E se de repente um monstro enorme, peludo, com garras ... · E se de repente um monstro enorme,...
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E se de repente um monstro enorme, peludo, com garras afiadíssimas e
muita, mas muita sede de sangue, quisesse marcar um encontro com você à
meia-noite, na porta do cemitério? E se esse monstro terrível, depois de assustá-
lo, lhe pedisse ajuda?
Certamente você não acreditaria numa palavra dele, não é mesmo? Mas
Irenona, Bié, Paloma, Mateus e Cientista Maluco acreditaram. E caíram numa
armadilha cheia de surpresas e perigos, que pode levá-los à morte. A não ser
que... Bom, você vai ter que acompanhar as aventuras dos cinco amigos para
saber o que aconteceu.
TEXTO
Editor
Fernando Paixão
Editora assistente
Carmen Lucia Campos
Assessora editorial
Rosemary Pereira de Lima
Preparação dos originais
Carlos Alberto Inada
Suplemento de trabalho
Bernadete Siqueira Abrão
ARTE
Editor
Marcello Araújo
Editoração eletrônica
No Problem
ISBN 85 08 06105 6
O ENIGMA DO QUIMERA
Irenona, Bié, Palomar, Mateus e Cientista Maluco queriam apenas se
divertir durante a festa das Cavalhadasna cidade goiana de Pirenópolis, perto de
Brasília. Mas um livro encontrado no lixo mudou os planos da turma.
Em suas páginas havia um pedido de socorro. Sabe de quem? Do Quimera,
o monstro mais terrível que já apareceu! Com uma boa dose de coragem e outra
ainda maior de medo, resolveram ajudar a criatura. E aí muita coisa aconteceu...
Bilhetes esquisitos, sumiços misteriosos, trapalhadas e muito susto
compunham a trilha do Quimera. Ninguém esperava uma cilada daquelas!
Você também vai ficar arrepiado, mas em compensação vai desvendar um
dos maiores enigmas de que se tem notícia!
CONHECENDO JANAÍNA AMADO
A baiano Janaína Amado nasceu em Salvador e já morou em vários
lugares: Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia e Estados Unidos. Hoje vive em
Brasília. É casada e tem dois filhos adultos. Professora universitáriai, publicou
vários livros de História.
Escrever Terror na festa foi uma experiência muito especialque a fez se
sentir criança de novo. Daí a ideia de mostrar a autora em dois momentos dife-
rentes: boje e quando ela era ainda menina.
Janaína nunca se esqueceu da primeira vez, há muitos anos, em que
assistiu a festa do Divino, na pequena cidade de Pirenópolis, estado de Goiás.
Por isso, resolveu fazer dessa festa o cenário para esta divertida aventura
juvenil. E como ela confessa:"Esta história é uma homenagem ao povo de
Pirenópolis e à sua festa (que continua a acontecer todos os anos, muito
animada), em agradecimento por momentos de magia".
Sumário
1. Surge o Quimera
2. Arrepios na noite
3. Horror no cemitério
4. Terror na festa
5. Um terrível engano
6. O sumiço de Bié
1. Dois bilhetes de amor
8. Todo mundo nervoso
9. A paixão de Irenona
10. O segredo de Cientista Maluco
11. Prisioneiros na casa maldita
12. Banquete macabro
13. 0 enigma do Quimera
14. Fim de festa
Este livro é para minha xarazinha Janaína Canêdo de Barros, a Jê
ADVERTÊNCIA (esse título – advertência – não consta do livro, somente o texto abaixo)
Se o seu coração dispara, quando você entra em cemitério. Se assiste a
filme de terror e depois não dorme de tanto medo. Se os cabelinhos do seu
braço arrepiam-se, quando está no escuro, sozinho. Se não acredita em bruxas,
espíritos ou fantasmas, mas sonha com eles à noite, apavorado. Se ouve
barulhos estranhos, vindos de um quarto vazio. Se sente tonturas e vontade de
desmaiar, ao ver sangue. Se não consegue nem pensar em monstros, quanto
mais encontrar-se com um, então PARE DE LER ESTE LIVRO!
1. Surge o Quimera
Assim começa o livro que as crianças acabaram de encontrar no lixo, atrás
da igreja de Pirenópolis. Quer dizer, chamar aquilo de "livro" é exagero: umas
três pagininhas de caderno, amassadas, sujas, fedidas...
— Pare de ler, pelo amor de Deus! — grita Bié, apavorada. — Morro de
medo de filme de terror! Detesto cemitério, diabo, barulhos que a gente não
sabe de onde vêm!
Os olhos de Bié estão arregalados. Ela fala sem parar:
— Tenho pavor de bruxa, espírito, fantasma, dessas coisas todas! Quase
desmaiei, semana passada, quando fui fazer exame de sangue! Sinto medo de
tudo o que está escrito nessas páginas! — Segurando as mangas de Cientista
Maluco, implora: — Joga isso de volta no lixo, Cientista! Vamos brincar de outra
coisa!
Irenona interrompe, no seu jeito bruto de ser:
— Por isso é que não gosto de pirralha no meio da gente! Se está com
medo, se manda, Bié! Vai pra pousada, vai, ficar grudada na barra da saia da sua
mãe! Lá, sim, é lugar de menina pequena!
Vira-se para os outros, desafiadora:
— Claro que Cientista Maluco vai ler o resto do livro pra gente! Ora, se
vai!
Paloma faz carinho na cabeça da irmã:
— Eu também sinto medo dessas coisas, Biezinha. Só de pensar em
encontrar algum monstro, fico toda arrepiada, olhe — mostra a penugem
eriçada das pernas. — Mas agora não tem perigo, não! Cientista Maluco está
apenas lendo um livro que alguém escreveu, com certeza pra se divertir, depois
jogou no lixo. Nada de ruim vai acontecer com a gente!
Para se garantir, Bié tapa bem os dois ouvidos.
Cientista Maluco roda e estica o pescoço para fora da estranha roupa, um
avental de médico, imenso para ele, que um dia encontrou jogado na rua e,
desde então, não tirou do corpo. Avental que foi branco, mas, devido à sujeira,
se tornou preto como asa de urubu. Franzindo o nariz, Cientista Maluco
recomeça a ler:
Se você é corajoso. Se é curioso. Se adora aventuras. Se acha que sua vida
pode ser ainda mais interessante. Se consegue guardar segredos, mesmo quando
sua língua coça muito. Se é capaz de encontrar-se com um monstro de verdade,
sem chorar, espernear, gritar ou sair correndo, então
É VOCÊ MESMO QUE ESTOU PROCURANDO!
— Sou corajosa, forte, curiosa, não tenho medo de monstros! — anima-se
Irenona. — É pra mim mesma que esse livro foi escrito!
— Sei não, gente, sei não, isso não tá me cheirando bem... — Mateus
balança a cabeça, pessimista.
— Claro que não tá cheirando bem! — soa ao lado deles a vozinha fanhosa
de Bié. — Cientista Maluco encontrou o documento dentro do lixo, não foi?
Então! Como podia cheirar bem?
Mateus goza:
— Não adiantou nada tapar os ouvidos, hein, Bié? Escutou tudinho, do
mesmo jeito...
Irenona interfere:
— Você é boba mesmo, Bié! Mateus não tava falando do cheiro do papel,
não! Tava falando do cheiro da mensagem!
Bié não consegue entender:
— Ué, mensagem tem cheiro?
Ninguém tem paciência para responder à pergunta da menina. Todos
estão concentrados no caso do livro misterioso.
— Acho que é um extraterrestre, um ET, querendo fazer contato com a
gente! — Cientista Maluco está excitadíssimo. — Oba, eu sempre quis conhecer
um! Até criei um código supercomplicado, pra me comunicar com eles; o código
mistura números, receitas de bolo, letras, caretas, faróis de carro, batidinhas na
madeira...
— Pode ser um tarado! — interrompe Mateus.
— É alma de outro mundo, tenho certeza! — geme Paloma.
— Toca pra frente, Cientista Maluco! Lê o resto! — ordena Irenona.
***
Sentados no chão, sob as altas palmeiras imperiais, em frente à igreja de
Nossa Senhora do Rosário, a matriz de Pirenópolis, iluminada para a festa do
Divino Espírito Santo, os meninos ouvem atentamente. Conhecem-se há poucos
dias, desde o início da festa, mas já se tornaram íntimos.
— Nossa amizade foi à primeira vista! — gosta de repetir Mateus,
satisfeito, os outros concordando com ele.
Encontraram-se por acaso. No dia da chegada a Pirenópolis, Paloma e Bié
subiam a rua do Bonfim, explorando a nova cidade, quando um tumulto no alto
da ladeira chamou-lhes a atenção. Correram até lá, chegando a tempo de ver
dois grandalhões esmurrarem um menino magrelo, metido num estranho
avental de médico; sem forças para reagir, o menino debatia-se.
— Não se enxergam, não? — gritou Paloma, indignada. — Dois
marmanjões, batendo num menino menor!
— É isso mesmo! — apoiou Mateus, que acabara de chegar. Partiu
imediatamente para cima dos marmanjos, atracando-se com eles.
Do outro lado da rua disparou uma menina enorme, desajeitada, cabelos
vermelhos encaracolados, tênis desamarrados. Jogou-se com todo o peso sobre
um dos grandões, que imediatamente se estatelou no chão.
— Muito bem! Muito bem! — torciam Paloma e Bié.
A luta terminou quando os dois marmanjões fugiram em direção à igreja
do Bonfim. Paloma precipitou-se até os garotos:
— Vocês estão bem? — Percebendo que Mateus tinha um corte na testa,
segurou aflita a cabeça do menino entre as mãos, soprando-lhe o machucado.
Ao sentir o rosto dela tão perto do seu, a penugem dourada, o hálito fresco, as
mãos macias, Mateus teve uma súbita tonteira. "Foi mais fácil enfrentar os
marmanjos", pensou, divertido.
Sem nenhum arranhão, a menina enorme nem parecia saída de uma briga.
Mas xingava:
— Covardões, é o que eles são!
— São mesmo! — concordou Cientista Maluco, ainda no chão, respiração
ofegante, esfregando a garganta, onde se viam marcas dos dedos dos
grandalhões. — Dessa vez, pensei que ia morrer!
Bié não escondia a admiração pelo desempenho de Irenona:
— Como você luta bem! Adorei aquele seu golpe na corcunda deles!
Irenona deu um sorriso tímido de agradecimento, que não combinava
com o tamanhão dela. Dirigiu-se a todos:
— Eu vivo em Brasília. E vocês?
— Eu e Bié moramos em Goiânia — respondeu Paloma. — É a primeira vez
que a gente vem assistir às Cavalhadas. Todos dizem que é uma festa linda!
— Eu sou de Taguatinga! — contou Mateus, refeito da rápida tontura. —
Tenho uma tia que mora aqui. Ela sempre me convida pra assistir à festa; dessa
vez, deu tudo certo, eu pude vir.
— Taguatinga? — A cara de Bié parecia um ponto de interrogação.
— É uma cidade-satélite pertinho de Brasília — Paloma explicou.
Cientista Maluco levantou-se, óculos tortos, avental sujíssimo. Seus olhos
brilhavam; no rosto, um grande sorriso:
— Muito obrigado, gente! Muito obrigado, mesmo! Vocês salvaram a
minha vida!
— Ora, não exagere!
— Não estou exagerando! É verdade! Aqueles dois caras ainda matam um!
Adoram bater nas pessoas, sem motivo!
— Detesto covardia — rosnou Irenona.
De repente Cientista Maluco parou, uma ideia luminosa na cabeça:
— Ei! Vocês todos vieram assistir à festa pela primeira vez, não foi? Eu
sou nascido e criado aqui em Pirenópolis! Vim ao mundo durante uma
Cavalhada! Que tal mostrar tudinho pra vocês?
Não precisou perguntar duas vezes.
Desde então, os cinco não mais se separaram. Amizade à primeira vista,
como diz Mateus. Apesar de muito diferentes entre si, têm coisas em comum: a
alegria, a curiosidade, o senso de humor, o horror à injustiça... Completam-se. E
estão adorando Pirenópolis!
Todas as manhãs encontram-se bem cedo, defronte à sorveteria. Após
deliciosos banhos no rio das Almas, zanzam o dia inteiro pela cidade enfeitada
de fitas e bandeirolas, subindo e descendo as ladeiras antigas, atravessando a
ponte de madeira, admirando os lindos casarões e igrejas de outros tempos,
beliscando as comidas dos restaurantes e barraquinhas, em meio à alegria dos
moradores e da multidão de turistas chegados para a festa.
Cientista Maluco passa a mão pelos cabelos arrepiados, ajeita os óculos,
que continuam tortos, dá uma tossidinha e recomeça a leitura do livro
misterioso:
Se você ainda está lendo isto, é porque pode me ajudar. Tenho um
problema horrível. Sou um carinha de doze anos, igual a todo mundo. Na festa
deste ano, porém, me aconteceu uma coisa terrível: eu me transformei num
monstro! Um monstro horroroso, babão, peludo, de garras enormes,
malvadíssimo! Agarro, mato e como todos os pequenos animais que encontro!
furo que tento resistir, mas não consigo: a vontade de devorar é mais forte do
que eu!
Se você quer me ajudar, libertando-me dessa terrível condição, e, de
quebra, viver a maior aventura de sua vida, venha encontrar-se comigo hoje,
sexta-feira, treze de junho, à meia-noite, em frente ao portão do cemitério.
Assinado: Quimera
P. S. — Não traga nenhum adulto; ultimamente, ando com vontade de
devorar maiores de dezoito anos!
2. Arrepios na noite
Bié dá um risinho amarelo:
— Sabe, gente, de repente senti uma vontade danada de fazer pipi...
Tchau! Estou indo pra pousada! — começa a subir a ladeira.
Mateus sorri, ao ver a menina pequena afastar-se, de medo. Irenona grita,
o maior desprezo na voz:
— Vai, Bié! É melhor, mesmo! Você só iria atrapalhar! Como
encontraremos Quimera, com uma fedelha como você grudada na gente?
Paloma não pode acreditar no que ouviu. Gaga de surpresa, pergunta:
— Nós... nós... va-vamos? Encon-con-trar Quimera? No ce-ce-cemitério? À
meia-noi... noi... te?
— Claro que vamos! — Encontrar quimeras à meia-noite, em cemitérios,
parece a coisa mais natural do mundo para Irenona.
— Não vejo nada claro! — Paloma reage. Vira-se para os meninos: —
Ficaram malucos? Vão se meter numa aventura dessas, sem pé nem cabeça,
superperigosa?
— É nossa grande oportunidade! — Empolgado, Cientista Maluco sobe
num caixote, pronto para discursar. Ajeita o avental imundo, estica o pescoço,
faz expressão séria, mas balança tão violentamente a cabeça que os óculos
voam longe:
— Você acha, Paloma, que podemos recusar um convite desses, para dar
de cara com um monstro de verdade, de carne e osso, peludão, garras afiadas,
soltando urros, correndo desabalado atrás da gente? — De quatro na calçada, à
procura dos óculos, prossegue: — É minha grande chance, esperei por ela a vida
toda! Ah, finalmente — finalmente! — o mundo vai conhecer o maior cientista de
todos os tempos!
Sentado no velho calçamento de pedras da cidade, segurando nas mãos o
que restou dos óculos, olhar sonhador pousado ao longe, completa, encantado:
— Já imaginaram as notícias na TV, amanhã?
"ATENÇÃO, ATENÇÃO!
CIENTISTA MALUCO DECIFRA O ENIGMA DO QUIMERA!"
— Eu não quero decifrar enigma de Quimera nenhum! — retruca Paloma.
— Vim de Goiânia até aqui pra assistir à festa das Cavalhadas, não pra ser
devorada por um monstro maluco!
As mãos fortes de Mateus seguram por trás os ombros de Paloma. Rosto
próximo ao dela, boca colada ao ouvido da menina, voz firme, sussura:
— Não se preocupe, Palomita. Estou aqui para protegê-la.
"Uau! Se é pra ser protegida por este gato... a coisa toda muda!" Deliciada,
Paloma faz um leve movimento de quadris, ajeitando a franja sobre os olhos.
"Que mãos lindas ele tem... Que voz! Adorei o 'Palomita'!"
Assistindo à cena, Irenona e seu grande coração amolecem. Aproximando-
se desajeitadamente de Cientista Maluco, que continua escarrapachado no chão,
ela deixa cair o corpo pesado ao lado dele. Passa os braços grossos em torno do
pescoço do amigo, quase o sufocando. Procura imitar o tom de voz de Mateus
com Paloma:
— Não se preocupe, Cientista Maluco. Estou aqui para protegê-lo!
Mateus e Paloma tapam a boca, para não desatar na gargalhada.
Um minuto depois, Irenona volta ao seu jeito mandão. Mantendo a cabeça
de Cientista Maluco espremida debaixo do braço, berra, a plenos pulmões, para
a cidade inteira ouvir:
— Quinze pra meia-noite, todo mundo na porta do cemitério! — Crava os
olhos em Paloma: — Isto é: aqueles que tiverem coragem!
***
Onze e meia da noite. Os becos e ladeiras de Pirenópolis estão desertos.
Silêncio completo. A escuridão da serra envolve a cidade. A população recolheu-
se cedo, preparando-se para as intensas atividades do dia seguinte, sábado,
quando começam as Cavalhadas, a parte mais animada da festa do Divino
Espírito Santo. Cansados da viagem ou dos passeios pelas redondezas, os
turistas descansam dentro das pousadas. Na cidade de Pirenópolis, todos
dormem. Isto é: quase todos.
Paloma sacode a irmã:
— Acorde, Bié... Acorde!
A menina mexe-se na cama, resmungando.
Paloma insiste:
— Abre o olho! — Faz-lhe cócegas nos pés.
Bié reage:
— Me largue, tou morta de sono!
— Psiu, fale baixo, senão acorda papai e mamãe! Levante, Bié, tá na hora
de encontrar nossos amigos, procurar Quimera no cemitério...
Bié senta-se de um pulo na cama, furiosa: — Já lhe disse que não vou
procurar Quimera nenhum! Tenho horror a cemitério! — Cobre a cabeça com o
lençol, virando-se para a parede.
Paloma muda de tática:
— Biezinha, querida... Sabe aquela minha coleção de papéis de carta?
Aquela linda, que guardo trancada a sete chaves? A que você adora?
Silêncio.
— Pois é... Estava pensando: se você for comigo ao cemitério, lhe dou
cinco papéis de carta!
Silêncio.
— Pode ficar com cinco envelopes, também!
Silêncio.
— Seis papéis e seis envelopes, à sua escolha! Que tal?
Silêncio.
— Tá bem: sete papéis e sete envelopes. É minha última oferta. Pegue ou
largue!
Silêncio prolongado. Bié dorme a sono solto. Desanimada, Paloma vai
desistir do encontro — como aventurar-se tarde da noite, pela cidade deserta,
rumo ao cemitério, sozinha? —, quando escuta a vozinha fanhosa:
— Por quinze papéis de carta e quinze envelopes, sou até capaz de mudar
de ideia...
— Exploração! — indigna-se Paloma. Depois de muito negociar, acabam
acertando tudo por dez envelopes e dez papéis de carta.
Levam tempo para aprontar-se. Bié insiste em usar óculos escuros,
mesmo à noite, para não haver o menor perigo de enxergar o Quimera. Paloma
não se decide sobre o penteado que usará. Rabo-de-cavalo? Cabelo solto? A
franja ficaria melhor penteada pra baixo, pra cima ou pro lado?
— Tanto faz! — goza Bié. — Garanto que Quimera nem vai reparar!
"Mas outra pessoa vai", Paloma pensa.
Saem do quarto devagarinho, para não acordar os pais, que dormem no
quarto ao lado. Passam agachadas pela recepção da pousada, onde um porteiro
dormita, diante da televisão.
Na rua, ninguém. Deserto. Silêncio. Escuridão. Frio. A lua se esconde
lentamente atrás das nuvens. As duas irmãs dão-se as mãos. Trêmulas de medo,
respiração ofegante, corações aos pulos, enfiam-se pela rua do Rosário, rumo ao
cemitério.
***
— Droga! — berra Irenona, socando o portão de ferro do cemitério. —
Porcaria de vida!
Ilumina o relógio de pulso com a lanterna:
— Quinze pra meia-noite, e ninguém apareceu! Eu devia saber que não
viriam! — Furiosa, grita para ninguém, no meio da noite: — Bando de medrosos!
Mariquinhas, é o que vocês são! Covardes!
Impaciente, Irenona anda de um lado para outro, junto ao muro do
cemitério, balançando o corpo grandalhão, desajeitado. Chuta pedras. Morde os
lábios. Coça os cabelos vermelhos e encaracolados. Rói as unhas. Aqueles novos
amigos são as pessoas mais legais que conheceu na vida! Os únicos que
entendem seu jeito diferente, zangado e mandão de ser. Os dias passados com
eles, em Pirenópolis, têm sido maravilhosos! Como esses mesmos amigos têm
agora a coragem de faltar ao encontro marcado, largando-a sozinha, à meia-
noite, em frente ao cemitério? Será que não gostam mais dela?
Duas coisas Irenona não suporta: esperar pelos outros e sentir-se
abandonada. Quando as duas coisas acontecem ao mesmo tempo, como agora,
ela vira fera. Bicho furioso: esperneia, dá pontapé, cabeçada e umbigada, bate,
morde! Chuta uma árvore com toda a força, gritando:
— Meleca de mundo! Vocês não querem nada comigo, é? Me deixam
sozinha aqui? Pois que se danem! Eu também não me importo com vocês nem
um pouco! Nem um pouquinho, ouviram bem? Bobões! Idiotas! — Os gritos não
escondem a mágoa de Irenona.
— Coitada da árvore, não tem culpa de nada... — soa ao lado dela a voz
alegre de Mateus. — Ainda mais uma árvore tão bonita, enfeitada de vermelho e
branco pras Cavalhadas! Por que você está tão brava, Irene?
Irenona disfarça a enorme alegria de rever o amigo com uma bronca
colossal:
— Pensei que você não vinha mais! Está atrasadíssimo! Não tem relógio?
Pensa que sou árvore, pra ficar a vida toda plantada aqui?
— Como, atrasadíssimo? — admira-se Mateus. — Ainda faltam... —
consulta o relógio de pulso de Irenona — ...dez minutos pra meia-noite! Estou só
cinco minutos atrasado, assim mesmo pra hora que você marcou! Quimera
combinou o encontro com a gente pra meia-noite em ponto!
Paloma e Bié, juntinhas uma da outra, muito assustadas, dobram a
esquina. Mateus caminha até elas, feliz, segurando a mão de Paloma.
A menina sente o maior arrepio de toda a sua vida. Por causa do frio? Do
medo de Quimera? Ou será por causa da mão forte de Mateus, pela primeira vez
segurando a sua? O arrepio começa no dedo mindinho, sobe pelo braço, chega
ao coração — batendo forte, descompassado —, volta ao umbigo, percorre as
duas pernas, desliza até o pescoço, espalha-se pelo rosto afogueado,
terminando na pontinha da orelha esquerda! Ainda sem entender o que lhe
acontece, Paloma ouve, junto ao ouvido:
— Você está linda, com esse cabelo solto...
"Como diabos ele consegue enxergar o cabelo dela, nessa escuridão
toda?", impressiona-se Bié.
Irenona continua a bronca:
— Vocês não têm relógio? Estão superatrasadas! Há mais de uma hora
espero vocês!
— Como chegou tão cedo? — Paloma pergunta.
— O Alcebíades me trouxe...
— Alcebíades?! — Os meninos entreolham-se, espantados. Nunca ouviram
falar de tal figura. Quem será o misterioso Alcebíades?
— Meu motorista...
Mateus arregala os olhos:
— Irene, você veio até aqui de carro? Tão pertinho, e veio de carro? Com
motorista, ainda por cima?
Sem compreender o espanto de Mateus — afinal, em Brasília, onde mora,
só anda de carro, sempre acompanhada do motorista —, Irenona tenta
desculpar-se:
— O Alcebíades não vai atrapalhar o encontro da gente com o Quimera! Já
foi embora. — Ri: — Expliquei a ele que, se ficasse, seria devorado!
Mateus recorda-se das longas caminhadas que faz a pé, todos os dias,
pelas ruas de Taguatinga, a cidade-satélite de Brasília onde mora: de casa até o
colégio distante, do colégio até em casa, ele e os irmãos menores, corações
pesados de tanto cansaço, na chuva, no frio, sob sol forte. Lembra-se dos
compridos caminhos até a feira, onde trabalha às quintas e sábados. Nenhum de
seus parentes possui carro, nem a tia de Pirenópolis, a de melhor situação
econômica da família. Mateus vinga-se de Irenona:
— Se você continuar pra cima e pra baixo só de carro, vai virar uma moça
magrinha, fraca, desnutrida! Andar a pé faz superbem pra saúde, sabia?
A menina examina o próprio corpo, espantada, sem conseguir entender
como, sendo tão alta, forte, corada, pernas grossas — Irenona! —, poderia
transformar-se numa moça fraquinha!
Os pensamentos de Irenona são bruscamente interrompidos. Surgido do
nada, de dentro da escuridão da noite, aparece na frente deles um vulto
aterrador.
3. Horror no cemitério
Quimera avança em direção às crianças. Enorme! Tem aspecto horrendo.
Anda devagar, pernas duras, como um robô, provocando, a cada passo, um
barulho ensurdecedor, de latas e ferros se chocando. Seu rosto está escondido
pela noite. Do corpo projetam-se estranhos objetos — antenas, roscas, arames,
ferros, ferramentas —, em todas as direções. Os braços esticados quase tocam
os meninos.
O céu abre-se em trovões. Um vento gelado sopra. Soa meia-noite no
relógio da igreja. Apavorada, Bié se esconde atrás de Paloma, que se esconde
atrás de Mateus, que se esconde atrás de Irenona.
— Socooooorro!
— Manhêêêê!
Bié corre para trás da árvore, seguida por Paloma, seguida por Mateus.
Somente Irenona permanece, sozinha diante do cemitério, disposta a enfrentar
Quimera. Ele avança. Sem desviar os olhos da fera, a menina abaixa-se, pega do
chão um enorme pedaço de pau e o roda no ar, com as duas mãos. Aos berros,
parte para cima do monstro:
— Estou armada! Você vai sumir pra sempre de Pirenópolis, desgraçado!
Nunca mais vai atormentar as pessoas daqui! Nunca mais! Vou matá-lo! Eu não
tenho medo de você! — Levanta o enorme pedaço de pau, para arremessá-lo,
com força, contra a cabeça da fera.
Ouve-se tremendo barulho. Quilos de objetos espalham-se sobre a
calçada, enquanto uma vozinha esganiçada grita:
— Pare, Irenona! Pelo amor de Deus, pare! Sou eu, Cientista Maluco!
— Cientista Maluco!! Quase rachei sua cabeça! — Irenona não consegue
mover um músculo, de susto. O enorme pedaço de pau, que quase matou seu
amigo, está caído no chão, ao lado dela.
Tomando coragem, os outros aos poucos vão saindo de trás da árvore,
aproximando-se devagar. O primeiro a recuperar-se é Mateus. Espantado com a
quantidade de objetos espalhados pela calçada, indaga:
— O que você estava fazendo, debaixo desse lixo todo?
— Isso não é lixo! — protesta Cientista Maluco, muito ofendido. Ainda
trêmulo, puxa as calças para cima, endireita as costas, estufa o peito, abotoa o
avental imundo e ajeita o cabelo, que continua desajeitado, parecendo pinto
arrepiado. Ar de professor, dedo em riste, explica: — Estes são os instrumentos
científicos que eu trouxe, pra gente enfrentar o Quimera!
— Olhem só, aqui tem um funil velho, um penico, três antenas quebradas,
dois araminhos... — Bié separa os objetos, acocorada no chão.
Cientista Maluco suspira profundamente. Ar superior, maior desprezo na
voz, retruca:
— Lidar com gente ignorante é mesmo um horror! Fique sabendo, dona
Bié, que esses "araminhos" a que a senhora se refere são sensores, fabricados
por mim, pra detectar cheiro de monstro! E o que você, na sua ignorância,
chama de "funil velho" e "antena quebrada" são radares da última geração, que
eu construí, pra localizar o Quimera!
— Essa cueca, pra que serve? — A pergunta é de Irenona, que, refeita do
susto, acocorou-se ao lado de Bié, mexendo nos objetos.
— Cueca?! Eu não trouxe cueca nenhuma!
— De cuecas eu entendo, Cientista Maluco: se esta aqui não é uma, então
não me chamo Mateus!
Cientista Maluco aproxima-se. Examina a peça sobre a calçada,
atrapalhado:
— Ela estava secando... Só se... se grudou nas coisas que eu carregava na
cabeça, quando passei embaixo do varal!
Todos caem na gargalhada. Não há, porém, tempo para rir: acima deles,
começa a brilhar uma seta, imensa, vermelha, solta no ar! Não há dúvida: ela
aponta para a capela abandonada, nos fundos do cemitério, conhecida na cidade
como "capela mal-assombrada".
Gritos, sussurros, discussões, choros e chiliques depois, todos acabam
decidindo: o único jeito de tentar descobrir o enigma do Quimera é atravessar o
cemitério e entrar na capela mal-assombrada, para onde a seta misteriosa
aponta!
Irenona segue na frente, segurando o velho funil, oops! o radar de última
geração, construído por Cientista Maluco especialmente para detectar monstros.
Escondido atrás dela, só com o nariz de fora, Cientista usa na cabeça outra de
suas invenções, um boné com pequena hélice, próprio "pra fugir pelo ar, na
hora certa". Mateus o segue, segurando entre as suas a mão de Paloma,
geladinha de pavor. No fim da fila, agarrada à blusa da irmã, óculos escuros e
olhos fechados, vai Bié.
Cemitérios são moradas de mortos. À noite, sem a presença dos vivos,
tornam-se muito silenciosos. Não há murmúrio, soluço, risada; só há o nada.
Escuta-se, de vez em quando, o sopro do vento suave, balançando devagar as
folhas de alguma árvore, ou derrubando do túmulo uma flor, depositada com
saudade.
Os poucos metros que separam o portão do cemitério da capela
abandonada parecem às crianças um caminho sem fim. Entre cruzes e
mármores, elas avançam, assustadas, coladas umas nas outras, buscando
proteger-se.
Da capela vem um cheiro de mofo e podridão — cheiro de morte! —, que
se espalha pela noite, insuportável. Todos se sentem enjoados. Impossível
enxergar coisa alguma lá dentro. Irenona lembra-se da lanterna, que está em seu
bolso. Acende-a, passeando devagar o foco de luz. O teto da capela está furado;
nas vigas, dezenas de morcegos penduram-se pelos rabos; as paredes estão
rachadas; baratas atravessam correndo as frestas das tábuas podres do
assoalho. Deus! O que é isto? Parecem... caixões de defunto! Sim, não há dúvida:
são cinco caixões, enfileirados no chão, um ao lado do outro, tampas abertas!
— Vam' bora, vam' bora, vam' bora! — Histérica, Bié bate os pés no chão,
chorando sem parar. Apesar do pavor que sente, Paloma abraça a irmã, tentando
acalmá-la.
— Só mais um minuto, gente... Esse Quimera tem de aparecer! — insiste
Irenona, continuando a passear o foco de luz pela capela. — Olhem! Há alguma
coisa escrita naquele caixão! Me ajudem a ler! — Fixa o foco. — As letras estão
meio apagadas: I... R... E... N... O... N... A!
Apavorada, Irenona larga a lanterna no chão. Cientista Maluco a apanha,
apontando o foco para a esquerda:
— No outro caixão também está escrito alguma coisa! Deixem ver se
consigo ler. — Dirige a luz diretamente para as letras: C... I... E... N... T... I... S...
Pernas, pra que te quero! Saem todos correndo, cemitério afora! Param
somente na calçada, arfantes, desarvorados, sem saber para qual lado continuar,
Irenona grita:
— O Alcebíades! Meu motorista está parado ali, com o carro! Vamos!
Nunca uma ordem de Irenona foi obedecida com tanto gosto e rapidez!
Embolados no banco de trás do carro, puxam a porta. Atirada não se sabe de
onde, uma pedra, embrulhada num papel, cai perto deles. Irenona recolhe a
pedra, Mateus bate a porta e Alcebíades acelera o carro. Ufa!
Paloma desembrulha a pedra; redonda, lisinha, dessas de fundo de rio,
comuns na região. Alguma coisa está escrita no papel! Cientista Maluco lê, em
meio aos solavancos do carro:
Gostaram dos caixões? O truque da seta vermelha suspensa no ar, sem
nada segurando, foi legal, foi ou não foi?
Desculpem as brincadeiras de mau gosto. Não consigo evitá-las. É meu
lado malvado, meu lado monstro, em ação.
Por tudo de mais sagrado que existe, imploro: não me abandonem agora.
Somente vocês poderão livrar-me da horrível maldição que pesa sobre mim.
Somente vocês!
Tenho um plano infalível. Neste sábado, ao meio-dia, encontrem-me na
folia dos mascarados. Será fácil reconhecer-me: sou aquele que aparece onde
menos se espera e ri da própria desgraça. A partir de amanhã, felizmente,
Pirenópolis ficará para sempre livre das minhas maldades!
Conto com vocês. Sei que não se negarão a ajudar quem tanto precisa.
Assinado: Quimera
4. Terror na festa
A horrível aventura no cemitério deixa todos com pesadelos, durante o
resto da noite. Bié sonha que sua cama é um caixão de defunto; acorda aos
prantos, correndo para o quarto dos pais. Encolhida contra a parede, apesar do
sono Paloma mantém os olhos abertos, para não voltar a sonhar com horrendos
morcegos, ratos e aranhas. Cientista Maluco vê imagens confusas de
computadores, raios laser e fórmulas matemáticas, misturadas com ossos e
cadáveres. Durante a noite inteira Mateus revive as cenas no cemitério,
revirando-se na cama: sabe que está dormindo, mas não consegue acordar!
Irenona tem um sonho estranho: aproxima-se do caixão com seu nome... lá
dentro, enxerga os pais, mortos, apodrecidos!
De manhã, os cinco sentem sono e medo. Estão confusos, também: como
Quimera sabe o nome de todos eles? Como fez o truque da seta? Onde arranjou
aqueles horríveis caixões? Por que envia bilhetes malucos? Quimera brinca,
pede ajuda e ameaça, tudo ao mesmo tempo!
Aos poucos, porém, os meninos vão se restabelecendo. Um ótimo banho
no rio das Almas devolve-lhes a energia. A alegria vai voltando com a visão do
céu azul, do sol, da multidão colorida que se diverte nas ruas.
A animação da festa dá-lhes a certeza de que acabou o horror da última
noite. Ao meio-dia, já estão prontos para assistir à saída dos mascarados e para
encontrar-se com o Quimera.
Cientista Maluco guia os amigos até a parte alta da cidade, de onde terão
ótima visão:
— A festa do Divino Espírito Santo é tradicional daqui, existe há mais de
duzentos anos...
— Esta cidade é assim tão velha? — espanta-se Irenona, que mora em
Brasília, uma cidade-menina, fundada em 1960.
— Pirenópolis nasceu em 1727, há mais de 260 anos, com o nome de
Meia-Ponte. É uma das cidades mais antigas de Goiás, já virou até patrimônio
nacional! — Cientista Maluco incha o peito de orgulho.
— Você tava dizendo que a festa...
— Pois é: pra nós, da cidade, é a festa mais importante do mundo! Pra
gente, ela dura o ano inteiro...
— O ano inteiro? — perguntam todos, espantados.
— Quando, numa festa, sorteiam quem vai ser o imperador do próximo
ano, começam os preparativos. Fazemos rifas, bailes e shows pra arrecadar
dinheiro, pintamos e embelezamos a cidade, costuramos nossas fantasias,
fabricamos as máscaras... Todo mundo se envolve, é o maior barato!
— Acho que vou me mudar pra cá! — Bié está extasiada. — Adoro festas!
— Os festejos deste ano já começaram há nove dias. Os turistas é que
costumam assistir apenas a uma pequena parte, as Cavalhadas.
— O que vocês fizeram, desde que os festejos começaram? — Irenona
pergunta, curiosa.
— O povo daqui é muito religioso. O pessoal da roça percorreu a cavalo as
fazendas da região, carregando a bandeira do Divino Espírito Santo. Os foliões
são recebidos com muito respeito, alimentam-se e passam uma noite em cada
pouso de folia. Em troca, abençoam os donos das fazendas, suas famílias,
plantações e animais. Depois tocam sanfona, cantam e dançam; a festança é
animada, o arrasta-pé vara a madrugada!
— Tudo muito tradicional! — admira-se Irenona.
— Deve ser bonito, ver essas pessoas ligadas às tradições! — exclama
Paloma, olhos sonhadores.
— Hoje tem gente que só quer saber de novidades! Esquece que as
novidades são ótimas, sim, mas não existem sem as antiguidades! — filosofa
Mateus. — Por isso as tradições, como essa festa de Pirenópolis, são
importantes!
— Sabe que você tá certo? — apoia Irenona. — Nunca tinha pensado nisso!
Eu tanto brinco com meus dinossauros, como brinco com meus videogames!
Bié tenta participar daquela conversa que não entende direito. Animada,
grita, em plena rua:
— Vivam os dinossauros modernos!
— Viva! — responde uma alegre multidão que passa. Envergonhada, a
menina esconde-se atrás da irmã.
— Amanhã, a que horas começam as Cavalhadas? — quer saber Paloma.
— Desde que cheguei aqui, todo mundo só fala dessa tal de Cavalhadas —
interrompe Bié. — Eu ainda nem sei o que é!
— É no que dá, é no que dá, andar com pirralha grudada na gente! —
impacienta-se Irenona.
— Deixa eu explicar... Eu gosto, são coisas da minha terra, tenho orgulho
delas — responde Cientista Maluco, tentando livrar-se de um galho de roseira,
que se enrosca nos botões do avental, negro como as asas da graúna. — As
Cavalhadas, Bié, foram criadas em Pirenópolis no século passado; desde então,
fazem parte da festa do Divino Espírito Santo. Elas relembram uma guerra
muito, muito antiga, acontecida na Europa. Nessa guerra lutavam, de um lado,
os cristãos; do outro, os mouros.
— Mouros? — Bié não tem a mínima ideia de quem sejam.
— Ah, de mouros eu entendo! — empolga-se Mateus. — Na semana
passada, entreguei na escola um trabalho sobre eles. Estou afiadíssimo! Os
mouros, ou muçulmanos, ou islâmicos, seguem a religião muçulmana. Têm suas
próprias crenças e costumes; seu Deus chama-se Alá, seu profeta, Maomé, seu
livro sagrado é o Corão, e sua cidade sagrada, Meca. Séculos atrás, os cristãos
lutaram na Europa contra os mouros, para expulsá-los das terras...
— Quer dizer que amanhã de tarde a gente vai assistir a uma guerra de
verdade? — interrompe Bié, olhinhos brilhantes de animação. — Com direito a
tiro, canhão, gente morrendo e tudo o mais? Oba!
— Ai, meus sais! — Irenona não se aguenta de impaciência.
Cientista Maluco sorri. Nem percebe que, ao livrar-se do galho de roseira
grudado na roupa, livrou-se também dos três botões do avental, que pularam
longe.
— Não, Bié, a guerra de verdade, entre mouros e cristãos, já terminou há
séculos. As Cavalhadas são um ritual, uma cerimônia, uma festa, pra recordar
aquela guerra...
— Ah, já entendi! — Bié não consegue disfarçar a decepção. — É tudo de
mentirinha, pra enganar os bobos!
Da avenida, ruas e ruelas de Pirenópolis surgem dezenas de alegres
cavaleiros mascarados, fazendo grande barulho, aumentado pelos repiques dos
sinos e tiros de festim. Montados em cavalos enfeitados com guizos, flores e
fitas coloridas, os mascarados são aplaudidos com entusiasmo pela multidão.
Como não querem ser reconhecidos, usam roupas largas, cobrindo o corpo
inteiro, sapatos fechados, luvas e máscaras. As máscaras são a sensação!
Escondem completamente o rosto e os cabelos de quem as usa. Leves, coloridas,
representam animais e personagens, reais e inventados.
— Olhem os chifres enormes daquele boi! Retorcidos, enfeitados com
flores! — Mateus aponta, divertido.
Cientista Maluco cochicha para os amigos:
— Não contem pra ninguém, mas aquele ali, com roupa e máscara de
monstro, dirigindo a carroça enfeitada, é Pepeu, meu irmão gêmeo.
— Ué! Eu não sabia que você tem um irmão gêmeo! — exclama Irenona. E,
sonhadora: — Bem que eu gostaria de ter alguém igualzinha a mim, exatamente
da mesma idade... Não ia me sentir tão sozinha!
— Bem que seu irmão podia usar uma máscara mais bonitinha... —
comenta Paloma, um estranho arrepio a percorrer-lhe o corpo.
— Vejam a bruxa! Olhem aquela onça-pintada!
— Ui, que medão desse diabo! — Bié, escondendo-se atrás da irmã,
recorda-se da noite anterior.
— Gatinha, vamos cavalgar? — Quem pergunta é um gentil cavaleiro
fantasiado de macaco, estendendo a mão para Paloma. Antes de a menina
conseguir responder, Mateus interpõe-se entre os dois, cara amarrada:
— Ela não quer cavalgar, não, senhor!
— Ei, grandona, me dá um dinheiro aí! — pede um palhaço.
— Não tenho! — Rindo, Irenona vira para fora os fundos dos bolsos,
mostrando que estão vazios.
Tomando coragem, Bié estica um pouquinho o rosto por trás de Paloma,
perguntando:
— Esses mascarados aí são cristãos ou são mouros?
— Nem uma coisa nem outra, Bié — responde Cientista, rindo. — Eles não
existiam, no tempo da guerra entre mouros e cristãos. Os mascarados são uma
invenção nossa, brasileira, pra festa ficar mais alegre e engraçada. Amanhã,
durante as Cavalhadas, você verá um montão deles entrando e saindo no meio
da luta, brincando, atrapalhando, bagunçando!
Fantasiada de caveira, uma mascarada abraça Mateus, segura-lhe a mão e
sai dançando com ele, ladeira abaixo. De início desajeitado, o menino presta
atenção aos passos dela e, aos poucos, consegue acompanhá-la. Logo está
animado, rindo, abraçado à parceira. Até consegue inventar passos!
Quem não gosta é Paloma. Cruza os braços e dá um muxoxo,
resmungando:
— Quer dizer que eu não posso cavalgar com o macaco, mas ele pode sair
dançando com a primeira caveira que aparece? Deixa estar, jacaré, você não
perde por esperar...
— Cadê o jacaré, cadê o jacaré? — Bié pergunta, esticando o pescoço por
trás da irmã.
Apreciando a algazarra dos alegres mascarados, os meninos vão descendo
a ladeira. Não querem perder de vista Mateus e sua companheira, que,
entretidos com a dança, rapidamente se afastam do grupo.
— Você me conhece? — pergunta um mascarado, curvando-se sobre
Irenona.
— Não conheço, não! — a menina responde, rindo.
Cientista Maluco pára e dá um forte tapa na testa, exclamando:
— A caveira!
— Cadê a caveira, cadê a caveira? — Bié pergunta.
— Como não pensei nisso antes? — prossegue Cientista Maluco,
preocupado. — "Caveira" é a resposta ao enigma do bilhete que Quimera nos
atirou ontem, quando fugíamos do cemitério! Lembram-se do bilhete: "Sou
aquele que aparece onde menos se espera e ri da própria desgraça"?
Excitado, atropela as palavras:
— Essa caveira esquisita apareceu de repente, sem mais nem menos,
seduzindo Mateus. Toda caveira parece estar sempre rindo, dentes à mostra!
Ora, rindo do quê, se seu dono morreu? A caveira ri da própria desgraça!
Os meninos entreolham-se. A uma só voz, berram:
— A mascarada é Quimera!
• ••
Angustiadas, as crianças tentam localizar Mateus e sua parceira, mas não
conseguem. Os dois sumiram na multidão! Os meninos começam uma doida
correria pelas ladeiras de Pirenópolis, em busca de Mateus e dona Caveira, aliás,
Quimera, em disfarce infernal. Enfiam-se entre os grupos de turistas e
mascarados, fuçam dentro do coreto, entram nos bares e restaurantes cheios de
gente, atravessam correndo as ladeiras, arriscando-se a ser atropelados pelos
cavalos. Ufa! Canseira!
Nem sinal de Mateus.
— É impossível encontrar alguém, no meio de tanta gente! — Frustrada,
Irenona atira longe o lenço empapado de suor.
— Será que Quimera já devorou Mateus? — A pergunta é de Bié, que, sem
se dar conta da impertinência do assunto, continua: — Qual será o gosto do
Mateus? Doce? Amargo? Gente, quem sabe a carne dele é ardida? Daí Quimera
não consegue comer, cospe tudo fora e... ai! — Bié leva um forte cascudo de
Paloma.
Exaustos, os meninos recostam-se na porta do Theatro de Pyrenopolis,
deixando os corpos escorregarem até o chão. Devido ao peso, a porta abre-se; os
quatro caem para trás, ao mesmo tempo. Resolvem entrar, para descansar um
pouco e tentar colocar as ideias no lugar. Sentam-se nos bancos de madeira do
antigo teatro, um ao lado do outro.
Não podem acreditar na cena que veem no palco. Deitado de costas no
chão, cercado por velas pretas, amordaçado, mãos amarradas acima da cabeça,
está Mateus. Sentada sobre ele, uma caveira gira no ar um facão, pronta para
enterrá-lo na barriga do menino! O som de sua gargalhada sinistra ecoa pelo
teatro:
— Uahahahahaha!
Correm todos para o palco. A primeira a chegar é Paloma, que não tem
forças para tirar a caveira de cima de Mateus. Cientista Maluco e Bié ajudam-na,
sem nada conseguir. Irenona, a última a chegar, finalmente se atraca com a
mascarada. Luta terrível! As duas rolam pelo chão, ora uma, ora outra por cima.
Parece que a caveira vai vencer — é mais forte, está se vendo, e além
disso está armada!
Não! Irenona não se deixa entregar. É muito forte, também, e deseja
desesperadamente salvar o amigo.
Com esforço, consegue imobilizar os braços da caveira, até sentar-se
sobre ela, ofegante. Cientista Maluco puxa depressa o facão das mãos da
caveira, atirando-o longe. O resto do grupo corre até Mateus e o liberta.
Cientista apaga as velas pretas.
Mateus jaz imóvel no chão. Olhos fechados, mudo, pálido. Paloma
ajoelha-se a seu lado, fazendo um leve carinho em seus cabelos. Ele não se
mexe. Outro carinho, mais forte. Nada. Angustiada, acaricia rosto, peito, barriga,
mãos do amigo. Mateus continua inerte. Desesperada, ela grita-lhe o nome,
esfrega-lhe os pulsos, sacode-lhe o corpo, repetindo os gestos, inútil. Curva-se
sobre o rosto de Mateus, tentando sentir-lhe a respiração.
— Ele morreu! — grita Bié.
Horrorizados, corações sangrando, as crianças (menos Irenona, que
continua sentada sobre a caveira) aproximam-se do amigo morto. Todos
choram, emocionados; em silêncio, dão-se as mãos, formando um círculo em
torno do corpo imóvel.
Os lábios de Mateus entreabrem-se. Está vivo! Deseja dizer alguma coisa!
Talvez as últimas palavras! Paloma cola o ouvido nos lábios dele. Escuta uma
frase, dita em tom muito baixo:
— Se você me der um beijo, eu abro o olho direito! Se me der dois, abro
também o esquerdo!
Furiosa, Paloma esmurra Mateus, com toda a força, sem parar. Achando
que a menina enlouqueceu de dor, todos os outros, inclusive Irenona,
precipitam-se sobre ela, para detê-la. Vendo-se livre, a caveira salta rapidamente
do palco para o chão, corre até a porta e escapa para a rua, desaparecendo na
multidão.
5. Um terrível engano
O resto da tarde é preenchido com dúvidas e discussões. Na opinião de
Mateus, eles deveriam procurar o posto policial, para explicar o que estava
acontecendo.
— Não dá! — retruca Irenona. — Já imaginaram, a gente entrando na
delegacia e contando pros policiais: "Seus guardas: um cara de Pirenópolis, de
vez em quando, curte virar monstro. Ontem de madrugada, ele quis nos enterrar
vivos, em caixões gravados com nossos nomes! Depois, marcou encontro com a
gente, na folia dos mascarados. Como hoje acordou de mau humor, fantasiou-se
de caveira, raptou o nosso amigo aqui, e tentou esfaqueá-lo, no palco do teatro,
à luz de velas pretas! Como, senhor guarda? Cadê o monstro? Não sabemos!
Sumiu no mundo!". Quem vai acreditar nessa história?
— Eu quase morri! — queixa-se Mateus.
— Bem-feito! Foi pra aprender a nunca mais correr atrás do primeiro rabo-
de-saia que aparece! — Paloma ainda está furiosa. Mateus acha prudente ficar
calado.
Cientista Maluco aproveita a ocasião para tirar uma dúvida:
— Afinal, Mateus, você estava ou não estava desmaiado, no palco do
teatro? Pifou mesmo, ou fingiu?
— Que fingiu, que nada! Eu estava desmaiadão. Só recuperei os sentidos
quando Irenona tirou a caveira de cima de mim. Fiquei uns minutos ali, quieto,
me recuperando. Quando vi que tudo estava bem, tive a ideia de fazer aquela
brincadeira, pra ganhar uns beijinhos extras da Paloma... — Olha com o rabo do
olho para Paloma, que, cara amarrada, finge nem escutar. — Infelizmente, por
causa dessa minha brincadeira, deixamos o monstro escapar!
— Já sei! — interrompe Bié. — Vamos contar tudo pro pai e pra mãe! Eles
vão ajudar a gente!
— Pirou, Bié? Se nossos pais desconfiam dessa história, trancam a gente
na pousada! Ou, então, voltam pra Goiânia na mesma hora. Aí, já sabe: adeus,
Cavalhadas!
— O Alcebíades também me leva embora pra Brasília! — reforça Irenona.
— Além disso, nunca descobriremos o enigma do Quimera! — completa
Cientista Maluco. — Revelar a história aos adultos não é uma boa ideia. Teremos
de nos virar sozinhos. E rápido, porque Quimera se torna mais perigoso, a cada
minuto!
Cientista Maluco para no meio da rua, dedo indicador sobre a testa,
pensativo. Os amigos já sabem: quando ele faz isso, está "formulando uma ideia
nova", como gosta de dizer. De repente, Cientista dá um pulo:
— Pronto! Já formulei! A solução pra pegar o Quimera é construir uma
armadilha!
— Tem de ser a maior armadilha do mundo! Quimera é enorme!
— Bié, não tou falando de armadilha de verdade, dessas de pegar
passarinho, não! É só uma maneira de dizer: vamos atrair o Quimera, para,
então... nhac! Capturá-lo!
— Ah, entendi! — exclama Bié. — Vai ser uma armadilha de mentirinha,
igual às Cavalhadas!
Cientista Maluco olha cauteloso para os lados, certificando-se de que
ninguém os ouve. Assim mesmo — tratando-se do Quimera, todo cuidado é
pouco! —, chama os amigos para bem perto e os abraça, cochichando-lhes seu
plano infalível para atrair e capturar, de uma vez por todas, o Quimera:
— Tradição, esta é a palavra-chave! — sussurra. — Se Quimera nasceu
mesmo em Pirenópolis, esta noite vai estar na praça, com certeza! Por nada
deste mundo um pirenopolino perde o levantamento do mastro e a queima da
fogueira!
Despede-se dos amigos com um sorriso misterioso:
— Às sete e meia da noite, todos em frente à matriz! Cada um sabe qual é
o seu dever!
Às sete e meia, a missa está terminando. Cercada pela serra dos Pireneus,
o rio das Almas a seus pés, a matriz brilha no alto da colina, iluminada por
dezenas de lâmpadas que contornam suas torres. É uma igreja construída há
mais de 250 anos, por bandeirantes, aventureiros e escravos vindos de muito
longe, desde São Paulo, em busca do ouro que existia na região.
Sentados no banco da matriz, lindamente decorada com tapetes
vermelhos e pombas brancas, os meninos ouvem o som do órgão, som dos
anjos. Mateus sente o perfume delicioso de Paloma. Com o canto dos olhos
observa a menina, especialmente linda esta noite, cabelos presos no alto, batom
claro nos lábios, e um vestido... uau, curtinho! deixando à mostra as pernas
bronzeadas e bem torneadas.
Mateus percebe o coração disparar. O peito dói, de tanto amor. Quer
abraçar Paloma, encostar o rosto no dela, fazer-lhe carinho nos cabelos, dizer-
lhe, baixinho: "Eu te amo!".
Mateus sente os dedos de Paloma pressionarem de leve seu braço. Quase
desmaia: "Ela também quer, ela também quer!". Sente de novo a pressão dos
dedos dela. "Vou tomar coragem, combinar um encontro só nosso, naquela
esquina escurinha..."
Violenta cotovelada de Irenona interrompe-lhe os doces pensamentos:
— Acorda, Mateus! Se liga, pô! Paloma já cutucou você duas vezes! Foi o
sinal combinado pra gente começar o plano contra Quimera! E você aí, paradão,
com esse sorriso besta na cara! — ordena, no seu jeito mandão, que não admite
desobediência: — Anda, Mateus! Antes que seja tarde!
•••
Quando o mastro com a bandeira do Divino começa a ser erguido, Paloma,
Mateus, Bié e Irenona, mãos dadas, amontoam-se em frente à igreja, sob o poste
de luz, para ficarem bem visíveis. Segundo as previsões de Cientista Maluco,
logo seriam abordados pelo próprio Quimera, disfarçado! Irenona daria um forte
puxão na corda amarrada em seu pulso; escondido atrás de um sobrado,
Cientista Maluco, em cujo pulso estava amarrada a outra ponta da corda,
receberia o aviso da chegada de Quimera, dando início à segunda fase do plano,
a mais importante.
Os meninos estão fascinados pelo que veem. Adultos e crianças, em
grande algazarra e alegria, tentam levantar do chão um mastro vermelho e
branco, de cinquenta metros de altura! Quando terminam, a multidão aplaude:
beleza ver lá no alto, pertinho do céu, a bandeira do Divino! Estrelas de cinco
pontas, cascatas, bolas de fogo, mandalas e chuvas de luz coloridas cobrem a
noite. As pessoas ficam um tempão por ali, caras pro céu, esquecidas do
mundo, admirando os fogos de artifício.
Súbito, Bié grita:
— É a maior fogueira que já vi! Mais alta que as casas!
Chegou a hora de curtir a fogueira, ao som de sanfonas e violas. O clarão
da enorme fogueira, avistado de longe, desde o alto da serra, arderá ainda por
muito tempo, esquentando corações.
Os meninos estão inquietos. Conforme o combinado, continuam juntos,
atentos; de vez em quando, Irenona certifica-se de que a corda continua
amarrada em seu pulso. Nenhum estranho, entretanto, os procurou! Entraram
em contato com eles apenas os pais de Paloma e Bié, que passeiam de mãos
dadas pela praça, a tia de Mateus, que trouxe um agasalho para o sobrinho, e
Alcebíades, o motorista de Irenona, carregando — imaginem! — em plena rua
uma bandeja de prata, com um jantar completo (frango, arroz, salada mista,
purê de batatas, sorvete de creme com calda de chocolate crocante e guaraná),
servido em louça importada, copo de cristal e guardanapo de linho, quase
matando a menina de vergonha!
Desequilibrada por um violento puxão na corda amarrada a seu pulso,
Irenona cai para trás.
— Só pode ser Cientista Maluco! — exclama Mateus. — Ele deve estar em
perigo! Vamos, rápido!
Correm, desabalados, em direção ao sobrado onde Cientista está
escondido. Ninguém entende: o combinado era Cientista Maluco correr até eles,
quando sentisse Irenona puxar a corda, não o contrário! Cientista então jogaria
uma rede de pescar sobre o estranho, prendendo para todo o sempre o Quimera.
— Ajudem, rápido! — Cientista Maluco tem dificuldade em manter seguro,
dentro da rede de pescar, alguém que se debate furiosamente. — Quimera
apareceu pra mim, não pra vocês! Depressa! O miserável é forte, tá quase se
soltando!
Irenona joga o peso formidável de seu corpo sobre a presa, que
imediatamente cai, estatelada no chão. Ajudado por Mateus, Cientista amarra
depressa as pontas da rede, prendendo dentro o estranho. Ar triunfante, ele se
põe a girar em torno da massa inerte:
— Pegamos você, desgraçado! Pensou que era mais esperto do que a
gente?
A massa remexe-se. Geme. Com grande dificuldade, retira do bolso um
objeto pequeno. Através do buraco da rede, joga-o na calçada.
Mateus corre para pegar o objeto, mas Cientista o impede:
— Alto lá! Esse Quimera é cheio dos disfarces! Pra lidar com ele, todo
cuidado é pouco! — Abre a mochila, tirando de dentro uma mão mecânica, presa
a um cabo de metal. De longe, faz a mão mecânica segurar no solo o pequeno
objeto e sacudi-lo, em todas as direções. Só então autoriza:
— Agora, sim, pode pegar! Temos certeza de que não é uma bomba-
relógio!
Mateus corre com o objeto até o poste de luz. Examina-o bem, de um lado,
do outro. Muito surpreso, diz, para o grupo que espera, ansioso:
— É... uma foto de Cientista Maluco!
— Atrás, tá escrito: "Ao meu querido pai, lembrança do filho que o ama
muito"!
Cientista Maluco para, dá um berro, solta a mão mecânica — que cai em
cima de seu pé, fazendo-o gritar de dor — e, mancando, corre até a massa
informe amarrada no solo. Ajoelhando-se a seu lado, abraça-a, exclamando:
— Papai!
6. O sumiço de Bié
Mal a centenária banda de música da cidade anuncia a alvorada do
Domingo do Divino, Irenona, Mateus, Bié e Paloma pulam da cama. Banho
tomado, roupa limpa, barriga cheia, às oito da manhã já se encontram no lugar
combinado, a esquina das ruas Nova e do Rosário. Os quatro estão loucos para
saber o que aconteceu a Cientista Maluco e seu pai. Vão trocando ideias,
enquanto sobem a ladeira, rumo à casa do imperador da festa:
— Eu simplesmente não podia acreditar! Quando Cientista Maluco gritou
"Papai!", quis que a terra se abrisse e me engolisse, de tanta vergonha! — Paloma
comenta, rindo.
— Na hora de ajudar Cientista a libertar seu pai, minhas mãos tremiam! —
confessa Mateus. — Assim que desfizemos o nó da rede de pescar, saí correndo!
— Nós também! — dizem Bié e Paloma, morrendo de rir.
— Só não entendo uma coisa — comenta Irenona. — Como Cientista não
reconheceu o próprio pai? Como confundiu seu Ambrósio com o Quimera?
— Também pensei sobre isso — responde Mateus. — Acho que sei a
resposta. Cientista estava sozinho, no escuro, com muito medo. Achava que
Quimera nos atacaria a qualquer momento; aguardava, ansioso, o puxão na
corda amarrada ao seu pulso. Quando alguém se sente nervoso, assustado,
enxerga fantasma onde não existe! Quando Cientista viu um vulto se
aproximando, teve certeza de que era Quimera; agiu no impulso, sem raciocinar:
jogou a rede!
Todos caem na gargalhada. Menos Irenona, que parece triste. Quando
Irenona fica triste... já sabe: lá vem bronca!
— Estão rindo do quê? Insensíveis! Cretinos! Corações de pedra! Já
pensaram que o pobre Cientista Maluco está sofrendo? Deve ter levado uma
surra daquelas! Logo ele, tadinho, tão magro, as costelas aparecendo... — Agita
os grossos braços no ar: — Monstros! Deviam se envergonhar! Gargalhando aí,
enquanto o pobrezinho se contorce numa cama de hospital, cheio de manchas
roxas pelo corpo! Talvez o padre até já tenha lhe dado a extrema-unção!
— Que bom, gente, vocês chegaram cedo! Vai dar pra acompanhar o
cortejo do imperador desde o início!
— Sorridente, bem-disposto, Cientista Maluco caminha ao encontro dos
amigos.
Os quatro olham para ele, pasmos, aturdidos. É a vez de Cientista
surpreender-se:
— O que foi? Parece que viram fantasma!
— Vimos, mesmo! A Irenona disse que você tava morrendo no hospital! —
exclama Bié. — Cadê as manchas roxas no seu corpo? Cadê? Quero ver!
— Morrendo, eu? Manchas roxas? — Agora é Cientista que não entende
coisa alguma.
— Não liga, Cientista Maluco! Bié é pequena, não sabe o que diz —
desculpa-se Paloma, beliscando a irmã por trás, com força. A menina menor nem
liga:
— Seu pai não lhe moeu de pancada?
— Ele ficou bravo, sim, por causa do tombo que levou — responde
Cientista Maluco. — Gritou comigo, me deu uns puxões de orelha, reclamou
muito do trator que jogamos em cima dele — dá uma rápida olhada para Irenona
—, mas, quando lhe expliquei o que estava acontecendo, acalmou-se.
— Você contou a ele sobre Quimera?
— Mais ou menos... Disse que a gente estava tentando livrar Pirenópolis
de um terrível inimigo, mas desconversei, quando perguntou quem era. O pai
fica tão feliz, mas tão feliz, durante a festa do Divino, que nessa época é quase
impossível deixá-lo nervoso. Vocês sabiam que ele é candidato a imperador do
próximo ano?
— Como assim?
— Todo ano, as Cavalhadas têm um imperador, o organizador da festa, o
responsável por tudo. Qualquer pessoa da cidade pode se candidatar a
imperador. É um posto muito importante, a maior honra para um pirenopolino.
Hoje, vai acontecer o sorteio do próximo imperador. Pai fez até promessa, pra
ser o sorteado!...
• •
Ao som da banda de música, da salva de tiros — chamada na cidade de
''roqueira" — e dos fogos, começa o cortejo, acompanhado por uma multidão.
Cientista deixa seus amigos para trás e se junta à procissão.
Muito solene, cetro e coroa — coroa de verdade, antiga, de prata —, o
imperador segue no centro de um quadrado especialmente preparado para ele,
separado por um grosso cordão vermelho. À frente vão as virgens, meninas
vestidas de branco, e meninos, calça vermelha e camisa branca, usando na
cabeça uma espécie de cocar de penas. Cientista Maluco é um desses meninos;
sério, compenetrado, nem parece o mesmo!
Irenona não se contém. Mãos em concha sobre a boca, grita, a plenos
pulmões:
— Cientista Maluco, amigão, você tá legal com essa roupa! Muito melhor
do que com aquele avental imundo! — Rindo, os outros meninos começam a
gozar de Cientista, que, morto de vergonha, tropeça nos paralelepípedos da
ladeira, desabando em cima de um turista gordo, que cai sobre o imperador,
cuja coroa voa pelos ares.
Refeito, o cortejo chega, sem maiores confusões, à igreja matriz, onde
começa uma missa solene, cantada, muito bonita. As crianças não a assistem:
cansadas e acaloradas, preferem o ar fresco da praça. Bié logo arranja uma
amiguinha de sua idade, uma das virgens da procissão; as duas divertem-se,
brincando.
Uma multidão sai de dentro da igreja, dando vivas e carregando nos
ombros seu Ambrósio, o pai de Cientista Maluco. Ele foi sorteado imperador da
festa do próximo ano! Cientista corre até o pai, abraçando-o pelos joelhos.
Careca brilhando ao sol, duas grossas lágrimas descendo pelas bochechas, seu
Ambrósio está muito emocionado com a honra de manter viva a tradição de
Pirenópolis.
Cientista, Irenona, Mateus e Paloma dão uma passadinha pela casa do
imperador que se despede, para receber algumas "verônicas", delicados
docinhos de açúcar, e os deliciosos "pães do Divino".
— Divinos, esses pães! — brinca Mateus, lambendo os dedos.
— Vamos levar umas verônicas pra pousada, Bié? Mamãe vai adorar! — só
então Paloma percebe que Bié não está entre eles.
— Ela ficou no pátio da matriz, brincando com a nova amiga — esclarece
Cientista Maluco.
— Vou buscá-la. Mamãe não quer que eu a deixe sozinha.
— Acompanho você — oferece-se Mateus.
Meia hora depois os dois estão de volta, suados, pálidos, assustados:
— Procuramos por todo lado, e nem sinal de Bié! A amiguinha dela
também sumiu!
— Calma, Paloma, calma — tranquiliza Cientista. — Conheço muito bem
essa menina, sei onde mora.
Ela deve ter levado Bié até a casa dela, pra mostrar os brinquedos.
— O que estamos esperando? Vamos lá!
O otimismo de Cientista Maluco não se confirma. Bié e a nova amiga, a
Inezinha, sumiram. A última pessoa a vê-las, brincando de casinha em frente à
matriz, foi a mãe da menina. Isso, há mais de duas horas.
Começa uma busca desenfreada atrás de Bié e Inezinha, pelas ladeiras
apinhadas de gente. As crianças estão apavoradas: Quimera capturou as duas?
Vai devorá-las? Sentem-se culpadas. Como se distraíram daquela maneira,
esquecendo-se da fera malvada, traiçoeira?
Percorrem o hospital, o posto de saúde, a delegacia. Pedem informações
às pessoas, nas lojas, restaurantes, pousadas. Vão até o cemitério e o teatro,
locais sabidamente do agrado de Quimera. Nem sinal das duas! Mandam colocar
um aviso no alto-falante, repetido diversas vezes: "Atenção, atenção, meninas
Inezinha Barbosa e Gabriela Vieira de Almeida, mais conhecida como Bié:
dirijam-se imediatamente ao posto policial!".
Desolados, os quatro sentam-se no meio-fio. Paloma desespera-se:
— O que vou dizer a meus pais? Que Quimera raptou Bié? Que ele a está
devorando, neste momento? Papai e mamãe devem estar superpreocupados,
com nossa demora!
Paloma chora, desconsolada. Mateus acaricia-lhe os cabelos. Irenona dá
violentos socos na calçada. Sentado ao lado dela, preocupado, tristonho,
Cientista Maluco tenta fechar o avental, quando nota um volume no bolso. "O
que é isto?", espanta-se. "Não me lembro de ter guardado nada nesse bolso!"
Retira de lá uma fita cassete; há algo escrito na etiqueta. Cientista dá um pulo,
ao ler:
"Pro Cientista Maluco, do Quimera".
— Vejam isto! — grita para os amigos.
— Uma esperança, até que enfim! — anima-se Paloma.
— Esperem um pouquinho só, vou depressa lá em casa buscar meu
gravador à pilha — diz Cientista.
— Rápido! Talvez alguma coisa gravada aí nos ajude a salvar Bié! —
apressa-o Paloma.
Foram os dez minutos mais longos da vida deles, até Cientista Maluco
voltar, aos trambolhões, gravador em punho.
Mateus coloca a fita no gravador. Todos se acocoram em volta.
Da fita sai a voz mais aterrorizante, mais horripilante, mais cavernosa
que já ouviram:
Venho diretamente das profundezas do inferno, do reino dos mortos-vivos!
Minha missão é assassinar e devorar cada um de vocês, Cientista Maluco,
Irenona, Mateus, Bié, Paloma!
Será um crime perfeito. Ninguém jamais descobrirá o autor, pois não
deixarei rastro algum, nem as pontinhas dos dedos mindinhos de vocês!
Finalmente, aproxima-se a hora maravilhosa da destruição dos cinco!
Uahahahahahahahaha!
À medonha gargalhada, segue-se o silêncio. A fita roda no gravador,
muda. Paloma soluça convulsivamente, a cabeça no colo de Irenona:
— Bié, minha irmãzinha querida... Ele é um monstro, um louco! Biezinha...
O grande coração de Irenona amolece. Abraça a amiga Paloma, desatando
num choro alto, sentido, grossas lágrimas jorrando para todos os lados, como
uma fonte viva de tristezas. Mateus e Cientista abaixam a cabeça, também sem
conseguir conter o choro.
Ouve-se um "crect!". Da fita sai uma voz jovem, agradável, embora
angustiada:
Amigos, desculpem as horríveis palavras que gravei há pouco! Perco a
cabeça! Não sei o que faço, o que digo! Sinto-me tão confuso! A cada dia, a cada
hora, meu lado monstro cresce; posso senti-lo aumentar dentro de mim, tomar
grande parte do meu corpo, do meu cérebro! Está atingindo o coração! Não
consigo controlar as maldades! Já devorei 18 pombinhas brancas, 49 sapos e 213
minhocas!
Preciso de vocês. Se me abandonarem, o ser humano que existe em mim
morrerá para sempre! Nunca mais voltarei a ser o garoto despreocupado, que
brinca, feliz, pelas ruas de Pirenópolis!
Durante a apresentação das Cavalhadas, neste Domingo do Divino, sigam
as pistas. Elas os levarão até mim. Vocês são minha única esperança de salvação!
— Nenhuma palavra sobre Bié! — Paloma está abatida. Os amigos não
sabem o que dizer ou fazer para consolá-la.
Minutos depois, a fita exibe a mesma voz jovial de antes, porém ofegante,
como se saída de uma briga:
O que ainda resta de bom em mim venceu o monstro, numa terrível luta.
Consegui salvar a garotinha. Ufa! Logo ela estará com vocês.
Bié caminha em direção a eles, sorridente, mãos dadas com os pais.
Paloma corre até a irmã e a abraça, cobrindo-a de beijos e carinhos, para enorme
espanto dos pais:
— Que bom encontrar você! Adoro você, Biezinha, mais do que tudo no
mundo! Minha irmã preferida! Querida! Amada! Deixa eu beijar você todinha!
Bié tenta se aproveitar da situação:
— Você me dá aquela coleção de papéis de carta? Dá? Os envelopes
também?
— Onde você esteve, Bié? — pergunta Mateus.
— Na pousada! Cansei de brincar de casinha, procurei vocês no pátio da
igreja, não vi. Daí, resolvi levar a Inezinha pra conhecer o meu quarto!
— Onde está a Inezinha?
— Deixamos ela em casa, agorinha mesmo!
A mãe de Paloma diz:
— Crianças, apressem-se! Vamos almoçar! Está quase na hora das
Cavalhadas começarem!
7. Dois bilhetes de amor
Acotovelados em volta do "campão", o Campo das Cavalhadas, moradores
e turistas aguardam, ansiosos, o início do espetáculo. Risadas, conversas em
voz alta, música, segredos, burburinho... Um pai suspende acima da multidão o
seu bebê, que gargalha, enquanto passa o vendedor de algodão-doce e o rapaz
ao lado jura amor eterno à namorada. Na outra ponta do campo, uma velhinha
solitária emociona-se com a beleza das fitas e guizos: “Todas as cores do mundo
vieram parar nesta festa!", pensa a velhinha, satisfeita, ajeitando o chapéu de
flores, sem notar os adolescentes que pela primeira vez bebem cerveja pra
valer, fazendo caretas mas gostando de beber. À frente, um cachorrinho balança
o rabo, balançando também o balão de gás nele amarrado, enquanto três
lavradores tocam sanfona, observados com atenção pela jovem de cabelos
compridos, que come um sanduíche natural. O funkeiro não sabe se presta
atenção à sanfona ou paquera a jovem. "Fico com os dois", resolve, batucando
na perna o próximo funk, o da gatinha/que curtia/uma sanfona/maneira. No
meio da multidão uma lagarta colorida, de pano, espalha alegria.
Num dos lados do campo, há um tapume alto de madeira, pintado. Um
castelo! Com portão, ponte levadiça, torres, balcões, janelas... Por ali os
cavaleiros mouros entrarão no gramado. Os cristãos chegarão pelo outro lado,
atravessando o enorme painel em forma de igreja.
Acomodados num dos camarotes de madeira construídos em volta do
campo, os cinco meninos assistem à apresentação das danças folclóricas.
Alguns grupos, como o das pastorinhas, já se exibiram, ao som da tradicional
banda da cidade, a Phoenix, cujo nome se escreve assim mesmo, à antiga, com
"ph" e "oe", pronunciando-se "Fênix". Apresenta-se agora a catira, dança de
homens, tradicional na região. De pé, dispostos em duas fileiras, uma em frente
à outra, ao som ritmado das palmas e da batida dos pés; os homens entoam
belas, antigas canções. São desafios, lançados de uma fileira para a outra;
respondidos, provocam novos desafios, que, também respondidos, dão lugar a
outros, e assim sucessivamente.
— Aquele senhor da fileira da direita, o magro, de chapéu marrom —
aponta Cientista Maluco —, é meu tio Antenor.
— Sua família toda participa da festa! — exclama Paloma.
— Duas irmãs são pastorinhas, o avô é o mordomo do mastro, um tio
dança catira... — Irenona vai contando nos dedos.
— ... a prima costura a roupa dos mouros, o irmão está mascarado de
monstro e o pai será o próximo imperador! — emenda Mateus.
Cientista Maluco ri, feliz:
— É verdade, meu pessoal adora festas! O povo daqui costuma dizer:
"Rezar e festar, é só começar"!
Enquanto a multidão aplaude os catireiros, um menino desconhecido
passa correndo e joga sobre Mateus uma tira de papel, antes de perder-se na
confusão. Surpreso, Mateus recolhe a tira e a lê, em voz alta:
A pista verdadeira chegará pelo animal traiçoeiro; a perigosa, pelo amigo.
— Quimera ataca novamente! — Cientista Maluco esfrega as mãos de
contentamento.
Em algazarra, os alegres mascarados invadem por todos os lados a arena,
divertindo a multidão com suas roupas coloridas, máscaras e irreverência.
Alguns vêm a pé; a maioria monta cavalos, enfeitados com tecidos brilhantes,
guizos, flores de papel, lantejoulas, purpurina, fitas, cataventos... vale a
criatividade! Cavalgam em várias direções, deitados ou de pé sobre os animais,
fazendo piruetas, tocando cornetas, girando matracas, mexendo com a plateia.
As pessoas da cidade tentam reconhecê-los:
— Aquele boi parece a Joaninha!
— Sei quem você é! É Tonhão! Não adiantou se vestir de mulher, não!
Reconheci pelo pé!
Uma carroça apinhada de mascarados passa rente aos meninos. Irenona
reconhece a horrível máscara de monstro do condutor; apontando-a, chama a
atenção de Cientista Maluco:
— Cientista, lá vai Pepeu, seu irmão gêmeo! Eu o reconheci! Encontramos
com ele ontem, durante a saída dos mascarados! — Cientista Maluco concorda,
com um leve movimento de cabeça. Dedo nos lábios, porém, pede silêncio a
Irenona: deve-se tentar descobrir quem é um mascarado, mas jamais revelar sua
identidade, pra não estragar a brincadeira!
Tão rápido quanto entraram, os mascarados se vão, aplaudidíssimos. À
saída, um tigre — sua máscara até bigode tem! — atira uma enorme flor de papel
para Paloma. Encantada, a menina debruça-se sobre a amurada, segurando a flor
no ar. Nas pétalas vermelhas está escrito, em letras douradas:
Gatinha:
Meu amor é mais lindo que esta flor!
Me amarrei em você. Amor à primeira vista, quando enxerguei seus lindos
cabelos negros, seu sorriso, corpo deslumbrante, andar de rainha...
Quero ficar com você, gatinha! Venha se encontrar comigo hoje, às nove
horas da noite, em frente à antiga Casa da Câmara.
P.S.: Você também vai gostar de mim!
— "Andar de rainha"! "Lindos cabelos negros"! "Corpo deslumbrante"! "O
amor, mais lindo que a flor"! Uaaaau! — mia Paloma, deliciada, ajeitando a franja
sobre a testa. — Adoro caras românticos!
— Humpf! Declaração de amor mais besta... — Mateus consome-se em
ciúmes. — Coisa mais sem graça, antiga!
Ar experiente, Cientista Maluco coloca duas mãos solidárias sobre os
ombros do amigo:
— Aprenda uma coisa, Mateus: as mulheres são os seres mais ingratos que
Deus colocou sobre a Terra! — Suspira longamente, a expressão entre triste e
trágica: — Sei disso por experiência própria!
Chega o momento mais emocionante da festa. As Cavalhadas vão
começar! A plateia concentra-se, em silêncio. No campo vazio, ouve-se apenas o
toque solitário, solene, da banda.
De repente, como em uma miragem, envoltos em luzes e brilhos, doze
cavaleiros mouros atravessam como raios a porta do castelo, irrompendo no
campo. Ao mesmo tempo, no lado oposto, doze cavaleiros cristãos entram pelo
portal da igreja, galopando no gramado. Parecem reis, majestades... São vinte e
quatro soberbos cavaleiros, os mouros em branco e vermelho, os cristãos em
branco e azul.
— Maravilha! — exclama Irenona, boquiaberta.
Vieram de tempos muito antigos, estes cavaleiros.
Banhados de prata e dourado, desfilam coroas, mantos, bandeiras, lanças
e espadas. Lampejam ao sol seus cetins, veludos e brocados, as pedras, as
plumas. Cada detalhe das roupas luxuosas foi imaginado, costurado, bordado
com amor e arte; cada cavalo, cuidadosamente lavado, escovado e embelezado.
O resultado é um sonho. Na pequena Pirenópolis, interior do Brasil, na serra dos
Pireneus, estado de Goiás, entre Brasília e Goiânia, o tempo se inverteu, girou de
ponta-cabeça: presente foi pro passado, passado virou presente!
Irenona está tão fascinada que só tem olhos para o espetáculo. Paloma
chama-lhe a atenção:
— Aquele cara mascarado de gato deixou um papel no seu colo!
Ao terminar de ler a mensagem, Irenona está irreconhecível. Seu grande
rosto sardento tornou-se vermelho-vivo; placas brotam-lhe pelo corpo inteiro.
Agarrada ao papel, olhar fixo, balança o tronco para a frente e para trás, em
movimentos ritmados. Sua boca emite estranhos ruídos:
— Hic! Hic! Hic!
— Ela está muito esquisita! — Bié dá o alarme.
— Está passando mal! — reforça Paloma.
Cientista Maluco arranca rapidamente o papel da mão de Irenona, lendo-o,
em voz alta:
Gatona:
Adoro mulheres grandes, sensuais, decididas... Exatamente como você! Me
amarro nos seus maravilhosos cabelos ruivos encaracolados e nas suas
charmosas sardas. Haverá, no seu coração, um lugarzinho para este
apaixonado?
Quero ficar com você! Encontre-se comigo hoje, logo após as Cavalhadas,
no cine Pireneus. Essa velha casa de sonhos será o lugar ideal para o início do
nosso amor.
— Água, rápido, água! — ordena Cientista. Mateus entrega-lhe uma garrafa
de água mineral, que Cientista derrama inteira sobre Irenona. Encharcada, a
menina dá os primeiros sinais de volta à normalidade:
— O... que... está... acontecendo? — pergunta, piscando muito os olhos, a
expressão confusa.
— Não sabemos! — exclama Paloma. — Depois da declaração de amor
daquele mascarado, você ficou estranha!
Ao ouvir as palavras declaração de amor, Irenona transtorna-se de novo.
Balança a grande cabeça para cima e para baixo, junta as mãos e dá pulinhos
pelo camarote, piando: "Hic! Hic! Hic!".
— Ela tá parecendo uma galinha-d'angola gigante! — Mateus não consegue
conter o riso.
São necessários baldes de água para acalmar Irenona. Mesmo assim,
durante o restante da apresentação, ela permanece estranha, distraída, sorriso
esquecido nos lábios...
No campo, o rei cristão e o rei mouro, seus embaixadores e cavaleiros
desenvolvem lindas mesuras e alegorias a cavalo, enquanto recitam falas de
antigamente:
"Eu sou o grande sultão, senhor da Mauritânia, senhor de meio sol e de
meia lua e de todo o mar Vermelho. Já disse quem sou. Dize tu quem és."
"Eu sou Carlos Magno, dos heroicos príncipes da Europa o mais poderoso,
professo a lei de Cristo e adoro as três pessoas da Santíssima Trindade..."
Irenona nada vê, nada ouve. Não se move. Nem mesmo quando estoura no
gramado a espetacular guerra entre cristãos e mouros, ela dá sinais de entender
o que acontece. Ao seu lado, os amigos torcem, assoviam, aplaudem, vibrando
com os lances da luta, que empolga a plateia.
O rei cristão aceita a trégua de vinte e quatro horas proposta pelo mouro,
que perdeu muitos soldados e animais na batalha, necessitando de tempo para
tratar e alimentar seus feridos. Somente então, quando todos os cavaleiros
deixam o campo, muito aplaudidos, para continuar a guerra na tarde seguinte,
Irenona acorda do torpor.
Olhando os amigos de forma estranha, como se não os reconhecesse,
levanta-se apressada e deixa o camarote.
— Calma, Irenona, você não está bem! Vou acompanhá-la — oferece-se
Mateus.
— Não! — O berro e o gesto da menina são tão bruscos que Mateus pára,
sem graça.
Irenona afasta-se, gritando de longe, sem olhar para trás:
— Estou atrasada. O Alcebíades está me esperando!
Mistura-se à multidão que deixa o campo. Os amigos a perdem de vista.
8. Todo mundo nervoso
Nas ruas da cidade, turistas e moradores comentam a apresentação das
Cavalhadas, enquanto se deliciam com milho assado, pipoca, pamonha, caldo de
cana, sucos e refrigerantes. Irenona nada vê ou escuta. Seu coração sente apenas
um desejo: descobrir quem é o admirador secreto que lhe entregou o bilhete!
Ela jamais recebeu um bilhete de amor. Nunca elogiaram seu físico, nem
acharam seus cabelos maravilhosos ou suas sardas charmosas. "Só pai e mãe,
mas eles não valem", pensa. Na escola, os meninos gozam de sua altura
descomunal para a idade, os pés e mãos imensos, o andar desajeitado, tombado
para um lado, a falta de gosto para roupas...
Irenona
Irenona
Você é
machona!
Todos os dias, o mesmo terrível grupinho a persegue no recreio,
impiedosamente, entre risos, caretas e línguas de fora. Quantas vezes, cega de
ódio, voou para cima deles, disposta a matá-los, a socos e pontapés? Quantas
vezes foi levada de castigo para a sala da diretoria, por haver esmurrado
colegas, revidando agressões? Quantas vezes trancou-se sozinha no banheiro do
colégio, chorando de vergonha, tristeza, raiva, humilhação? Quantas e quantas
vezes jogou-se aos prantos na cama, sozinha no quarto, vontade de sumir do
mundo? Perdera a conta!
Agora tudo vai ser diferente! A vida mudou! Em plena Cavalhada, ali em
Pirenópolis, surge aquele misterioso, maravilhoso mascarado, um gato
apaixonado, com bilhete de amor e tudo! Para ela, ela, Irenona! Nem consegue
acreditar!
"Ah, esse sim, sabe me valorizar!", devaneia, em plena rua. "Adora ruivas
grandes, fortes, como eu... Diz que se amarra nas minhas sardas, e ainda me
acha sensual! Eu, sensual!", admira-se, risinho tímido, de pura felicidade, meio
escondido pelas lágrimas.
Louca de ansiedade, vai abrindo caminho em meio à multidão, aos
empurrões e cotoveladas. Um ímã invisível a atrai para o cine Pireneus, o
cinema em ruínas, "a casa de sonhos abandonada" onde seu amor a espera.
Irenona não sabe que caminha para a morte.
• ••
Cientista Maluco, Paloma e Mateus zanzam pelas ladeiras apinhadas de
gente. Bié, cansada, voltou para a pousada. Cuspindo grãos de milho, Cientista
comenta, intrigado:
— Não entendo! Na fita que gravou pra gente, Quimera implorou ajuda!
Disse que hoje à tarde, durante as Cavalhadas, encontraríamos as pistas que nos
levariam até ele! As Cavalhadas terminaram por hoje, já é noite... E nem sinal do
Quimera!
— Acho que esse Quimera tá é gozando da cara da gente! — comenta
Paloma, sentada no meio-fio.
— Como, gozando da gente? Ele quer nos matar, isso sim! — Mateus está
indignado. — Tentou nos enterrar vivos, quase me esfaqueou, por um triz não
raptou Bié... Esse sujeito é perigosíssimo!
— É, pode até ser... — Paloma responde, um jeito de repente distraído,
admirando as próprias unhas, pensamento longe. Após uma pausa e um longo
suspiro, diz:
— Querem saber de uma coisa? Já estou cheia desse Quimera chato! —
Levanta-se, limpando a parte de trás da saia curtinha, ajeita a franja, usando os
óculos de Cientista Maluco como espelho, e, sem mais nem menos, vai embora,
sozinha.
Parados no meio da ladeira, caras de bobos, os dois meninos não sabem o
que fazer. O primeiro a reagir é Mateus. Seu coração apaixonado dá o alarme,
avisando o dono: perigo à vista! Esbaforido, corre até Paloma, segura-lhe com
força o braço e a obriga a virar-se para ele. Fuzila:
— Aonde é que você vai? Hein? Aonde é que pensa que vai?
Refazendo-se do susto, Paloma responde, zangada:
— Aonde é que eu vou? Ora essa, vou para onde eu bem entender! —
Solta-se de Mateus com um safanão, continuando ladeira acima, a minissaia e o
rabo-de-cavalo balançando pra cá, pra lá, pra cá, pra lá...
Ele a persegue:
— Você vai se encontrar com o cara que lhe mandou aquele bilhete! Não
é? É pra lá que está indo! É ou não é?
Paloma continua subindo a ladeira.
— Tá indo se encontrar com ele, sim! Confesse! — Grita: — Confesse, de
uma vez por todas!
Paloma vira-se para Mateus. Mãos nos quadris, olhos nos olhos, dispara,
furiosa:
— E se for? Hein? E se for? O que é que você tem com isso? Nada! Você
não tem nada com isso! Não é meu dono!
— Mas...
— Tem outra coisa: pelo bilhete que mandou, escrito numa flor, ele deve
ser um cara super-romântico! Não um grosso como você, que grita comigo! Eu
adoro caras românticos, sabia? A-do-ro! — Dá uma rabanada, continuando
ladeira acima.
— Paloma, eu te amo! — Mateus grita.
Paloma continua sua marcha, de costas para ele, o rabo-de-cavalo
balançando vigorosamente. Num impulso, o menino ajoelha-se na calçada; junta
as mãos e repete, o mais alto que pode:
— Palomita, eu te amo!
Nesse momento, Mateus se dá conta da situação: ele, ajoelhado em plena
rua, no meio da multidão, gritando uma declaração de amor para Paloma! Esse
jeito de agir não tem nada a ver com ele! Será que foi influenciado pelos
cavaleiros mouros e cristãos? Mateus morre de vergonha; fecha os olhos, tem
vontade de sumir dali, desaparecer para sempre!
Não só não desaparece, como ainda tem de escutar os comentários
divertidos dos passantes:
— Pra mim, você não precisa se ajoelhar, não! Aquela menina tá pensando
o quê? Que é alguma modelo? Imagine, esnobar uma gracinha como você! —
declara-se uma garota morena, sorrindo para Mateus.
— Aprenda de uma vez por todas, rapaz: mulher a gente trata ali, na
dureza! Senão elas se acostumam, querem mandar na gente a vida toda! —
discursa um grandalhão de boné.
— Qual é, ô meu? — uma mulher indigna-se com o grandalhão de boné. —
Resolveu dar uma de machão? O século XXI aí; e você ainda nesse atraso, nessa
besteira de tratar mulher na dureza? Homens e mulheres têm de ser tratados do
mesmo jeito: com carinho!
— Ela tá certa, tá certa! — apoia um garoto com skate. Em minutos, forma-
se a maior confusão, todos falando ao mesmo tempo.
Ofegante, cabelos arrepiados, óculos tortos embaçados, chega correndo
Cientista Maluco:
— Mateus, Paloma, prestem atenção, pelo amor de Deus!
Os dois viram-se para ele. Cansada de discutir, a multidão começa a
dispersar-se. Cientista está agitado:
— Escutem, tenho uma coisa muito séria pra dizer: descobri que Irenona
está correndo perigo de vida!
Tomando fôlego, prossegue:
— Pensei em tudo o que aconteceu durante as Cavalhadas. Lembram-se do
primeiro bilhete que recebemos? A pista verdadeira chegará pelo animal
traiçoeiro; a perigosa, pelo amigo. Então!
— Então, o quê? — Já de pé, limpando os joelhos com as mãos, Mateus
está impaciente para resolver seu caso de amor com Paloma.
— Raciocine, Mateus! Quem entregou o bilhete a Paloma? Um tigre, animal
traiçoeiro! Logo, essa é a pista verdadeira! Quem entregou o bilhete a Irenona? O
gato, animal amigo! Irenona recebeu a pista perigosa!
— E daí? — retruca Paloma. — Ela nem deu bola pr'aquele bilhete! Saiu
correndo feito doida, atrás do Alcebíades!
— Vocês ainda não perceberam? Ela não foi atrás de Alcebíades nenhum!
Foi, isso sim, direto pros braços do autor do bilhete! Não se lembram do
chilique que teve, depois de ler a mensagem? Tivemos de jogar baldes de água
em cima dela! Depois, ficou esquisita, não prestou atenção às Cavalhadas... No
fim, saiu apressada, parecia um foguete!
— É! — Mateus e Paloma concordam. — Ela estava estranha, mesmo!
— Conhecendo o modo de agir do Quimera — continua Cientista, agora
com ar de sabido, pescoço fino esticado, como se fosse o maior entendido do
mundo em quimeras —, conhecendo o modo de agir daquela fera, posso
afirmar, sem nenhuma dúvida: Irenona está correndo perigo de vida! Quimera
quer matá-la!
Faz um sinal com o braço, chamando os amigos:
— Rápido! Todos para o cine Pireneus! Antes que seja tarde!
• ••
Chegando à rua Direita, Irenona pára. Em frente ao cine Pireneus, hesita.
Sente medo, coisa rara nela.
O prédio foi construído há muitos anos, em 1919, quando o cinema
começou a tornar-se uma arte popular no mundo inteiro. O Pireneus — bonito,
central, iluminado — logo se transformou no mais importante ponto de
encontro de toda Pirenópolis. Ali famílias inteiras assistiam, maravilhadas, às
aventuras, romances e comédias dos filmes mudos, em preto e branco,
acompanhados pelo som de um piano, colocado abaixo da tela. Depois
apareceram os filmes falados e, mais tarde, os coloridos, encantando gerações
de pirenopolinos.
Hoje, o velho cinema do interior está abandonado, vencido pela televisão
e pelo videocassete. Seus frequentadores foram sumindo, sumindo... Um dia, o
Pireneus fechou. Restaram-lhe apenas a fachada, alta, ainda imponente, mas
suja, rachada, e o portão de ferro, amarrado com grossas correntes. Para que
servem, as correntes? O Pireneus não tem mais paredes, teto, poltronas nem
tela... É um cinema fantasma, só lhe restaram ruínas! Por trás da fachada, nos
restos quebrados do piso, correm ratos e escorpiões; o mato cobre os muros
baixinhos, onde antes havia paredes.
Agarrada às grades do portão, no escuro da noite, Irenona observa as
ruínas impressionantes do cinema. Mal iluminados pelo luar, percebe buracos
estreitos, fundos, por onde lagartos passam, pedras pontudas, pedaços
enferrujados de canos, e sombras, que deslizam entre os tufos de mato.
Irenona arrepia-se. Sente frio. Tem fome. ''Por que meu amor marcou
nosso encontro aqui?", aflige-se.
"Detesto este lugar!" Quer fugir dali, reencontrar os amigos. Lembra-se do
bilhete: ...seus maravilhosos cabelos ruivos... sardas tão charmosas... adoro
mulheres grandes, decididas... Quero ficar com você!
Para Irenona, isso é música do céu; representa seus sonhos mais
sonhados, desejos secretos, esperanças renascidas! Enchendo-se de coragem,
empurra com força as grades do portão. Podres, as correntes de ferro cedem. A
menina toma fôlego e entra.
Ainda não se acostumou ao frio de geleiras, ao cheiro estonteante de
mofo e morte e às invisíveis teias de aranha que lhe roçam o rosto, quando um
braço forte, peludo, a agarra por trás. Sufocada, Irenona debate-se; aos poucos,
seu corpo amolece, as pernas dobram-se, a vista escurece. Ela desmaia.
9. A paixão de Irenona
Irenona entreabre devagar os olhos. A dor no alto da cabeça é forte. A
garganta está seca, e os olhos, pesados. Não consegue mover-se.
Escuta um som, vindo de muito longe, de distantes galáxias:
— Irenoooona... Irenoooona....
Sente que a dor de cabeça cede um pouco. Os sentidos e o raciocínio
estão voltando, devagar. Consegue mexer as mãos, com dificuldade. Tateia em
volta. Percebe que está deitada no chão. As pedras, os tufos de mato, os passos
apressados das ratazanas começam a fazer sentido em sua mente: continua nas
ruínas do cine Pireneus!
— Irenoooona... Irenoooona....
O som vem de longe, como um eco. Percebe vultos movendo-se, porém
não os consegue identificar no escuro.
— Irenooona... Irenooona....
O som parece mais próximo. A menina sente algo macio sob a cabeça.
Tateia a nuca, para perceber o que há por baixo. Finalmente, compreende: é...
um colo! Sua cabeça está no colo de alguém!
— Irenoona... Irenoona....
O som está próximo. Recortados contra a lua, entrevê os contornos de um
rosto, cabelos, um nariz... o perfil de uma pessoa! Alguém, debruçado sobre ela,
faz-lhe carinho nos cabelos, com cuidado para não machucá-la, repetindo seu
nome, docemente:
— Irenona... Irenona....
Tem a impressão de conhecer aquele vulto, mãos, voz. De onde? Não
sabe. Tudo está confuso em sua mente! Concentra-se, firmando a vista: os
cabelos parecem despenteados, o nariz, pequeno e pontudo, carrega algo em
cima, a voz é esganiçada:
— Irenona... Irenona....
"Cientista Maluco!", reconhece Irenona, espantada.
Escuta de novo. Não há dúvida, é a voz dele! Feliz, a menina tenta
movimentar-se, mostrar ao amigo que o reconheceu, mas não consegue;
normalmente pesado, seu corpo agora virou chumbo, a boca está selada.
Raciocina: "Se Cientista Maluco está aqui, segurando minha cabeça no colo,
fazendo carinho em meus cabelos, repetindo meu nome com doçura, então...
então... ele mandou o bilhete de amor!".
Os pensamentos voam, excitados pela descoberta:
"Cientista deve ter pedido ao gato mascarado, decerto um amigo dele, pra
me entregar o bilhete! Depois veio se encontrar comigo aqui, neste cine
Pireneus, sem ninguém desconfiar! É o meu admirador secreto! Quem diria!
Cientista Maluco me ama! Ah, danadinho! Danadinho!"
Louca de felicidade, Irenona esquece-se das dores, saltando sobre o
pescoço de Cientista Maluco, que, surpreso, cai estatelado no chão, de costas,
óculos voando longe. Debruçada com todo o peso sobre o menino, Irenona
sufoca-o de beijos, exclamando:
— Cientista Maluco! Eu também o amo, querido! Amei você desde que o vi,
em cima do telhado, tentando desenroscar a pipa da antena de TV! Minhas
charmosas sardas e meus cabelos ruivos são todos seus, gatão! Todinhos seus!
Pode fazer deles o que quiser! Vem, amor, vem cá! Só mais um beijinho:
mmmm... nhac!
De pé ao lado dos dois, Paloma e Mateus não conseguem acreditar no que
veem. Nem sabem se choram ou riem! Se choram, de preocupação, medo e
nervosismo, devido à terrível perseguição que lhes move há dias o Quimera; e
devido ao estado em que encontraram Irenona, desmaiada, cabeça e pescoço
ensanguentados! Não sabem se riem, ao ver a amiga recuperada, e ao assistir
àquela cena maluca: Cientista e Irenona rolando abraçados no chão, entre as
ruínas do cinema, ela a fazer-lhe declarações de amor eterno e a beijá-lo; ele,
esmagado sob o peso, tentando a todo custo escapar! Na dúvida, Paloma e
Mateus, que fizeram as pazes, choram e riem ao mesmo tempo.
• ••
Dentro da suíte mais luxuosa da pousada mais cara de Pirenópolis,
deitada entre lençóis de cetim, colcha de seda e travesseiros de penas de ganso,
está Irenona. Abatida, tem um grande curativo na cabeça, feito pelo médico da
família, trazido de helicóptero, de Brasília, especialmente para examiná-la; por
nada desse mundo Irenona aceitou que Alcebíades a levasse de volta a Brasília,
como ele queria fazer.
O médico tranquilizou a todos: Irenona foi atingida por um duro golpe na
cabeça, é verdade, e está muito assustada; mas é jovem, forte, saudável, seu
cérebro não foi atingido. Bastará um pouco de repouso para recuperar-se. O
sorridente médico dá tapinhas nas costas de Irenona, receita-lhe comprimidos,
recebe um gordo cheque e sai rumo ao helicóptero, acompanhado por
Alcebíades.
No chão, em volta da cama, os amigos de Irenona sentem-se alegres,
aliviados. Já fazem planos:
— Ótimo que você se recuperou, Irene! Amanhã, poderemos assistir ao
segundo dia das Cavalhadas, todos juntos!
— Segunda-feira é o dia das maiores batalhas! — diz Cientista Maluco. —
No final, os mouros acabam se rendendo, aceitando o batismo. O rei mouro diz
— Cientista empertiga-se, pose de rei, voz grave: — "Sim, aceito as águas do
Santo Batismo e reconheço o seu Deus como único e verdadeiro!" Descem dos
cavalos, se ajoelham, tiram os capacetes e são batizados, enquanto os cristãos,
de pé, colocam as espadas sobre os ombros deles. É lindíssimo!
— Sempre termina assim? — Bié está muito decepcionada. — Nunca, nem
uma vezinha, os mouros ganham?
Mesmo de curativo na cabeça, Irenona solta um longo suspiro:
— É no que dá, andar com fedelha!
Mateus sorri:
— Vejo que você já está bem melhor, Irenona! — Volta-se para Bié: —
Sempre termina assim, Biezinha. Cientista já explicou que não é uma guerra de
verdade, é um ritual, pra comemorar a vitória dos cristãos.
Bié não se conforma:
— Marmelada, isso sim! Amanhã, vou torcer pelos mouros! Gosto mais da
fantasia deles, sou doida por vermelho!
— Amanhã estaremos todos juntos, no campão, pra festar! Isso é o que
interessa! — diz Paloma.
A animação logo é cortada por Alcebíades. Apesar do calor tórrido de
Pirenópolis, o motorista-mordomo usa boné, terno, colete, gravata e luvas
brancas. Empertigado, avisa:
— Nada disso! Nem pensar em Cavalhadas, amanhã! De agora em diante, a
senhorita Irenona ficará o tempo todo comigo! Basta de perigos e confusões! Eu
sou o responsável por ela, aqui! Se quiserem brincar juntos, terá de ser bem
debaixo do meu nariz! — O jeito dele não deixa a menor dúvida de que fala a
sério. — Amanhã, Irene não sairá deste quarto!
Somente depois de muito negociar — aos berros, Irenona ameaça
telefonar para os pais, na Europa — os meninos conseguem um acordo: na
manhã seguinte, todos farão um tranquilo passeio de carro pelos arredores de
Pirenópolis, Alcebíades dirigindo. O objetivo é chegar a Vagafogo, um santuário
da vida silvestre, uma área bonita, com árvores, riozinhos e uma pequena
cachoeira, onde são preservadas plantas e animais da região, como o mico-
estrela, o tamanduá-mirim, o passarinho cã-cã... Protegidos dos caçadores e
malfeitores, os animais ali vivem felizes, no ambiente natural.
— A natureza fará bem a todos nós — reconhece Mateus. À tarde, nós
quatro assistiremos ao segundo dia das Cavalhadas, enquanto Irenona descansa.
Os meninos despedem-se, animados com a ideia do passeio. Não
desconfiam que está começando a pior parte de suas aventuras.
10. O segredo de Cientista Maluco
Janelas e portas abertas, bem iluminada, entra-e-sai de gente, a casa de
Cientista Maluco, construída há mais de duzentos anos no centro de Pirenópolis,
está muito movimentada. Ano após ano, durante a festa do Divino, a casa
conhece essa agitação deliciosa: parentes chegando de todos os lados, pessoas
dormindo no chão, gente cantando, dançando, namorando, crianças correndo,
tititi até de madrugada, panelões fumegando no fogão de lenha... Todos
participam ativamente da festa, centro e motivo daquelas reuniões de família.
Nos anos anteriores, era sempre Cientista Maluco quem aguardava com
maior alegria a chegada dos parentes, ele quem mais curtia a animação da casa
nos dias da festa. Este ano, porém, Cientista está diferente. Todo mundo notou:
— Que bicho mordeu você, menino? Ninguém mais vê seu rastro! —
reclama tia Marocas, que gosta do sobrinho trapalhão e inventivo.
— Desde que arrumou amigos vindos de fora, ele não liga mais pra gente!
— choraminga a pequena Luisinha, tiete das mágicas do primo Cientista.
— Ficou metido a besta! — espeta o irmão Pepeu, mascarado de monstro.
Cientista Maluco disfarça. Abraça os parentes, brinca um pouco com
Luisinha. Durante o jantar, entre copos que derruba e comida que espalha,
participa da conversa, comentando o festão do próximo ano, quando o pai será
o imperador. Assim que todos terminam de comer o delicioso doce de limão,
receita famosa de sua mãe, Cientista Maluco levanta-se, deixando apressado a
cozinha.
Corre até seu esconderijo, um pequeno cômodo abandonado atrás dos
limoeiros, no fundo do quintal. Abaixa-se, para poder passar pela entrada,
depois recoloca cuidadosamente a tábua que serve de porta. "Preciso tomar
muito cuidado com a segurança desse lugar; tem havido roubos por aqui." Lá
dentro, aproxima-se aos trambolhões do único móvel existente, uma velha
mesa, onde se misturam, em desordem, dezenas de tubos, vidros, tintas,
líquidos coloridos e panos sujos. É o laboratório de Cientista Maluco.
Ali ele trabalhará durante horas, como tem feito nas últimas madrugadas.
Deverá concluir hoje o mais ambicioso e importante projeto de sua vida,
apelidado por ele de PHSSGICM — Projeto Hiper Super Secreto do Grande
Inventor Cientista Maluco.
Cientista prepara uma fórmula. Não uma qualquer, igual às tantas que já
inventou naquele laboratório, mas uma fórmula nova, revolucionária, mágica,
capaz de tornar realidade seu mais secreto desejo, aquele que há dias lhe rouba
todos os pensamentos, embala os sonhos e acelera o coração: Paloma apaixonar-
se por ele!
Cientista Maluco mistura nos tubos os vários ingredientes da fórmula,
tentando descobrir a combinação exata entre eles. Quantas pétalas de bem-me-
quer serão necessárias? Deve juntar três ou cinco folhas de coração-magoado?
Raízes de amor-perfeito combinarão com pó de suspiro? Deixa o pensamento
voar:
"Ela é a mais linda, mais esperta, mais querida, mais sensacional menina
que existe no planeta! Quando faz biquinho, então, pra dizer 'Oooooi, gracinhas,
cheguei!', é de derreter geladeira! E quando se abaixa, pra pegar alguma coisa no
chão? Aquela saia curtinha dela me deixa maluco! Chego a ficar com os óculos
embaçados!" Fecha os olhos, para melhor sonhar, sem perceber que derrama
metade do líquido vermelho.
"Amanhã, durante o passeio, em meio à natureza, Paloma beberá da
minha fórmula, a poção mágica do amor. Então... ela se atirará sobre mim,
louquinha de paixão!" Abre bruscamente os braços, para abraçar Paloma; a outra
metade do líquido vermelho voa pelos ares.
Horas depois, quando o sol está nascendo na serra dos Pireneus, o
menino solta o grito vitorioso:
— Eureca! — Está excitado: — Consegui! Eu consegui! Fabriquei a poção
mágica do amor!
Olha-se no espelho, ajeita o cabelo desarrumado, levanta a gola do
avental, tira os óculos e, pose de artista de novela, exclama:
— Te cuida, Mateus!
• ••
Mateus esfrega os olhos, depois belisca o próprio braço. Não consegue
acreditar no que lhe acontece! "Só posso estar sonhando!", raciocina. "Não é
possível que isso esteja ocorrendo! Eu, que nem carro tenho, e que todos os dias
ando um bocado pelas ruas de Taguatinga, hoje estou aqui, refestelado no
banco da frente do carro mais caro do mundo, um Rolls-Royce — e Rolls-Royce
dourado, ainda por cima! —, passeando pelos arredores de Pirenópolis com
amigos e um motorista, uniformizado da cabeça aos pés!"
Mateus deve estar mesmo com cara de ponto de exclamação, pois recebe
a maior gozação dos amigos, sentados atrás:
— Que foi, Mateus? Tá estranhando o conforto?
— Pare, Alcebíades! O Mateus quer descer, ele adora andar a pé! Prefere
caminhar até o santuário da vida silvestre!
Mateus nem ouve. Sente a maciez do estofamento de couro, a elegância
do painel de madeira de lei, o brilho dos metais de primeira qualidade. Curioso,
pergunta a Alcebíades:
— Quantos cavalos tem esse supermotor?
Alcebíades ajeita-se no banco, feliz. O Rolls-Royce é seu assunto
preferido.
Dez minutos depois, quando o papo entre os dois já corre solto, o
impossível acontece: o magnífico, incomparável Rolls-Royce dourado vai
perdendo força, perdendo força... até parar de vez, numa curvinha de estrada,
como qualquer carro velho comum!
Alcebíades murmura um espantadíssimo "Isso jamais aconteceu!".
Trêmulo, gira a chave, tentando fazer o motor funcionar. Repete o gesto
dezenas de vezes, inutilmente. Incrédulo, balança a cabeça, retira com cuidado
as luvas brancas, guarda-as dentro de um estojo de prata, e sai, para examinar o
motor. Excitado, Mateus sai atrás dele.
Três horas depois, o Rolls-Royce continua parado na curva da mesma
estrada de terra. Sob sol quente, Alcebíades, de terno, gravata e colete, coberto
da cabeça aos pés por uma grossa camada de poeira, cara enfiada dentro do
motor, bufa e geme; ao seu lado, o atento ajudante de mecânico Mateus segura
as ferramentas. Cansados, frustrados, os meninos conversam dentro do carro:
— Que azar! — Irenona soca o banco da frente com força. — Esse calor tá
me fazendo mal, aumentando minha dor de cabeça! — reclama, tocando o
curativo com as mãos. Preocupada, Paloma observa a amiga.
— O pior — completa Cientista, olhando em volta, desanimado — é que
estamos longe de tudo, da cidade e do santuário Vagafogo! O lugar mais perto
daqui é a enorme pedreira que vimos no caminho!
— Vamos pra lá! — pede Bié.
— É longe! — retruca Cientista. — Com esse sol e a poeira, vai ser difícil
chegar!
— Que sede! — Paloma abana-se com as mãos; sua pele e cabelos estão
ainda mais brilhantes, devido ao calor. Cientista observa-a, fascinado. Tenta
aproveitar o momento. Retirando da mochila sebenta o pequeno frasco com
líquido vermelho, que trouxe do laboratório, oferece-o à amiga. Paloma empurra
o vidrinho, com uma careta:
— Credo, Cientista! Não quero beber isso, não!
— Mas é delicioso! É um licor que minha mãe faz, típico da região de
Pirenópolis!
— Não bebo álcool — recusa Paloma.
— Não tem uma só gota de álcool! — desespera-se Cientista Maluco.
— Eu quero! — oferece-se Irenona. — Eu bebo!
— Não! — Em pânico, Cientista Maluco coloca depressa o frasco no bolso
do avental.
Ouve-se barulho de cascos de cavalo. Os meninos suspendem a
respiração, atentos. Na curva da estrada surge uma carroça, enfeitada para as
Cavalhadas.
— É Pepeu, o irmão gêmeo de Cientista! — Irenona é a primeira a
reconhecer. Excitados, os outros gritam:
— Pepeu! Acuda a gente, Pepeu! O Rolls-Royce quebrou! — A carroça pára
junto ao carro. De pé, rédeas na mão, o mascarado Pepeu acena para todos.
Seguem-se momentos confusos. Alcebíades não quer Irenona na carroça,
mas acaba cedendo. Será melhor, para a menina convalescente, retornar logo à
cidade. Após milhares de recomendações do mordomo — vão devagar, não
conversem com estranhos, cuidado com o caminho —, os meninos pulam
alegremente dentro da carroça de Pepeu.
Pepeu chicoteia o cavalo. Da carroça, que balança nos buracos e pedras do
caminho, os meninos acenam um adeus para o pobre Alcebíades, que derrete
sob o sol do meio-dia.
O novo passeio está agradando:
— Nunca tinha andado de carroça! É o maior barato! — delicia-se Irenona.
Mateus segura a mão de Paloma. É a primeira vez no dia em que presta
atenção nela.
— Pensei que você tinha me trocado pelo carro! — sorri a menina.
Pepeu tem pressa. Chicoteia com força o cavalo, fazendo a carroça correr
perigosamente pelo caminho acidentado. Cientista reage:
— Calma, Pepeu! Não é preciso essa pressa toda!
Estalam as chicotadas. O balanço da carroça derruba uns sobre os outros.
— Chega de brincadeira, Pepeu! Basta! — berra Cientista Maluco, livrando
a cabeça despenteada do peso de Irenona. — Devagar!
Pepeu nem se importa. De pé, na frente, continua chicoteando com
energia o lombo do animal. O vento contrário bate diretamente sobre ele,
inflando-lhe a roupa, que parece um balão, e levantando sua cabeleira de
monstro.
— Pepeu, não seja teimoso! Brincadeira tem hora! — reforça Mateus.
A carroça segue rápida, inclinando-se perigosamente nas curvas. Bié
agarra-se à borda, para não cair. Num movimento brusco, Pepeu desvia o cavalo
para uma trilha estreita, no meio do mato.
— Que é isso, Pepeu? Ficou maluco? — reage Cientista.
Pepeu nem ouve.
— Tá doido? Esse caminho não tem saída! Dá direto na casa maldita!
— Ca-ca-sa mal-di-di-ta? — Paloma gagueja, não se sabe se devido ao
medo ou aos solavancos da carroça.
— No final desse caminho existe um velho casarão abandonado! —
Cientista responde, nervoso. — O povo daqui diz que lá morava um homem
muito rico, mas também muito feio. Ele foi abandonado pela namorada, a quem
adorava. Ela o trocou por um barqueiro, um rapaz pobre, mas bonito! Desde
então, o homem trancou-se dentro do casarão, sozinho, sem ver a luz do sol, até
morrer de desgosto!
— Que romântico! — Paloma exclama, suspirando e revirando os olhos. —
Será que alguém neste mundo seria capaz de morrer de amor por mim? — Sua
pergunta não parece dirigida a ninguém em particular, mas, com os cantos dos
olhos, ela observa Mateus. O rapaz vai logo avisando:
— Eu é que não morro por ninguém!
— Desde a morte do homem, todas as noites a gente escuta barulhos
vindos da casa abandonada. São uivos, gemidos, sussurros, correntes que se
arrastam! O povo diz que é o espírito do homem rico e feio, procurando a
namorada! Só de me lembrar, fico todo arrepiado!
— Volta, Pepeu! — berram todos, ao mesmo tempo.
Pepeu nem liga. A carroça segue depressa, é impossível ficar de pé,
tomar-lhe as rédeas ou pular para o chão.
No fim do caminho, cercada de mato alto, surge a casa maldita.
É um impressionante monumento abandonado. O varandão e as janelas
estão cobertos de teias de aranha, insetos, lodo, rachaduras. Dentro, só
escuridão. Os meninos sentem um cheiro horrível de enxofre, quando a carroça
bruscamente pára, em frente à escadaria.
Com incrível agilidade, Pepeu salta para a traseira da carroça.
Aproveitando-se do susto dos meninos, coloca-lhes algemas nos tornozelos,
presas a uma grossa corrente de ferro. Com uma pirueta, pula no chão.
Arrastando a pesada corrente onde estão presas as crianças, solta medonha
gargalhada:
— Uahahahahaha!
Jogando para trás a vasta cabeleira, olha os meninos com jeito desafiador.
A voz grossa parece saída do inferno:
— Finalmente, consegui enganar vocês! Agora, todos são meus
prisioneiros!
11. Prisioneiros na casa maldita
Presas à corrente, as crianças são arrastadas para dentro da casa maldita.
Em meio ao mau cheiro e à completa escuridão, vão tropeçando umas nas
outras, sentindo asas e rabos de morcegos roçarem-lhe os rostos, enquanto
ratos deslizam entre suas pernas. Horrorizadas, choram, gritam, tentam resistir,
livrar-se das algemas, andar na direção oposta, mas o esforço é inútil: o
mascarado tem a força dos gigantes.
A fera chuta uma porta, que se escancara. Larga a corrente no chão, corre
rápido até o fim da fila e empurra as costas de Bié, a última criança. Os meninos
são todos arremessados pela porta, despencando, aos trambolhões, por uma
escada, que dá num porão. Ainda não se refizeram do susto, arranhões e golpes,
quando a voz horripilante troveja, do alto da escada:
— Eu avisei que devoraria todos! Não sobrará nem a pontinha da unha de
nenhum de vocês, pra contar essa história! — Dessa vez, capricha na
gargalhada:
— Uahahahahahahahaha!
Ninguém sabe como, naquele fundo de porão, Cientista Maluco consegue
forças para perguntar, com sua vozinha esganiçada:
— Se você não é Pepeu, quem você é?
A pergunta só serve para enfurecer a fera, que dá coices, solta urros,
mostra garras e presas, socando com força o próprio peito estufado, o que
provoca um barulho semelhante ao de tambores na selva. Embaixo, apertados
uns contra os outros, os meninos aterrorizados encolhem-se. Bié soluça,
Cientista geme, Paloma chora, Mateus grita, Irene xinga.
Pronta para saltar sobre as crianças, a fera de repente muda de ideia.
Compõe-se. Endireita o peito, ajeita a cabeleira para trás, estica a roupa. Parece
quase humana! Após respirar fundo, diz baixinho, para si mesma:
— Calma... É preciso saber se controlar!
No minuto seguinte, volta a enfurecer-se. Olhos esbugalhados, injetados
de vermelho, narinas abertas, berra para os meninos:
— Vocês estão pensando que vou devorá-los assim, rapidinho? Como se
eu fosse uma fera de segunda categoria, um lobo mau qualquer? É isso o que
pensam? Pois estão enganados! Redondamente enganados! Sou um monstro
sofisticado! — exalta-se. — Sofisticadíssimo!
Sua voz de trovão espalha-se pela casa maldita:
— Antes de matar vocês, vou fazê-los chorar lágrimas de sangue!
Primeiro, vocês apodrecerão aqui, neste porão das torturas! Só vou devorá-los
depois que estiverem bem humilhados, bem apavorados, bem desesperados,
bem arrasados, bem amassados, inteiramente derrotados!
A ideia parece animar a fera. Antes de bater a pesada porta e passar o
ferrolho pelo lado de fora, solta uma última gargalhada:
— Uahahahahahaha!
• ••
Os meninos logo entendem por que Quimera chamou aquele lugar de
"porão das torturas". Das goteiras do teto pinga um líquido amarelado, nojento,
fedendo xixi velho. Dos buracos da parede saem lesmas; nas poças de lama do
chão deslizam baratas e ratos. Abafado, úmido, o cômodo quase não tem luz
nem ar. Uma única janela, pequena e suja, situada no alto da parede,
inalcançável, deixa entrever apenas uma fina réstia de sol.
Acorrentados uns aos outros no porão escuro, à mercê do monstro
enlouquecido, os meninos não sabem como fazer para escapar.
— Acho que vamos morrer aqui... — choraminga Paloma, os lindos olhos
trêmulos de lágrimas.
— Quero papai! Quero mamãe! Quero ir embora daqui! — berra Bié,
batendo histericamente os pés no chão, como faz quando está apavorada.
— Esta porcaria de algema está ferindo meu tornozelo! — Irenona esforça-
se inutilmente para livrar-se dos ferros.
— Desde o começo, eu disse que este sujeito era superperigoso! — Mateus
rói as unhas, nervoso. — A gente devia ter contado a história do Quimera pra
polícia de Pirenópolis, como eu queria!
— O que a gente devia ou não devia fazer, o que você queria ou não, nada
disso importa — interrompe Cientista Maluco, ar triste, quase trágico. — Temos
de nos preparar para o pior!
— Pi-pi-or?
Nem dá tempo de Cientista responder. De um bueiro em que ninguém
havia reparado, escondido num canto escuro do porão, começam a sair cobras.
Cobras grandes, pequenas, rápidas, lentas, coloridas e cinzentas, que se
contorcem na direção dos meninos, línguas de flecha, provocando um fino som
de guizos:
zzzzzzzzzzzzzzzzzz
Carregando as correntes, as crianças correm com dificuldade para o lado
oposto do porão, espremendo-se contra a parede. As cobras, porém, aproximam-
se. Uma coral, fina, ligeira e bonita, vem à frente. Está chegando! Dirige-se para
o pé de Cientista, que se debate como louco! A cobra vai envenená-lo!
Uma parede de aço desce com estrondo do teto. As crianças ficam presas
entre essa parede e a do porão, num espaço mínimo, espremidas uma ao lado da
outra, quase sem poder respirar. Ao menos, estão livres das cobras!
— Apareça, Quimera de uma figa! — berra Irenona, dentes cerrados de
raiva. — Deixe de ser covarde, desgraçado! Venha lutar como homem!
— Isso mesmo! — apoia Mateus, rosto arranhado pela parede áspera. —
Quero ver se você tem coragem de lutar comigo, frente a frente!
— Sem truques! — exclama Paloma.
— Sem cobras! Sem cobras, por favor! — implora Bié.
— Sem máscaras! — brada Cientista Maluco.
O solo, que na verdade é um alçapão, abre-se em dois. Os meninos
despencam no espaço, caindo pesadamente no chão do andar de baixo. Tentam
levantar-se, desenroscando correntes e ajeitando algemas, quando ouvem a
gargalhada:
— Uahahahahaha! Uahahahahaha!
Vestido com a roupa azul e branca de rei cristão; espada à mão, Quimera
diverte-se muitíssimo com a confusão das crianças.
— O que foi, gracinhas? Estão apavorados com os meus truques?
Uahahahahaha!
— Venha lutar feito homem! — desafia Cientista Maluco, socando várias
vezes o ar com os braços finos. — Venha lutar feito homem! — repete.
— Eu não sou homem! — o outro ruge, ofendido. Voz de leão, despeja: —
Eu sou... Escutem bem! Sou Quimera, uma fera terrível, pavorosa, cruel! Resolvo
dar a vocês a honra de me verem em carne e osso, e o que acontece? Você me
chama de homem! — Anda nervosamente de um lado para outro, inconformado,
brandindo no ar a espada de rei cristão. — Humpf! Lutar como um homem!
Imaginem! Eu jamais me rebaixaria a tanto!
Sem precisar virar-se, Quimera agarra no ar o braço musculoso de
Irenona, que tentava atacá-lo por trás.
— Queridinha! Esse truque é mais velho que a minha tataravó! — zomba.
Ergue Irenona e a arremessa com tal força que a menina se esborracha contra a
parede; as outras crianças sentem os puxões, empurrões e solavancos da
corrente.
Quimera ajeita cuidadosamente as plumas do manto, enquanto informa:
— Toda essa lengalenga me desviou do meu verdadeiro objetivo, quando
trouxe vocês a este quarto! — Para surpresa geral, a fera curva-se até quase o
chão, numa graciosa mesura e, em voz quase doce, pergunta:
— Vocês querem jantar comigo? Será um banquete à fantasia!
• ••
Todos ficam estupefatos, olhando para o Quimera, sem saber o que dizer.
Cientista Maluco é o primeiro a recuperar-se; tenta aproveitar-se da súbita
calmaria da fera, respondendo, com o máximo cuidado:
— Er... É que nós não estamos com fome, não... Agradecemos muito o
convite! Não é nada contra o seu jantar, não, Quimera, é que hoje a gente comeu
muito, em casa... Pois é! — Contorce as mãos de nervosismo, antes de balbuciar:
— Só mais uma coisinha: nossos pais estão preocupados com nosso sumiço!
Saímos de manhãzinha pro santuário ecológico, e ainda não voltamos pra casa!
Falando sem parar, Cientista Maluco dirige-se para a saída, puxando a
grossa corrente de ferro e arrastando os outros consigo:
— Vá desculpando, Quimera, vá desculpando. Não é má vontade, não, mas
agora realmente não dá, temos de ir... Outro dia a gente volta, com mais calma!
— Sorriso amarelo, da porta da saída acena um adeus para a fera.
O urro do Quimera é ouvido até em Brasília. Soltando fogo pelas ventas,
suspende Cientista Maluco pela gola do avental e o engancha no velho lustre,
próximo ao teto. Presos à mesma corrente, os outros meninos ficam suspensos
no ar. O vozeirão faz o lustre tremer:
— Estão pensando que eu sou idiota? Que podem me distrair com
qualquer baboseira de conversa? Não me façam perder a paciência! Senão,
devoro vocês todos agora! — O lustre balança tanto que ameaça espatifar-se no
chão com os meninos.
Cada vez mais nervoso, mãos peludas atrás das costas, Quimera dá largas
passadas pela sala, no seu andar meio manco. Vira-se para a parede, enchendo o
peito de ar. Quando se volta, está completamente coberto de olhos! Tem olhos
na cabeça, na barriga, nos pés, na parte de trás e da frente do corpo. Olhos
castanhos, pretos, azuis, arregalados, puxados... São olhos aflitos, que piscam
de horror.
Pendurados no lustre, os meninos veem aquele ser vivo coberto de olhos
aproximar-se deles, braços esticados para a frente, labaredas na boca!
Paloma tem uma inspiração divina. Na voz mais doce do mundo,
pergunta:
— A que horas mesmo será servido o seu jantar, Quimera querido? — E,
fala de mel: — Eu nem consigo esperar!
Surpreso, Quimera levanta depressa a cabeça, eriça as orelhas e fareja o
ar, interessado em localizar quem fez a pergunta. A tentativa de Paloma dá
resultados. Aos poucos, o monstro se acalma. Cessa de cuspir fogo.
Quando se vira para a parede, perde os horríveis olhos extras. Ao colocar
no chão Cientista Maluco e seus amigos, sua respiração já é tranquila. Ordena:
— Sigam-me!
Vela na mão, Quimera conduz as crianças pelos corredores escuros até
um imenso quarto. Chapéus, luvas, sapatos, bijuterias e roupas de vários tipos e
cores espalham-se pelo cômodo, que parece um enorme camarim. Após trancar
a porta, o monstro liberta as crianças das algemas, determinando:
— Vistam as fantasias!
Uma coisa é fantasiar-se com gosto, no Carnaval.
Outra, muito diferente, é ter de meter-se à força numa fantasia, sob o
olhar atento do Quimera. Os meninos andam de um lado para outro entre as
roupas, feito baratas tontas.
— Rápido! — urra a fera.
Corações aos pulos, catando um traje aqui, uma máscara ali, as crianças
compõem como podem as fantasias. Mateus veste-se de rei mouro; Cientista
Maluco, de imperador da festa; Irenona, de gorila; Bié, de pastorinha, meninas
que dançam no campão das Cavalhadas antes da apresentação dos cavaleiros; e
Paloma, de cigana.
Quimera algema as crianças. Excitado, brada:
— Todos ao banquete à fantasia! — delicia-se. — O melhor da festa vai
começar!
12. Banquete macabro
Sentadas em volta de uma imensa e velha mesa de jantar, novamente
acorrentadas, as crianças aguardam o Quimera, que acabou de sair, não sem
antes ordenar que todos ficassem em silêncio absoluto. Obedecendo, os cinco
apenas se olham. "Como vamos sair daqui?", perguntam os olhos angustiados de
Paloma. "Não sei", respondem os olhos de Mateus. "Quero minha mãe!",
exclamam os olhos de Bié. "Que ódio, não poder esmurrar aquele Quimera!",
reclamam os olhos de Irenona. "Preciso inventar alguma coisa bem rápido",
decidem os olhos de Cientista Maluco.
Quimera entra animado, carregando uma enorme travessa tampada, que
deposita com cuidado sobre a mesa. "Aí tem coisa", pensam as cinco crianças.
"Quimera deve estar armando mais uma!" Bié imagina uma cobra-coral gigante,
coberta de olhos, saltando da travessa. Num gesto teatral — um, dois, três,
agora! —, o monstro retira a tampa. Aparece uma macarronada fumegante!
— Quero vocês todos muito bem nutridos! — exclama a fera, esfregando
as patas de contentamento.
A fome vence o medo. Em poucos minutos as crianças devoram a
macarronada, sob o olhar aprovador do Quimera. Ele não come:
— Não sinto fome. Prefiro outro tipo de comida! Uahahahaha!
Cientista Maluco vira-se bruscamente na cadeira, deixando cair um frasco
do bolso do avental. "A poção mágica do amor!", exclama o menino, abaixando-
se depressa para pegar o vidro.
— Espere! O que você tem aí? — pergunta Quimera, já com uma das patas
sobre o frasco. — O que é isso?
— É... hum... bem... hã...
Reconhecendo o frasco, Paloma decide ajudar o amigo:
— É um licor, feito pela mãe de Cientista Maluco! Diz ele que é delicioso!
— Ótimo! — anima-se Quimera. — Ótimo! Vamos brindar ao fim de vocês
todos! Decidi devorá-los daqui a alguns minutos! — Dirige-se à cozinha: — Vou
buscar copos!
— Não! — grita Cientista Maluco, pálido como a lua. Quimera encara-o,
irritado; as ventas tremem, a cabeleira se eriça, o peito estufa-se. Ruge:
— Você disse o quê, mesmo?
— Nada, nada... — responde Cientista Maluco, sorriso amarelo. — Não
disse nada, não, foi impressão sua...
— Ah!
Cientista pensa, apavorado: "Essa fórmula mágica ainda nem foi testada!
Nunca deveria ser tomada em grupo! Meu Deus, não sei o que pode acontecer!".
Pergunta-se: "Será que todo mundo vai se apaixonar por todo mundo? Cada um
vai se apaixonar somente por uma pessoa? A fórmula fará efeito apenas em
Paloma, pra quem foi preparada? Paloma se apaixonará por todos, ou apenas
por mim? Que confusão!". Abre os dois braços, desolado, esbarrando no frasco e
nos copos que Quimera vem trazendo da cozinha. Tudo cai no chão; o líquido
derrama-se, os copos se quebram, maior estrago! Quimera berra, enfurecido:
— Você é o primeiro que eu vou devorar! Será meu aperitivo! Chuparei
todos os seus míseros ossos, um por um! Como ousa esbarrar em mim? Como
ousa frustrar um desejo meu?
De quatro no chão, tremendo mais que gelatina, Cientista Maluco
encontra o vidro e, suspendendo-o, oferece-o a Quimera, num fio de voz:
— Ainda sobrou um pouquinho do licor, o senhor aceita?
Quimera arranca o vidro da mão de Cientista. Vai entornar na garganta "o
licor delicioso da mãe de Cientista Maluco", quando muda de ideia. Grita:
— Quero todo mundo brindando comigo! Rápido, andem! Se não há mais
licor pra vocês, encham seus copos com água! Mexam-se!
Os meninos se apressam em obedecer. Quando todos estão prontos para
o brinde, copos suspensos no ar — o de Quimera com "licor", o dos meninos,
com água —, a fera levanta a pata, urrando:
— Parem! — Ordena: — Antes de beber, cada um faça um pedido! Ele vai
se realizar, com certeza!
"Queremos sair daqui", pensam todas as crianças. "Quero devorá-los",
pensa Quimera.
Cientista Maluco abre devagar os olhos, para verificar o efeito de sua
poção do amor. Decepciona-se: absolutamente nada aconteceu! O monstro
continua igual ao que sempre foi. "Mais uma fórmula pra jogar no lixo", suspira,
pensando em como é difícil e ingrata a vida de inventor.
Quimera levanta-se rapidamente, corre até a mesa e apaga as velas. No
escuro, os meninos escutam a respiração arfante da fera. Sentem seu cheiro
forte, animal, espalhando-se pelo ar. Ouvem as batidas atropeladas do seu
coração. Percebem as passadas, cada vez mais próximas.
— Estou com fome! — O urro ressoa na escuridão. — Vou devorar vocês
agora mesmo!
Os meninos correm desabalados, escondendo-se num canto do salão.
— Adoro brincadeira de cabra-cega! — delicia-se Quimera, correndo atrás.
Há horas os meninos estão presos, acorrentados, no canto do Salão
Nobre. O próprio Quimera explicou, às gargalhadas:
— Este é o meu cômodo preferido! Eu mesmo o decorei, com todo o
capricho! Não é lindão? Uahahahahahaha!
Exaustos, aterrorizados, encurralados, os meninos sentem que o fim
chegou. "Nunca pensei que fosse morrer tão jovem", pensa Mateus, desolado.
"Ao menos, conheci o amor", consola-se, apertando entre as suas a mão de
Paloma. Ainda fantasiada de cigana, a menina recosta-se na parede imunda;
pernas jogadas no chão, olhar tristonho, perdido no espaço, nem se dá conta do
gesto do namorado. No colo dela repousa a cabeça de Bié, que adormeceu, após
chorar baixinho durante horas. Irenona, furiosa, continua xingando e
reclamando, mas até ela reconhece: seus socos e pontapés perderam a força.
Apesar do cansaço e do medo, Cientista Maluco é o único a interessar-se
pelo que acontece em volta. Seu cérebro de inventor não consegue deixar de
admirar a imensa, complicadíssima e maligna máquina que Quimera construiu
dentro do Salão Nobre. "É mesmo incrível", reconhece, fascinado.
A fosforescente Máquina de Furar, Moer e Triturar Crianças está no centro
do salão. Na parte de trás, sob uma sofisticada engrenagem de facas e facões
que nunca perdem o corte, possui uma esteira, comandada por ondas cerebrais.
À medida que essa esteira se move, as afiadas facas e facões descem, furando-a.
A esteira termina numa imensa caixa metálica, coberta de luzes coloridas, cuja
tampa se abre e fecha automaticamente; essa caixa é capaz de moer qualquer
coisa colocada dentro dela. O material moído é em seguida transportado por um
tubo incandescente para um aparelho menor, de microondas, que separa, com
exatidão, as carnes de primeira das de segunda. As de segunda vão direto para
um incinerador, enquanto as de primeira deslizam suavemente até um enorme
caldeirão elétrico, que Quimera acaba de ligar. Tudo o que se passa dentro da
máquina pode ser apreciado em um telão, armado numa das paredes do Salão
Nobre.
— Huuumm, delicioso! — exclama Quimera, ao provar, com uma colossal
colher de pau, o tempero que misturou. Agora, é só esperar a água ferver! —
Cantarola uma canção, enquanto guarda os temperos numa caixa e troca a coroa
emplumada de rei cristão pelo alto e branco chapéu de mestre-cuca.
• ••
Uns ao lado dos outros, bocas amordaçadas, os meninos agora estão
amarrados sobre a esteira da Máquina de Furar, Moer e Triturar Crianças. No
outro lado do salão, Quimera está pronto para fazer funcionar o seu invento
infernal.
— Finalmente! Chegou o grande momento! Basta de me alimentar de
ratazanas, grilos, sapos, minhocas, essas coisas insignificantes! Subi na vida! De
hoje em diante, vou devorar apenas filhotes de gente! Uahahahahaha!
Decide dar uma última olhadela nos meninos amordaçados. Curvando-se
sobre eles, observa, com sorriso maldoso, os olhos aterrorizados de Cientista,
os olhos exaustos de Mateus, os olhos arregalados de Bié, os olhos zangados de
Irenona, os olhos... — De repente, Quimera pára. Intrigado, aproxima o focinho
do rosto de Paloma, examinando-a de todos os ângulos, as vistas apertadas.
Fareja, funga. Lambe. Afasta a cabeçorra, para enxergar melhor, depois se curva
de novo sobre o rosto da menina.
— Que lindos olhos você tem! — exclama. — Olhos negros... grandes...
amendoados...
Mancando, a fera vai buscar uma vela na sala de jantar. Ilumina Paloma,
observando em silêncio, minuciosamente, durante longo tempo, as feições
delicadas da menina.
— São olhos de ressaca! — espanta-se. — São olhos de cigana!
Quimera deixa os braços caírem ao longo do corpo. Murmura, muito
confuso:
— Acho que me apaixonei por você!
Desconcertado, pergunta a si mesmo:
— Como posso devorá-la?
• ••
Quimera apaixona-se por Paloma desesperadamente, obsessivamente,
como é de seu estilo e temperamento. Durante toda a madrugada e a manhã,
entra e sai do Salão Nobre, ansioso, sem prumo nem rumo, perdido. Não possui
qualquer experiência no assunto!
O monstro não tem a menor ideia do que fazer com o novo sentimento,
tão delicado, intenso e luminoso. Quer sorrir de melancolia, chorar de alegria...
Diabos! Como um sentimento pode, ao mesmo tempo, brilhar como a lua e
queimar como o sol? Ter a finura da luz, a fundura do abismo, a altura do céu?
Ser frágil e duro, rocha, flor? Conduzir ao fundo das montanhas do mar? Como
um sentimento pode transtornar dessa forma o coração, enlouquecendo a
razão? Causar vertigem, dores, e essa vontade doida de cantar e dançar e saltar
sobre nuvens?
Como louco, Quimera percorre os cômodos vazios da casa maldita. Urra,
uiva, late; soca o peito, puxa a cabeleira, arranca grossos tufos de pelo, morde
as próprias pernas, rolando pelo chão, angustiado.
Horas depois, menos nervoso, resolve retornar ao Salão Nobre. Vela na
mão, debruça-se mais uma vez sobre o rosto de Paloma. Presa à esteira,
amordaçada, a menina tem gotinhas de suor pela testa. Quimera sai, apressando
o passo manco; retorna rápido com uma toalha, que esfrega amorosamente
sobre a testa da menina. A proximidade dos olhos negros o deixa alucinado.
"Não há dúvida: são olhos de cigana, sim!"
"Minha fórmula mágica funcionou!", exulta Cientista Maluco, amordaçado
sobre a esteira. "Quimera está doidinho por Paloma!" Sente surpresa e ciúme:
"Parece mais apaixonado até do que eu e o Mateus!".
Permanecer ao lado da amada, a menina bonita, inatingível, humana, é
insuportável para Quimera. Ele se afasta, jogando com raiva a toalha no chão.
Fera enjaulada dentro de si mesma, encosta-se na parede, resfolegante, narinas
trêmulas, girando a cabeça em todas as direções, em busca da saída. Dá voltas
no Salão Nobre, cada vez mais nervoso. Sua expressão é de fúria — olhos em
fogo, bocão aberto, presas à mostra —, quando finalmente toma a decisão,
urrando:
— Vou devorar você, sim!
Corre para ligar a máquina.
13. O enigma do Quimera
O sol está alto quando Quimera irrompe de novo no Salão Nobre. Desde
quando descobriu estar apaixonado por Paloma, é a vigésima vez que entra ali,
aflito, desarvorado, alternando agressividade e ternura, sem saber se fica com a
menina ou a devora. Duas vezes esteve para fazer a máquina infernal funcionar,
duas vezes desistiu. Já deu água a Paloma, afrouxou as cordas que a prendem,
acariciou-lhe os cabelos, até a beijou, quando ela, exausta, adormeceu. Já urrou,
xingou, mordeu, ganiu, esbravejou. As facas e facões estão a um centímetro da
barriga da menina.
Desta vez, o monstro invade o salão com os pelos eriçados, as garras
afiadas, o olhar assassino. Amarrado à esteira, rosto virado para a porta,
Cientista Maluco é o primeiro a notá-lo. Quimera estica o braço: vai ligar a
máquina, não há dúvida! Cientista começa a rezar, apavorado: "Pai nosso, que
estais no céu..."
Mas... Quimera agora parece diferente! Encolhe o braço, desvia-se da
máquina mortífera, dirige-se até um canto do salão, tonto, cambaleante.
Contorce-se, parecendo sentir uma dor terrível! Levanta o focinho, como se
buscasse a lua. Abre a bocarra e... solta um urro! Apavorante, mais alto que o
som do trovão, mais forte que o rugido do leão é o urro do Quimera! As crianças
rezam juntas: "...seja feita a vossa vontade, assim na Terra como no céu!".
Súbito, Quimera desaba no chão, deixa cair os braços peludos, abaixa a
cabeçorra e... chora! Choro baixinho, sofrido, doído, de menino desconsolado.
Apesar do medo e da raiva, as crianças sentem muita pena da fera enfraquecida.
Quimera permanece no chão por muito tempo, cabeça baixa, corpo
trêmulo, chorando. Aos poucos, sofre uma profunda transformação: seu corpo
começa a diminuir, as garras viram unhas, os pelos desaparecem, cai o rabo, a
cabeça encolhe!
— Ele está virando gente! — Cientista Maluco mal acredita no que seus
olhos veem.
De um pulo, a fera se levanta. Fera? O andar é rápido, os braços, soltos, a
cabeça, leve. Parece um jovem! Vestida de mascarado, não mais de rei cristão,
como o Quimera, a figura aproxima-se de Cientista Maluco. Num gesto teatral,
retira, num só e rápido movimento, a máscara de monstro.
— Pepeu! — exclama Cientista, abismado.
Pepeu sorri, estala um beijo na testa do irmão gêmeo e, cheio de energia,
desamarra depressa a todos:
— Vam'bora desse lugar horrível!
Loucos de alegria, os meninos beliscam-se uns aos outros, para certificar-
se de que não sonham. Ninguém entende o que aconteceu:
— Você é criança ou fera? — quer saber Bié.
— Como um irmão pode querer matar o outro? — alarma-se Irenona.
— Pepeu! Nunca pensei que você fosse o Quimera! — o espanto de Paloma
é infinito.
— Rápido! — apressa-os Pepeu. — Não sei por quanto tempo poderei
continuar neste estado! — Seus olhos mostram angústia: — Posso voltar a ser
Quimera!
Pepeu guia as crianças pelos labirintos da casa maldita. Dos quartos sai
um som abafado, triste; dos banheiros, um soluço insistente; no corredor sopra
um vento gelado. Agarrados uns aos outros, os meninos seguem Pepeu,
esforçando-se para não dar atenção aos ruídos.
Chegam, finalmente, ao salão, empurrando a pesada porta. Sol, ar,
liberdade!
Sentados sob a mangueira, na fazenda vizinha à casa maldita, para onde
correram assim que se libertaram, os meninos descansam um pouco. Precisam
de fôlego antes de retornar a Pirenópolis. Além disso, estão loucos para
conhecer a história de Pedro Paulo Lopes, o Pepeu, o Quimera!
No meio da roda, Pepeu dirige-se a Cientista Maluco:
— Quando ouvi você falar na tal fórmula com o poder de transformar as
pessoas naquilo que elas desejam, pensei: "É minha grande chance! Não sou
inteligente como o Cientista, não sei inventar nada, mas, em compensação,
graças a essa fórmula vou me tornar um ótimo jogador de vôlei! Serei um atleta
famoso! Meu irmão vai morrer de inveja de mim: desajeitado como é, nunca
conseguirá nem ser aceito em um time!
Pepeu toma fôlego, antes de continuar:
— Daí, na primeira noite da festa do Divino, assim que você saiu pra
novena, eu... er... — Baixa os olhos envergonhado — eu... entrei... eu entrei no
seu laboratório, roubei o vidro da poção, e bebi tudo! Foi muito fácil encontrar,
estava escrito no rótulo: "Quimera — A Fórmula do Desejo".
Cientista Maluco levanta-se, transtornado; sem querer, enfia o pé e
metade da perna direita na lama:
— Por isso nunca mais encontrei aquela fórmula! Procurei feito doido, a
casa inteira! Você é um idiota! Não leu o que estava escrito? "Cuidado! Não usar!
Fórmula em preparo"! Até desenhei uma caveira embaixo!
— Bi, bas bebi assim besbo! — retruca Pepeu, o nariz tapado, pois não foi
bem na lama que Cientista Maluco enfiou o pé.
— O que aconteceu depois? — Os outros estão aflitos para desvendar o
mistério do Quimera.
— Começou minha desgraça! — Pepeu põe-se de pé, alucinado. — Nem
gosto de me lembrar! Naquela madrugada, quando todos dormiam, de repente
eu acordei. Vi tudo rodando, tentei me levantar da cama. Senti que meus pés
estavam esquisitos. Toquei neles, e...
— E...? — Os meninos encorajam Pepeu.
— Horror! Meus pés tinham se transformado em patas! Como as de um
bode! Senti pelos crescerem no meu corpo! Minhas mãos se deformaram,
apareceram garras enormes, uma juba foi se formando; a cabeça cresceu tanto,
que eu nem conseguia segurá-la direito!
— E aqueles horrendos dentões que você tinha, hein? — pergunta Bié,
toda animada.
Pepeu senta-se, curvado para a frente; sua voz está baixa:
— É, me apareceram aquelas duas enormes presas... E focinho, e orelhas
altas, para cima! Meus olhos ficaram estranhos, vendo tudo diferente... Parece
que nasceu um rabo, também: nem tive coragem de olhar pra trás! E o pior — os
olhos de Pepeu estão cheios de lágrimas — foi aquela vontade louca de comer
carne crua! Primeiro, carne de animal. Depois, carne humana! Eu não conseguia
resistir! — Cobre a cabeça com os braços, desatando num choro desesperado.
Com pena do irmão, Cientista aproxima-se, envolvendo-o num abraço
carinhoso. Os outros fazem o mesmo. Vítimas e perseguidor ficam muito tempo
naquela pirâmide da amizade, passando calor humano para Pepeu. Aos poucos,
ele se acalma, contando o restante de sua história:
— A primeira crise durou pouco, logo voltei ao normal. Pensei que era
uma alucinação. Na manhã seguinte, no banho, tudo voltou. Foi quando tive a
ideia de vestir a roupa e a máscara de monstro, pra me disfarçar, se alguma
crise acontecesse na frente dos outros.
— Por que não pediu ajuda? — pergunta Mateus.
— Nas primeiras horas, estava assustado demais pra pensar em qualquer
coisa. Mais tarde, morri de medo dele. — Volta-se para o irmão gêmeo: —
Lembra-se do que você disse? Que ia cortar o pescoço do ladrão da fórmula? Até
arrumou um machado! Dormia com ele ao lado da sua cama!
— É verdade — confirma Cientista Maluco. — Eu estava furioso! A fórmula
do desejo era minha maior invenção! Foram meses de trabalho! Até a chamei de
quimera, que quer dizer sonho, ilusão!
Bié não está entendendo nada:
— Ué! Se quimera quer dizer isso, por que aquela fera horrorosa resolveu
usar o nome?
— Acho que sei a resposta! — Mateus está excitado. — Nos tempos
antigos, Quimera era o nome dado a um animal que só existia na imaginação das
pessoas, um animal mitológico. Tinha corpo de cabra, cara de leão e rabo;
assustava as pessoas!
— O desgraçado roubou até o nome que escolhi! — reclama Cientista,
furioso.
Pepeu continua sua história:
— Lá pelo terceiro dia, eu não conseguia mais controlar meus
pensamentos. Tinha de obedecer ao meu lado monstro, cada vez mais! Mesmo
quando eu estava com a aparência normal! Quantas vezes, meu irmão, cheguei
perto de você pra pedir socorro, mas "ele" não deixou! "Se abrir a boca, morre
agora!", gritava, dentro de mim. Foi quando escrevi o primeiro bilhete, aquele
que vocês encontraram na igreja matriz, pedindo ajuda e tentando interessá-los
na minha história.
— O Quimera deixou você escrever? — quer saber Irenona.
— Deixou...
— Vai ver ele é analfabeto, que nem eu era, até o ano passado! — conclui
Bié.
Pepeu não perde o rumo da conversa:
— ....mas não me deixou assinar nenhum bilhete com meu nome! Sempre
colocava a assinatura dele. E sempre interferia nas minhas ideias! Às vezes,
obrigava minha mão a escrever coisas que ela não queria...
— Por isso seus bilhetes eram tão estranhos, com aquelas partes que não
combinavam umas com as outras! Foram escritos por duas pessoas
completamente diferentes! — exclama Paloma.
— E por isso a gente às vezes tinha medo de você e, às vezes, vontade de
ajudá-lo! — completa Cientista Maluco.
Pepeu continua:
— ...ou, então, ele me deixava escrever o que eu queria, mas, quando
vocês chegavam pra me ajudar, interferia, atrapalhava tudo!
— Isso aconteceu na saída dos mascarados! — Mateus está excitado com a
descoberta. — Você escreveu o bilhete pedindo ajuda, mas Quimera é que veio
se encontrar com a gente, fantasiado de caveira! — Passa as duas mãos na
garganta, ainda dolorida da tentativa de estrangulamento. — Eu quase morri!
— E a fita gravada? Garanto que a voz horripilante e a mensagem de
terror da primeira parte são do Quimera! — Irenona balança a cabeça, animada
com as revelações. —Já a segunda parte...
— ...é minha! — completa Pepeu. — A terceira, a que fala da Bié, também!
Quimera tentou se aproveitar da distração de vocês, deixando Bié só com a
amiguinha, pra raptar e devorar as duas! No último minuto, naquela confusão de
gente na rua, ainda consegui enfiar a fita no bolso do avental do Cientista
Maluco!
— Ah! Então foi você, durante a Cavalhada, que mandou o bilhete
avisando sobre a pista falsa e a verdadeira! Ainda bem que entendi tudo a tempo
de salvar Irenona! — exclama Cientista.
— Até hoje, tenho aquele corte na cabeça, veja! — Irenona abaixa-se,
mostrando o machucado a Pepeu.
Paloma tem uma curiosidade: — Onde será que o Quimera conseguiu
aqueles caixões de defunto?
— Na funerária! Na madrugada anterior, ele carregou os caixões pro
cemitério, pintando neles os cinco nomes. Quimera tem uma força
impressionante, que foi aumentando, com o tempo! Era a única parte dele que
eu gostava... — Pepeu tem de novo o olhar triste, perdido no horizonte. — Vocês
não podem calcular meu sofrimento! Cada vez mais Quimera se apossava do
meu corpo, cérebro, coração! O Pepeu já quase não existia, eu não conseguia
encontrá-lo! Num dos últimos momentos de consciência, subi na carroça,
decidido a fugir de Pirenópolis; ao menos, não poderia mais agredir vocês! Foi
quando encontrei o Rolls-Royce...
— Será que o Rolls-Royce parou por causa de alguma maldição do
Quimera? — pergunta Mateus, que nunca aceitou aquela história do supercarro
pifar de repente.
— Eu queria saber só mais uma coisinha — interrompe Irenona. — Como
você voltou a ser Pepeu?
— Quando eu... uh... vi os olhos da Paloma... eu... eh... — Dá uma rápida
olhada para a menina, envergonhado. — Eu... pois é... comecei de novo a ter
ideias metade Pepeu, metade Quimera. Depois, senti uma dor terrível, como se
eu fosse explodir. Aí me lembrei de quem eu era antes! Senti tanta tristeza, que
chorei, chorei... Quando percebi, tinha virado Pepeu de novo!
— Terminou o efeito da fórmula — explica Cientista.
Pepeu está muito espantado:
— Você acha que voltei a ser eu mesmo porque o efeito da fórmula do
desejo passou?
— Claro! — afirma Mateus. — Que mais poderia ser?
Pepeu pensou que não foi bem assim, que houve uns olhos de cigana, que
o amor... Resolveu deixar pra lá. Afinal, cadê coragem para revelar, na frente de
todos, sua paixão por Paloma? Era apenas o terceiro da fila, depois de Mateus e
Cientista Maluco! Sem contar o Quimera!
— E a seta vermelha suspensa no ar, hein, lá no cemitério? Como você
conseguiu fazer aquele truque? — quer saber Bié, louca por mágicas.
— Chega de papo! Vamos voltar agora mesmo pra Pirenópolis! Nossos
parentes estão desesperados! Depois a gente continua a conversa! — ordena
Irenona, correndo para a carroça.
— É melhor a gente ir embora logo, mesmo — concorda Pepeu, aflito. —
Quem pode garantir que Quimera sumiu de vez?
14. Fim de festa
A carroça aproxima-se de Pirenópolis.
— Ainda falta muito? — Bié é a mais ansiosa.
— Mais três curvas e a gente avista a cidade — responde Cientista, que,
por precaução, dessa vez resolveu pegar as rédeas.
Sentado ao lado do irmão gêmeo, Pepeu é todo alegria. Após tantos
sofrimentos, sente-se confortável, leve, de bem com a vida — adoravelmente
humano. Cabelos ao vento, grita:
— É ótimo voltar a ter doze anos! Quero viver, ser feliz, acabar de crescer!
— berra para o vento, a serra dos Pireneus, os ipês, os preás, os gravatás. —
Quero amar e ser amado!
— De agora em diante, você será, sim — diz-lhe Paloma. — Quimera foi
derrotado!
Cientista conversa com o irmão:
— E aquela incrível Máquina de Furar, Moer e Triturar Crianças, hein,
Pepeu? Maravilhosa! Acho que pelo menos um pouquinho dela saiu da sua
cabeça! Eu não sabia que você tinha talento pra inventor! Se quiser, a gente pode
começar a inventar juntos!
— Verdade? — brilham os olhos de Pepeu — Verdade mesmo? Você
sempre diz que eu não levo o menor jeito pra cientista!
— Fui obrigado a mudar de ideia!
— Nem acredito que você me acha inteligente! Em troca, que tal eu lhe
ensinar um pouco de vôlei? Ainda não me tornei um jogador famoso, mas já sou
dos melhores da cidade!
Agora são os olhos de Cientista que brilham:
— Jura? Tá falando sério? É meu maior desejo! Você sempre diz que eu
não tenho jeito nenhum pra atleta!
— Posso mudar de ideia... — Pepeu sorri, abraçando o irmão.
Mateus goza de Cientista:
— Você precisa dar uma boa melhorada naquela sua fórmula! Onde já se
viu uma poção do desejo, com o poder de transformar as pessoas no que elas
querem, fazer o pobre Pepeu virar monstro? Em vez de alcançar uma quimera,
sua fórmula transformou Pepeu em fera!
— Vai ver esse era o desejo secreto do Pepeu! — exclama Irenona.
— O que o ciúme e a inveja não são capazes de fazer, hein? — filosofa
Paloma, olhos postos na cidade, que já aparece ao longe.
• ••
Embelezada com palhas, fitas, flores e folhas, a carroça chega ao Campo
das Cavalhadas. No último dia da apresentação dos mouros e cristãos, o campo
está superlotado. As pessoas, entretanto, estão tristes.
A notícia do desaparecimento das crianças golpeou a pequena cidade. Há
mais de vinte e quatro horas, policiais, bombeiros e voluntários da região
vasculham, inutilmente, os rios, lagos, cachoeiras, matos e estradas. Informados
por Alcebíades do sumiço da filha, os pais de Irenona enviaram um fax da
Europa, prometendo recompensar muito bem quem desse notícias da menina.
Desde então, duas pessoas procuraram a delegacia, mas eram rebates falsos. A
verdade é que não há pistas. Fala-se abertamente em sequestro.
O prefeito quis suspender o último dia de apresentação das Cavalhadas,
mas seu Ambrósio, pai de Pepeu e de Cientista Maluco e imperador do próximo
ano, não permitiu:
— Deixe a festa prosseguir, senhor prefeito. Nós continuaremos as
buscas. Tenho certeza de que o Divino logo trará as crianças de volta.
A carroça colorida rompe o castelo mouro, ingressando no campão. As
crianças saltam alegremente; avisados, seus pais e responsáveis chegam logo.
Os meninos correm até eles, que, loucos de felicidade, chorando e rindo, os
abraçam, beijam, acariciam. Compreendendo o que acontece, a multidão
aplaude, de pé, demoradamente. O imperador da festa oferece flores às
crianças.
Abraçado aos filhos gêmeos, megafone à mão, seu Ambrósio fala ao povo
da sua cidade:
— Muito obrigado pelo apoio e carinho de vocês, em meu nome e no dos
outros pais e responsáveis! Jamais nos esqueceremos disso! — Toma fôlego,
driblando a emoção. — Nossos tesouros estão de volta! É hora de festar!
Comecem as Cavalhadas!
Os mascarados invadem o campo, cobertos de guizos, equilibrados sobre
cavalos, fazendo piruetas, brincando com as crianças, alegres, belos, livres:
palhaços.
Do camarote principal, os meninos assistem à última exibição. No terceiro
dia, o da reconciliação, os mouros, batizados desde a véspera, não precisam
mais ser combatidos. Os vinte e quatro cavaleiros exibem seu galope no
gramado, criando, desfazendo, trançando e recriando fileiras.
Na segunda parte da festa, mouros e cristãos disputam jogos baseados
em antigas competições dos cavaleiros da Europa. A torcida dos meninos dá
sorte aos mouros, que, a todo galope, conseguem enfiar mais vezes suas lanças
em pequenas argolas, vencendo, assim, o jogo das argolinhas. Em seguida, os
vinte e quatro cavaleiros, muito aplaudidos, percorrem o campo pela última
vez, uma fila se intercalando com a outra, enquanto a banda Phoenix capricha
na última música: "A Cavalhada acabou".
Na rua, as crianças despedem-se umas das outras, emocionadas. Ficaram
tão amigas! Outra Cavalhada, só no ano que vem! Como suportar a distância, a
saudade? Os namorados vão ser separados? Não há jeito de reunir a turma: um
mora em Taguatinga, duas em Goiânia, outro em Pirenópolis, outra em Brasília!
Um ano custa muito a passar! Prometem se escrever, se telefonar, jamais se
esquecer...
— Nada disso! — retruca Irenona, no seu jeito decidido. —Já resolvi: daqui
a exatamente dois meses, no dia do meu aniversário, mandarei o helicóptero
buscar vocês todos. Nem consigo imaginar um aniversário longe dos primeiros
amigos de verdade que tenho!
— Viva! — todos gritam ao mesmo tempo, abraçando-se.
— É claro que o convite também inclui você, Pepeu... Pepeu?
Cadê Pepeu? Há poucos minutos estava ali, junto deles!
Um menino fantasiado de monstro passa correndo. Nos olhos do
mascarado, as crianças enxergam um brilho maligno, aterrador, o mesmo brilho
assassino dos olhos do Quimera. Será uma alucinação, provocada pelo cansaço e
medo? Ou o Quimera ainda vive, pronto para devorar outras crianças?