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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção
do grau de Mestre em Estudos Urbanos, área de especialização em Antropologia,
realizada sob a orientação científica do Professor Doutor José Mapril.
1
Aos meus pais
2
AGRADECIMENTOS
Prelúdio
Na praia do Bico do Mexilhoeiro, tentando disfarçar o encontro imaginado com
a senhora que agora observo pela primeira vez, aproximo-me e pergunto-lhe,
conversando com cuidado:
- Esta casinha está aqui há muito tempo, não está? - reparo com simpatia. - Está
sim, eu nasci aqui - responde-me a senhora em contentamento, enquanto varre o
chão da sua casa autoconstruída.
Sem saber ainda muito bem como prolongar a conversa, a chuva do instante incita
de seguida o encontro, de maneira inesperada.
- Está a chover. Venha! Entre, esteja à vontade. Maria da Conceição, prazer. -
convida-me.
São três da tarde, não obstante o dia escuro. Entro, ao mesmo tempo que tiro as
botas já molhadas. É uma casa quente, sem grandes enfeites, apesar da fragilidade da
sua construção. Daquele momento, que de modo espontâneo se sucedeu à chuva e à
impossibilidade de encontro com um dos meus informantes, nasceu uma hora de
conversa sobre os tempos da CUF, da pesca e das dificuldades.
Despedi-me da Terra do Nunca em agradecimento e a saber que, da experiência
partilhada, aprendemos a contar com o que é inesperado.
[Diário de campo, Lisboa, 26 de Janeiro de 2018].
3
Fim do prelúdio
Assim como este prelúdio, baseado num excerto do meu diário de campo,
também o processo de investigação e escrita desta dissertação se revelou um momento
de mutualidade entre pessoas e um criar de mundo entre observadores, nas viagens das
quais fiz parte.
Agradecer é o momento de não perder estas viagens. Em troca e em
continuidade. Por isso, não posso deixar de relembrar todos aqueles que, de uma forma
ou de outra, foram criando comigo uma experiência que se anunciou já antes do
trabalho, e que contribuíram de forma decisiva para este fim, que é também o princípio.
Sem elas, esta dissertação tornar-se-ia muito mais incompleta e, em algumas situações,
até pouco provável.
Por isso, em primeiro lugar, quero agradecer aos que continuam lá, nas praias
fluviais do Barreiro: ao Sr. Viriato e ao Sr. Dias da Silva, um obrigado pela simpatia e
pelas histórias; a todos os apanhadores que conheci, e que, de diferentes maneiras,
foram sendo mencionados ao longo desta dissertação, devo a confiança nas partidas,
mas também nos regressos.
Pela partilha e orientação incansáveis desde o princípio, um agradecimento
especial ao meu orientador, Professor Doutor José Mapril. Devo-lhe não só o rumo
crítico e sincero, como também o apoio sempre persistente.
Pela disponibilidade e pelas histórias, um especial agradecimento ao fotógrafo
Nuno Andrade.
Pela amizade, um grande obrigado às Professoras Doutoras Paula Godinho, Rita
Cachado e Inês Pereira.
Ao Jannis, agradeço os conselhos e as conversas de tantas horas.
Não menos importante, à minha família. Foram eles que me ensinaram que,
muitas vezes, o que nos prende a um lugar, situação ou estado de alma é essa tão grande
4
coisa chamada “motivação”. Por isso, nunca deixaram de saber, apesar das minhas
dúvidas.
A todos os outros, um abraço.
5
RESUMO
A TERRA DO NUNCA: UMA ETNOGRAFIA SOBRE CONVIVIALIDADES,
DIVERSIDADE E (IN)FORMALIDADE NA CIDADE DO BARREIRO
SARA MARISA DA COSTA ARANHA
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia urbana, (In)formalidade, Convivialidades,
Precariedade, Apanha da amêijoa
Na Margem Sul do Rio Tejo, a apanha de bivalves (ostras, amêijoas,
caranguejos e, mais recentemente, amêijoa-japonesa) representa uma estratégia comum
de sobrevivência. A Terra do Nunca é uma casa autoconstruída de antigos pescadores
localizada na Praia fluvial de Alburrica, Barreiro, que nos evoca narrativas urbanas
sobre como as populações foram "empurradas" para certos setores do mercado de
trabalho. Essas oportunidades de rendimento informais têm sido praticadas por vários
segmentos da população, particularmente por mulheres e jovens negros migrantes,
população cigana, residentes autóctones com baixos rendimentos ou desempregados e
antigos pescadores locais. Com base num estudo etnográfico, esta dissertação pretende
descrever as convivialidades quotidianas em torno de atividades informais numa
paisagem pós-industrial, e os processos por detrás de espaços de diversidades comuns.
Parte-se dos conceitos desenvolvidos por Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar
sobre “displacement” e “emplacement” (2016). Segundo as autoras, as situações de
“displacement” não ilustram apenas os fenómenos de deslocação para outros países
(incluindo as mobilidades entre fronteiras), ou para outras cidades. Estão ainda
relacionadas com as manifestações atuais de precariedade, onde os residentes locais –
migrantes ou não – acabam por partilhar situações de desemprego, baixos rendimentos,
ou trabalhos precários a tempo parcial. Como resposta a estas contingências, as formas
6
de “emplacement” são definidas nesta dissertação como sociabilidades através das quais
os que partilham uma mesma condição de precariedade recriam novas redes,
encontrando, assim, novas oportunidades de pertença à cidade e a oportunidades de
rendimento que lhes permitam subsistir. Estas estratégias de rendimento são aqui
observadas em situações de acumulação de trabalhos formais e informais, e mapeadas a
partir de um percurso etnográfico pelas praias fluviais do Barreiro. Uma descoberta
interessante é a importância das redes sociais (comerciais e não comerciais) na
capacidade de gestão dos negócios em torno da apanha da amêijoa, que dependem de
uma forte dinâmica local e transnacional.
7
ABSTRACT
NEVERLAND: AN ETHNOGRAPHY ON CONVIVIALITIES, DIVERSITY
AND (IN)FORMALITY IN BARREIRO CITY
SARA MARISA DA COSTA ARANHA
KEYWORDS: Urban Anthropology, (In)formality, Convivialities, Precarity, Clam
digging
In the Southern Margin of the Tagus River, bivalve harvesting (oysters, cockles,
crabs and, more recently, of Japanese clams) represents a common strategy of survival.
A Terra do Nunca or Neverland is an informal settlement for fishermen located in Praia
de Alburrica, Barreiro, and it evokes urban narratives about how populations have been
"pushed" into certain sectors of the labor market. These informal income opportunities
have been practiced by various segments of the population, particularly by migrant
black women and young people, gypsy population and local white low-income and
unemployed people, and older local fishermen. Based on an ethnography, this paper
intends to describe these everyday convivialities around informal activities in a post-
industrial landscape and in the process unearth commonplace diversities.
The terms developed by Nina Glick Schiller and Ayse Çaglar on "displacement"
and "emplacement" are useful (2016). According to the authors, displacement situations
do not only illustrate forced mobilities to other countries (including cross-border
mobility) or to other cities. They are also related to the current manifestations of
precariousness where local residents - migrants or not - end up sharing unemployment
situations, low -incomes opportunities, or precarious part-time jobs. In response to these
contingencies, the strategies of emplacement are defined in this dissertation as
sociabilities through which those who share the same precarious condition recreate new
networks in order to find a new way of belonging to the city and income opportunities
8
that allow them to subsist. These income strategies are mediated here in situations of
accumulation of formal and informal jobs mapped from an ethnographic route along the
river beaches of Barreiro. An interesting finding is the importance of social networks
(commercial and non-commercial) in the management of clam digging businesses
depending on strong local and transnational dynamics.
9
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS 2
RESUMO 5
ABSTRACT 7
Capítulo 1: Introdução 10
1. 1. Prólogo na Terra do Nunca 12
1. 2. O ofício do antropólogo urbano 14
1. 3. Viajar para regressar: uma etnografia de bicicleta e as condições de produção do
conhecimento 20
1.4 Esquema de dissertação 26
Capítulo 2: A terra, o rio, a gente 28
2. 1. Prelúdio na Praia de Palhais 28
2. 2. A cidade do Barreiro no tempo e no espaço 31
2. 3. Convivialidades e diversidade na cidade (in)formal 42
Capítulo 3: “Ir por outros caminhos”. Nas dobras dos lugares próximos 47
3. 1. Prólogo entre as praias fluviais: um mapeamento etnográfico 47
3. 2. “Estar por conta própria”: Trajetórias e modos de vida 52
3.3 Os “coletores de amêijoa” 54
Capítulo 4: “Colegas sem patrão”. Relação, apanha e quotidiano 61
4.1. Prelúdio da Praia de Palhais até à Praia de Alburrica 61
4.2. Trocas, redes informais e sociabilidades 65
4.3 “As empresas somos nós”: Técnicas e práticas de trabalho 70
4. 4. Epílogo na Terra do Nunca 75
CONCLUSÃO COM FINAL ABERTO 77
BIBLIOGRAFIA / REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 84
GLOSSÁRIO 89
LISTA DE FIGURAS OU ILUSTRAÇÕES 90
ANEXOS 91
10
Capítulo 1: Introdução
A presente dissertação nasceu do meu interesse académico e pessoal por
conhecer diferentes possibilidades de vida. Procura ainda compreender de que forma o
capitalismo contemporâneo afeta a reestruturação das cidades, bem como os modos de
vida de certos indivíduos e grupos, levando-os a criar – voluntária e involuntariamente –
novas realidades.
A partir das práticas e sociabilidades em torno da apanha da amêijoa, procura-se
compreender o papel de certos laços sociais nas estratégias de incorporação social e
económica dos migrantes e não migrantes que partilham uma situação semelhante de
precariedade. De facto, ao longo deste trabalho de campo tornou-se clara a dependência
destes apanhadores às suas redes de sociabilidades, que vão muito para além das suas
dinâmicas comerciais1. Estas redes tornaram-se ainda um elemento interessante nesta
etnografia para mostrar/descrever como alguns destes grupos se vão organizando de
forma informal, de maneira também a participar na dinâmica capitalista global2.
Neste sentido, o que se constrói em termos de convivialidades e coabitações
entre pessoas com diferentes percursos e modos de vida que partilham um quotidiano
comum de incerteza, tornou-se a pergunta de partida desta dissertação. A partir daqui,
procurei focar-me nos conceitos, compreensão e intuição que fui adquirindo ao longo
desta etnografia.
Para o trabalho de campo com observação participante, os dados foram
recolhidos e analisados por mim entre Outubro de 2017 e Abril de 2018, durante a
manhã e a tarde3. Sem o recurso a questionários ou a entrevistas direcionadas4, foram
1 Neste sentido, não poderíamos deixar de dedicar alguns pontos desta dissertação aos discursos sobre o
medo e as conversas entre apanhadores sobre os acidentes de trabalho e o medo da morte; ou sobre a
instabilidade financeira ou a dependência das marés e do clima; e ainda os ritmos, técnicas e práticas
partilhadas por todos. 2 Para um estudo aprofundado sobre este tema, é indiscutível a importância do estudo de José Mapril
sobre migrações e diásporas do Bangladesh. (ver Mapril, 2011, p.327). 3 Por limitações que incidiram sobretudo na falta de transportes públicos noturnos entre o Barreiro e
Lisboa, na falta de luz nas praias fluviais ou no facto dos meus gatekeepers nunca estarem presentes de
noite, realizei o meu trabalho de campo etnográfico apenas durante o dia. 4 Mais do que procurar testar hipóteses específicas, este foi um trabalho de campo exploratório, baseado
na curiosidade pessoal em conhecer e aprender sobre o quotidiano de um conjunto de pessoas com idades,
etnicidades e profissões muito diferentes.
11
gravadas ao todo sete entrevistas semi-direcionadas5. Por se tratar de um estudo sobre
uma atividade informal, as conversas e os momentos observados foram registados com
um pequeno bloco de notas e com um telemóvel antigo para não chamar a atenção nos
momentos de convívio e de negócio, os quais foram desenvolvidos posteriormente no
diário de campo, no final de cada dia ou durante as viagens de barco. Os percursos entre
as várias praias fluviais – que consistiram em cerca de quarenta visitas ao terreno –
foram realizados quase sempre sozinha e de bicicleta. Para a análise dos dados, dividi as
transcrições e o Diário de Campo pelos seguintes temas: perceção do ambiente; práticas
e técnicas; diversidade; convivialidades; zonas de refúgio; percursos de vida;
industrialização/desindustrialização; ritmos e percursos; redes informais; caracterização
dos informantes; formalidade/informalidade; discursos sobre o medo; metodologia;
sensações; relação homem/natureza; precariedade; práticas possíveis; modos de vida;
oportunidades de rendimento; estado/ação política; solidariedades; migrações e
conflitos.
Não pretendo com esta dissertação descrever nenhum outro quotidiano passado
no rio para além daquele com quem fui aprendendo (Martins, 2015, p.17). Contudo, a
aplicabilidade deste material a outros estudos sobre apanhadores noutras cidades e
praias poderá servir como porta de entrada para um projeto futuro6.
Estes apanhadores têm entre os vinte e cinco e os sessenta anos. São guineenses,
cabo-verdianos e portugueses. Uns têm poucas qualificações escolares, outros têm
habilitações superiores, outros cursos de formação profissional. São empregados de
balcão e de limpezas, técnicos de vending, amoladores, pastores, músicos e pintores
alpinistas. Uns estão desempregados, uns vão acumulando trabalhos, outros são
apanhadores a tempo inteiro. Alguns são solteiros, outros casados. Uns vivem com os
seus filhos, outros não. Uns são só vendedores, outros apenas compradores, e outros são
compradores que já apanharam e foram investindo algum dinheiro no pequeno negócio.
5 Por vontade do apanhador, não me foi possível gravar a 8ª entrevista. 6 Não quero com isto afirmar que o conhecimento sobre o que é a vida para determinadas pessoas (o
conhecimento antropológico) não mereça ser contextualizado num determinado espaço e tempo, e que
devemos subestimar a importância da experiência da “diferença” adquirida no terreno com aqueles que
estudamos num determinado contexto (Pina Cabral, 1991, p.66).
12
Por isso, esta etnografia não pretende ser um estudo sobre uma ‘comunidade’: na maior
parte das vezes, estes apanhadores trabalham apenas quando precisam – em pequenos
grupos ou sozinhos – e vendem a quem está próximo ou paga mais7. Uns são bastante
chegados, outros evitam falar e alguns mantêm uma relação estritamente profissional.
Existem, sim, vários momentos de convivialidade e também de entreajuda, que
procurarei relatar nesta dissertação.
1. 1. Prólogo na Terra do Nunca
Num mundo de instabilidade económica, partilhamos uma condição – a da
incerteza. A Terra do Nunca não é apenas uma casa autoconstruída de antigos
pescadores a viver no Barreiro que hoje em dia vivem também do negócio da apanha da
amêijoa-japonesa; a Terra do Nunca simboliza, igualmente, um retrato atual que nos
mostra como algumas pessoas se viram forçadas a criar o seu “próprio ofício”, e para
quem a rápida multiplicação de amêijoas-japonesas se tornou dádiva num mundo global
feito de impermanência. Esta dissertação é um estudo que parte do negócio informal de
bivalves no Barreiro, para explorar os lugares comuns, as aspirações e os medos de
quem vai sobrevivendo numa cidade pós-industrial, sem nenhuma certeza de maior
estabilidade.
Se a relação entre humanos e não humanos é facilmente negociada, a apanha da
amêijoa-japonesa relembra-nos a importância mercantil de certos recursos naturais e
elucida-nos para o atual estado da nossa economia política global. Nos últimos vinte
anos, a amêijoa-japonesa constitui-se como um recurso valioso para centenas de pessoas
ao longo do estuário do Tejo, atingindo as proporções de um negócio lucrativo para os
seus intermediários. Muitos destes apanhadores são imigrantes do leste da Europa,
sobretudo romenos, mas também é possível encontrar muitos de origem guineense,
residentes autóctones e outros vindos de múltiplas regiões de Portugal, como o Alentejo
e o Algarve. Podendo atingir os 12 euros/ quilo, a amêijoa-japonesa tem encorajado
7 Por terem outros trabalhos e horários diferentes, dificilmente foi possível observá-los a todos no mesmo
dia para a apanha.
13
vários circuitos informais, representando um recurso económico alternativo para muitos
destes apanhadores.
Muito semelhante a este contexto, Anna Tsing questiona no seu livro sobre a
comercialização dos cogumelos Matsutake: que tipo de economia é esta que propaga
uma ideia de desenvolvimento ao mesmo tempo que os trabalhos precários representam
o único caminho para escapar à pobreza? (Tsing, 2015, p.15). A comercialização da
amêijoa-japonesa mostra-nos uma das muitas possibilidades de vida de quem teve que
seguir “por outros caminhos”, apesar dos sonhos.
Não obstante ter surgido no estuário do Tejo há cerca de vinte anos, ainda não se
conhecem as razões exatas do aparecimento da amêijoa-japonesa neste território.
Espécie não nativa, a sua rápida reprodução caracteriza uma das razões principais para o
gradual desaparecimento de espécies nativas no estuário do Tejo, como a amêijoa-boa e
a amêijoa-macha. Esta “colonização” tem estimulado uma captura e comercialização
intensiva informal8, como a única solução viável face ao desemprego e à precariedade.
Numa realidade onde é possível observar diferentes oportunidades de criação de
emprego e adaptação económica aos lugares, os recursos do rio tornam-se, também por
isso, mercadorias valiosas num contexto de instabilidade económica. Foi neste
enquadramento que me propus realizar um trabalho de campo com observação
participante.
8 Apesar da apanha de bivalves representar uma prática de subsistência económica importante, com
atividades sobretudo ligadas à apanha de ostras, berbigão, amêijoa boa, a lambujinha e a amêijoa-macha
(Ramajal et al., 2016), desde Maio de 2016 que a captura de alguns bivalves é proibida no estuário do
Tejo devido à "presença de fitoplâncton produtor de toxinas marinhas ou de níveis de toxinas ou de
contaminação microbiológica acima dos valores regulamentares" - segundo o Instituto Português do Mar
e da Atmosfera. De forma a evitar impactos na saúde pública, estes bivalves devem ser depurados, um
processo que pode demorar várias horas e para o qual só até há pouco tempo se avançou com o plano de
construção de infraestruturas, necessárias ao tratamento e valorização destes bivalves. No caso concreto
da captura comercial da amêijoa-japonesa, a arte do berbigoeiro é atualmente a única arte autorizada
(IPMA, 2019).
14
1. 2. O ofício do antropólogo urbano
A presente etnografia é o resultado de uma relação e perceção com todos os que
têm estado lá, na Terra do Nunca. Espero que a partir das descrições que compõem esta
dissertação seja possível compreender, através de outras formas, algumas destas opções
de vida.
Tim Ingold escreve que observar é esperar e aprender com as pessoas e com as
coisas, em perceção e em prática (Ingold, 2014, p.387). Esta dissertação é também uma
reflexão sobre o que aprendi, apesar de algumas esperas no acesso ao terreno e à vida
destes apanhadores. E esperar é estar atento, de forma a podermos compreender o que
ainda está a ser dado (Ingold 2014, p. 389). Observar é, por isso, participar, e cabe ao
ofício do antropólogo não apenas descrever, mas também compreender as várias
possibilidades de se ser humano numa determinada situação, em construção com os
informantes – um conhecimento baseado nos saberes práticos e nos discursos sobre o
que tem sido a vida para certas pessoas num determinado tempo e espaço.
Esta procura por “fazer mundo” (Martins, 2015, p.17) tem como pano de fundo
também a cultura, ferramenta para (re)conhecermos (todos nós) um mundo que nem
sempre é mercantilizado. É a partir das experiências e saberes (coletivos e individuais),
que os antropólogos aprendem a reconhecer este mundo que é o nosso, num terreno que
é também lugar de encontro. Numa procura por “olhar e escrever” um quotidiano que
não é o nosso, o estudo das técnicas e dos saberes é, por isso, essencial na produção de
conhecimento em antropologia. O saber fazer antropológico é, pois, um trabalho de
partilha com quem observamos, a partir das suas (e nossas) imaginações e práticas.
Contudo, o trabalho de campo não implica, de todo, um processo de tradução, de
tentar descrever uma cultura diferente da “nossa”. Ao invés, cabe antes ao ofício do
antropólogo produzir e alcançar, de forma crítica, um conhecimento sobre as relações
sociais num determinado lugar também “perto de casa” (Pina Cabral, 1991, p.49). Este
conhecimento que o antropólogo produz, a partir do trabalho de campo com observação
participante, resulta, por isso, da experiência da diferença (ibid, p.50) que encontra
pontos de semelhança. Como observa Pina-Cabral:
15
Por virtude do mergulho que o antropólogo efetua num novo mundo cultural
determinado, ele é necessariamente forçado a ver a sua própria cultura como
“diferente”; assim, também a sua sociedade se torna um potencial objeto de estudo.
Uma vez instituída no corpo do conhecimento antropológico a experiência acumulada
da “diferença”, ela torna possível a abordagem da própria sociedade do antropólogo
como “diferente. (Pina-Cabral, 1991, p.50).
Esta ideia de “trabalho ao pé de casa” desenvolvida por Pina-Cabral (Ibid., p.51)
é útil para compreender algumas questões metodológicas que têm vindo a preocupar os
estudos urbanos. Se Pina-Cabral afirmou, em 1991, que o processo de estranhamento
próximo de casa não teria recebido ainda a atenção merecida, e que existe sempre algo
que se esconde “por detrás da fachada urbana da homogeneidade” (Pina-Cabral em
Sarró, 2006, p.181), também a antropologia urbana propôs recuperar essa preocupação.
Procurou ainda ir mais além, ao questionar: de que forma é que as pessoas dependem
umas das outras e coabitam num lugar onde a diferença é “banal”? No seu trabalho de
campo em Hackney, no distrito de Londres, Susanne Wessendorf descreve-nos este
estado de “lack of disruptive drama” (2014, p.3), onde os residentes coabitam entre si e
conscientes da sua diferença, apesar do caráter rotineiro da diferença cultural9.
Neste sentido, o ofício do antropólogo urbano relembra-nos ainda as várias
possibilidades do fazer na antropologia da cidade e a importância da relação entre
etnografia e contexto urbano. A antropologia urbana – que viria a tornar-se subcampo
disciplinar a partir da década de 1960, apesar de já contar com vários estudos
desenvolvidos em diversas cidades dos Estados Unidos entre as décadas de 1940 e 1950
(Mullings, 1987, p.2), revelou-se essencial para alargar as possibilidades de análise nos
estudos da cidade.
Como já vimos, apesar dos estudos urbanos desenvolvidos nos EUA terem-se
9 Como iremos observar, a presente dissertação procura explorar também essa “banalidade consciente”,
onde pessoas com diferentes backgrounds acabam por partilhar o quotidiano, voluntária ou
involuntariamente.
16
mostrado de grande relevância entre as décadas de 1940 e 1950 para um novo
pensamento antropológico, não foi antes de 1960 que a antropologia urbana se assume
como subcampo disciplinar: a centralidade temática dos estudos sobre pobreza urbana e
etnicidade afirmam, de facto, uma mudança de paradigma para a antropologia, dos
estudos sobre comunidades “distantes” e por vezes descritas como culturalmente
homógeneas, para a complexidade e heterogeneidade de relações sociais que os estudos
da cidade exigiam.
Se, de facto, podemos referir uma origem comum nos estudos urbanos é, sem
dúvida, a Escola de Chicago – influência partilhada tanto por antropólogos, como por
geógrafos e sociólogos. A partir de antecedentes importantes como Marx, Weber e
Durkheim, foram os estudos de Burgess, Park e Wirth que afirmaram as bases teóricas
para o desenvolvimento dos estudos urbanos e dos seus métodos. Neste contexto, os
modelos de análise e desenho introduzidos pela Escola de Chicago que permitiram
adquirir e desenvolver novas perspetivas para pensar o espaço urbano e as relações
sociais, foram, por isso, acarinhadas e utilizadas também pelos antropólogos de forma a
poderem desenvolver trabalhos de campo intensivos que lhes permitissem debater os
processos de descontinuidade entre os espaços rurais e os ambientes urbanos. Desta
forma, a antropologia urbana veio a distinguir-se pelo seu envolvimento nos estudos
urbanos sobre comunidades étnicas migrantes, subculturas urbanas ou ainda no
acompanhamento etnográfico sobre adaptações e estratégias sócio-culturais em
contextos de pobreza e precariedade (Mayer, 1961; Hannerz, 1969; Lewis, 1966 em
Vertovec et al., 1995). Num contexto de crescente urbanização, os antropólogos viram-
se “forçados” a encontrar novas formas para escrever sobre a complexidade das relações
sociais das pessoas a viver nas cidades alargadas10. Desta forma, foi a partir dessa
mudança que conceitos como “etnicidade” se tornaram essenciais para se conseguir
identificar e analisar interações mais complexas da vida urbana.
Contudo, umas das críticas que emergiu após esta tentativa de mudança de
paradigma foi aquilo que Caroline Brettell observa como “a antropologia na cidade e
10 E pressionados a reformular os paradigmas de análise social no momento em que o homem da tribo
(tribesman) migrou para as cidades em crescimento e rapidamente passou a fazer parte dos homens da
cidade (townsmen) (Brettell, 2008, p.130)
17
não da cidade”. Numa fase ainda exploratória, em que a antropologia urbana se está
ainda a definir, Jack Rollwagen dedica uma edição especial sobre a antropologia como
contexto, presente no 4º Volume da Revista de Antropologia Urbana11 (1975a, 1975b).
Este volume não surgiu, obviamente, de um acaso. A ideia de “the city as context”
permite-nos enquadrar de uma maneira mais estruturada as décadas entre 1960 e 1970,
onde, de facto, foram produzidos estudos decisivos para o percurso (e futuro) da
Antropologia Urbana como subcampo disciplinar. Mas se os estudos desenvolvidos na
década de 1960 foram importantes para retratar alguns dos rápidos efeitos da
urbanização12, ainda que à escala de bairro ou de um corner – como retratam os estudos
de Liebow (1967), Hannerz (1969) ou Lewis (1968) – o enquadramento histórico e
económico que poderia definir melhor etnicidades e diversidades continuaram a ser
pouco exploradas dentro da antropologia urbana (Mullings 1987, p. 4). Já mesmo na
década de 1980, a antropologia urbana viria a alargar ainda mais os seus interesses e
estudos a questões sobre movimentos sociais e populares (social movements e
grassroots movements), mudanças na organização laboral, ideologias políticas em
“comunidades” étnicas ou efeitos das dinâmicas económicas nas migrações.
Neste sentido, foram vários os autores que começaram a questionar as limitações
metodológicas da antropologia na cidade, que, em parte, ainda subestimava as
dimensões macroeconómicas que poderiam explicar e contextualizar situações de
pobreza urbana, efeitos de urbanização, e processos de declínio urbano – e o que tudo
isso significava para vários grupos minoritários (Mullings 1987, p.2).
No estudo da cidade torna-se, pois, fundamental ter em conta as variáveis
contextuais, recorrendo a fatores históricos, económicos e políticos. Alguns autores
começam, por isso, a propor nos seus estudos formas de estudar a cidade como
contexto, a partir de uma visão de baixo, com observação participante; mais acima, de
forma a analisar as dinâmicas regionais urbanas; e acima, analisando os sistemas
nacionais e internacionais, numa perspetiva “em casca de cebola” mais histórica que
11 No entanto, a ideia de cidade como contexto revelou-se pouco explorada até 1987, ano em que Nancy
Foner retoma a ideia na sua introdução a uma série de ensaios sobre a relação entre urbanização e
migração e o papel dos novos imigrantes na transformação da cidade (Brettell, 2008, p.130). 12 Entre eles, a disparidade suburbano/urbano e a pobreza urbana.
18
etnográfica (Cordeiro, 2003, p.10).
Também Caroline Brettell (2000, 2003, 2006) explora a ideia de “cidade como
contexto” para nos mostrar a importância da História na compreensão das migrações e
de que forma as estratégias de incorporação dos imigrantes variam de cidade para
cidade, tendo em conta a própria situação económica e política do lugar de acolhimento.
A partir deste enquadramento, Brettell desenvolve um estudo histórico e antropológico
em diversas cidades de forma a analisar um conjunto de valores (ou ethos urbano) que
moldam a própria vida económica e institucional destes lugares. Estes valores – propõe
Brettell – determinam as possibilidades de incorporação e atitude de acolhimento
perante os recém-chegados.
Desta forma, a “cidade como contexto” possibilita novas ligações entre a história
urbana e a antropologia urbana, em particular no estudo sobre migrações. De facto,
seria-nos impossível compreender os percursos de vida de quem estamos a observar
sem analisarmos os processos de reestruturação das cidades e de que forma estes afetam
as próprias estratégias de sobrevivência e incorporação de certos grupos. Esta questão
remete-nos para o artigo de Owen Lynch (Lynch, 1994) sobre a “cidade pós-industrial”,
que é, antes de mais, um espaço de poder entre cidades globais onde os processos de
desindustrialização de certas cidades significam apenas a industrialização de outras (p.
36). Sob este ponto de vista, também as palavras de Setha Low, em 1999, sobre o
estudo nas cidades pós-modernas, refletem a importância do estudo das cidades como
contexto13:
Theorizing the city, however, is a necessary part of understanding the changing
postindustrial/advanced, capitalist/postmodern world in which we live. The city as a site
of everyday practice provides valuable insights into the linkages of the global capitalist
economy with the texture and fabric of human experience (Low, 2005, p.2).
13 Ver ainda Nina Glick Schiller e P. Levitt. 2006; R. Allen, 2006; Neil Brenner, 1999; Caroline B.
Brettell, 2006; Caglar 2007; Faist, 2000; Faist e Özveren,. 2004; Neil Smith, 1993.
19
De facto, pensar a “cidade como contexto” possibilita o estudo de novos
caminhos analíticos para podermos explicar processos de desigualdade e precariedade,
ou ainda fenómenos como a segregação social e a criação de enclaves étnicos dentro de
dinâmicas de poder (Brettell, 2008). Neste sentido, podemos afirmar que o estudo das
sociabilidades tem possibilitado aos antropólogos compreender o papel (ativo) dos seus
interlocutores na criação de estratégias para lidar com os constrangimentos económicos
impostos por estes mesmos processos - migrantes ou não.
Em contextos de forte desigualdade social, as convivialidades assumem, assim,
um papel preponderante não só para redefinirmos conceitos como etnicidade, como
também nos ajuda a contextualizar os percursos e modos de vida, os ritmos e as práticas
de trabalho de quem sobrevive nas cidades, em conjunto, apesar das diferenças. É a
partir destas reflexões teóricas que esta dissertação procura documentar certas formas de
fazer a cidade (Agier, 2011). Por isso, também a forma como escolhi chegar ao terreno e
estar lá determinou a produção de conhecimento etnográfico.
20
1. 3. Viajar para regressar: uma etnografia de bicicleta e as condições de produção
do conhecimento
Ilustração 1
Percurso de bicicleta entre as praias do Copacabana, Palhais, Alburrica, Bico do Mexilhoeiro e Barra-a-Barra durante o trabalho de campo. Gps a partir da aplicação mapmyride. Mapa desenvolvido por Jannis Kühne
No campo da literatura sobre métodos e técnicas em Ciências Sociais, é possível
encontrar um conjunto de guias dedicados a temas tão diversos como o acesso ao
terreno (Pratt, 1986), a escolha do terreno (Hammersley e Atkinson, 2007), ou sobre
etnografias em contextos multi-situados (Marcus, 1998; Falzon, 2009). No entanto,
outras possibilidades de análise qualitativa, tais como as formas de andar (Ingold 2008),
são algumas vezes referidas nos diários de campo dos etnógrafos, mas poucas vezes
desenvolvidas em artigos ou dissertações. Como observa Tim Ingold:
No doubt the topic of walking figures often enough in ethnographers'
21
fieldnotes. Once they come to write up their results, however, it tends to be side lined in
favour of 'what really matters ', such as the destinations towards which people were
bound or the conversations that happened en route (Ingold 2008, p.3).
Mesmo no caso das etnografias multi-situadas, a literatura sobre o assunto tende
a imobilizar os lugares onde a vida e as relações são observadas. Esta questão tornou-se
pertinente para o campo de análise desta etnografia a partir do momento em que a
preparação das viagens ao terreno, a chegada e os percursos pelas praias durante o
trabalho de campo começaram a ser planeados e realizados em bicicleta. Inicialmente
com um propósito utilitário, o recurso à bicicleta como meio de transporte revelou-se
mais tarde numa ferramenta importante no acesso ao campo: pelos poucos recursos, por
ser prático e económico, e por permitir chegar aos lugares das praias que de outra
maneira não seria possível, muitos dos apanhadores utilizam a bicicleta para transportar
as amêijoas que apanham até ao local da venda, ou para percorrerem as praias fluviais
em busca de zonas mais propícias para a apanha. Os percursos de bicicleta foram quase
sempre realizados sozinha, de praia em praia e consoante as marés. Este método
permitiu-me encontrar “pontos de encontro” (Wessendorf 2014), lugares de convívio14
nos quais a bicicleta se tornou num pretexto central para aceder ao campo com uma
maior naturalidade, sendo até motivo de conversa entre mim e os apanhadores, como
podemos verificar no seguinte excerto do meu diário de campo:
“Olha lá esses travões todos enrolados. Quando vi essa bicicleta nem quis
acreditar, nem sabia de quem era, afinal era tua”. [Diário de campo, 26 de Janeiro de
2018]
Se o objetivo do conhecimento antropológico é também o conhecimento que nos
obrigue a questionar o que é ser humano em todas as suas multiplicidades, e que nos
14 Além disso, permitiu-me conhecer os diferentes percursos de acesso às praias, tão importantes nas
práticas de trabalho dos apanhadores.
22
direcione para certos modos “de viver no mundo e de atender ao mundo” (Hastrup,
2004, p.456 apud Mapril e Matos Viegas, 2012, p.517), nesse sentido propus registar
durante quatro meses percursos diferentes em bicicleta que demonstraram o estilo de
vida destes apanhadores – dos lugares da apanha, aos espaços de convivialidade, até ao
lugar onde a amêijoa é negociada e comercializada. Neste sentido, também a
importância da viagem e da forma como chegamos ao terreno pode-nos recordar a
própria dimensão processualista do conhecimento15.
No processo mútuo de produção etnográfica, compreendemos que o acesso ao
terreno depende muitas vezes de imprevistos. Mas em trabalho de campo estes não se
caracterizam apenas por experiências subjetivas passadas pelo antropólogo. Na verdade,
são parte de um processo que implica uma relação de mutualidade e de experiência
partilhada entre o antropólogo e os seus informantes que pressupõe sempre uma co-
responsabilidade e cedências (ibid, p.514). É este caráter intersubjetivo, de influências
mútuas16que sustenta a produção do conhecimento etnográfico, e onde estes imprevistos
encontram também o seu lugar (Mapril e Matos Viegas, 2012).
Foi num desses “imprevistos” que a minha entrada no terreno foi “negociada”
inicialmente com um apanhador, o Z. Apesar das limitações nas gravações e registos
fotográficos com estes apanhadores, foi o Z. que pela primeira vez partilhou comigo as
várias técnicas de trabalho, as ferramentas, os ritmos e percursos que a cada dia se
tornaram mais próximos enquanto investigadora. Um dos aspetos mais interessantes
desta negociação no acesso ao campo foi também o mais difícil – experienciar
pessoalmente a imprevisibilidade da vida das pessoas que observei. Como referi no
diário de campo:
Por volta das 7h30, apanhei o barco mais uma vez sem saber muito bem quem iria
encontrar. A única situação que tinha certa, e que acabou por não acontecer, era que o Z. iria
15 Por dimensão processualista do conhecimento refiro-me à ideia de intersubjetividade na produção de
conhecimento etnográfico em antropologia (ver Pina-Cabral, 1991; Mapril e Matos Viegas, 2012). 16 Onde a própria presença constante dos informantes, que confrontam o antropólogo em trabalho de
campo, determina o próprio processo de comunicação e, consequentemente, a própria pesquisa
antropológica. (Fabian, 2001, p.77 em Mapril e Matos Viegas, 2012, p.516).
23
estar no mar entre as 09h e as 12h. Cheguei por volta das 08h30 e decidi ir mais uma vez até à
praia do Bico do Mexilhoeiro. Mais uma vez, não o encontrei. Será que apareceu? É difícil
reconhecê-los ao longe. [Diário de campo, travessia de barco, 15 de Dezembro de 2017].
Ilustração 2
Percurso registado por gps da estação fluvial dos Barcos até Vila Chã a partir da aplicação mapmyride. Mapa desenvolvido por Jannis Kühne
Do constante equilíbrio entre o chegar a “casa” – a Academia – e o Terreno
(Pina-Cabral em Pedroso de Lima, Maria, and Ramon Sarró, 2006), o encontro
etnográfico é, pois, feito também de acasos. Foi num desses momentos que conheci os
meus gatekeepers na Praia do Copacabana: o sr. Viriato e o sr. Dias da Silva.
A negociação do acesso ao campo e a recolha de informação não são fases
distintas do processo de investigação. As limitações e a forma como aqueles que estou a
observar responderam às minhas aproximações revelam dados já por si pertinentes.
Apesar disso, não posso deixar de observar que o caráter ‘informal’ e impermanente
desta prática condicionou o acesso ao terreno. A dificuldade em encontrar os lugares de
24
encontro entre apanhadores, foi, desde logo, o problema inicial. De facto, ao contrário
da observação participante em lugares de trabalho fixo, que me dariam uma maior
certeza de poder encontrar um determinado grupo em lugares e horas específicas, a
mobilidade constante nos ritmos de trabalho “traçou” o meu acesso ao campo. Refiro
traçou e não limitou porque aquilo que em etnografia poderá parecer inicialmente um
problema de acesso ao terreno, pode, igualmente, revelar-se uma oportunidade central
para direcionar a minha investigação.
Desde o princípio deste trabalho, procurei observar atentamente as situações que
fui criando e todas as que simplesmente aconteceram. Maria Cardeira da Silva refere
que “a eleição de um terreno não é uma escolha mas a produção de um lugar” (1997,
p.148), lugar de tensões, de negociações, mas também de cumplicidades, onde todos
nós, investigador e sujeitos investigados, observamos atentamente. Ao longo do
trabalho de campo, ouvi muito mais do que perguntei. Não por falta de interesse, mas
porque as pessoas que fui conhecendo partilharam muito mais as suas vidas nas horas
em que “apenas” estivemos juntos – naquelas praias – do que possivelmente me teriam
revelado em entrevistas. De facto, o enquadramento no fazer etnográfico é fundamental
para a produção de significados, a partir das experiências e dos dados recolhidos no
terreno. À exceção do sr. Dias da Silva e do sr. Viriato, pescadores lúdicos e
reformados, todos os nomes aqui mencionados representam as alcunhas referidas pelo
próprio grupo, como “o Casal Maravilha”, “Velho” ou “Maluco” (e que, por essa razão,
se encontram descritas entre parênteses), ou referem-se a nomes verdadeiros que decidi
mencionar apenas com a primeira letra, como M., ou S. Apesar de ter sido uma questão
que também levantei, poder identificar as praias fluviais na descrição das rotas e
percursos dos meus informantes não se tornou uma preocupação para eles em nenhuma
das entrevistas realizadas.
O trabalho de campo em antropologia urbana permite-nos encontrar não só
mundos distantes, mas os lugares próximos, que se vão transformando à medida que os
vamos descobrindo de outras maneiras sem nunca nos esquecermos de “casa” (e do
nosso papel enquanto cientistas sociais), apesar da viagem (Mendes, 2013). Essa
viagem pertence não só à preparação que antecede o chegar ao terreno, como “às
25
leituras consideradas pertinentes, até à seleção das roupas a levar” (Mendes, 2013,
p.144), como também à forma como se escolhe caminhar até ao lugar escolhido – antes
de “estar lá” (Geertz, 1998) e entre o “ estar lá e além” (Hannerz, 2003) – para então
regressarmos. O percurso de bicicleta mostrou-me novos caminhos num lugar que eu já
conhecia. Os que fui conhecendo neste percurso mostraram-me tudo o resto.
Se um dos ofícios dos antropólogos é encontrar pontos de encontro e
semelhança apesar das diferenças, ou os “domains of commonality” descritos por Glick
Schiller e Ayse Çaglar (2016, p. 2), também este capítulo propõe introduzir a discussão
em torno da dimensão processual da produção de conhecimento etnográfico, que
argumentamos aqui constituir-se como um processo resultante de uma relação
intersubjetiva entre o antropólogo e os seus informantes. É esta dimensão processual
que se caracteriza, por vezes, pelo próprio carácter mais espontâneo do trabalho de
campo – pelos imprevistos (de acesso ao terreno) e pela necessidade de caminhar e de
nos movermos (neste caso, de bicicleta) – que resulta dessa impermanência e que me
propus aqui descrever. Em suma, pretende-se neste capítulo contribuir para uma
discussão sobre a importância desta relação de mutualidade em trabalho de campo na
produção de um conhecimento científico que nunca é apenas subjetivo ou objetivo, mas
intersubjetivo. Por isso, coube-me descrever este processo de acesso ao terreno e de
análise dos dados, dos seus imprevistos que influenciaram e reorientaram as relações e
as problemáticas no terreno.
Por último, este capítulo propõe ainda introduzir uma discussão. sobre as
possibilidades metodológicas do trabalho de campo no estudo das convivialidades, num
contexto onde vários residentes com diferentes modos e percursos de vida acabam por
partilhar situações semelhantes de “displacement”, com apoio institucional limitado,
situações de desemprego e poucas oportunidades económicas – e que podemos
relacionar com o processo neoliberal de reestruturação das cidades.
26
1.4 Esquema de dissertação
Ao mesmo tempo que encontramos no discurso político sobre integração, coesão
e diversidade uma tentativa de por vezes institucionalizar uma ideia de
multiculturalidade, várias são as formas quotidianas de negociação étnica e religiosa
entre residentes que nos apontam para uma diversidade que acontece muito para além
da que é descrita institucionalmente. O que estes momentos de “everyday multiculture
approaches” (Neal et al., 2013, p. 315 apud Wessendorf, 2014, p.173) nos mostram, é
que, apesar da complexidade dos fenómenos de marginalidade estrutural e dos
processos de etnicidade, a diversidade é também muito mais “corriqueira” e comum do
que certos discursos políticos sugerem (Rampton, 2014, p. 9 em Wessendorf, 2014,
p.174). Esta dissertação procura, por isso, descrever esses momentos em que as pessoas
se aproximam e partilham negócios, subsistências e medos do dia-a-dia – apesar das
suas diferenças.
O primeiro prólogo desta dissertação pretende enquadrar o terreno e as
dinâmicas sociais observadas, em particular, o surgimento e a comercialização da
amêijoa e de que forma estas possibilitaram novos caminhos de subsistência (ver 1.1 do
Capítulo 1).
O ponto seguinte procura desenvolver uma reflexão sobre o papel e ofício das
antropologias no saber fazer – que é não só etnográfico, mas também conceptual e
interpretativo, em múltiplas possibilidades de vida. Reflete-se ainda sobre a
possibilidade de novas contribuições para a produção do conhecimento etnográfico, que
passa por criar formas de produzir um conhecimento que passa em primeiro lugar pela
vida e pelos processos de marginalidades e convivialidades que dela fazem parte (1.2 e
1.3 do Capítulo 1).
Neste âmbito, também a forma como escolhi aceder ao terreno e às pessoas que
quis observar não poderia deixar de fazer parte da introdução. Por isso, dediquei alguns
parágrafos para explicar o processo etnográfico e as condições de produção de
conhecimento, e de que forma a bicicleta se revelou importante no acesso ao terreno
27
(1.3 do Capítulo 1).
O prelúdio do Capítulo 2 (2.1 do Capítulo 2) propõe descrever um percurso que
se compôs a partir de várias praias fluviais onde a apanha e as vendas acontecem. Serve
ainda para introduzir aqueles com quem partilhei o quotidiano e fui documentando as
práticas e os ritmos. De forma a enquadrar historicamente este prólogo, é essencial
contextualizar a cidade do Barreiro no tempo e no espaço.
Como nos ensina a antropologia urbana, a cidade como contexto permite-nos
compreender não só o processo das marginalidades e a forma como uma análise mais
aprofundada pode não só explicar a preferência por certas oportunidades de rendimento,
como também nos ajudam a direcionar o olhar etnográfico para aquilo que é a
diversidade numa forma mais espontânea (2.2 do Capítulo 2).
O ponto 2.3 do Capítulo 2 define teoricamente esta dissertação. É um capítulo,
por isso, de propostas teóricas que procuram fundamentar os dados recolhidos. Sem
naturalizarmos os fenómenos que desde sempre foram pertinentes à antropologia, como
a marginalização e o racismo, o estudo das convivialidades propõe-nos imaginar e
explorar os momentos nos quais diferentes modos de vida se encontram, não querendo
limitar o estudo à escala de um bairro ou ao estudo de uma etnicidade em particular.
Se neste ponto é possível encontrar uma perspetiva teórica da antropologia
urbana sobre as diversidades, nos Capítulos 3 e 4 a diversidade é entendida como fator
de vida (Wessendorf, 2014, p.164), analisada etnograficamente. No prólogo do ponto
3.1 do Capítulo 3, propõem-se um mapeamento etnográfico que revisite os percursos e
negócios dos meus interlocutores. Pretende-se com isto ilustrar um terreno que se
reconhece pela sua multiplicidade de praias e armazéns onde os negócios e as
sociabilidades se consolidam.
Nos pontos 3.2 e 3.3 são descritas as trajetórias e os modos de vida dos meus
interlocutores. Estes “coletores de amêijoa” são aqui apresentados a partir das histórias
de vida que foram completando o meu diário de campo, entre conversas, piadas,
gravações e fotografias. Num contexto semelhante de acumulação de trabalhos,
informalidade e precariedade, a confiança destas redes torna-se, por isso, essencial.
28
No ponto 4.2 do Capítulo 4, tornou-se particularmente interessante observar que,
apesar do caráter impermanente dos “biscates” e a diversidade de mobilidades que se
interligam com as dinâmicas de negócio na apanha17, a capacidade de gerir os
imprevistos e de manter as redes sociais dos meus interlocutores torna-se essencial nas
estratégias de subsistência.
No ponto 4.3 do Capítulo 4, compreende-se que a capacidade de gestão dos
imprevistos relaciona-se também com as técnicas que estes apanhadores escolhem no
terreno e que influenciam os seus percursos e quotidianos. Além disso, observa-se que a
partilha de ferramentas e de conhecimento sobre as técnicas facilita um contexto de
comunicação onde diferentes culturas e linguagens se encontram.
Capítulo 2: A terra, o rio, a gente
2. 1. Prelúdio na Praia de Palhais
É quase uma da tarde e está um vento insuportável, mesmo agora na Primavera.
Eu e o M. estamos sentados na areia da praia da Terra do Nunca. Apesar de vazia, está
repleta de pegadas, pequenos barcos, galochas de borracha, roupas estendidas a secar,
sacos de plástico e bicicletas amontoadas. Os sacos do lixo com as amêijoas continuam
a fazer parte da paisagem das praias, muitas vezes pendurados em ramos de árvores ou
deixados na areia. Observamos a maré a vazar e a formar pinceladas entre o azul e o
verde intenso, que contrasta com o branco das gaivotas que poisam neste momento ao
longo do rio.
Para mim, a baixa-mar não se assemelha a mais nenhuma paisagem. E quem a
conhece sabe que as marés grandes são as marés boas. Hoje é, por isso, um bom dia
para se “estar na maré”. Tentamos distinguir os apanhadores ao longe pela forma como
caminham e pelas cores das suas roupas: vermelhas, azuis, pretas. Os pescadores hoje
são muitos, mesmo com todo este frio. Debruçam-se horas a fio a raspar com os
17 Como o caso do “Casal Maravilha”, ou da L. e da E. (3.3 do Capítulo 3).
29
ancinhos. Os que usam ganchorras18, vestem os fatos de mergulho com as suas boias e
redes: “olha o fio preso na rede”, grita uma apanhadora ao marido, este já no rio.
Ilustração 3
Ganchorras. Desenho realizado por Tomás Quote da Fonseca
O M. já os consegue reconhecer ao longe. Estamos sentados há já algum tempo,
mas sem pressas. Diz-me o M: “Vou-te mostrar a casa dos pescadores, um lugar que as
pessoas da nossa idade não conhecem e nem querem conhecer.” Pegamos na bicicleta e
regressamos os dois até à Musa da Praia, escultura em madeira de frente para o rio e
centro das atenções para quem ainda não conhece o bairro. Chegamos.
São cinco e meia da tarde e o sol faz-nos esquecer o frio desta zona. Procuramos
18 Segundo a página oficial da Direção Geral Arte de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos,
a ganchorra caracteriza-se como “a arte de arrasto de pequena e média dimensão em que a boca é
composta por uma estrutura rígida e o saco é de rede ou constituído por uma grelha metálica [...] arte de
pesca rebocada, a pé ou por embarcações, atua sobre o fundo e visa a captura de moluscos bivalves. A
arte é constituída por um saco de rede cuja abertura está ligada a uma estrutura rígida, de forma e
dimensões variáveis dotada, na parte inferior, de um painel com ou sem dentes que revolve o fundo. Os
bivalves ficam retidos numa espécie de saco ou crivo que permite a saída da água, areia e lodo.”
(Dgrm.mm.gov.pt, 2019).
30
abrigo numa das “varandas” das casas construídas pelos próprios pescadores, em
madeira. Casas pintadas à mão, de um azul sempre vivo apesar de existirem há mais de
quarenta anos. Agora que muitos estão ainda na maré a trabalhar, o momento é calmo:
descansa-se e joga-se às cartas. Eu e o M. sentamo-nos uma vez mais a olhar para o rio
e para os os seus barcos, que lentamente se vão afundando na lama. Apanhador e
músico, o M. conhece bem o dia-a-dia de quem escolheu o rio. Aproveita para me
contar outra das suas histórias enquanto bebemos café.
Sete da tarde: as mesas vão-se enchendo à medida que os apanhadores começam
a chegar em grupos. Com botas até ao joelho, sacos de plástico à volta dos pés e com
collants cortados em cima e à volta das botas para “não meter água”, muitos começam a
lavar as amêijoas nos bicos de água que se encontram aqui. Apesar do bom humor, os
discursos sobre os perigos no rio e o frio são uma constante, tal como: “Sabes que não
podes entrar lá pelo meio por causa dos olheiros, tens que contornar pela borda!” – diz o
L. ao M. O comprador chega, um dos apanhadores mete as amêijoas no crivo para
separar a amêijoa grande, que vale mais, da pequena, que vale menos ou que não é
vendida. Guardam as amêijoas na rede e pesam. Tentamos adivinhar o peso de cada
saco: “quem acertar oferece os cafés” – diz o P., o comprador. O dinheiro é logo
entregue em mão. Lavam-se novamente as amêijoas, já dentro da rede.
É um momento de venda e de partilha, trocam-se relatos e cafés, e observa-se o
que cada um vendeu: “vens vender batatas? – perguntam ironicamente, referindo-se às
amêijoas. O M. aponta-me os pontos de encontro daquele lugar: as mesas perto da
margem do rio, os bicos de água, o bar. “As pessoas juntam-se à mesa e no bar para
comer, conversar, jogar cartas e beber – observa, enquanto conversamos – e juntam-se
nos bicos de água para se limparem ou para lavar e vender as amêijoas”. Acaba-se a
venda. Trocam-se as roupas molhadas pelas que já estavam ao sol a secar e muda-se de
sapatos. Amanhã a maré começa a baixar às 09h30. “Vens também amanhã para a
apanha da batata?” – perguntam-me.
Fim do prelúdio
31
Este é um relato baseado numa experiência pessoal durante um dia de convívio,
de apanha e venda de amêijoa-japonesa. Pretende ser, por isso, um exercício visual para
imaginarmos as pessoas, o tempo e o lugar onde este trabalho de campo decorreu.
Uma vez que já referi anteriormente a importância da “cidade como contexto”
em antropologia urbana, esta descrição procura servir ainda como um exercício para
podermos enquadrar as dinâmicas comerciais ligadas à apanha deste bivalve a partir do
contexto histórico, económico e social desta cidade.
2. 2. A cidade do Barreiro no tempo e no espaço
Ilustração 4
Delimitação da cidade do Barreiro. Fonte: Open Street Map
O Barreiro é uma antiga aldeia ribeirinha intitulada Vila em 1521. Com
atividades desde sempre ligadas à pesca, salicultura e moagem, é uma cidade que vai
32
crescendo à beira do rio, servindo como lugar de passagem de forasteiros entre o Norte
e o Sul do país. Era ainda lugar central no abastecimento para Lisboa com as suas
vinhas, searas, hortas e marinhas de sal, que as águas ricas em peixe ofereciam. Até
quase ao surgimento da Companhia União Fabril (CUF), a maior parte da população
dependia da grande diversidade piscícola que o rio proporcionava, como a lambujinha, o
camarão mouro, as ostras e o lingueirão. Esta população vive, por isso, sobretudo da
pesca, mas também da moagem, de pequenas oficinas, estaleiros, quintas, fazendas e
hortas familiares.
A instalação da indústria dos transportes em 1861 marca um momento de
mudança decisivo. Em particular, influenciado pela construção do troço da linha de
Caminho-de-Ferro do Sul e Sueste, que finalmente possibilitou o transporte de
mercadorias entre Lisboa e o Alentejo: carvão, madeira, sal e vinho, são transportados
nos vapores entre as duas margens do rio Tejo. Esta construção, juntamente com a
respetiva estação fluvial, estimulou, assim, um crescente fluxo laboral, proveniente não
só do Algarve e Alentejo, como também das Beiras. Atraídos pelas possibilidades de
trabalho nas fábricas e de alternativas às más condições de vida, agricultores e
trabalhadores rurais viajavam rumo ao Barreiro, “como para um novo Brasil em
miniatura” (em O eco do Barreiro, 4 de Out. 1930 em Carmona, 2009). Também as
primeiras oficinas viraram o tecido social desta Vila – anteriormente constituído por
agricultores - formando uma nova comunidade de ferroviários.
A partir desta época, a Vila do Barreiro começa, então, a ganhar uma
centralidade comercial que se continuará a desenvolver mais tarde com o crescimento
da indústria corticeira19, bem como a indústria da química adubeira. Todavia, apesar de
se observar uma evidente expansão económica, a falta de matérias primas, tais como o
ferro e o carvão, a baixa instrução da população, a dimensão pequena do mercado
interno e o atraso no sector agrícola, terão influenciado o processo de industrialização
no país e, consequentemente, na Vila. Na paisagem rural que caracteriza o Barreiro até
finais do século XIX, a construção de oficinas e fábricas não se impõe de forma subtil
19 Nas fábricas de cortiça, preparava-se sobretudo cortiça em prancha, rolhas, quadros ou bóias de
salvação para exportação e também para o mercado interno.
33
(Nunes de Almeida, 1993, p.24). Segundo Ana Nunes de Almeida, a industrialização no
Barreiro afeta mesmo todo o meio rural, e os seus modos de vida agrícola e formas de
subsistência mais autónomas praticadas pelos pescadores, sobretudo com a poluição das
águas do Tejo20. Paralelamente, os terrenos e as quintas, já mediadas pela especulação
imobiliária, destinavam-se, cada vez mais, a bairros de habitação para os trabalhadores
especializados da CUF, e para a construção de fábricas.
Mas se na memória dos operários mais velhos surgem poucas referências aos
tempos de agricultura, a vida no mar continuou a ocupar um lugar de destaque nesta
paisagem e nos modos de vida de certos grupos da população local. A própria origem da
palavra Barreiro sugere-nos esse facto21. A construção dos moinhos de vento e o
desenvolvimento da indústria das moagens no Barreiro, na primeira metade do século
XIX, indica-nos um momento importante no tecido social e económico desta Vila,
mesmo antes da construção dos caminhos-de-ferro. Assim, os moinhos de vento surgem
aos já existentes moinhos de maré, produzindo, em média, cerca de 17 toneladas diárias
de farinha – fruto do crescimento demográfico e das necessidades de consumo dos
moradores locais. Apesar da forte presença das atividades piscatórias, a paisagem rural
da pequena e média propriedade, e as grandes quintas de veraneio com vinhas, pomares
e searas, são elementos representativos até finais de oitocentos. Exemplo disso são a
Quinta Braamcamp, que semeava vastas terras de trigo até se tornar numa importante
unidade de fabrico de cortiça.
Em 1907, com a instalação da CUF, o Barreiro as dinâmicas económicas do
Barreiro vão transformando a paisagem e o tecido da cidade. Armando da Silva Pais
escrevia que “já em 1861 que começa a definhar a classe piscatória local com o
desenvolvimento da indústria dos transportes” (Silva Pais, 1971, p.13). Ao longo das
décadas de ocupação, a CUF tornou-se até, de facto, numa unidade industrial
20 Os gases vindos das chaminés da CUF e o despejo de resíduos de óleo no rio Tejo são dois dos
exemplos mais marcantes do impacto das indústrias no meio ambiente. 21 Apesar de várias interpretações, o seu nome remonta sempre a um certo modo de “vida no mar”,
fazendo referência, por exemplo, a várias comunidades piscatórias oriundas do Algarve que procuravam
melhores condições de vida nas águas mais ricas do Tejo. Os mais aventureiros, percorriam as praias
fluviais com as suas pequenas embarcações “para lá da barra”, e passaram a ficar conhecidos como os
“Barreiros” (Nunes de Almeida, 1993, p.49).
34
independente, desenvolvendo, paralelamente, uma política de fixação dos operários à
fábrica, já antes própria nas fábricas inglesas ao longo do desenvolvimento industrial -
com a construção de padarias, balneários, refeitórios e bairros operários.
Com isto, a Vila do Barreiro é marcada por uma atividade industrial em
crescimento e por um intenso recrutamento de trabalhadores, muitos deles rurais. De
agricultores pobres contratados – muitos deles migrantes – tornam-se operários, muitos
não qualificados ou desempregados, à espera de uma vida melhor. Mesmo assim, a Vila
continua, em parte, a conjugar um quadro económico interessante, que se caracteriza
pelas possibilidades de emprego - quer nas fábricas, dirigidas pela CUF – quer pelas
possibilidades de rendimento, dada a sua localização fluvial, constituindo-.se como
importante fonte de recursos para as comunidades piscatória e agrícola22.
Face a um desaceleramento do desenvolvimento industrial entre 1950 e 1981, o
setor terciário ganha, paralelamente, um maior destaque, com os serviços cada vez mais
evidentes nesta região periférica (apesar das indústrias ainda existentes de refinação de
óleos e indústrias químicas, de reparação e construção naval, e de processamento de
alimentos importados). Até à década de 1960, o Barreiro conquistou uma centralidade
económica que foi perdendo lugar ao longo a década de 1970, testemunhando várias
conturbações, a começar pela crise petrolífera de 1973 e pela recessão económica
europeia, afetando a estabilidade da economia nacional e o papel do distrito de Setúbal
no desenvolvimento do país (idem, p.22). Em segundo lugar, a viragem política de 1974
e a nacionalização das indústrias fragiliza, de igual modo, a situação da Margem Sul. A
par com este momento, o processo de descolonização acaba por condicionar fortemente
o acesso às matérias-primas e aos mercados até então das ex-colónias; a negociação da
entrada de Portugal à CEE; e a conquista de poder do Partido Comunista, trazem
consigo períodos que vão alterar a organização do espaço económico desta região e do
país.
Até 1981, o crescimento demográfico deve-se, em grande parte, aos movimentos
22 De facto, o trabalho na fábrica não excluía as situações de pluriatividade e acumulação de rendimentos,
com atividades agrícolas familiares ou à pesca artesanal, refletindo uma cumplicidade natural entre estes
dois sectores.
35
migratórios de trabalhadores no país num contexto de forte expansão urbana, ampliada
pela localização periférica privilegiada desta Vila (idem, p.25). Contudo, na década de
1960, observa-se uma descida da população, consequência dos processos de emigração
para o estrangeiro ou para cidades maiores. Mas entre 1970 e 1981 os dados mostram-
nos um novo fôlego no crescimento populacional do Barreiro, sobretudo devido a
residentes não-naturais. Ao longo dos últimos 125 anos, a história do Barreiro é
fortemente marcada pela sua dinâmica industrial. Até à década de 1960, a indústria dos
transportes e a indústria transformadora são as mais representativas, mas a par com o
declínio da indústria corticeira e com a pouca relevância dada às indústrias da madeira,
metalúrgicas e metalomecânicas, e alimentares (como a seca do bacalhau). Em 1975,
num momento de forte processo de declínio de algumas indústrias, - como a indústria
corticeira, a CUF e a CP são nacionalizadas, marcando um momento de reestruturação
na organização laboral. Em primeiro lugar, a adaptação a novas profissões ou novos
modos de produção nas fábricas, obrigam os operários especializados e “de um só
ofício” a um grande esforço. Além disso, as reformas antecipadas e o encerramento de
muitas fábricas levam a uma maior instabilidade, bem como a uma maior necessidade
de reformulação política e económica23.
Além disso, as profundas transformações políticas que ocorreram em Portugal
na década de 1970, ligadas ao processo de independência das colónias africanas,
resultou num acolhimento de aproximadamente meio milhão de pessoas (Pires et al.,
2010 em Malheiros, 2013, p. 30). No entanto, é ainda na década de 1950 que os
primeiros cabo-verdianos se vêm fixar no país, com a contratação de trabalhadores para
obras públicas24, empregando uma enorme quantidade de trabalhadores estrangeiros. Só
entre 1975 e 1979, o número de residentes oriundo das ex-colónias em África, passou
de meio milhar para cerca de 20 mil pessoas. A partir de 1980, regista-se ainda um
crescimento de 60 mil, no início da década, para cerca de 80 mil, em 1985, “com uma
preponderância dos africanos, nomeadamente dos cabo-verdianos que representavam
23 Contudo, certas reestruturações – como a reformulação das normas de contratação coletiva – permite
proteger o destino de centenas de operários, depois da saída da fábrica. 24 Como a construção da ponte 25 de Abril, a expansão das áreas metropolitanas e a rede de
Metropolitano de Lisboa.
36
nestes anos mais de 40% do total de estrangeiros em situação regular no país
(Malheiros, 2013, p.31). A adesão de Portugal à CEE, em 1986, veio ainda estimular
este crescimento. Em relação aos que chegaram à Margem Sul, Jorge Malheiros
acrescenta, no seu livro:
Nota-se uma muito reduzida mobilidade entre os que escolheram as regiões
autónomas da Madeira e dos Açores, e a margem Sul da Área Metropolitana de Lisboa
como primeiro local de residência após a chegada ao país, pois mais de 96% dos
entrevistados residiam nestas regiões no momento de aplicação do inquérito. (Malheiros
2013, p.73).
Tanto o sr. João como o sr. Manuel são casos de vida que nos aponta para as
limitações dos dados estatísticos na investigação. Com setenta e três anos, e nascido em
Santiago, “na praia”, o sr. João veio para Portugal, em 1971. Desde a sua chegada,
viveu sempre no Barreiro, na Vila Chã, Cidade do Sol. Pastor e lavrador em Cabo
Verde, veio para Portugal com uma promessa de trabalho na Mina da Panasqueira, entre
o Cabeço do Pião (Concelho do Fundão) e a aldeia da Panasqueira (Concelho da
Covilhã), onde nunca chegou a trabalhar. Foi um dos primeiros cabo-verdianos a
trabalhar na CUF, onde “havia muitos gases, mas o ordenado era certo”. Trabalhou na
CUF/Quimigal até 2001, como operador de forno. Apesar do trabalho de décadas
fisicamente exigente na CUF, não perde uma oportunidade para sorrir, enquanto passeia
com as suas cabras: “Não vê que já não tenho cabelo aqui? É só dos gases da
temperatura do forno. O forno eram 900 graus. Sulfato de sódio. Depois cansaram-me e
mandaram-me embora”. O sr. João despediu-se de Cabo Verde no dia 3 de novembro de
1971. A sua mulher, também da Ilha de Santiago, chegou a Portugal um ano e meio
mais tarde. A Vitória, hoje em dia a viver na Suíça, nasceu poucos anos depois, em
1974. Vitória, por ser o ano da independência. Seguiu-se a Vitalina, hoje em dia em
França, e o Viriato, a viver na Holanda: “melhor qualidade de vida” – diz-me. Apesar
do “dinheiro certo”, o sr. João viveu durante muitos anos em casas de habitação
precária, até conseguir comprar a sua própria casa, na Cidade do Sol. Hoje em dia, já
37
reformado, é pastor e passa o seu tempo a cuidar da sua horta, uma das muitas hortas
“informais” que caracteriza a paisagem de uma zona de fronteira entre a Câmara da
Moita e a Câmara do Barreiro, ocupada hoje em dia por vários cabo-verdianos.
Assim como o sr. João, conheci o sr. Manuel nas hortas, onde muitos continuam
a passar os dias. Com cinquenta e cinco anos e oriundo da Ilha do Sal, o sr. Manuel veio
para Portugal em 1973. “Aqui é terra da minha avó”, contava-me, enquanto falava da
sua avó alentejana, imigrante em Cabo-Verde. Assim como o sr. João, o sr. Manuel já
exerceu várias profissões: de delegado de juventude, trabalhou ainda como professor e
construtor civil entre Cabo-Verde, Portugal e Suíça. Voltou para Portugal há mais de
vinte anos, quando lhe atribuíram nacionalidade portuguesa. Parte dos seus filhos
continua lá. Desde há muitos anos, trabalha como voluntário numa associação de apoio
social, no Vale da Amoreira:
Restituir as comunidades, há muitos anos. Atender pessoas necessitadas. É esse
o meu trabalho agora… porque só dar comida...não chega. Também é preciso educação.
[Diário de campo, cemitério de Vila Chã, Barreiro, junho de 2018].
O caso do sr. João e do sr. Manuel permite-nos identificar, no presente capítulo,
uma relação entre as migrações e expetativas de vida. Se para Alejandro Portes um dos
motivos da emigração é representado pelo desequilíbrio entre a expetativa de consumo e
as oportunidades que o país de origem oferece para satisfazer essas expectativas (Portes,
1999a), outros autores vão mais além ao reconhecer que o consumo não é, no entanto,
igual em todo o lado25 (Mapril, 2012; Appadurai, 1986a). As dificuldades de acesso a
certos recursos e expetativas, o que caracteriza contextos de marginalidade, são aqui
“superadas” por via da produção de lugares de pertença e pelas sociabilidades, muitas
vezes inseridas em contextos informais – como nos é possível observar também aqui no
caso das hortas. Como nos refere o sr. João:
25 Não é, pois, de estranhar o percurso destes dois interlocutores para a Suíça, antes de terem conseguido
cidadania portuguesa e virem trabalhar para a Margem Sul.
38
O meu irmão tinha uma barraca ali, depois tiraram e foram fazer a morada ali
no Largo de São Bento...depois... como eu gostava daqui e vinha sempre comecei a
fazer ali fiz um buraco tirei água, depois ali fiquei. Depois resolvi apanhar uma cabra e
mais um cabrito no dia 25 de dezembro. Eles e mais aquele que entrou ali (mostra o
cabrito). Depois, comprei aquela e a partir daí pronto. Começou a criar a criar...tinha
muitos mais mas agora…só tenho estes [...Agora o meu futuro? É o que tá no presente
agora. O meu futuro é o que está no presente. Se tirarem dali [as hortas] já não tenho
mais futuro nenhum...lá tenho que ficar em casa, ou tenho que ir para o banco dos
reformados… jogar às cartas [risos] é… isso… não gosto! [Transcrição de entrevista,
diário de campo, Vila Chã, Barreiro, 10 de Julho de 2018].
Também aqui, estes lugares de pertença não representam unicamente
reproduções dos países de origem (como podemos perceber pelos casos dos
interlocutores cabo-verdianos, que tinham também sido pastores e lavradores na terra de
origem), como também uma estratégia para (re)criar uma noção de conforto e de lar
mais abstrata, face aos medos, ao frio, e à situação de trabalho fisicamente desgastante e
partilhada por todos nestes lugares comuns. Por isso, o estudo de caso apresentado nesta
dissertação não se aproximou tanto das etnografias desenvolvidas por autores como
Karen Olwig (2005, 2007) sobre a ligação entre a produção de lugares de pertença e as
relações sociais que são mantidas entre os países de destino e os países de origem, ou,
voltando um pouco às origens, de Nina Glick Schiller, Linda Basch e Cristina Blanc-
Szanton quando propõem analisar os fenómenos migratórios contemporâneos a partir da
noção de transnacionalismo26 (Glick Schiller et al 1992). Aqui, as estratégias de
“emplacement” acontecem nas lutas imediatas apesar do Estado (e não contra o Estado,
como Pierre Clastres afirmou em 1972), num contexto onde as oportunidades de
rendimento informais não são marginais às instituições económicas e ao Estado, mas
26 Sobre esta questão, já Portes, Guarnizo e Landolt afirmavam que o termo deveria ser delimitado “a
ocupações e atividades que requerem um contacto social regular e sustentado no tempo que se
implementem através das fronteiras nacionais [...] dos novos modos de transição e da multiplicação de
atividades que requerem viagens e contactos transfronteiriços.” (Portes et al. 199, p.219 em Mapril, 2012,
p.32).
39
sim interligadas com ambos (Narotzky et al., 2006). Sobre esta dinâmica, comentam o
L. e a C. em relação à formalização da apanha da amêijoa:
Depende um bocado da legislação que for decidida. Porque por lei, cada pessoa
pode apanhar uma média de 5 quilos… se eles pagarem a 17 euros/quilo... epá 5 quilos
já parecendo que não… agora se pagarem 5 euros dão-me 25 euros então? Não é nada!
Dá 50 euros por casal/dia. Cada casal que andasse na amêijoa eram 50 euros/dia. Era o
suficiente para uma pessoa sobreviver. Não tá mau...não, ‘tá péssimo (risos). Não tá
mau, tá péssimo. Tu agora apanhas o que apanhares e vendes [...] e olha, amanhã é o dia
de amanhã.[Transcrição de entrevista, diário de campo, Barreiro, 19 de Julho de 2019].
De facto, os valores e atitudes de acolhimento numa determinada cidade perante
os migrantes e recém-chegados (e que moldam a própria vida económica e institucional
destas cidades), determinam muitas vezes a capacidade de incorporação de certos
grupos (Brettell, 2003; Glick Schiller, 2011; Çaglar e Glick Schiller, 2009, 2015). Para
além das razões económicas que têm marcado as migrações internacionais de forma
geral, são vários os migrantes que continuam à procura de trabalhos precários em
Portugal, muitos deles de natureza informal27. Desde a década de 1970 que a economia
tem vindo a estimular novas formas de emprego e mão-de-obra flexível pouco
valorizada, precária e segmentada. Observando o caso do pós-II Guerra, constata-se que
a flexibilização laboral promovida através do programa alemão de trabalho temporário
com os gastarbeiter (trabalhadores convidados), facilitava o abandono e despedimento
dos estrangeiros imigrantes quando estes já não fossem indispensáveis. Também aqui é
premente pensar, por exemplo, de que forma os reajustamentos económicos globais,
27 Por informalidade, partimos da definição de Keith Hart, onde o autor analisa um conjunto de práticas
que passam pelas práticas económicas não reguladas, atividades de génese ilegal – como a agricultura e
da construção civil (não taxadas) – até à corrupção (Hart, 1973). Assim, pensar a informalidade é pensar
não num setor, mas enquanto processo que confronta e é redefinido a partir das próprias fronteiras
institucionais – que podem ir das atividades domésticas, à circulação de produtos ilícitos (Góis 2016).
Como exemplo, poderíamos olhar atentamente para os casos laborais ligados à construção civil, à apanha
e pesca sem licenciamento, ao serviço doméstico e de hotelaria, como alguns dos exemplos que permitem
ilustrar já aquilo que Alejandro Portes descreve como o mercado de trabalho segmentado ou dual (Light e
Karageorgis, 1994, p. 649 em Peixoto et al., 2009, p.38).
40
baseados no trabalho flexível e na subcontratação, acabaram por afetar vários países
através da “informalização” do mercado de trabalho.
Segundo fonte de dados disponibilizados pelo PORDATA (INE, 2011), e
comparando com outras cidades vizinhas da Margem Sul com um percurso económico e
social semelhante, a população inativa no Barreiro por 100 ativos (total e por sexo)
chegou aos 74,1% (Homens) e 95,9% (Mulheres), e os desempregados no Barreiro por
100 ativos (total e por sexo) rondou os 18,4% (Homens) e 17,9% (Mulheres). Como é
possível observar nas tabelas seguintes:
Ilustração 5
Tabela população inativa segundo os censos: total e por sexo
41
Ilustração 6
Tabela população desempregada segundo os censos: total e por sexo
Neste enquadramento coloca-se a questão de Keith Hart: quantos residentes é
que estarão realmente inativos e desempregados? (Hart, 1973 [2014], p. 62). Perante
alguma limitação dos dados estatísticos para compreendermos a realidade social, esta
etnografia procura documentar aquilo que caracteriza certos percursos de vida e práticas
de subsistência entre a formalidade e a informalidade.
Esta questão remete-nos novamente para o estudo de Hart sobre as atividades
económicas de um grupo de migrantes oriundos do Norte do Gana – os Fafras (ou os
sub-urban proletariat, como refere o autor – e sobre as condições de trabalho destes
migrantes pouco especializados no Sul do Gana. A multiplicidade de ocupações entre a
formalidade e a informalidade28 é um exercício útil para podermos enquadrar os
próprios percursos dos interlocutores que me relataram as oportunidades profissionais
que foram encontrando, do trabalho assalariado (formal/wage earning) ao trabalho por
conta própria (informal/self-employment) (Hart, 1973 [2014], p.10). Como iremos
28 Muitas vezes descritas por Hart a partir dos percursos dos seus informantes, como é o caso do seu
informante Mr A. D, 45 anos, limpador de ruas, jardineiro e vigilante noturno. Paralelamente, cultivava
ainda os seus próprios vegetais no terreno que conseguira comprar.
42
observar, a informalidade não representa apenas uma forma para lidar com os
constrangimentos relacionados com o desemprego, pobreza ou indocumentação.
Castells e Portes (1989) afirmavam que a informalidade passava também por uma forma
de fugir a certas normas e regras de regulação do Estado, como a contratação laboral ou
os custos de segurança social. Já o trabalho de Risa Whitson sobre espaços de poder e
resistência no contexto de trabalho informal na Argentina, mostra-nos que a
informalidade pode ser também uma via para escapar à opressão e ao controlo
estabelecidos por outros atores (Scott, 2009, 2014; Whitson, 2007).
A literatura sobre informalidade é vasta e seria irrealista querer nomeá-la a toda.
Interessa-nos, sim, os percursos económicos entre a formalidade e a informalidade, no
contexto atual de reestruturação neoliberal das cidades (Sassen 1989; Schiller et al.
2016; Harvey 2012, Brenner 2010), podendo questionar: como (sobre)viver apesar da
ruína do mundo? Não pretendo com esta dissertação em torno do negócio da apanha da
amêijoa responder a esta questão. Julgo que, no entanto, pode ajudar-nos a imaginar
formas de convivialidade e de sobrevivência coletiva (Tsing 2013, p. 25) entre pessoas
de etnicidades, culturas e religiões diferentes.
2. 3. Convivialidades e diversidade na cidade (in)formal
“Porque lá do fundo [no rio]
parecemos todos iguais, não é?”
[Entrevista a S., diário de campo, 25 de Julho de 2018]
Penso que ninguém me teria resumido de forma tão rápida a sua opinião pessoal
sobre diversidade. Para o S., a diversidade é o momento da apanha: Como o próprio
refere:
“Se estivermos todos lá ao fundo, é impossível perceberes se aquele é branco ou
se o outro é preto... lá do fundo parecemos todos iguais, não é?” [Entrevista ao S., diário
43
de campo, 25 de Julho de 2018]
Apesar dos estudos feitos a partir das diferenças culturais ou étnicas serem
importantes para que possamos analisar fenómenos como o racismo ou a intolerância
cultural, a presente dissertação procura, ao contrário, observar os pontos de semelhança
entre pessoas com percursos diferentes, e não aquilo que as afasta (Glick Schiller et al.,
2016, p.21; Wessendorf, 2014, p.24).
Qual, então, a importância de pensarmos para lá da lente étnica (Glick Schiller e
Çağlar, 2016) como unidade de análise? Na precariedade do mundo29, a entreajuda e os
momentos de encontro ganham um lugar central nas estratégias de vida para lidar com
certos constrangimentos.
Se, por um lado, a noção de precariedade tem sido pensada como uma
consequência das transformações económicas globais, bem como uma condição social e
económica involuntária, por outro, também podemos olhar para as experiências de
precariedade como espaços abertos de encontros improváveis (Baumann, Gerd, 1996;
Gilroy, Paul, 2004; Lamphere, 1992; Schiller, Nina Glick, 2016; Tsing, 2015;
Wessendorf, 2014). Ao longo do trabalho de campo, procurei desta forma observar o
que se constrói em termos de colaborações e convivialidades (não institucionalizadas)
num lugar entre a incerteza e a promessa.
Imaginemos agora um desses espaços. Um lugar onde pessoas com diversas
histórias e percursos de vida partilham não só um quotidiano, como também as razões
pelas quais vieram estabelecer-se aqui. Apesar das diferenças culturais e religiosas,
estas pessoas vivem uma condição comum de precariedade, mas também de esperança.
A este lugar, dá-se o nome de “Zomia”, região montanhosa e geograficamente não
29 Como já foi referido, a precariedade é entendida aqui, sobretudo, como uma condição de
vulnerabilidade, “displacement” e insegurança, e que também podemos relacionar com o estado
económico contemporâneo ligado ao capitalismo neoliberal. A informalidade torna-se, assim, uma das
possibilidades para vários grupos de “ganhar a vida”. Assim como Anna Tsing nos define a precariedade
como a vida sem a promessa de estabilidade (Tsing 2015, p.2), também Anne Allison escreve sobre a
impermanência do quotidiano:”In this uncertainty of time, where everyday efforts don’t align with a
teleology of progressive betterment, living can be often just that. Not leading particularly anywhere, lives
get lived nonetheless” (Culanth.org, 2016).
44
traçada30. Com mais de 100 milhões de minorias (como os Akha, Chin, Kare, Lahu,
Uwa ou Yao), “Zomia” poderia ser um desses lugares de “sociabilities of emplacement”
descritos por Ayse Çaglar e Nina Glick Schiller (2016, p.7), zona de refúgio estudada
por James C. Scott para documentar histórias de resistências quotidianas ao poder e à
escravatura, as convivialidades tornam-se aqui elemento central de escapismo à
incorporação forçada (Scott, 2009). Aqui, a marginalidade torna-se a ação voluntária de
quem se vai adaptando à opressão e à dominação, num “tribalismo marginal”, para usar
as palavras de Scott (2009, p.30).
“Zomia” pode servir-nos também aqui simbolicamente para questionar e
problematizar as limitações de uma observação direcionada para o estudo a partir das
diferenças entre comunidades étnicas. Neste sentido, para além de investigações mais
antigas como as desenvolvidas por autoras como Louise Lamphere (1992), as propostas
metodológicas de Caroline Brettell (2003), Steven Vertovec (1996), Mette Louise Berg
e Nando Sigona (2013), ou de Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar (2016), têm
contribuído para um debate que articula os estudos urbanos com a antropologia, ao
mostrar, etnograficamente, de que forma a diversidade18 é vivida e construída31.
Neste sentido, pensar a apanha da amêijoa é pensar de que forma (e como) estes
apanhadores acabam por construir certos laços face a fenómenos que se relacionam com
a própria reestruturação atual e neoliberal das cidades. Assim, tal como os textos de
Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar sugerem, mais do que pensar em conceitos como
integração, assimilação ou inclusão, a diversidade é aqui entendida enquanto processo à
luz de dinâmicas e discursos políticos locais, regionais e globais (Brenner, 2010;
Harvey, 2006; Glick Schiller et al., 2009, 2016; Berg e Sigona, 2013). A convivialidade
assume aqui um papel de diálogo, de criação de relações sociais. A importância em
30 “Zomia” tem uma extensão de cerca de 2,5 milhões de km2 que vai do Oeste da China, ao Noroeste da
Índia, passando por áreas de cinco outros países como o atual Myanmar (Burma), Tailândia, Laos,
Vietname e Camboja. Na periferia de nove Estados-Nação mas no centro de nenhum, é a maior região
onde as suas comunidades não foram ainda totalmente incorporadas em Estados- Nação, e por isso
continua a constituir-se como um dos maiores espaços não governados pelo Estado.
31 A partir de uma etnografia, que observa vários tipos de sociabilidades entre migrantes recém-chegados
e residentes autóctones, Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar abrem, assim, um caminho teórico importante
para esta dissertação.
45
observar os “espaços” onde a diferença se esbate e novas relações são construídas
direciona-nos, assim, para o caminho do estudo das migrações que nos pode ajudar a
ultrapassar certas categorias étnicas e religiosas como unidades de análise. Mas se, por
um lado, as etnografias de Nina Glick Schiller e Çaglar sobre
“displacement/emplacement” representam uma importância teórica no caso da apanha
da amêijoa para poder observar as várias relações sociais entre apanhadores a partir das
suas sociabilidades construídas,; por outro, o estudo de James C. Scott sobre “Zomia”
levou-me a encontrar novas respostas teóricas para os dados recolhidos, ao demonstrar
que, por vezes, a marginalidade é, também, uma escolha e uma decisão voluntária de
determinados modos de vida.
De forma a explorarmos as relações sociais que se constroem à luz da apanha da
amêijoa, é importante analisar as dinâmicas comerciais e não comerciais desta prática –
dos negócios, dos ritmos e percursos, até às técnicas e práticas que a compõe. Como
iremos observar nos capítulos que se seguem, a amêijoa-japonesa no Estuário do Tejo
torna-se elemento central na construção de relações que não se baseiam unicamente em
trocas comerciais. Assim, para além das oportunidades de negócio que este bivalve
estimula, servem recorrentemente como tema de conversa sobre receitas culinárias para
preparar as amêijoas em casa, ou ainda como alimento nos vários lugares de
sociabilidade que iremos encontrar mapeados mais à frente desta dissertação. Em suma,
a apanha da amêijoa torna-se, também, uma extensão da própria pessoa, das suas
conversas, relações, medos e modos de vida. Foi a partir desta perceção, que se foi
reorientando ao longo do trabalho de campo, que procurei descrever estas experiências
partilhadas.
Em jeito de resumo, este capítulo procura refletir sobre a importância da cidade
como contexto para enquadrar histórica, social e economicamente os percursos de vida
de quem sobrevive numa cidade pós-industrial, como o Barreiro32. Sobre a
informalidade, partimos de autores que nos mostram empiricamente a dimensão
processual da informalidade (ver Hart, 1973; Mapril, 2010, Ivone Cunha, 2006). O que
32 Ver o ponto do capítulo sobre o Barreiro no tempo e no espaço.
46
estes autores nos mostram incita-nos ao capítulo seguinte, permitindo-nos documentar
melhor as histórias de vida e as oportunidades de rendimento encontradas por estes
apanhadores. Neste contexto, o estudo das sociabilidades ganha também um papel
indispensável para compreendermos de que forma certas atividades se caracterizam não
apenas pelo seu valor comercial, mas também pelas relações sociais e reputações que
são construídas a partir destas mesmas atividades.
Num contexto entre a incerteza e a promessa, a atividade da apanha da amêijoa é
também pensada, aqui, como elemento formador de relações sociais, em espaços abertos
para a criação de redes comerciais e não comerciais. Por último, argumentamos que
compreender como, quando e porquê que determinados indivíduos se aproximam, pode
ainda direcionar os estudos antropológicos para uma unidade de análise para lá da lente
étnica.
Os lugares e as convivialidades onde as práticas ligadas à apanha da amêijoa
acontecem assumem-se, assim, importantes para questionar de que forma as relações de
confiança e de negócio entre migrantes e não migrantes, que partilham trajetórias,
ritmos e técnicas de trabalho, são decisivas nas estratégias de incorporação social e
económica. Assim, os capítulos etnográficos apresentados são o resultado de um
trabalho de campo que procurou identificar que formas de mutualidade emergem numa
cidade onde os seus residentes testemunham diferentes experiências de marginalização.
Neste sentido propomos, num primeiro momento, um mapeamento das praias
fluviais que caracterizam as zonas de refúgio destes apanhadores. Pela impermanência
das situações que resultam muitas vezes em discursos sobre o medo, pela
interdependência das relações profissionais, ou ainda pelo caráter incerto das relações
sociais que se vão moldando aos seus percursos e modos de vida mais precários, estas
zonas de refúgio são entendidas também como um limiar das margens que nos
redireciona para uma nova ideia de passagem e de transformação. Percorrer as
convivialidades, as práticas e as técnicas recriadas nestes lugares, torna-se, por isso,
importante para o conhecimento antropológico/etnográfico aqui proposto.
47
Capítulo 3: “Ir por outros caminhos”. Nas dobras dos lugares
próximos
“Comecei aqui [na apanha] e fui lá para baixo, para o clube naval. E depois vim para
aqui. Porque fiquei sem trabalho. Já fiz várias coisas… antes das pinturas, trabalhei no
Mcdonalds, trabalhei na metalurgia, ‘tive em França…depois voltei outra vez. E aqui
fiquei”.
S., pintor alpinista e apanhador de amêijoa.
[Transcrição de entrevista, Barreiro, 19 de Julho de 2018].
3. 1. Prólogo entre as praias fluviais: um mapeamento etnográfico
Ilustração 7
Percurso de bicicleta registado por gps a partir da aplicação mapmyride. Mapa desenvolvido por Jannis Kühne
A cidade do Barreiro é composta por várias praias fluviais. No verão, são
bastante utilizadas pela população do Barreiro para tomar banho, conviver e até mesmo
48
pernoitar. Mas se para alguns o rio sempre representou um momento de turismo e
desporto, para muitos outros representa também uma oportunidade de negócio entre o
formal e o informal; um momento, por isso, de contradição, próprio de tudo o que está
nas margens, que não está “aqui nem ali; está entre as posições atribuídas e organizadas
pela lei, pelo costume, pela convenção ou pelo cerimonial” – nas palavras de Victor
Turner sobre o estado de “liminaridade”, à luz da proposta desenvolvida inicialmente
por Arnold Van Gennep (1960 [1909]), apesar de distinta (Turner, 1969, p.81 em Pina
Cabral, 2000, p.871). A partir dos estudos de Van Gennep, Turner desenvolve uma
relação entre esse estado de liminaridade e o conceito de marginalidade (Turner, 2008
[1969]). Como demonstra o autor, a marginalidade é o fundamento da própria vida
social e cultural, que as dinâmicas de poder estruturam em “periferias mais ou menos
legitimadas” (Pina Cabral, 2000, p.883), mais ou menos visíveis. Assim como a
reflexão em torno das (in)formalidades, também se torna premente observar o caráter
processual das marginalidades.
Partindo dos caminhos económicos que estas praias tornam reais aos
apanhadores, o estado liminar é também entendido como um período de margem onde
novas relações/sociabilidades são construídas. Sobre este momento de “experiência
partilhada”, Collin Turnbull refere:
Quando o etnógrafo analisa os fenómenos da liminaridade, tem de depender de
uma forma mais profunda da perceção intersubjetiva: tem de saber encontrar dentro de
si o potencial para ser algo de diferente. (Turnbull, 1990, p.75 em Pina Cabral, 2000,
p.872).
Esta “experiência partilhada” (Pina Cabral, 1991, 2000) permite ao etnógrafo,
desta forma, observar o que existe de comum entre quem partilha um contexto
semelhante. Partindo, por isso, do princípio de que a liminaridade é o momento não só
de transição, como também de transformação, que pode acontecer quando as pessoas se
encontram sob “um igualitarismo radical, como resultado do qual, ao desaparecer a
hierarquia, surge uma espécie de companheirismo espontâneo” (Turner, 1969, p.95 em
49
Pina Cabral, 2000, p.871), tentei descrever, ao longo do trabalho campo, essa condição
no limiar das margens, onde as técnicas e a entreajuda se revelam elementos
importantes nas oportunidades de negócio.
Nestas praias fluviais nas margens do rio Tejo, a expectativa33 é muitas vezes
feita de dúvida e de imprevisibilidades; de precariedade, mas também de liberdade, dos
que preferem viver na dúvida, como o Z. Ao longo do trabalho de campo percorri cinco
praias fluviais: a Praia do Barra-a-Barra, do Bico do Mexilhoeiro, de Alburrica, do
Copacabana e de Palhais. Como me foi possível anotar, cada praia possibilita técnicas
de apanha distintas, pelas diferentes necessidades de acesso e pelo tipo de condições
naturais que condicionam o material a levar. Por isso, cada apanhador escolhe a praia
consoante o tipo de material e de técnica que prefere usar, nunca deixando de ter em
conta as redes de sociabilidades mais importantes de manter. No caso das mulheres e
dos homens guineenses, por exemplo, raramente chegam até à Praia do Bico do
Mexilhoeiro ou de Alburrica, uma vez que utilizam apenas as mãos e os garrafões. Pelas
boas condições e por ser um lugar mais escondido, estão quase sempre, por isso, na
Praia do Copacabana. Esta foi a praia onde conheci quase todos os meus interlocutores,
à exceção do Z.. Por isso, foi a praia mais importante deste percurso de bicicleta.
Com caminhos e esconderijos que se transformam consoante a maré baixa ou
alta. Ao longe, secava-se o bacalhau em armazéns já desativados. É uma praia onde as
cores se confundem, entre o castanho esverdeado da lama e o azul e branco dos céus e
dos pequenos barcos de madeira. É também violeta, quando a maré sobe, e verde,
encoberta pelas árvores e por um descampado, que hoje serve de lugar de descanso ao
gado que por ali passa todas as semanas e que, em tempos, fora um bairro de habitação
precária. Nesta praia, são muitas as mulheres e os homens guineenses que apanham, que
não têm medo dos “olheiros” de lama do rio, de onde saem de joelhos para não se
afundarem. Este lugar de convívio e de pequenos negócios é passado em torno de um
bico de água, onde se lavam as amêijoas, a roupa e as botas. Aqui, contam-se histórias,
sobretudo de trabalho, e partilham-se vivências face a uma situação comum de
precariedade, onde a própria linguagem se revela elemento central de proximidade e
33 Em alusão ao livro de Paula Godinho, O Futuro é para Sempre, Letra Livre/Através Editora, 2017.
50
camaradagem:
“Grandes batatas [as amêijoas] as que colheste na tua horta [no rio]. São para
cozer ou para fritar? E tu? Já passeaste o cão hoje? [para referir o garrafão de 25 L
cortado em cima e preso à cintura]. Mais tarde, alguém pergunta se o “Velho” está de
folga hoje. Em ironia, visto que não há folgas estipuladas, pois ali são todos os próprios
patrões” [Diário de campo, Barreiro, entre Dezembro de 2017 e Março de 2018].
Os perigos do rio são um fator importante na decisão do lugar a escolher. A
imprevisibilidade dos “olheiros” obriga os apanhadores a um mapeamento no terreno
que só a experiência ensina. Por isso, muitos acabam por permanecer na praia que já
conhecem e adaptarem-se às suas características. No caso do Z., só é possível encontrá-
lo na Praia do Bico do Mexilhoeiro, que melhor se adapta às suas técnicas de apanha
com ganchorra, e onde geralmente encontra o seu comprador habitual, sempre
estacionado numa carrinha, perto da avenida da praia.
Na Praia do Copacabana e em Palhais, seca-se a roupa pendurada nas árvores ou
em muros à beira-rio antes de se começar a apanha. Aqui, as zonas de refúgios são a céu
aberto, mas raramente há fiscalização. É uma paisagem selvagem, em toda a sua
imensidão de rio, lama, pássaros e pequenos barcos. Aqui, a ausência de pessoas,
sobretudo no Inverno, permite a estes apanhadores trabalhar e vender com alguma
calma. Por isso, só muito raramente é que estes apanhadores mudam de praia. Pela
dificuldade de muitos em comprar melhores materiais de apanha (e também pelo risco
de estes poderem ser apreendidos pela Polícia Marítima), mas também pela própria
preferência pessoal em relação às técnicas escolhidas.
Em que medida podemos caracterizar estes lugares como zonas de refúgio? Para
além de serem lugares de trabalho, onde as probabilidades de multa e de repressão
constituem sempre um risco, estes lugares revelam-se ainda zonas de proximidade e de
camaradagem entre quem conhece os ritmos, os medos, e os percursos deste negócio.
Em qualquer uma das praias, as conversas sobre o perigo marcam vários momentos
51
significativos do quotidiano destes apanhadores:
“Tu sentes-te a afundar completamente. É uma sensação bué parva. Mas ao
mesmo tempo é fixe… é parva...mas ao mesmo tempo...tu fazes assim! E de repente
sentes o duro. Bates com o pé! As primeiras vezes que eu caí dentro dos olheiros não foi
muito fixe, não. É uma sensação um bocado parva e de aflição, a de caíres e teres que
respirar bué da rápido. Dá-te aquela cena no coração”. [Transcrição de entrevista à L. e
C., diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].
Para lidar com os constrangimentos do trabalho, muitos não perdem algumas
oportunidades para gracejar sobre o assunto e para refletir sobre as inter-relações que se
vão formando nas várias praias. Como refere S.:
“Eu a andar aqui no meio do rio já é quase como andar na Avenida, já não
tenho medo. O segredo é continuar a andar. Na apanha… vais a sítios onde ninguém
vai...onde não conheces nada. Também…sei lá, eu não conhecia nada disto, sabias lá se
havia um olheiro ou não. Eu fui acompanhado, mas não se pode confiar aqui em
ninguém, é o que eu penso, aqui não se pode confiar em ninguém”. [Transcrição de
entrevista ao S., diário de campo, Barreiro, 23 de Julho de 2018].
Apesar dos perigos, das marés, a troca de experiências entre apanhadores pode
ser fulcral para prevenir várias situações perigosas. Para citar a C.:
“Tu vais ao fundo, mas não vais logo. Também não vais ser parvo ao ponto de
continuares a andar, se deres mais um passo e aquilo ainda a afundar não vais continuar!
Andas para trás, dás a volta...ou então tens outra tática...bates assim...se o chão mexer
dás a volta, não vais passar, dás a volta. E em muitos mais sítios. Não vês? Os blacks
passam pelo rio, sem medo. E caem dentro dos olheiros, saem e andam...sem medo!”
[Transcrição de entrevista à L. e C., diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].
52
Como iremos ainda compreender, também os ritmos e percursos entre
apanhadores tornam-se dinâmicas sociais importantes na formação de negócios e na
construção de coabitações e momentos de sociabilidades. Estes relatos podem servir-nos
aqui como um exercício de semelhança e verossimilhança para nos aproximarmos
daquilo que é a vida destas pessoas.
3. 2. “Estar por conta própria”: Trajetórias e modos de vida
Ao focar-me nos momentos e nas razões pelas quais várias pessoas criam
“domínios, ainda que parciais, de partilha humana” (Schiller et al., 2016, p. 30), esta
etnografia procurará, assim, contribuir para pensarmos para lá da lente étnica. Durante
muitas das entrevistas e observações que realizei, a lente étnica dos meus interlocutores
nunca se esbateu. Contudo, julgo que analisar de que forma, porquê e como estes
apanhadores partilham momentos de perigo, sorte, prisão, pobreza, cansaço, morte e
humor, numa arena comum entre a subsistência e o refúgio, pode realçar a importância
metodológica que o estudo das sociabilidades pode ter para se observar espaços de
diversidades. Num primeiro momento, (de)escrever as trajetórias e os modos de vida de
quem observei tornou-se processo indispensável no fazer etnográfico. Por isso, não
poderia deixar de começar por quem fui aprendendo a aprender, até voltar para “casa”:
O sr. Viriato e o sr. Dias da Silva: Técnicos de reparação de barcos, reformados e
pescadores lúdicos
Conheci o sr. Viriato e o sr. Dias da Silva na Praia do Copacabana, na
coletividade dos pescadores lúdicos. Em Novembro, pedi-lhes um café. A partir daí,
acolheram-me sempre que regressava àquelas praias. Por isso, posso dizer que foram os
meus gatekeepers até “ao fim”. Nascido em Beja, mais precisamente em São Vicente de
Valongo - no monte das Freiras, lugar de montes diversos que nunca chegou a ser vila –
o sr. Viriato, oitenta anos, percorreu a CUF, a Lisnave e o mundo enquanto supervisor
de reparações e construções de navios. Durante o percurso, passou pelo Canadá,
53
Holanda, França e África do Sul, país onde mais gostou de trabalhar, particularmente
em Durban, na província de KwaZulu-Natal. Ao longo dos meses, o sr. Viriato mostrou-
me várias quadras que foi escrevendo desde que tinha dezoito anos. A maior parte delas,
são escritas na parte de trás da tabela de marés, por onde também se guia para ir à pesca.
Ainda hoje, convive com vários colegas que conheceu na CUF e na Lisnave. É
sobretudo o sr. Viriato que melhor conhece os apanhadores. E por ter carro, ajudou e
correu vários riscos para ajudar muitos apanhadores no transporte e venda das próprias
amêijoas.
Nascido e criado no Barreiro, o sr. Dias da Silva, setenta e seis anos, chega à
Praia do Copacabana sempre com a sua mota e com o seu cão, o Pirolas. Enquanto
supervisor de reparações e construções de navios, trabalhou na Holanda, França e
Canadá, depois de ter deixado a Lisnave. Atualmente, tanto o sr. Viriato como o sr. Dias
da Silva são pescadores lúdicos e sócios da coletividade de pesca lúdica. Aqui, só os
sócios podem abrir a porta. São eles que nos servem os cafés de cápsulas e que abrem as
portas aos apanhadores e pescadores que lá se reúnem. Por isso, sabem muito sobre os
apanhadores e os seus ritmos de trabalho. Este é o único espaço próximo do lugar da
apanha na Praia do Copacabana, e, por isso, foi desde o início o meu lugar de pretexto
para aparecer regularmente. São muitos aqueles que por lá passam: os apanhadores, que
se encontram antes e depois da apanha para fumar e beber um café, e os pescadores, que
se juntam para conversar sobre futebol, as artes da pesca, as vendas da amêijoa, ou
sobre recordações de trabalho, tendo em conta que muitos trabalharam juntos na CUF e
na Lisnave. Estes pescadores são homens geralmente casados, entre os sessenta e cinco
e os oitenta anos, muitos deles já reformados, que se encontram para conviver e beber
um copo neste lugar repleto de imagens, medalhas e materiais de pesca que vão
ornamentando as paredes. Este lugar é como um espaço de acolhimento para muitos, de
um verde e azul escuros, que nos convida imediatamente a entrar. Quando o tempo o
permite, fazem-se ainda uns churrascos nas mesas de madeira construídas de forma
improvisada perto do bico de água, perto da praia.
- Venha tomar um café, que eu ofereço – dirige-se o sr. Dias da Silva. Durante
esses momentos, sento-me muitas vezes com ele na esperança de ouvir mais uma vez as
54
suas histórias sobre os tempos da CUF, e mais umas histórias sobre os apanhadores.
Foi a partir da confiança que fui ganhando com o sr. Viriato e com o sr. Dias da
Silva – apesar de nunca terem sido apanhadores – que me fui aproximando daqueles que
procurei conhecer, os “coletores de amêijoa”34.
3.3 Os “coletores de amêijoa”
O “Casal Maravilha”: Apanhadores de amêijoa, antigos empregados de mesa e técnicos
de instalação de tetos falsos, desempregados
C. e L., 37 e 35 anos, são o “casal maravilha”, como lhe chamam na apanha.
Oriundos da Margem Sul (Alhos Vedros e Seixal, respetivamente), estão sempre
presentes e quase sempre a trabalhar. São magros mas fortes, corpos de quem consegue
aguentar muitas horas curvado. Com um filho ainda pequeno a viver no Algarve, foram
encontrando trabalhos sazonais como ajudantes de cozinha, na construção de tetos
falsos ou como assistentes familiares, até encontrarem o “trabalho da amêijoa”. E aqui,
ganham sempre o seu sustento, por dia: “depois fica difícil procurares outro tipo de
trabalho, porque já não é igual”. Contudo, se para a C. a ideia de arranjar um emprego
“formal” significa ter mais estabilidade – no caso, por exemplo, de ficar de baixa ou
doente – para o L., o namorado, essa questão é fácil de contornar, porque “se todos os
dias puseres cinco euros de parte, quando um dia tiveres doente tens a jarda lá. Eu vejo
o meu futuro bom, digo-te já. A única coisa é só os descontos. É mesmo assim. De
resto...60 ou 70 euros por dia, não ‘tá bom?”.
Ao contrário dos amigos, o S., 35 anos e oriundo do Barreiro, é não só
apanhador há quatro anos, como também pintor alpinista.
O S: Apanhador de amêijoa, pintor alpinista, antigo trabalhador das obras e empregado
do Mcdonald’s.
Na apanha, começou com o primo, depois de ter ficado sem trabalho na
34 Nome referido pelo Z., um dos apanhadores que conheci e que será aqui referido neste mesmo capítulo.
55
construção. Antes de ter arranjado trabalho como pintor alpinista, trabalhou no
Mcdonald's e na metalurgia, até ter ido trabalhar para a construção civil em França, para
onde quer voltar. O S. ajudou-me várias vezes com a bicicleta, e, apesar de nos termos
conhecido já tarde durante o trabalho de campo, partilhou comigo o seu perfil do
facebook e muitas fotografias que gosta de tirar ao céu, nos vários momentos do dia, e
aos diferentes ciclos das marés. Apesar de agora só “apanhar à mão”, o seu ancinho
tornou-se famoso, quando apareceu a cavar numa das reportagens da TVI durante a
Páscoa, depois da morte de três apanhadores naquela praia por causa do nevoeiro. Com
os trabalhos que vai acumulando e a sua dedicação em especializar-se no trabalho de
cordas em pintura e reparação, pouco tempo lhe sobra para o resto. Por isso, não pensa
muito no futuro, pensa, sim, na viagem de regresso a França.
Para além do S, da C. e do L.., não é possível falar do “grupo” da Praia do
Copacabana sem nos lembrarmos também do “Maluco”.
O “Maluco”: Apanhador de amêijoa
Com 28 anos, é o mais novo dos apanhadores e nasceu no bairro já demolido de
casas autoconstruídas da Praia do Copacabana. Alto, magro e de grandes olhos azuis -
apesar do aparente desgaste – é o mais provocador dos que aparecem nas praias. Um
dia, perguntei-lhe quem vivia no bairro onde nasceu: “pretos, ciganos, nós, tudo ao
molho. Ciganos… [pensa]...cigano sou eu que ando para aqui a vaguear…há cinco dias
que não durmo. Até já adormeci ali ao fundo em cima das ostras e tudo”. O “Maluco”
vive só da amêijoa. Assim como o “Velho”, conhece muito bem o rio e reconhece quem
está a apanhar, ao longe, só pela maneira como alguém pisa a lama.
O “Velho”: Apanhador de amêijoa, amolador e feirante
O “Velho”, 56 anos, é sobretudo amolador e apanhador. Sempre com a sua
bicicleta, com a qual trabalha, tem sentido de humor apurado.
56
Ilustração 8
Bicicleta do “Velho”. Desenho realizado por Tomás Quote da Fonseca
O sr. Viriato e o sr. Dias da Silva. chamam-lhe “o tendeiro”, por ser de etnia
cigana. O “Velho” é sobretudo nómada, que vive das suas vendas na apanha, do seu
trabalho enquanto amolador, e ainda de pequenas reparações e de algumas feiras
ambulantes. Por essa mesma razão, são poucas as vezes que tenho a oportunidade de o
encontrar. Mesmo assim, é muitas vezes o “Velho” que alegra os momentos de
convivialidades e de venda: “Então hoje? A horta estava boa? Não consegui chegar a
tempo de ir também mas vão ver amanhã, como esta maré está, até consigo mais do que
vocês. Amanhã trago para aqui o trator e apanho isso tudo” – diz-nos a sorrir, enquanto
se aproxima com a sua bicicleta de amolador. Juntamente com o “Velho”, a D., a E. e a
L. alegram a Praia do Copacabana.
A L.: Apanhadora de amêijoa, empregada na Autoeuropa
“Das mulheres de cor, tu és a rainha” – escreveu-lhe uma vez o sr. Viriato num
poema. A L., oriunda da Guiné, é uma mulher forte e bonita, de estrutura mais baixa.
Apesar do trabalho cansativo na apanha e do trabalho a tempo inteiro na Autoeuropa,
57
não deixa de ser uma mulher alegre, mas desconfiada. O marido, também guineense,
trabalha na construção civil em Inglaterra e em França e só raramente é que a visita em
Portugal. O ano passado, a L. conseguiu finalmente ficar três meses em Inglaterra com o
marido, para o visitar. Sozinha em Portugal e com filhos, trabalha na apanha aos fins-
de-semana e aos feriados, juntamente com a E. e a D., todas mulheres guineenses.
Geralmente, vêm e regressam juntas a seguir ao trabalho, apesar de não viverem na
mesma zona. Tanto a L. como a E., saem sempre do rio a carregar os garrafões com
amêijoas pela cabeça, para não pesar nos braços. É um grupo animado, apesar de não
surgirem muitas conversas: é um momento de negócio e também de desgaste.
A E: Apanhadora de amêijoa e empregada de limpeza em Lisboa
Alta e elegante, apesar do trabalho na apanha não deixa de mostrar a sua
feminilidade nas roupas que escolhe trazer. Para além da apanha e do trabalho de
limpezas em Lisboa, também tem uma das hortas na “zona de fronteira”, onde cultiva
vários tipos de vegetais. Com um filho mudo e sozinha, com o marido a trabalhar no
estrangeiro, é raro ter a sorte de a encontrar nas praias. Apesar de tudo, são as mulheres
que fazem a festa quando se encontram na Praia do Copacabana: falam e riem alto,
molham-se umas às outras enquanto lavam as roupas e as amêijoas no bico de água.
Um dia, perguntei ao sr. Viriato. por que razão as mulheres guineenses só
apanhavam nesta praia, tendo em conta que todas vivem relativamente longe a pé.
Contou-me que antigamente iam para a praia de Palhais, antes de lhes cortarem a água
do bico onde lavavam as amêijoas por causa de queixas anónimas.
O Z: Apanhador de amêijoa, baterista e antigo técnico de som
Apanhador e músico de 46 anos, o Z. foi o meu primeiro informante. Para além
de ter nascido e crescido no Barreiro com as marés, filho de um pai engenheiro de som e
jornalista, foi técnico de som durante 15 anos. Depois de uma longa carreira
profissional, despediu-se para se dedicar à música:
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“Sabes, há pessoas que ainda não encontraram o que as move. E quem encontrou,
muitas vezes desiste porque, lá está, há sempre uma necessidade de corresponder, e
quando conhecem alguém que sente que a vida é mais do que receber dinheiro e ter uma
carreira...está à vista de todos aquilo que sou e que faço. O trabalho não me dá grande
felicidade, já não tenho essa ilusão. Mas claro, tens que ter ambição. Eu tenho ambição,
mas sou eu que decido...estou numa fase qualquer que já não espero muito do trabalho,
que me dê prazer. Eu quero é tocar. Não tenho muitas pretensões, mas continuo a
sonhar muito acordado e não tenho medo de cair. Ainda acho que podemos imaginar
que tudo é possível. E o melhor é imaginar – sentes que vai tudo correr bem, mesmo
com algumas sombras.” [Diário de campo, 23 de Agosto de 2018].
Neste momento, a grande parte dos seus rendimentos vem da apanha e de alguns
trabalhos de instalações de máquinas vending no Alentejo. Para ele o importante é poder
tocar e ter dinheiro para viver e pagar as contas, seja a trabalhar na apanha, num
restaurante, numa fábrica, ou num táxi. A história do Z. na apanha começou com um
amigo que já era mariscador. Pela ligação que tem ao rio e com a ajuda do amigo “que é
bastante trabalhador, mas não sabe como ser empregado, gerir um trabalho normal”, o
Z. apanha quase todos os dias na maré da tarde. Apesar da estabilidade do emprego que
tinha enquanto técnico de som,“ o Z. acabou por escolher trabalhos mais sazonais que
lhe permitam ter mais tempo para se dedicar à bateria. Como refere:
“Sabes, prefiro viver na dúvida do que ter essa certeza. Viver aqui é incrível, tens este
rio… e quando sais da água não há nada que pague isto, este é o meu sentido de
liberdade, é estar aqui.” [Diário de campo, 23 de Agosto de 2018]
Tal como o Z., são vários os que preferiram a dúvida a ter essa certeza. Também
a C. e o L. vão trabalhando onde conseguem, apesar de há dois anos se dedicarem
exclusivamente à apanha, pela flexibilidade de horários. Como é possível observar
nestes casos concretos, a acumulação ou a mudança de trabalhos é recorrente na vida
59
dos apanhadores que fui conhecendo ao longo deste trabalho de campo. Para alguns,
pela pouca importância que a carreira possa já representar, como no caso do Z., outras
vezes, pela necessidade de conciliar dois ou três trabalhos, como no caso das senhoras
guineenses, ou ainda, pela incapacidade de adaptação de muitas famílias a horários de
trabalho pouco flexíveis e baixa remuneração, como no caso da C. e do L.
Nas palavras de C.:
“Porque vais fazer como? [sobre a inflexibilidade dos horários de trabalhos] Vais-te
cerrar ao meio? Metade da C. vai para o trabalho e metade da C. vai levar o G. à escola.
Não dá. Quando a gente não tem ninguém! E isso é o que nos leva por outros caminhos,
por outras iniciativas. Que é mesmo assim. Se eu entro às 7 da manhã como é que eu
posso levar o meu filho à escola? Às 8h30? É impossível.” [Transcrição de entrevista,
diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].
O caso do Barreiro permite-nos observar as estratégias35 de certas pessoas36 para
se estabelecerem e criarem ritmos e percursos de trabalho comuns “por conta própria”.
É impossível não questionar a forma como os sistemas económicos afetam os termos
em que os indivíduos se relacionam uns com os outros. Apesar de Judith Butler
descrever a precariedade como “the politically induced condition in which certain
populations suffer from failing social and economic networks...becoming differentially
exposed to injury, violence, and death” (Butler 2009, p. 25 em Shaw e Byler), a
precariedade é mais do que a condição dos nossos tempos (Tsing 2015, p. 26). É
também reconhecermos a nossa vulnerabilidade perante o mundo e sabermos que
35 No sentido de Pina Cabral sobre “estratégias de ação” que “correspondem a situações em que um grupo
determinado, ou, pelo menos, uma camada específica da população de uma sociedade, não consegue obter
os meios necessários à atualização das expectativas criadas pelos ideais hegemónicos (Pina Cabral, 2000,
p.885). Para uma análise mais aprofundada sobre o conceito de estratégia ver ainda Pina Cabral e
Lourenço, 1993, p.119. 36 De acordo com a Câmara Municipal do Barreiro, mais de 70 migrantes (entre os quais brasileiros,
angolanos, romenos, búlgaros, guineenses e cabo-verdianos), solicitaram apoio ao CLAI (Centro de
Apoio ao Imigrante, construído em 2005) do Barreiro logo no primeiro mês. Os problemas mais
recorrentes a serem documentados são “a legalização, prorrogação dos vistos, emprego, retorno
voluntário, saúde e obtenção de nacionalidade portuguesa”.
60
dependemos dos outros para sobreviver (Tsing 2015). Compreender a precariedade da
vida é, assim, compreender a necessidade de coabitações e de “sociabilities of
emplacement”, para usar a expressão de Ayse Çaglar e Nina Glick Schiller (2016, p.11).
Neste sentido, julgo que também a apanha da amêijoa no Barreiro nos pode mostrar esta
condição de vida “sem empregos”. Mais, mostra-nos que a nossa capacidade para
partilhar experiências e colaborações em contextos de incertezas torna-se essencial.
As promessas não resolvidas de desenvolvimento e progresso levam-nos à
seguinte questão: como viver num mundo regulado pelo capitalismo e dependente de
uma economia política global com tantas incertezas? Num estado global de
precariedade, não temos escolha a não ser ocuparmo-nos então da esperança (Camus,
2016, p.129). Poderíamos, portanto, concluir que, se a passagem é “um fenómeno social
por excelência” (Pina-Cabral, 2000, p. 872) e se a liminaridade é tudo o que está nas
margens, não poderíamos deixar de descrever os lugares, ou melhor, os entre-lugares
que se caracterizam pelas conversas sobre o medo da morte e do escuro, ou pelas
experiências de informalidade. O estado liminar caracteriza também por isso as praias
fluviais que aqui percorremos, ou o caminho entre elas, “ao mesmo tempo dentro e fora
da estrutura social” (ibid, p.871). Esta ideia dentro e fora de uma vida social presente e
permanentemente recriada37 (Ortner, 1984 apud Pina-Cabral, 2000, p.872) obriga-nos a
trazer estas margens de vida para o centro da nossa discussão. Neste sentido, julgo que a
explicação daquilo que aprendi (e partilhei) no terreno sobre as trajetórias e os modos de
vida de quem fui conhecendo tornou-se essencial para a produção de conhecimento
desta dissertação.
37 Como nos foi possível observar, esta vida social é muitas vezes recriada a partir das sociabilidades, e
que aqui nos propusemos descrever.
61
Capítulo 4: “Colegas sem patrão”. Relação, apanha e quotidiano
4.1. Prelúdio da Praia de Palhais até à Praia de Alburrica
São oito da manhã e a maré grande permite caminhar pelo rio em zonas ainda
pouco exploradas. Na Praia de Palhais, caminhamos pela margem do rio com galochas
de borracha até ao joelho. Deixo a minha bicicleta junto às outras, escondidas por baixo
de um monte de pedra próximo do rio, para saltarmos a pequena cerca de arame farpado
a meio da praia que nos impede de continuarmos caminho. Pela praia, já coberta com
pequenas poças de lodo, encontramos o L., a C., e o “Maluco”. “Hoje também vieste” –
comenta a C., enquanto olha para as minhas botas e o meu pequeno balde. Hoje o dia
vai ser longo. Em Palhais, a roupa dos apanhadores continua a secar, pendurada em
muros de pedra junto à praia. Antes de começarmos a trabalhar, a C. e o L. mostram-nos
as amêijoas que já conseguiram apanhar. “Só esta parte da manhã foram 6 quilos.
Quantas amêijoas é que devem estar aqui? Mais de mil amêijoas, para fazer 6 quilos!
Vocês veem aí o pessoal das ganchorras, quando metem aquilo pró ar, tiram com a mão,
mas não vão buscar aquilo com o dedo. Quando a gente apanha sabemos o que estamos
a apanhar”. “Assim, sim. Também ‘tou com os dedos todos cortados, olha lá.” responde
o S. Observam as mãos uns dos outros. “O balde da Sara é que vai estar cheio” –
comenta o “Maluco”. Riem-se. Não me importo, rio-me também.
Enquanto tento apanhar, escorrego várias vezes e fico com medo. “É seguir em
frente, sem medos. Aqui não há problema” – diz-me o S. Mantenho-me o mais próximo
da margem enquanto o observo a apanhar, tentando fazer o mesmo. Doem-me as costas
passados 15 minutos, mas já nem temos aqui areia para nos sentarmos. À nossa volta,
continuamos a ouvir os trabalhadores da Covelo e Pinto a cortar lenha lá ao longe. A C.
e o L. caminham rápido, enquanto vão apanhando. O S. fica perto de mim, mas não sei
por quanto tempo – a maré hoje é grande e tem que se fazer bom dinheiro, este é “o pão
do dia-a-dia”. Quando o tempo e a lua assim o permitem, é preciso aproveitar as duas
marés, mesmo que de noite seja mais perigoso por causa do nevoeiro e do frio.
Hoje é dia de lua cheia e o bom tempo permite ficar-se “do outro lado”38 a
38Ficar “do outro lado” significa ficar no Seixal.
62
acampar, para começar a nova maré logo de madrugada. O “Lelo”, que é o único que
tem barco, leva as tendas para montarmos depois da apanha.
Nove da manhã: passado uma hora, as minhas dores de costas já se fazem sentir
bastante. “Não apanhaste nem um quilo, mas para a próxima apanhas mais. Os
primeiros dias são sempre fracos, né? Comecei aqui...apanhei dois quilos e meio!” - diz-
me o S. Apesar de saber que estou ali apenas em trabalho de campo, não deixa de querer
confortar-me.
Procuro apanhar as amêijoas pelos “olhinhos”, pela forma que fazem na areia.
Mas depois de um quilo apanhado, despeço-me dos apanhadores e parto de bicicleta
para a praia da Barra-a-Barra, onde estará o comprador, o “Sírio”, um homem negro
oriundo do Brasil. Na praia da Barra-a-Barra, o frio é quase sempre imenso. Mas na
maior parte dos dias, os apanhadores trabalham apenas com as mãos, apesar de se
avistarem algumas ganchorras cravadas na areia. Aqui, são sobretudo homens de mais
idade, alguns já bem ao longe, curvados. No meio do areal, uma casa de pescadores
completa a paisagem. Sento-me aqui várias vezes, enquanto observo os apanhadores.
Trocam geralmente algumas palavras e umas piadas, apesar de quase sempre
trabalharem sozinhos.
Aqui, carregada com um saco de plástico com as poucas amêijoas que apanhei,
encontro-me com o sr. Viriato, que observa outros apanhadores com os seus binóculos
profissionais.
- Então? Ainda bem que veio, já não a via há algum tempo – comenta.
Conversamos sobre os tempos da CUF, a apanha, e sobre a sua família, enquanto
observamos os apanhadores que saem do rio, à medida que a maré vai enchendo. Ao
fundo, reconhecemos as mulheres guineenses, a E. e a L. O sr. Viriato conhece-as bem,
já as ajudou muitas vezes.
- São simpáticas, qualquer uma das pretas. Eu comecei a ver que elas não tinham
muitas condições. Eu vim tantas vezes trazer a E. aqui. Ela mora ali naqueles prédios
(aponta). Veja, depois de um dia de trabalho, pense no que é vir a pé para aqui.
Para além delas, também os apanhadores que se vão juntando em grupos são
63
sobretudo guineenses. À medida que vão terminando o trabalho, carregam as amêijoas
em carrinhos de bebé e em carrinhos de compras pelo caminho de terra batida que vai
dar ao lugar da venda. Só quem conhece o comprador é que se sente à vontade para
entrar ali no “bairro” perto do rio, composto por várias casas autoconstruídas que
servem como pequenos armazéns e oficinas.
- Gostavas de ver uma venda, não era? Esta é a melhor altura, comigo aqui.
Conheço bem o Sírio – interpela-me o sr. Viriato.
Não obstante a experiência do sr. Viriato, o lugar não deixa de transmitir um
ambiente hostil, cheio de pequenos armazéns e oficinas de construção precária. Na
venda, são já muitos os apanhadores que esperam a sua vez para pesar as amêijoas numa
balança de gancho portátil, que quase todos os compradores usam. Aqui, trocam-se
sobretudo experiências passadas na apanha.
- As batatas são pesadas hoje – graceja o K. ao “Sírio”. Cada um põe à vez as
amêijoas no crivo. 10 quilos, 12 quilos, 15 quilos. Depois do negócio, juntam-se todos
em carros e vão-se embora. Negócio feito, amanhã é outro dia.
Enquanto conversamos, chegam as mulheres guineenses, a L. e a E. Ao
contrário do grupo que vai de barco com o “Lelo”, estas mulheres não vão ficar “do
outro lado”: há vários anos que criam os filhos sozinhas e amanhã é dia de trabalho em
Lisboa.
- Foi bom hoje para vocês! – comento, animada.
Riem-se. Apanharam 7 quilos cada uma, e por isso ganham 28 euros cada.
Apesar disso, não deixam de vir à mesma hoje para a maré do fim de tarde. Lava-se as
amêijoas e as redes, antes de as transportarem novamente no saco.
Duas da tarde. Chega o S., a C. e o L., vindos da Praia de Palhais. Vão enchendo
com amêijoas os baldes da Robbialac que o S. costuma usar nos seus trabalhos como
pintor alpinista. A amêijoa pequena que não venderam vai ficar para o jantar, ou guarda-
se para o dia seguinte, para o caso de outro comprador a querer.
Depois disso, é tempo de regressar a casa antes da maré das 18:00: uns vão de
64
bicicleta, como o S., alguns a pé, como o L. e a C. e as senhoras, a L. e a E – vivem
todos em bairros diferentes, mas por vezes fazem juntos parte do caminho, por entre as
entradas e os percursos que servem de corta-mato apenas a quem conhece os lugares.
Quatro e meia da tarde. Já voltamos atrasados, deveríamos ter começado a
trabalhar por volta das 16h00, duas horas antes da baixa-mar. Trazemos casacos e
alguma comida e pomos tudo no barco do “Lelo”, junto às tendas. Esta noite não
regressamos.
Fim do prelúdio
O que este relato nos mostra é que uma parte significativa das estratégias de
sobrevivência baseia-se na criação de redes sociais informais, que permitem aos
apanhadores estabelecerem-se e acederem a oportunidades de rendimentos. Estas
dinâmicas ocorrem em situações onde as estratégias de organização comum de um
quotidiano limitado pela falta de oportunidades de emprego, se revelam, por isso,
indispensáveis. As palavras do Nuno Andrade sugerem tal:
“As alturas mais reais são antes e depois da apanha. A maior parte são precários e
pessoas com muitas dificuldades, mas ajudam-se uns aos outros. As pessoas são mais
genuínas e por pouco que tenham há sempre uma partilha e isso é uma coisa... pá,
fantástica. Como é que eles são capazes de sei lá… numa maré má são capazes de fazer
se calhar cinco euros por dia e esses cinco euros são para comprar uma onça de tabaco e
vão ao Lidl e compram uma caixa de pernas de frango e dividem uns com os outros,
porque o outro não apanhou, porque se aleijou numa mão, ou por qualquer motivo, e
fazem jantaradas com os amigos como nós fazemos”. [Transcrição de entrevista, diário
de campo, Lisboa, Junho de 2017]
Este fortalecimento dos laços sociais “from commodities to gifts” referidos por
Pnina Werbner para descrever a partilha dos recursos e de rendimentos em forma de
65
comida, bebidas e alojamento (Werbner em Rogers, 1995, p. 213), são também
percetíveis entre os apanhadores nas boleias e transporte das amêijoas, na partilha de
informação sobre as técnicas e os percursos do negócio ou na solidariedade face à
precariedade, ao medo e a situações de pobreza e prisão, retratam a importância destes
encontros.
Contudo, se os laços sociais construídos por trabalhadores migrantes, e descritos
por Werbner, afirmam uma expansão de redes de amizade e entreajuda inicialmente
construídas em contextos de trocas comerciais que se vão desenvolvendo
posteriormente à luz de uma economia de oferta (Werbner, 1995), o que podemos
observar a partir das convivialidades emergentes em torno da apanha da amêijoa é o
caráter mais espontâneo destas relações39, que servem para manter e estabelecer um
estilo de vida dentro de hábitos de consumo, mas também de subsistência. Apesar desta
incorporação a este sistema que ao mesmo tempo os empurra para situações de
marginalidade estrutural, o que estas sociabilidades revelam é que, apesar do cariz
utilitário das dinâmicas comerciais aqui descritas, as trocas não comerciais aqui
observadas também se revelam como elemento agregador de interesses comuns e de
experiências partilhadas, num contexto de interdependência económica/comercial.
Como poderemos ver, os encontros aqui observados mostram-nos de que forma estas
interações podem caracterizar um sistema de troca mais complexo – onde as
expectativas sociais são negociadas – e não apenas para aquilo que são trocas isoladas
entre indivíduos.
4.2. Trocas, redes informais e sociabilidades
O prelúdio descrito no ponto 4.1 ilustra uma das muitas interações que tive a
oportunidade de experienciar durante o trabalho de campo. Julgo que muitas das
conversas que observei entre os apanhadores retratam bem uma partilha que vai para
além da sua situação comum de precariedade. Também as práticas e os percursos
39 Ao contrário da ideia desenvolvida por Pnina Werbner quando afirma o caráter duradouro das relações
de dádiva: “gifts thus reflect the long-term and durable nature of social bonds” (Werbner em Vertovec
etal., 1995, p.213).
66
comuns facilitam formas de comunicação que atravessam diferenças culturais, religiosas
e linguísticas (Wessendorf, 2014, p.64). Neste sentido, argumento que as
convivialidades observadas não são limitativas às interações utilitárias. Mais do que
isso, procura-se aqui observar os encontros improváveis e compreender a capacidade de
pessoas diferentes viverem juntas - ideia partilhada por Richard Sennett a partir da sua
noção de “civility” (Sennett, 2005, p.1 em Wessendorf, 2014, p. 64). Esta capacidade
torna-se também, por isso, importante num contexto onde as boas relações sociais são
desejadas. Diz-me a C. num dos momentos da entrevista sobre a partilha de técnicas e
percursos:
“Para tu teres uma noção, vamos imaginar, tudo pode acontecer...porque as pessoas por
vezes [em relação ao não conhecer as técnicas de apanha] … tu dizes-me assim “ olha,
posso ir apanhar amêijoa, ajudas-me? Tipo com os olhinhos40 e tal para eu orientar
algum dinheiro?” E eu digo-te assim “pá, claro, óbvio”, ‘né?” [Transcrição de
entrevista, Diário de campo, Barreiro, 19 de Julho de 2018]
De facto, esta forma de comunicação – ou, para usar as palavras de Buonfino e
Mulgan, “learned grammar of sociability” (Buonfino et al. 2009 em Wessendorf, 2014,
p. 63) – centra-se muitas vezes nas conversas em torno das vendas, dos perigos na
apanha, ou das técnicas e materiais a usar. Como foi possível anotar no meu diário de
campo, num dos momentos de boa disposição entre a E. e o L:
“Essas botas de borracha são muito más para os olheiros, o melhor são os ténis”.
Responde o L.: “Ou então aquelas botas de surf ou as botas do talho brancas.”. O
“Velho”, que entretanto chega, responde rapidamente: “Pá, calça mas é as barbatanas
que daí não escorregas na lama!” [Diário de campo, Barreiro, 10 de Dezembro de
2017].
40 Ver explicação no Glossário desta mesma dissertação.
67
Na maior parte dos casos, as redes funcionam como a maneira mais sólida para
gerir o negócio, controlar as vendas e comunicar problemas. Por exemplo, saber de
antemão quem está a comprar no dia e em que praia, é um fator decisivo no sucesso do
negócio (e na sobrevivência). A capacidade de adaptação à imprevisibilidade dos ritmos
e gestão de um negócio “por conta própria”, ilustra bem o estudo etnográfico de Anna
Tsing a partir de interações entre humanos e não humanos mediadas pelas dinâmicas de
comercialização e pelo capitalismo:
Precarity is the condition of being vulnerable to others. Unpredictable
encounters transform us; we are not in control, even of ourselves. Unable to rely on a
stable structure of community, we are thrown into shifting assemblages, which remake
us as well as our others. We can’t rely on the status quo; everything is in flux, including
our ability to survive[…] (Tsing, 2015, p.20).
Esta condição de precariedade que Tsing descreve, é referida pelos meus
interlocutores em situações inesperadas de negócio, e que implicam, por vezes, a
mudança de praia para a apanha. Geralmente, estas mudanças são influenciadas por
questões como as condições climatéricas ou mudança repentina do lugar de compra e
venda. Por isso, o manuseamento das técnicas e práticas de trabalho, ou o conhecimento
dos percursos são indispensáveis para garantir a manutenção do negócio. Também por
isso, estar na posse de ferramentas necessárias à apanha em determinadas praias – onde
as condições do solo obrigam ao uso de materiais que muitos não podem comprar por
razões económicas, como as ganchorras ou os barcos – faz com que alguns apanhadores
partilhem o que têm, como foi possível mostrar no caso das boleias no barco do “Lelo”.
Mais uma vez, estas práticas evidenciaram as dinâmicas de interligação entre estes
apanhadores face a condições de instabilidade que, apesar de comuns, são algumas
vezes experienciadas de diferentes maneiras pelos meus interlocutores, consoante os
horários de cada um, as condições económicas do momento ou certos rituais
68
quotidianos que os distingue41. Mas apesar de por vezes ser evidente a formação (e
separação) de pequenos grupos, foram várias as oportunidades de participar em vários
momentos de entreajuda e de sociabilidades:
“Grandes calhaus – comenta o Lelo divertido relativamente às amêijoas que a
L. apanhou, ao mesmo tempo que grita para um dos apanhadores guineenses: - Epá, já
estão lavadas. Já tás a tirar o brilho todo ao material! - Epá, sim, mas tenho que lavar
bem as azeitonas – responde. Riem-se os dois.
Enquanto se prepara a venda, o sr. Viriato vai dando algumas informações aos
apanhadores sobre os lugares de venda e os compradores:
- Acho que o Sírio hoje anda a comprar no Lavradio. Hoje não faz sentido irem
a Palhais. Houve um imprevisto e o comprador ficou sem dinheiro e não está a comprar
mais – informa o sr. Viriato aos apanhadores.”
[Diário de campo, Barreiro, Janeiro e Fevereiro de 2018].
Como aconteceu nesse dia, é comum os compradores “residentes” não
aparecerem, o que força os apanhadores a deslocarem-se da praia onde estão até à praia
onde se encontra o comprador. Neste contexto, uma das solidariedades mais recorrentes
é a ajuda nas boleias entre pessoas. O sr. Viriato é um desses exemplos. Várias vezes,
para não irem carregadas até a outra praia, chega a dar boleia à L. e à E, que não têm
carro, e até mesmo a vender as amêijoas por elas, dando-lhes depois o dinheiro:
“Quando elas têm que ir trabalhar depois da apanha, escrevem o nome de cada
uma nas redes das amêijoas e eu vou lá vender as amêijoas. Uma delas até me queria
dar dinheiro, mas eu não aceitei.”
[Diário de campo, Barreiro, 30 de Junho de 2018].
41 Por exemplo, é possível observar uma separação clara entre os apanhadores que fumam e os que não
fumam, ou reprovam o ato.
69
Para além desses momentos de amizade entre o sr. Viriato e as senhoras
guineenses, também são vários os apanhadores que vão de boleia de barco com o “Lelo”
até aos lugares por onde só assim se consegue passar. Em momentos de convivialidades
como estes, observamos quase sempre pontos de união: é a fogueira, onde alguns se
juntam no inverno para assar comida e beber; as mesas de madeira próximas do bico de
água, onde se preparam churrascos; os bicos de água, onde se lavam as amêijoas; as
árvores, onde se penduram as roupas a secar; e o café da coletividade dos pescadores,
onde se juntam sempre os apanhadores de manhã antes da apanha. Geralmente, os
momentos de convivialidade acontecem entre as marés, antes da baixa-mar e depois da
preia-mar (maré cheia). Antes da baixa-mar, os apanhadores juntam-se para se vestirem,
calçarem, fumarem e prepararem o material para a próxima maré. Os momentos da
venda caracterizam-se, sobretudo, pela partilha de algumas piadas e medos, ou para
perceber aquilo que os outros apanharam: ao contrário das lutas imediatas, de Susana
Narotzky, aqui não há competição: “Ninguém come com o dinheiro das amêijoas dos
outros”, diz-me o Z., em conversa.
Uma das observações mais interessantes na construção de convivialidades
prende-se com as dinâmicas de partilha de práticas e técnicas entre estes apanhadores, e
a forma como estas facilitam a comunicação e a construção de coabitações para lá das
diferenças culturais, de forma a resolverem situações inesperadas e manter relações. De
facto, as conversas em torno do seu quotidiano de trabalho nunca deixam de ser uma
presença constante nos elementos de partilha. Numa arena comum de diversidade, como
a que se propõe analisar, as interações entre apanhadores com religiões, situações
económicas e etnicidades diferentes, não são, por isso, incomuns. Para além de algumas
interações espontâneas, existem ainda formações de grupos que se vão construindo pela
partilha de interesses, laços de parentesco ou ritmos de vida comuns. Apesar dessas
interações, é interessante ver que a distinção étnica, por parte dos meus interlocutores,
continuou, em vários momentos, visível (como os meus interlocutores referiam várias
vezes: “as pretas; os blacks, os ciganos, o tendeiro”). Neste sentido, observa-se que as
diferenças e a diversidade tornaram-se aqui, não inexistentes, mas de certa maneira
“banais” (Wessendorf, 2014).
70
4.3 “As empresas somos nós”: Técnicas e práticas de trabalho
Como me foi possível acompanhar ao longo dos percursos, uma das maiores
diferenças entre as praias são as condições de acesso e a necessidade de adaptação a
diferentes técnicas42. Por isso, um dos fatores que distingue os vários grupos prende-se
com as técnicas e as práticas de trabalho43. Esta diversidade de práticas facilita a
interação e a partilha de ferramentas, roupas, e constituem-se como tema central nos
convívios antes e depois da apanha. Por causa dos riscos de vida neste trabalho, muitos
destes apanhadores acabam por aprimorar uma ou duas técnicas apenas em praias que
lhes são familiares, não correndo riscos de sofrerem acidentes. Contudo, as redes de
negócio até Espanha, as dificuldades climatéricas e a (in)disponibilidade dos
compradores em determinadas praias, acabam por forçar, de certa maneira, os
apanhadores a adaptar-se, o que exige recursos económicos e sistemas de entreajuda.
Como podemos notar, o caráter precário destes quotidianos molda os ritmos e as
próprias técnicas de trabalho destes apanhadores44.
A frequência com que estes apanhadores trabalham varia muito, mas os
apanhadores que conheci de perto trabalham quase todos os dias, ou, caso acumulem
outros trabalhos, alguns dias por semana45. Por isso, as práticas e as técnicas tornam-se
também rotinas diárias e permanentes que podem levar a encontros mais ou menos
habituais com as mesmas pessoas – no café da coletividade, na Praia do Copacabana, ou
42 Para além das ferramentas que se podem usar neste trabalho, a apanha da amêijoa passa também por
um “trabalho de agricultura” - como alguns dos meus interlocutores me descrevem. Um caso disso é o S.,
que vai semeando as amêijoas na “Caldeira do Alemãoº”, onde chegou a apanhar 16 quilos num só
viveiro. Para protegerem a sua “plantação”, os apanhadores escolhem sítios pouco prováveis para os
outros apanhadores. Estas “manhosices” - como refere o Z. a brincar - são realizadas simultaneamente
com outras práticas e convivialidades que vão marcando o seu dia-a-dia destes apanhadores. Estas
“manhosices” - como refere o Z. a brincar - são realizadas simultaneamente com outras práticas e
convivialidades que vão marcando o dia-a-dia. 43 Note-se como exemplo o grupo de homens guineenses, que se distinguem pela forma como carregam
os garrafões de água durante a apanha da amêijoa. 44 Observar, por exemplo, o relato das experiências do Z. - que dificilmente consegue planear a semana de
trabalho; ou as experiências dos apanhadores que ficam doentes e sem o “pão do dia-a-dia”, passando
pelo risco de multa por parte da Polícia Marítima. 45 Este tipo de trabalho não tem horas certas para começar. Tudo depende das marés, do risco e se há
compradores ou não naquele dia. O preço da amêijoa varia consoante a oferta e a procura. Em épocas
festivas como no Natal ou na Páscoa, atinge os 6 euros/ quilo.
71
no Bar dos Pescadores, na Praia do Bico do Mexilhoeiro. Como pude constatar, estas
situações de encontros quotidianos, facilitam, de facto, o contacto entre indivíduos com
histórias de vida distintas, contribuindo igualmente para a produção de lugares de
pertenças. As palavras do fotógrafo e arquiteto Nuno Andrade sobre uma casa
autoconstruída de um apanhador, de quem se tornou grande amigo, o Guerra, recordam
que estes momentos de mutualidade – ou “getting alone”, nas palavras de Susanne
Wessendorf (Wessendorf, 2014, p.77) – encontram-se, também, nos lugares onde se
constrói a própria ideia de “casa”:
“Isto aqui é o presépio do Guerra que vive aqui ...os outros vão apanhando
coisas também na areia que vão dando à costa; alguém lhe traz umas máscaras que
apanharam não sei onde; capacetes das obras e duendes...e ele montou o presépio dele.
Isso foi no Natal. Mas era o presépio dele. E o presépio ia mudando, foi sendo
acrescentado. Isto é, por exemplo [mostra outra fotografia], é a mesa, do Guerra... esta
mesa fica mesmo ao pé da barraca, e foi um amigo dele, que tem um pomar não sei
onde, e então lhe ofereceu estas laranjas [...] as pessoas passam, como sabem que ele é
um dos mais necessitados, deixam-lhe um copo de leite... vão lhe deixando coisas. É
giro… há aí um tipo que também lhe deixou alguns tomates…. Então...eu chegava e
descobria sempre coisas diferentes sobre a mesa. A mesa por si só podia ter dado um
projeto.”
[Transcrição de entrevista, diário de campo, Lisboa, Junho de 2017].
“Amanhã é o dia de amanhã”, é talvez uma das frases que os apanhadores mais
utilizam para descrever o seu próprio ritmo de trabalho e a dinâmica de rendimentos na
apanha, onde se recebe diariamente em dinheiro, no momento da venda. Esta
possibilidade permite alguma autonomia para muitos deles, e, por isso, depois de me
relatarem as várias experiências em trabalhos sazonais e de algum tempo à procura de
emprego, são alguns os que desistem e que se dedicam inteiramente à apanha da
amêijoa:
72
“A gente desistiu e começamos a ir para a maré, e fica difícil depois como eu te
disse ainda há bocado, voltar um bocado atrás, ‘né? Que é não receberes o teu dia-a-dia
para começares um trabalho. É difícil….em 30 dias…tu comes todos os dias, tomas um
cafezinho todos os dias...fica difícil. Eu sou-te sincera, a gente não anda agora à procura
de trabalho porque a gente gosta de apanhar amêijoa. E olha amanhã é o dia de
amanhã”.
[Transcrição de entrevista, L. e C., diário de campo, Barreiro, 18 de julho de
2018].
A instabilidade leva estes apanhadores, por isso, a procurar oportunidades de
rendimento que possibilitem viver apenas do negócio da amêijoa, fator importante para
quem tem mantido “a sua própria empresa”. Neste sentido, as preocupações debruçam-
se particularmente com a luta em viver o dia-a-dia, dando mesmo, em alguns dos casos,
pouca importância a instituições como a Segurança Social:
“Para chegar um dia e a gente se calhar nem ter reforma...é mesmo assim. A
gente sabe lá. Se eu vivesse para sempre se calhar até pensava dessa forma, sou-te
sincera. Teria outro tipo de preocupações. Epá, mas um dia não vou estar cá, portanto…
eu vivo o meu dia a dia, temos que viver o nosso dia-a-dia”. [Transcrição de entrevista,
L. e C., diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].
Este “viver o dia-a-dia” marca um quotidiano que passa também por certos
confrontos legais relacionados com a apanha e comercialização de bivalves: neste
contexto, a informalidade e a ilegalidade constituem-se como processos de um mesmo
negócio com uma grande diversidade de atores envolvidos – dos apanhadores locais,
aos vários intermediários, até aos grupos que gerem as redes de negócio até chegarem a
Espanha e França46. Pelas grandes probabilidades dos materiais serem confiscados e
46 Se por um lado, a contaminação, poluição e a (ainda) incapacidade institucional para criar um sistema
de depuração e tratamento dos bivalves impossibilita a sua comercialização, por outro, não se revela
muito difícil a pequenos negócios em torno da apanha manobrar a lei com pequenos sistemas de
73
pelas próprias limitações económicas de muitos apanhadores, muitos utilizam apenas a
mão ou ancinhos. Estas técnicas requerem pouco material, mas a necessidade de
apanhar em maiores quantidades leva ao uso de técnicas de arrasto, como as que são
utilizadas nos barcos ou com ganchorras47. Muitos, pela necessidade, improvisam ainda
(com materiais baratos) vários apoios que os ajudem a trabalhar com menos esforço e a
passar melhor o tempo dentro do rio, como indica esta prancha de esferovite cortada,
presa com um cordel à cintura, que transporta a rede que os apanhadores utilizam para
irem armazenando as amêijoas que vão apanhando. Mais uma vez, as convivialidades
assumem-se como momentos-chave para se conversar sobre os perigos do negócio e
para se trocar informações sobre o trabalho.
Ilustração 9
Apanha da amêijoa na Praia do Barra-a-Barra. Fotografia tirada em Setembro de 2018
depuração caseiros de pequenos compradores que negociam diretamente com os apanhadores. De facto, à
exceção do sr. Dias da Silva, a maior regulamentação para a comercialização da apanha e comércio é
vista pelos apanhadores como uma proposta que poderá trazer qualidade de vida, dependendo das
condições de segurança e de possibilidade de rendimento. 47 Ver capítulo do Glossário nesta mesma dissertação.
74
A respeito da importância do estudo das convivialiades, ou, nas palavras de Paul
Gilroy, sobre a multicultura48 (2004), vários autores têm questionado as limitações de
uma observação direcionada para o estudo a partir das diferenças entre comunidades
étnicas (Baumann. 1996, Vertovec, 1996, Brettell, 2003, Glick Schiller et al., 2006).
Como tivemos a oportunidade de desenvolver, estudos como o de Nina Glick Schiller e
Aysa Çaglar (2009, 2016) têm contribuído para um debate que quer mostrar como,
através da antropologia, podemos contestar ideias essencialistas como raça, etnicidade e
cultura49. Como escrevo no meu diário de campo:
“Pareces uma gaja” – diziam a um apanhador guineense que vestia uns collants
pretos antes de entrar no rio para a apanha. Ao mesmo tempo e no mesmo lugar, um
apanhador autóctone, que cresceu nesta praia do Copacabana num antigo bairro
autoconstruído, pergunta a outro apanhador, de origem romena: “Estas batatas [as
amêijoas] são para fritar ou para cozer?”. Riem-se os dois. Quando chamam batata a
uma amêijoa é bom sinal, quer dizer que a amêijoa é boa para vender.” [Diário de
campo, Lisboa, Fevereiro de 2018]
Como vimos, as práticas50 utilizadas por estes apanhadores mostram a multiplicidade de
maneiras possíveis de partilhar um quotidiano de trabalho marcado pela instabilidade e
dependência de certas redes sociais. Estas formas de encontro relembram o que são as
possibilidades de coabitações, apesar dos crescentes populismos. Além disso, observar
as técnicas partilhadas faz sentido neste contexto para enquadrar um ritmo e modos de
vida praticados em múltiplos lugares de diversidade e partilhado entre residentes, que se
48 Forma de interações espontâneas e modos de negociar diferenças étnicas e culturais que continuam a
acontecer quotidianamente no espaço urbano (Gilroy, 2004). 49 Ou para questionarmos categorias como identidade e diversidade. 50 Nesta praia, o tempo passa de uma outra maneira. Com uma vida que poderia ser para muitos apenas
impermanente, estes apanhadores regem-se por uma tabela de marés pouco previsível. É a partir dela que
organizam a sua vida e consultam os horários e a altura das marés e as várias fases da lua, que informam
se a maré irá, ou não, ser boa para a apanha. Por isso, esta tabela anda sempre com eles.
75
estendem para além do bairro. Neste sentido, propõem-se mais estudos que criem novas
categorias para compreender as negociações da diferença nas práticas quotidianas.
4. 4. Epílogo na Terra do Nunca
Encontrei os apanhadores pela primeira vez na Praia do Copacabana, depois do
meu encontro com o Z. Sentados no banco de madeira escondido nas árvores que
ocupam a praia, foi a partir desse dia que, enquanto caminhávamos, me deram a
conhecer as suas técnicas de apanha e práticas. Enquanto percorríamos a praia, a C. E o
L. mostravam-me “os olhos” das amêijoas enquanto as retiravam do rio. Nesse
momento, só pensava que, mesmo tendo passado por ali tantas vezes à procura de mais
informações, dificilmente poderia imaginar a quantidade de amêijoas que se escondiam
nesta textura de rio se eles não me tivessem mostrado. Este método de encontro e de
apanhar com as mãos requer prática e paciência. Sobretudo pede que se conheça bem os
lugares. Subsistir num contexto de perigo e de precariedade requer, por isso, uma boa
dose de imaginação, e uma forte combinação de conhecimento e sensibilidade. A
comercialização desta amêijoa foi a estratégia de obtenção de rendimento que permitiu a
muitos destes apanhadores alguma estabilidade a curto prazo, apesar dos perigos.
Estes capítulos etnográficos procuraram elucidar o argumento teórico em torno
da importância das sociabilidades como unidade de análise, onde o recurso à
informalidade e à entreajuda ganham uma importância central nas estratégias de
incorporação social e económica (Schiller et al. 2016) ou ainda na decisão voluntária de
certos modos de vida (Scott 2009). Já o conceito de liminaridade, desenvolvido por
Victor Turner ajuda-nos aqui talvez a repensar a marginalidade e a informalidade não
como condições sociais estanques, mas enquanto processos51: a marginalidade torna-se
aqui, assim, também o centro - para relembrar Pina-Cabral (2000) e um dos argumentos
desta dissertação.
Na apanha da amêijoa os encontros tornam-se “happenings”, ou, nas palavras de
51 É importante relembrar que se por um lado, pensar em informalidade pode caracterizar algum tipo de
limitação analítica, por outro, pode ser uma ferramenta útil para estudarmos processos de marginalização
(Mapril, 2010).
76
Anna Tsing, “contaminações” (Tsing, 2014, p.31). O estudo das convivialidades evoca
também, por isso, a importância destes encontros que não se limitam a nacionalidades,
educação, género ou idade. Aqui, todos são apanhadores. E todos relatam alguma
história de contaminação - e de que forma esta influencia os seus projetos de vida e lhes
aponta novas direções, e que nos recordam esta intersubjetividade que é o mundo
partilhado e que a antropologia não esquece. Este viver com os outros numa arena
comum marcada pela precariedade relembra-nos a nossa capacidade de mudança
perante novas situações e de encontrar pontos de contacto que nos permite sobreviver,
mesmo com medo.
77
CONCLUSÃO COM FINAL ABERTO
- Então, a que horas disse que tinha que apanhar o barco? - pergunta-me a D.
Maria da Conceição.
A despedida é sempre um processo com fim aberto. Sei que, no entanto, os meus
percursos de bicicleta pelo Barreiro estão longe do fim, apesar do distanciamento que a
dada altura precisei de manter para começar a escrita desta dissertação52. O regresso fará
parte desta viagem e sei que também começarão outras.
Os acessos ao terreno foram os momentos mais difíceis do trabalho de campo.
Ganhar confiança destes apanhadores em tão pouco tempo foi outro longo caminho. Sei
agora que ter estado sozinha facilitou, em muito, o acesso e a inter-relação entre nós.
Pelo seu caráter exploratório, experienciei algumas vezes momentos de tensão e
desconfiança, que também resultaram em informações úteis sobre o terreno. Durante
meses, descobri sempre alguma coisa, ou alguém, simplesmente por estar lá – mesmo
quando, por vezes, julgava nada acontecer. O como chegar às pessoas foi, assim, a
principal questão metodológica deste trabalho de campo. A seguir, seguiu-se o aprender
a ir compreendendo o que estava a ser dito, e o que não era dito em palavras. As
etnografias mais exploratórias podem levar a alguns atrasos e limitações, pela
dificuldade de acesso ao campo ou pela sua imprevisibilidade, mas também podem
trazer várias surpresas que nós, estudantes e investigadores de ciências sociais, podemos
anotar.
Antes do meu trabalho de campo no Barreiro, fiz parte de uma associação sem
fins-lucrativos sediada num bairro social, em Lisboa. Durante três meses,
desenvolvemos diversas atividades financiadas pelo Programa BIP/ZIP e, durante esse
tempo, tive a possibilidade de realizar um exercício etnográfico com observação
52 Ao longo da escrita, regressei ao campo cinco vezes unicamente para regressar - para me encontrar com
alguns apanhadores mais próximos e para tirar algumas fotografias.
78
participante. Uma das minhas últimas notas de campo para esse trabalho pode servir
aqui como um exercício de reflexão sobre como escolhi também chegar às praias
fluviais do Barreiro e a sua influência nos resultados finais:
”Não posso deixar de pensar sobre o que teria sido diferente se tivesse começado este
trabalho de campo sozinha, se tivesse tomado a iniciativa de observar antes as próprias
práticas do quotidiano e as atividades dos próprios moradores do bairro, sem a
mediação de uma associação em contexto de uma iniciativa BIP/ZIP. Conhecê-los de
outra maneira. Seria também interessante. Esse momento aconteceu, foi quando visitei
as hortas informais do bairro, construídas pelo sr. Pedro.” [Diário de campo, Lisboa, 10
de Maio de 2017]
De facto, não tenho dúvida de que o meu percurso sozinha por estas praias,
enquanto mulher, facilitou a minha aproximação a estes apanhadores e tornou mais
rápido o processo de confiança que me permitiu observar as vendas e a apanha em
muitos momentos. Porque, ao contrário da minha experiência nesta associação - onde as
atividades eram planeadas antecipadamente com os moradores do bairro - julgo que o
caráter exploratório deste trabalho de campo facilitou uma observação mais atenta dos
modos e percursos de vida de quem me propus estudar.
Se, por um lado, a etnografia permite-nos participar e observar um mundo que
não é o nosso, da perspetiva do outro (Emerson e Shaw, 2011), por outro, o processo
etnográfico não é apenas a observação participante face (por vezes) a um novo mundo: é
também observarmos a nossa capacidade em produzir conhecimento em situações
imprevisíveis. Os percursos que realizei em bicicleta, a utilização constante do meu
telemóvel antigo sem câmaras ou gravadores, as roupas informais, a pequena máquina
fotográfica antiga e as entrevistas semi-direcionadas (conseguidas apenas na última fase
de trabalho de campo, depois de vários meses de relação com os apanhadores), forma,
sem dúvida, fatores determinantes para a produção de conhecimento e recolha de dados.
Ao longo desta dissertação, procurei argumentar que os meus interlocutores, na
sua maioria apanhadores de amêijoa, organizam-se de forma a conseguirem gerir as
79
oportunidades de rendimento que lhes permitam manter um determinado estilo de vida,
que não só lhes possibilite alcançar maior estabilidade, como também ter alguma
flexibilidade de horários e liberdade, por vezes descrita por muitos interlocutores
relativamente “ao trabalho da amêijoa”, como a liberdade sentida por se ser o próprio
patrão53. Num contexto económico e social, onde a especialização técnica e a
escolaridade são muitas vezes de difícil acesso, a inserção no mercado de trabalho
global em Portugal faz-se, muitas vezes e por isso, entre a formalidade e a
informalidade com grande precariedade, sobretudo para quem se encontra em posição
de marginalidade estrutural – como as situações aqui observadas de indocumentação54 e
de baixa escolaridade, ou falta de competências técnicas comprovadas55. Estas
dificuldades, aliadas a uma vontade de alcançar ou manter um determinado percurso de
vida, faz com que estes apanhadores encontrem projetos migratórios que lhes
possibilitem encontrar a diversidade de trabalhos necessários para responder às suas
necessidades. Simultaneamente, a produção destes lugares de pertença e de negócio –
que aqui podemos traçar a partir dos percursos entre as praias que fui mapeando –
tornam mais reais esta dinâmica: muito utilizadas pelos apanhadores para estabelecerem
as suas redes de sociabilidades e negócios, as relações observadas nestas praias estão,
quase sempre, relacionados com a apanha da amêijoa, mas nem sempre diretamente.
Como me foi possível verificar em diversas situações como a venda informal de
cervejas e cafés, nas hortas urbanas de cariz informal, que alguns destes apanhadores
mantêm, e face à entreajuda anotada ao longos destes meses entre apanhadores em
vários momentos, podemos argumentar que, num quotidiano marcado pela instabilidade
das marés, das condições meteorológicas ou da inconstância das vendas, a relação
nestas praias acabam por representar também uma forma de tornar a vida mais estável.
Sobre a (re)produção de um lugar em espaços públicos, José Mapril observa, à luz dos
53 Esta liberdade é referida muitas vezes pelos meus interlocutores. Por exemplo, no caso do Z., que vai
conjugando trabalhos a tempo parcial que lhe permita desenvolver a sua atividade enquanto músico com
maior facilidade; ou nos casos da L. que pode ir conjugando com o seu trabalho na Autoeuropa – entre
fins-de-semana e feriados – de forma a poder juntar dinheiro e passar temporadas com o marido, também
de origem guineense mas a viver entre França e Inglaterra. 54 Como o caso de alguns dos jovens guineenses. 55 Como o caso da C., do L., ou da situação do S., que esperava conseguir um certificado para trabalhar
enquanto pintor alpinista.
80
fenómenos migratórios entre Portugal e o Bangladeche, que:
“A ritualização do espaço transnacional é uma forma de produzir novos lugares
de pertença e reproduzir, simultaneamente, os lugares donde se saiu […]. Representa
fixar o movimento, portanto uma reterritorialização, tanto no Bangladeche como em
Portugal.” (Mapril, 2012, p.329).
No entanto, ao contrário do que esta literatura nos mostra, nenhum dos meus
interlocutores partilha uma ideologia de flexibilidade e mobilidade. Partilham, sim,
vários lugares de pertença que se criam em torno de um negócio que é, em si, marginal.
O “montar a casa” nestas praias – com objetos como bonecos ou colares encontrados no
rio e que servem para montar um presépio de Natal, até à construção de mesas em
madeira para churrascos – torna-se também, uma forma de “fixar o movimento”
(Mapril, 2012).56
Depois de concluído o trabalho de campo e de análise de dados, o
enquadramento teórico tornou-se essencial para fundamentar a informação recolhida.
Pensar de que forma é que a precariedade estimula “novos circuitos de sobrevivência”
(Sassen, 2012) e possibilidades de vida (Tsing, 2015), passa também por observar as
estratégias de “emplacement” (Glick Schiller et al., 2016) entre a formalidade e a
informalidade (Hart, 1973; Laguerre, 1994) em zonas de refúgio (Scott, 2009) nos
limiares das margens (Pina-Cabral, 2000), lugares de encontro e de possibilidades de
rendimento onde várias pessoas viram na comercialização da amêijoa uma prática
possível para lidar com a falta de segurança, mas assegurar também certas liberdades.
Neste sentido, somos levados a pensar que, se a vida social está constantemente
a ser recriada, porque não procurar dar ênfase ao que se constrói de comum quando
certos percursos de vida diferentes acabam por se encontrar em vários momentos de
56 Não ignorando as dinâmicas de exclusão social e reestruturação das cidades na economia e política
globais que facilita ou dificulta a inserção no mercado de trabalho e as oportunidades para ascender
económica e socialmente, a marginalidade é aqui entendida como processo que dialoga com outras
dimensões e escolhas de vida e não como um acontecimento. Com efeito, não posso deixar de propor uma
reflexão que questione também até que ponto a marginalidade é também voluntária.
81
precariedade semelhantes? Como Abrahams afirma:
“Enfatizar as características comuns da experiência requer uma redefinição da
própria cultura, afastando-se das práticas celebradas, dos comportamentos regulados e
obrigatórios das nossas vidas partilhadas, e enfatizando mais a relativa tipicidade do que
acontece recorrentemente a indivíduos que se encontram em situações semelhantes.”
(1986, p.60 em Pina-Cabral, 2000, p.872).
A partir de uma perceção etnográfica que procurou ser – como afirmamos –
intersubjetiva, esta “experiência partilhada” procura entender as convivialidades como
elemento central na reestruturação social, onde a pessoa surge aqui definida “para lá da
lente étnica”. Este estudo das convivialidades leva ao tema seguinte desta dissertação,
pois permite afirmar o papel da antropologia e das ciências humanas na sua capacidade
para entender como é que as pessoas gerem as suas vidas em situações de forte rutura
económica e política.
A reflexão etnográfica torna-se, assim, parte importante no acompanhamento
das subjetividades do mundo e na procura por compreender a diversidade dos seus
modos de vida. Se a vulnerabilidade da nossa condição pode significar sermos
incapazes de prever a própria vida, também pode estimular aquilo que Camus nos
descreve como “a criação sem amanhã” (Camus, 1942 [2016], p.105). Esta, pode ser
aqui entendida como uma forma criativa de sobrevivência – mais do que de resistência –
que permite atravessar o recorte empírico aqui proposto.
De facto, as “comunidades” continuam a encontrar várias formas de se
interligarem que ultrapassam diferenças étnicas e culturais. Formas essas que, em
situações de dúvida e de instabilidade, tornam-se mesmo inevitáveis e desejadas. Como
estudar, então, situações de diversidade, mobilidade e fragmentação é, por isso, uma das
preocupações desenvolvidas no ponto do capítulo sobre a produção de conhecimento
(Ponto 1.3 do Capítulo 1). Uma das formas – argumenta Karren – é através de narrativas
sobre situações de “displacement” que procurem questionar a capacidade das
82
instituições e dos Estados em assegurar direitos fundamentais em contextos de transição
económica e política (Greenhouse et al., 2002, p. 391). Neste sentido, é possível
corroborar a ideia da autora quando afirma que o ofício do antropólogo é, também, o
estudo da instabilidade, incerteza e fragmentação:
“As a result, anthropology has increasingly become the study of instability and
fragmentation, of systems caught in contradictory currents of change”. (Greenhouse et
al., 2002, p. 380).
É neste sentido que se propôs nos pontos 2.1 e 2.3 olhar atentamente para as
interações sociais destes apanhadores, de forma a anotar os vários momentos57 que
procurem proteger uma ideia de estabilidade58. Voltamos aqui, então, à importância das
convivialidades como unidade de análise em etnografia, desenvolvida nos pontos 2.3 e
4.2, e que nos remete para o estudo da diversidade à luz do encontro apesar da
diferença. É certo que a instabilidade redireciona os percursos de vida e os projetos que
traçamos. Num estado global de precariedade, restam-nos poucas escolhas senão
continuar a procurar com os outros.
57 Ou, nas palavras de Ghassan Hage, “any desirable intersubjective” em “spaces of commonality” (Hage,
2014, p.236 apud Glick Schiller et al., 2016, p. 21). 58 Por exemplo, no “montar a casa” nas praias, nas redes de negócio e na preparação das técnicas de
trabalho.
83
84
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89
GLOSSÁRIO
Ancinhos - Instrumento agrícola em forma de pente, usado para limpar ou aplanar terras
agrícolas ou ajardinadas.
"ancinho", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
“Andar aos olhinhos” - Expressão informal que refere o ato de identificar as amêijoas
enterradas no rio pela sua forma circular e que permite apanhar mais rápido.
Cão - Garrafão de cinco Litros cortado por cima utilizado pelos jovens guineenses para
transportar as amêijoas durante a apanha. Geralmente, o garrafão é amarrado com uma
corda pela cintura.
Crivo - Espécie de peneira de fio metálico; Género de coador.
"crivo", em Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
Ganchorra - Saco de rede cuja abertura está ligada a uma estrutura rígida, de forma e
dimensões variáveis dotada, na parte inferior, de um painel com ou sem dentes que
revolve o fundo. Os bivalves ficam retidos numa espécie de saco ou crivo que permite a
saída da água, areia e lodo.
“ganchorra”, em Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimo,
https://www.dgrm.mm.gov.pt/ganchorra
Olheiros - Ponto de onde rebenta a água do solo; Olho-D'Água
"olheiros", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
90
LISTA DE FIGURAS OU ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 .................................................................................................................................. 20
Ilustração 2 .................................................................................................................................. 23
Ilustração 3 .................................................................................................................................. 29
Ilustração 4 .................................................................................................................................. 31
Ilustração 5 .................................................................................................................................. 40
Ilustração 6 .................................................................................................................................. 41
Ilustração 7 .................................................................................................................................. 47
Ilustração 8 .................................................................................................................................. 56
Ilustração 9 .................................................................................................................................. 73
91
ANEXOS
ANEXO 1
A Terra do Nunca. Uma etnografia em poemas
1.
Os medos
Tu, que vais ao fundo,
esse modo de andar.
Dás mais um passo!
Caminhas para trás e perdes-te,
lances sucessivos de sorte
e de regresso,
para mais um dia de trabalho às amêijoas que negaste ao lodo
e que não colheste.
As tuas mãos e as praias de consolo
livram-te de mais um dia,
do bater assim de repente, em profundidade…
Porque se o chão estremece,
revoltas-te de joelhos.
Não vês que te pões diante do rio, sem medo? - pergunta alguém,
um apanhador como tu e sabe.
Se morreres,
é cansado mas a rires-te,
da imprevisibilidade dos momentos que se disfarçam,
e do rio que não cai
para te dar abrigo.
92
2.
O trabalhador do rio
Estilhaças-te solitário no rio
onde te curvas horas a fio com ancinhos
contra o sol que te enegrece a cara,
nos momentos em que duvidas das próprias mãos.
Guias-te pelas marés na sucessão dos dias,
para te achares duas horas antes e duas horas depois da baixa-mar.
Muitas vezes, vais ao encontro de quem não sabes se aparece,
ou se voltarás a encontrar.
Tu, que procuras esta incerteza à permanência dos dias que não levaste contigo,
que preferiste o rio que se recusa
quando se toma por lama
e que te afunda, em certeza.
Resistes ao frio quando não vives sozinho
e perguntas ao apanhador que te está próximo:
“Então Firmino, safas-te ou não?”
Acenas à beira-mar adentro,
a água à superfície dos joelhos.
E convives. Contigo e com os outros,
certo que dependes disso. Ris-te como quem sabe.
3.
A Realidade
Dizes-me enquanto te sentas sem pressas na Terra do Nunca,
praia de roupas estendidas a secar e de bicicletas velhas,
onde o vento é insuportável mesmo na Primavera.
Vou-te mostrar a casa dos pescadores, um lugar que as pessoas da nossa idade não conhecem e
nem querem conhecer.
Desde pequeno que sabes que as marés grandes são as marés boas.
93
Apesar do cansaço, reconheces quem te é próximo apenas pela forma como pisam a lama,
ao longe no rio
as pernas e as mãos cansadas
a raspar horas a fio com ancinhos presos aos fatos de mergulho,
e bóias e redes cheias de futuro.
Ninguém nasceu para o mesmo - desabafas com confiança.
A realidade.
Mesmo com o frio que te corta as mãos,
sabes que o futuro é o que está no presente,
mas também esse depende do tempo e das marés.
A sorte nunca dependeu de nós - pensas, curvado na areia
enquanto uma apanhadora grita ao marido que foge dos olheiros.
Olha o fio preso na rede.
Gritam um com o outro como quem sabe, sem se ouvirem.
Conheces bem os barcos cheios de lama,
as casas pintadas de azul vivo à mão, mesmo depois dos quarenta anos.
Mas ainda assim foges do tempo a andar de bicicleta,
Com baldes de amêijoas a esquecerem-se do frio.
No teu mundo e no teu tempo bebes tudo e fumas todos os cigarros,
próprio de quem escolheu o rio e sente medo.
Medo da morte e do dia de amanhã de não apanhares nada.
E no rio, escondes a ansiedade e o frio com galochas que amarras aos pés.
Mas sorris sempre, estremecido!
Sabes que não podes entrar aqui pelo meio por causa dos olheiros, tens que contornar pela borda
- dirias-me.
O negócio torna-se para ti numa forma de subsistência,
94
por vezes voluntária,
entre quem compra e quem vende,
o beijo ou o dinheiro como recompensa.
Que Acaso as tábuas de marés condenam,
quando começam a subir e perdes o fundo.
Acaso de indiferença do trabalho que para ti nunca acaba.
Este medo da morte e da vida que te faz rir,
a ti - viajante - que regressas todos os dias de barco a casa para venderes por pouco o que
apanhaste.
4.
A Praia
Ao longe, secava-se o bacalhau.
É uma praia, como dizer… vacilante.
Farta de barcos, terra e fumo
entre o castanho-verde de lama
e o azul vivo do que não escolhemos.
Na Praia do Copacabana namoras,
lugar que se declara a ti em vasos de água,
banquete sem expectativas.
A este lance, a partilha
onde supões subsistência.
Apesar das mãos maltratadas,
mulheres e homens guineenses alegram-se até à preia-mar
sobre o crivo que rege o que há-de vir
e os efeitos das horas inclinadas.
Estendes-te então de bicicleta receptivo
cobrindo a fraqueza.
Tudo pode acontecer - ironizas o teu próprio trabalho.
95
E reclamam-se histórias,
medos contados
sem competição ou farsas do destino.
E esperas, condição primordial da vida que se expulsa.