do
‘incentivo’ e visando a tirar o País do analfabetismo, para, diante
do mundo, mostrar que aqui todos sabem ler e escrever. Uma
medida que tem seu valor, a partir do momento que assegura
vagas para todos os alunos, esquecendo, no entanto, que
analfabeto não é aquele que não sabe ler, mas o que não quer ler.
O esforço não é nem um pouco árduo, já que com a criança na
sala de aula e o favorecimento de sua galga série após série, não
há muita exigência da escola.
No início do século XXI, devido a essa forma
educacional, as crianças vão à escola com um comportamento
perturbado, proveniente do interior das famílias. Famílias essas
que devido à falha na educação que receberam não souberam, ou
132 João Henrique Bordin
não tiveram, como iniciar a educação dentro do lar. As crianças
vão à escola não para se educarem, mas porque lá tem outros
amiguinhos para fazer estripulia. As crianças vão à escola não
para aprenderem, mas para bater nos colegas e mostrar que podem
mais, pela força. As crianças não vão à escola para se prepararem
para o futuro, mas para se rebelar e provar que são “demais”. As
crianças não vão à escola para ouvirem o professor, mas para
escutar a turma gritando “bate, xinga, soqueia”... As crianças não
vão à escola porque querem, porque não é à escola que querem.
Não vão à escola porque gostam, porque não é da escola que
gostam. Ainda há os que vão à escola por causa da merenda, se
bem que esses, na maioria das vezes, são esforçados e não criam
problemas. Portanto, na escola as crianças não encontram o meio
adequado para redirecionarem sua maneira de ser e estar na
sociedade, tendo em vista a convivência harmoniosa.
A iniciativa para reverter a atual situação da educação
está na própria escola em sintonia com a família. A nosso ver,
para estabelecer uma educação que responda aos anseios dos
alunos, pais e professores, é necessária a implantação da disciplina
na sala de aula com total apoio da família, pois juntos precisam
encontrar a maneira de sua imposição. A família precisa devolver
ao professor a autoridade que lhe foi subtraída, fazendo com que
hoje se encontre impossibilitado de impor limites sob pena de ser
133 Educação Revessa
processado. Não que a família tenha tirado a autoridade do
professor, mas ela tem o poder de devolvê-la. Tais limites advêm
de uma disciplina formadora do caráter, mediante o aluno assumir
suas responsabilidades, e só com a sintonia entre escola e família
alcançará esse objetivo, pois a escola com seus professores sem
autoridade desautoriza a família, desaparecendo o respeito pelo
outro.
Etimologicamente a palavra disciplina se assemelha a
discípulo, que quer dizer “aquele que segue” e deriva do termo
pupilo, do latim, que significa instruir, educar treinar, dando ideia
de modelagem total de caráter. Também é um dos nomes que se
pode dar a qualquer área de
conhecimento estudada e ministrada em
um ambiente escolar ou acadêmico. A
escola precisa de regras e normas para
um bom funcionamento, possibilitando
a perspectiva de construir juntos essas
mesmas regras para a perfeita interação
entre os diferentes elementos que nela
atuam, com a finalidade do convívio social. As regras determinam
os limites necessários para atingir a disciplina. A disciplina é um
hábito interno que facilita a cada pessoa o cumprimento de suas
obrigações, é um autodomínio, é a capacidade de utilizar a
134 João Henrique Bordin
liberdade pessoal, isto é, a possibilidade de atuar livremente
superando os condicionamentos internos e externos que se
apresentam na vida cotidiana. A vida em sociedade pressupõe a
criação e o cumprimento de regras e preceitos capazes de nortear
as relações, possibilitar o diálogo, a cooperação e a troca entre
membros do grupo social. A escola, por sua vez, também precisa
de regras e normas estabelecidas para orientar o seu
funcionamento e a convivência entre os diferentes elementos que
nela atuam. Nesse sentido, as normas deixam de ser vistas apenas
como prescrições castradoras, e passam a ser compreendidas
como condição necessária ao convívio social172
.
Para abordar o tema da disciplina faz-se necessário
investigar as causas que fazem com que o aluno seja
indisciplinado. Não basta, e nem é objetivo do presente estudo,
aplicar punições ou impor limites através da coação. A disciplina
requerida é a que leve o aluno a um posicionamento responsável,
consciente e íntegro diante de si e do outro – o colega, o professor,
sua família e a comunidade – para formar sua personalidade
baseada no convívio social com direitos e deveres iguais para
todos. No dizer de Anton Semionovich Makarenko (1888-1939)
“(...) pedir el máximo a cada persona, pero también hacerle objeto
172 - http://pt.wikipedia.org/wiki/Disciplina - Disciplina.
135 Educação Revessa
del mayor respeto posible”173
, isto é, a exigência no cumprimento
do dever sempre deve vir acompanhada do respeito pelo outro,
condição para ser atendido em seus direitos. Na maioria dos casos
a indisciplina tem ligação com o descontentamento que o
indivíduo tem de si próprio e do outro, desaparecendo o respeito e
a valorização do eu e de tudo o que é público. As origens do
descontentamento nem sempre estão na escola. Algumas vezes
vêm da própria família, outras da comunidade onde vive e ainda
podem decorrer da desigualdade social que a criança percebe em
nível mais amplo, na sua cidade, por exemplo. Diante disso a
escola precisa estar apta para detectar a origem dos
descontentamentos e encaminhar uma solução. A escola e a
família precisam estar convencidas, por isso em sintonia, de que a
disciplina “(...) en la coletividad es la defesa completa, la
seguridad plena de su derecho, de las vias y possibilidades que
precisamente existen para cada indivíduo”174
e que suas regras são
essenciais para o desenvolvimento da estrutura mental das
crianças, dos jovens e dos adolescentes, e que isso passa por uma
revisão da autoridade do professor na sala de aula.
173 - Makárenko, Antón S. Problemas de La Educacion Escolar Soviética. Moscú/URSS, Editora
Progresso, s.d. P.10 174 - Idem. P.53
136 João Henrique Bordin
A disciplina, o ser discípulo, exige a imposição de
limites, não como um impedimento à ação do aluno, mas como
uma preparação para a verdadeira liberdade e valorização de sua
ação. Tomemos o exemplo da poda. O pessegueiro, a macieira, a
parreira e muitas outras árvores frutíferas, se deixadas crescer
conforme a natureza permite, produzem poucos frutos, de baixa
qualidade e com pouco sabor. O agricultor sabe que se quiser
colher bons e saborosos frutos precisa praticar a poda em seu
pomar. Ao cortar certos galhos infrutíferos, possibilita uma maior
colheita naqueles que produzem. A poda, a princípio dolorosa,
impede o desenvolvimento
exacerbado da planta e
direciona-a para um crescimento
adequado à produção de frutos,
que acompanhada de uma boa
adubação e cuidados especiais
deixa a árvore esparramar livremente seus galhos. Assim é a
disciplina formadora da personalidade responsável, limita a ação
do comportamento inadequado para tornar o indivíduo consciente
e integro na relação consigo mesmo e com o outro. Disciplinado,
o discípulo, podemos dizer que é aquele que pacificamente se
sujeita às normas estabelecidas, aos cortes necessários em sua
conduta para um maior e melhor crescimento. Indisciplinado é o
que se rebela, não se submete, questiona, cria rupturas e não
137 Educação Revessa
permite deixar de lado hábitos impróprios para a interação grupal,
é o não discípulo. Na ótica do convívio social, familiar e bom
funcionamento da escola, a indisciplina é vista como um
desrespeito aos acordos já estabelecidos. A disciplina “(...) ensalza
a la coletividad”175
, portanto os limites não são apenas para o
próprio bem e sim para o perfeito equilíbrio entre os deveres e
direitos do eu e do outro.
A autoridade do professor precisa ser considerada como
fator decisivo na viabilização do processo disciplinar e educativo
dentro da sala de aula. Essa autoridade deve ser entendida não
como um autoritarismo, em que o professor manda e o aluno
obedece calado em sua classe, mas como um posicionamento
firme e decidido, no qual o aluno, num primeiro momento, se
espelhe e posteriormente o supere. A escola que não pode ser
concebida sem professores e muito menos sem sua autoridade nos
remete ao dizer de Theodor Wiesengrund Ludwig Adorno (1903-
1969) “(...) o professor precisa ter clareza quanto a que sua tarefa
principal consiste sem se tornar supérfluo”176
, esse
posicionamento faz com que o aluno sinta o apoio da autoridade e
ao mesmo tempo a necessidade de se emancipar, ou seja, pensar
com a própria cabeça ou alcançar sua autonomia.
175 - Makárenko, Antón S. Problemas de La Educacion Escolar Soviética. Moscú/URSS, Editora
Progresso, s.d. P.60 176 - Adorno, Theodor W. L. Educação e Emancipação. São Paulo. Paz e Terra. 1995. P.177
138 João Henrique Bordin
Para fazer da disciplina um aspecto essencial do processo
educacional faz-se necessário, além da pedagogia, o uso da
psicologia, sociologia, antropologia e demais campos do
conhecimento humano, a fim de garantir que os limites aplicados,
na sintonia entre a escola e a família, levem o indivíduo a uma
formação plena de caráter e personalidade voltada para o bem
comum. Como aspecto essencial do processo educacional, a
disciplina tem dupla função na sala de aula e fora dela. De um
lado limita responsavelmente o aluno, dando-lhe mais liberdade
em sua condição discente. De outro devolve a autoridade do
professor, transformando-o de simples transmissor de
conhecimentos em educador.
Ao se estabelecer a disciplina na sala de aula como um
processo educativo, em sintonia com a família e com a restauração
da autoridade do professor, acreditamos ser possível dar início à
solução do dilema social no qual Marx afirma que “por um lado, é
necessário modificar as condições sociais para criar um novo
sistema de ensino; por outro, falta um sistema de ensino novo para
poder modificar as condições sociais”177
, e nessa resolução
afirmar a convicção de que tudo se encontra em permanente
conexão material e universal. Assim, a educação disciplinada se
torna uma ferramenta de aglutinação social, a começar pela
177 - Marx, Karl H. O Capital. São Paulo. Nova Cultura. 1996. P.107
139 Educação Revessa
sintonia entre família e escola, se expandindo pelos demais níveis
da sociedade para emancipar o homem em sua omnilateralidade,
formando a consciência de que a história é um constante
movimento, tornando possível a superação do capital. A “(...)
emancipação precisa ser acompanhada por certa firmeza e unidade
do eu”178
e acredito que só é possível alcançar esta firmeza e
unidade do eu mediante a revisão da autoridade do professor e
uma disciplina formadora da personalidade. O professor precisa
ser mestre e o aluno discípulo. O verdadeiro mestre almeja ser
superado pelo seu discípulo. Essa superação se torna possível com
uma formação omnilateral.
Historicamente, e mais precisamente depois do
surgimento da concepção cristã do homem e da sociedade, esses
foram mantidos em uma noção de mundo cindida. O indivíduo
cindido entre o humano e o divino formou a base do sistema de
divisão do trabalho e sua organização social. A educação, no
sistema, atendia à ideologia dominante, determinando o que cabia
a cada classe social. Em tal contexto e na tentativa de manter a
integridade da pessoa, Marx e Engels esclarecem que “por
educação entendemos três coisas: 1) Educação intelectual; 2)
Educação corporal, tal como a que se consegue com os exercícios
da ginástica e militar; 3) Educação tecnológica, que recolhe os
178 - Adorno, Theodor W. L. Educação e Emancipação. São Paulo. Paz e Terra. 1995. P.180
140 João Henrique Bordin
princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes
no manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos
industriais”179
. Esse é o ensino politécnico anunciado por Marx e
Engels e aqui denominado omnilateral por desenvolver uma
educação abrangente, ou seja, em todos os sentidos e proveniente
de todos os lados. A educação omnilateral é a possibilidade de o
homem chegar ao desenvolvimento da totalidade de suas
capacidades e usufruir, espiritual e materialmente, de toda a
produção social, conceber-se como sujeito da história, com
direitos e deveres e uma consciência crítica na relação com o
mundo.
A disciplina na escola, acompanhada da autoridade do
professor, em sintonia com a família, torna possível uma educação
que envolva a totalidade intelectual, física, corpórea e sensível
com a finalidade da emancipação do homem, pois não se trata
apenas de transmitir conhecimentos dentro da sala de aula, mas de
um processo educativo de ligação e interação das diversas partes
sociais, em especial entre família e escola, foco deste estudo. A
disciplina deve fazer parte do processo de uma educação, como no
dizer de Célestin Freinet (1896-1966), “(...) centrada na criança
179 - Marx e Engels - Textos sobre Educação e Ensino. 5ª Ed. São Paulo. Centauro, 2006. P.68
141 Educação Revessa
enquanto membro da comunidade”180
, pois a formação do aluno
sempre tem um fim social. A recíproca colaboração, entre escola e
família, envolve o princípio de uma teoria educacional marxista
que comporta um ensino omnilateral que leve o indivíduo
multifacetado à humanização, tendo no horizonte a totalidade, e
pode ser aplicado na reformulação do sistema educacional tendo
em vista amenizar as desigualdades sociais e tornar o Capitalismo
mais humano. É uma educação altamente revolucionária, mas para
que sua concretização se torne possível é necessária a união entre
a escola e a família, numa recíproca colaboração, transformando a
escola no lugar de encontro entre pais, alunos e mestres, com a
finalidade de construir um processo educativo que desenvolva o
indivíduo na sala de aula reciprocamente com o desenvolvimento
em seu lar.
O lar é o primeiro mundo que a criança conhece, o lugar
onde seus sentidos principiam o descobrimento da vida. O lar
apresenta as primeiras contradições e
definições à criança. No lar a criança
conhece e sente o que é o amor, o
carinho, a amizade, o respeito e também
pode presenciar a existência do ódio. No
lar a criança aprende a dividir, a compartilhar. No lar a criança
180 - Freinet, Célestin. Para uma Escola do Povo. São Paulo. Martins Fontes. 1996. P.180
142 João Henrique Bordin
percebe que não estamos sós, que vivemos em sociedade e que o
outro, além de sua família, também pertence a um lar, diferente,
mas a um lar. No lar a criança inicia a construção de sua
personalidade. No lar o jovem tem acompanhamento e apoio em
suas decisões, recebe e aceita críticas que o ajudam a melhor
compreender o que pretende para sua vida. No lar o indivíduo tem
apoio nas fomentações de mudanças sociais e ajuda no
planejamento das táticas para sua concretização.
A sala de aula, por sua vez, é um universo onde circulam
os conhecimentos básicos e as grandes teorias do saber humano.
Ela é um conglomerado de contradições
e definições. É lá que se dá a
continuidade da formação da
personalidade do indivíduo. É lá que a
criança conhece e descobre os diversos
rumos que sua vida pode tomar. É lá que
o jovem define o seu futuro profissional. É lá que o homem
proclama sua liberdade desencadeando a libertação do outro. A
sala de aula é o lugar onde se fomenta a mudança social e se
planejam táticas para sua superação. Tanto na escola como no lar
a disciplina é imprescindível, pois sem ela o indivíduo cresce sem
limites, sem a valorização do eu e sem o respeito pelo outro.
143 Educação Revessa
Para que o aluno, cidadão com múltiplas relações
socioeconômicas, possa realizar o que a escola, a família e ele
próprio se propuseram é necessária uma constante renovação em
todo o processo educativo. Antônio Gramsci (1891-1937) diz que
“(...) todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma
atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo, um artista,
um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo,
possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim
para manter ou para modificar uma concepção do mundo; isto é,
para suscitar novas maneiras de pensar”181
. Portanto, as opiniões,
os questionamentos, os incentivos devem sempre estar em pauta
na união pais, alunos e professores, o que não é possível sem uma
disciplina formadora da personalidade responsável e de uma
consciência íntegra diante de si e do outro. Essa união é a base de
uma nova sociedade, o terreno fértil para engendrar as tarefas, no
dizer de Georges Snyders (1917-...), com um “(...) sentido
progressista (...)”182
, que possibilita a mudança do atual sistema e
o ponto de partida para desencadear uma educação revolucionária
que tem em seu bojo uma pedagogia inclusiva e extensiva,
assegurando aos pais que estarão colocando seus filhos numa
escola por eles reivindicada, “(...) realmente aberta a todos; à
181 - Gramsci, Antônio. Cadernos do Cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo.
Jornalismo. Rio de Janeiro. Civilização Brasiliense. 2006. P.53 182 - Snyders, Georges. Escola, classe e luta de classes. 2ª ed. Lisboa-Portugal. Moraes, 1981.P.103
144 João Henrique Bordin
sensibilidade às injustiças da escola agudiza-se paralelamente com
a convicção de que é possível uma outra sociedade”183
. Pedagogia
inclusiva porque objetiva a participação social, pais, alunos e
professores na elaboração de seu método e conteúdo a ser
transmitido. Extensiva, pois almeja não só a formação do aluno na
sala de aula, mas também dos demais membros da família, visto
haver uma grande disparidade entre o que os pais sabem e o que
na sala de aula se propõe a ensinar, proposição essa elaborada na
união escola e família.
A disciplina, o ser discípulo, viabiliza a concretização da
concepção marxista de uma educação omnilateral e é a
possibilidade que o homem tem de implantar a nova sociedade
“(...) onde cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe
aprouver, não tendo por isso uma esfera de atividade exclusiva. É
a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer
hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde,
pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isso a
meu bel prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador,
pescador ou crítico”184
. Devemos lembrar sempre que a educação
deve ser uma ferramenta de união entre escola e a comunidade,
pois não é possível educar as crianças com diferentes posições
183- Snyders, Georges. Escola, classe e luta de classes. 2ª ed. Lisboa-Portugal. Moraes, 1981. P.104 184 - Marx e Engels - Textos sobre Educação e Ensino. 5ª Ed. São Paulo. Centauro, 2006. P.25
145 Educação Revessa
diante da realidade existente. Urge a necessidade de formar a
consciência coletiva, com a convicção de que a liberdade só é
verdadeiramente um fato se acompanhada da disciplina e que a
escola torna isso viável se a educação for amparada pela
autoridade do professor. A educação, vista desse ângulo, não é
uma forma mágica de transformação do mundo, mas um
instrumento que auxilia a própria sociedade a mudar.
Liberdade não consiste em se livrar de
todas as contingências que afligem a vida em
determinada situação pessoal, no grupo de
amigos, ou sistema social, tampouco é fazer
tudo o que se quer, como se quer e onde se
quer. Liberdade é saber posicionar-se frente às
intempéries da vida e responder de forma coerente às investidas
que tendem a manobrar o caráter e deformar a personalidade. A
disciplina, a priori, com suas regras e normas, ensina e conduz no
caminho da liberdade. Liberdade pressupõe a disciplina formadora
do caráter e da personalidade autêntica e consciente. Disciplina
deve ser o horizonte no qual se espelha todo o modo de ser e de
viver em liberdade. Não há liberdade sem disciplina.
"Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda" (Paulo Freire).
146 João Henrique Bordin
147 Educação Revessa
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. L. Educação e Emancipação. São Paulo.
Paz e Terra, 1995.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio século
XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999.
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As ilustrações foram obtidas no Google/imagens.
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150 João Henrique Bordin
Liberdade não consiste em se livrar de todas as contingências que afligem a vida em determinada situação pessoal, no grupo de amigos, ou sistema social, tampouco é fazer tudo o que se quer, como se quer e onde se quer. Liberdade é saber posicionar-se frente às intempéries da vida e responder de forma coerente às investidas que tendem a manobrar o caráter e deformar a personalidade. A disciplina, a priori, com suas regras e normas, ensina e conduz no caminho da liberdade. Liberdade pressupõe a disciplina formadora do caráter e da personalidade autêntica e consciente. Disciplina deve ser o horizonte no qual se espelha todo o modo de ser e de viver em liberdade. Não há liberdade sem disciplina.
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