Dissertacao Mariana M P Souza
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS ADMINISTRATIVAS
CENTRO DE PS-GRADUAO E PESQUISAS EM ADMINISTRAO
MARIANA MAYUMI PEREIRA DE SOUZA
O TEATRO COMO FORMA DE SE COLOCAR NO MUNDO: A FORMAO DE IDENTIDADES NOS GRUPOS GALPES
Belo Horizonte
2010
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MARIANA MAYUMI PEREIRA DE SOUZA
O TEATRO COMO FORMA DE SE COLOCAR NO MUNDO: A FORMAO DE IDENTIDADES NOS GRUPOS GALPES
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em
Administrao da Faculdade de Cincias
Econmicas da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito obteno do ttulo de
Mestre em Administrao.
rea de concentrao: Estudos Organizacionais
Orientador: Prof. Dr. Alexandre de Pdua Carrieri
Belo Horizonte
2010
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AGRADECIMENTOS
Principalmente, a Deus, pelos momentos de transcendncia, nos quais encontro minha
identidade autntica, por ser minha verdade tica e esttica, por conferir sentido minha
existncia e por ter me possibilitado realizar esta dissertao.
minha famlia pai, me, Henrique e Felipe , pela inspirao, pelo convvio dirio, pelos
conhecimentos sobre a vida e pelo suporte essencial ao meu trabalho. Aos meus queridos
amigos, cujos nomes esto no meu corao, por existirem e simplesmente por estarem ao meu
lado. Ao Alexandre, pelo apoio e pelo carinho nesta reta final. A todos vocs, agradeo-lhes
por fazerem parte das minhas relaes autnticas, nas quais me reconheo como
verdadeiramente sou.
Ao Professor Alexandre Carrieri, por ter feito parte da minha trajetria acadmica desde seu
incio e por ter sempre acreditado em mim, pelo apoio constante, pelos conselhos, pela
amizade e por ser um exemplo de pesquisador, de professor e de pessoa a ser seguido. Sem a
sua orientao pelos tortuosos caminhos acadmicos, este trabalho no seria possvel. Meus
agradecimentos se estendem a todos os colegas do Ncleo de Estudos Organizacionais e
Sociedade (NEOS), que contriburam, direta ou indiretamente, para a consecuo deste
trabalho, pelas discusses, pelas trocas de experincias e pelo apoio nas longas transcries.
Professora Ana Paula Paes de Paula, no apenas pelas participaes nas bancas de
qualificao e de defesa da dissertao, mas tambm por contribuir indiretamente para a
realizao deste trabalho, pelas disciplinas, pelas ideias defendidas e pelo modelo de
coerncia e de tica que representa para mim.
Ao Professor Antnio Augusto Moreira de Faria, pelos ensinamentos sobre a anlise do
discurso e pelo incentivo para sempre estar prosseguindo nesta rea.
Aos colegas das reunies de quinta, especialmente, Jonathan, Thalita (Tita), Daniel, Lvia,
Fred, Glauciene, Claudinha e Xambinho, pelas reflexes, pelas discusses e pelas
contribuies, que foram cruciais para este trabalho. As reunies com vocs tm sido
momentos importantes, a partir dos quais pude transcender e obter boa parte dos insights
desta pesquisa. Agradeo especialmente ao Daniel Calbino e ao Alexandre Pinheiro
(Xambinho), pelas discusses frutferas e pelas parcerias nos artigos.
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Guardo gratido especial aos sujeitos de pesquisa, que foram coautores deste trabalho: a
todos do Grupo Galpo, Arildo, Beto, Chico, Eduardo, Fernanda, Ins, Jlio, Lydia, Paulo
Andr, Rodolfo, Simone, Teuda e Toninho; ao pessoal do Oficino 2009, Lenine, Ana Flvia,
Andria, Daniela, Elise, Fabiana, Gabriel, Juliana, Leonardo, Lucas, Mariana, Patrcia,
Renata, Vlber e Valeria; aos atores da Cia. Malarrumada, principalmente aos que
participaram das entrevistas, Grman, Gyuliana e Marcelo; e, finalmente, Rose e Joyce,
funcionrias do Galpo Cine Horto. Agradeo a todos vocs pela abertura, pela disposio em
contribuir para esta pesquisa e pela inspirao ao v-los na arte da vida cotidiana. No posso
deixar de agradecer ainda Professora Marlia de Castro Silva, por me abrir as portas e por
me ajudar nos primeiros passos da pesquisa. De forma geral, agradeo a todos que fazem
parte da estrutura do Grupo Galpo e do Galpo Cine Horto, pela simpatia e pelo bom
convvio.
Por fim, agradeo a todos do Centro de Ps-Graduao e Pesquisas em Administrao
(CEPEAD/UFMG), professores, funcionrios e alunos, responsveis por manter uma estrutura
em que o ensino e a pesquisa ainda so valores primordiais.
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(Chen-T diz aos deuses)
Vossa ordem de outrora:
Ser boa e viver apesar disso
Partiu-me em duas metades como um raio.
Sei l como isso aconteceu: no conseguia
Ser boa para os outros e ao mesmo tempo para mim.
Ajudar os outros e ajudar-me
Era duro demais.
Ah! Que complicado o vosso mundo!
Bertold Brecht - Alma boa de Setsuan
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RESUMO
A motivao inicial deste trabalho foi a compreenso da dinmica de construo de
identidades no interior do Grupo Galpo, entendido, a princpio, como locus de pesquisa.
O objetivo consiste em abordar o tema da identidade em relao ao contexto da produo
de arte. A realidade social recortada foi concebida como fruto da construo diria dos
sujeitos enquanto participantes ativos e interpretadores do mundo que os cerca. Com a
aproximao ao locus de pesquisa, observou-se que o Grupo Galpo, na realidade, se
desmembrava numa estrutura organizacional diversificada e complexa. Optou-se, ento,
por estudar em profundidade trs grupos de atores que possuem suas identidades coletivas
atreladas ao nome da entidade Galpo, a saber, o prprio grupo de atores do Galpo, o
grupo do Projeto Oficino 2009, conduzido pelo Galpo Cine Horto, e o grupo de atores
da Cia. Malarrumada. O contato com o campo e a reviso das literaturas sobre identidade
fizeram com que se optasse pela abordagem da identidade enquanto prtica, enquanto
atividade humana no mundo (CIAMPA, 2005). A anlise das identidades realizada nesta
pesquisa se baseou, dessa forma, na concepo da identidade enquanto um atributo em
constante mudana, que se constri diariamente a partir das atividades cotidianas. A
revelao de quem a pessoa e, em particular, o estudo dessa revelao pelo pesquisador
perpassam necessariamente pela interpretao de suas prticas, isto , pela captao delas
como discursos, verbais ou no, o que confere sentido ao. Dessa forma, h de se
conceber as prticas enquanto prticas discursivas, o que pressupe o estabelecimento de
relaes de sentido entre enunciador e receptor (FAIRCLOUGH, 2003). Adicionalmente,
partindo-se de uma perspectiva filosfica negativa, entende-se que as prticas
(discursivas) cotidianas poderiam estar direcionadas existncia material no mundo ou a
atividades que a transcendam. Em momentos de existncia, o indivduo se dedica ao
simples cumprimento de papis sociais e pauta sua conduta em funo de sua relao
objetiva mundana. Em momentos de transcendncia, por outro lado, o indivduo poderia
se dedicar contemplao, arte, interao autntica e ao pensamento crtico. Entende-
se que a razo humana opera de forma diferenciada em atividades de existncia e de
transcendncia, sendo as primeiras pautadas, basicamente, pela racionalidade instrumental
e as ltimas pela racionalidade substancial (ARENDT, 2004; MANNHEIM, 1986). Nesse
sentido, prticas cotidianas pautadas pelas diferentes racionalidades permitem ao
indivduo exercer identidade instrumental ou identidade autntica. Aplicando-se tal
entendimento ao contexto das organizaes, salienta-se a importncia de se estudar os
indivduos em relao aos nveis coletivos, pois, em diferentes enclaves da vida social,
torna-se possvel ao indivduo exercer diferentes tipos de racionalidade (RAMOS, 1981).
Em contrapartida, defende-se tambm a ideia de que o indivduo capaz de exercer uma
identidade autntica em contextos pautados pela instrumentalidade, sendo capaz de
transformar-se e de transformar as condies que o reprimem (CIAMPA, 2005). Ao final
da pesquisa, foram evidenciadas as relaes entre as identidades individuais dos artistas e
dos grupos. Essas relaes ocorrem a partir de prticas discursivas compartilhadas pelos
gneros, principalmente a respeito dos objetivos, da estrutura e da representao das
caractersticas tpicas do membro do grupo. Alm disso, foi feita uma anlise comparativa
das identidades coletivas e algumas consideraes sobre a produo de arte no contexto
atual. Por fim, demonstra-se esquematicamente o conhecimento gerado a partir da
pesquisa, entendendo-o como forma de se expandir zonas de sentido sobre a questo das
identidades e racionalidades.
Palavras-chave: Identidade. Identidade coletiva. Racionalidade. Produo de arte. Grupo
Galpo
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ABSTRACT
The first motivation of this work was the comprehension of the identity construction
dynamics inside Grupo Galpo, which was considered initially as the research locus. Our
objective was to study identity in relation to arts production context. We conceived the
social reality in focus as a product of subjects daily construction. Subjects are seen as active participants and interpreters of their surrounding world. As we got closer to the
research locus, we observed that Grupo Galpo was actually a very diversified and
complex organizational structure. So, we chose three internal groups of actors to study
deeply, as they seem to have their collective identity related to Galpos entity name. The three groups were the Galpos main group of actors, the group of Oficino Project 2009 conducted by Galpo Cine Horto and the group of actors of Malarrumada Company.
Getting contact with the field and reviewing literature about identity supported our option
to approach identity as practice, as a result of human activity in the world (CIAMPA,
2005). The identitary analysis in this research was based on the conception of identity as a
constantly changing attribute, which is daily constructed by everyday activities.
Revelation of whom the person is, in particular the study of this revelation by the
researcher, has necessarily to go through interpretation of his/her practices, i.e., by
capturing these practices as discourses that give sense to the action. Discourses, in this
sense, can be verbal or not. So, we assume that practices must be conceived as discursive
practices, which establish sense relations between enunciator and receptor
(FAIRCLOUGH, 2003). In addition, considering a negative philosophical perspective, we
understand that (discursive) everyday practices could be directed to material existence in
the world or to transcendent activities. In existence moments, individual is dedicated only
to playing social roles and directs his/her behavior according to his/her objective relation
with the world. On the other hand, in transcendence moments, individual could dedicate
his/herself to contemplation activities, to arts, to authentic interaction e to critical thinking.
We believe that human Reason operates differently during existence or transcendence
activities. The former is oriented by an instrumental rationality and the latter by
substantive rationality (ARENDT, 2004; MANNHEIM, 1986). In this sense, every day
practices oriented by different rationalities let individual perform instrumental or authentic
identity. Applying this theory to organizations context, we point to the importance of
studying individuals in relation with collective levels, because, in different systems of
social life, the practice of different types of rationality become desirable to individuals.
(RAMOS, 1981). However, we also assume that individuals are capable of expressing
authentic identity in instrumental oriented contexts, because they could change themselves
and change repressive conditions (CIAMPA, 2005). By the end of this research, we could
demonstrate relations between artists individual identities and their groups. These relations happened by shared discursive practices, as genres. They were mainly about the
groups objectives, structures and typical characteristics of the members. We also made a comparative analysis of the collective identities and some considerations on the art
production in current context. Finally, we showed a scheme consolidating the knowledge
we could generate by the research. We believe that this knowledge is a way of expanding
sense zones about identity and rationality issues.
Key-words: Identity. Collective Identity. Rationality. Arts production. Grupo Galpo.
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LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Articulao para a compreenso da identidade.............................................67
FIGURA 2 - Dimenses da identidade segundo as racionalidades.....................................68
FIGURA 3 - Articulao entre os nveis identitrios e discursivos....................................92
FIGURA 4 - O Paradigma Paraeconmico..........................................................................94
FIGURA 5 - Estrutura do Grupo Galpo e do Galpo Cine Horto.................................104
FIGURA 6 - As identidades coletivas no Galpo...............................................................218
FIGURA 7 As identidades coletivas.................................................................................219
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SUMRIO
1. INTRODUO ................................................................................................................ 1
1.1 ORGANIZAO DA DISSERTAO ........................................................................................ 7
2. POSICIONAMENTO ONTOLGICO E EPISTEMOLGICO ............................... 10
3. A TEORIA CRTICA E A RAZO HUMANA ........................................................... 17
3.1 RACIONALIDADES ....................................................................................................................24
3.2 RACIONALIDADE NA ARTE .......................................................................................................30
4. A CONSTRUO DA IDENTIDADE ........................................................................ 45
4.1 PARA ALM DA DUALIDADE ENTRE IDENTIDADE PESSOAL E SOCIAL: ENTENDENDO A
IDENTIDADE COMO PRTICA ..........................................................................................................52
4.1.1 Definies de prticas ..........................................................................................................56
4.1.2 Identidade instrumental ........................................................................................................69
4.1.3 Identidade substantiva ..........................................................................................................72
4.2 IDENTIDADES COLETIVAS EM ESPAOS ORGANIZACIONAIS .......................................................78
4.2.1 A formao da identidade coletiva ........................................................................................84
4.3 OPERACIONALIZANDO A ANLISE DAS IDENTIDADES NO GRUPO GALPO ...............................91
5. O GRUPO GALPO: abrindo as cortinas do palco ..................................................... 95
6. O ESPETCULO DAS IDENTIDADES .................................................................... 108
6.1 O ARTISTA E SUA ARTE DE VIVER .......................................................................................... 109
6.1.1 O artista faz a arte e a arte faz o artista: o percurso semntico da arte ............................... 128
7. VIDAS E ARTES COLETIVAS.................................................................................. 139
7.1 O GRUPO GALPO: A ARTE DE (SOBRE)VIVER COLETIVAMENTE ............................................. 140
7.2 O OFICINO 2009: ENSAIANDO A IDENTIDADE COLETIVA ....................................................... 167
7.3 A COMPANHIA MALARRUMADA: (DES)ARRUMANDO UM COLETIVO ....................................... 192
8. CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 214
9 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 223
ANEXO A - CAMINHOS METODOLGICOS .......................................................... 230
ANLISE DO DISCURSO ........................................................................................................ 236
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1
1. INTRODUO
A motivao inicial deste trabalho foi a compreenso da dinmica de construo de
identidades no interior do Grupo Galpo, entendido a princpio como locus de pesquisa.
Partiu-se, intencionalmente, do questionamento amplo sobre como as identidades eram
formadas no interior desse locus, com vistas a lapidar questes especficas a partir da
ampliao do conhecimento emprico. A realidade social (e nas organizaes) recortada foi
concebida como fruto da construo diria dos sujeitos enquanto participantes ativos e
interpretadores do mundo que os cerca. Dessa forma, somente aps certo tempo de convvio e
de coleta de dados preliminares que se tornou possvel especificar parmetros para o
encaminhamento da pesquisa (BERGER; LUCKMAN, 1998; HERACLEOUS; JACOBS,
2006).
O objetivo foi abordar o tema da identidade em relao ao contexto da produo de arte.
Optou-se pelo conceito de identidade, pois ele abriria possibilidades de se explorar a
individualidade de cada sujeito no decorrer das interaes sociais. A articulao das
identidades individuais em nveis coletivos permitiria o entendimento dos significados
coletivamente partilhados, das restries que a identidade coletiva impe identidade
individual e das razes que levam o sujeito a se agrupar. Tais questes so consideradas
centrais aos estudos organizacionais e tm sido, ao longo de anos de pesquisas, bastante
discutidas no Ncleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS), do qual eu fao parte.
Neste trabalho, pretendeu-se articular o tema da identidade nas organizaes com a questo da
produo artstica contempornea. Entende-se que o trabalho artstico organizado assume
formatos diferenciados em relao s organizaes econmicas. Isso porque tratar-se-ia de um
produto cuja natureza altamente autoral e cujo valor assume sentidos simblicos. A
compreenso de como se inter-relacionam as identidades de artistas contemporneos,
principalmente quando estes se encontram agrupados de forma organizacional, poderia gerar
contribuies relevantes para estudos tanto do campo da identidade quanto do campo das
organizaes chamadas culturais ou criativas (BENDASOLLI et al., 2009; GLYNN,
2000).
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2
Segundo Duarte (2002), o processo moderno de globalizao tem reintroduzido o debate
sobre a indstria cultural. No cerne da indstria cultural estaria o fetichismo em relao aos
bens culturais. O valor de uso desses bens, tradicionalmente representado pela admirao
esttica de um devir transcendente, passa a ser absorvido pelo seu valor de troca, advindo de
uma valorizao social artificial gerada pelo prestgio de se consumir certo tipo de mercadoria
cultural (HORKHEIMER; ADORNO, [1947] 2007).
Neste cenrio, observa-se no Brasil e no mundo a franca expanso do setor cutural, entendido
como espao de criao, consumo e gerao de emprego. notvel o crescimento de
investimentos financeiros para essa rea, assim como o nmero cada vez maior de pessoas
que possuem a arte como ocupao principal. Nesse processo, chamam a ateno a procura
por profissionalizao e a formalizao de uma gesto cultural. O discurso dos profissionais
em gesto cultural torna-se forte na medida em que essas figuras so os responsveis pela
formulao de projetos para captar financiamentos no setor privado. Isso porque, numa
realizao quase total da ideia de indstria cultural, as empresas privadas se tornam as
principais gestoras de financiamentos para a produo cultural, entendendo-a como
instrumento de marketing e, at mesmo, como instrumento pedaggico das massas
(AVELAR, 2008).
Tendo em vista a complexidade do contexto histrico e macrossocial, o sistema social
particular estudado, conforme j exposto, foi o Grupo Galpo, grupo teatral que existe h
vinte e oito anos, com sede em Belo Horizonte. O Galpo surgiu a partir da associao de
quatro atores Teuda Bara, Eduardo Moreira, Wanda Fernandes e Antnio Edson , que se
conheceram em uma oficina de teatro oferecida por dois membros alemes do Teatro Livre de
Munique, primeiro em Belo Horizonte, e posteriormente, em Diamantina. Dos alemes, os
fundadores do Galpo herdaram as influncias do dramaturgo Bertold Brecht, que tem sua
obra reconhecida como politizada e contestadora. Alm disso, o grupo tambm herdou de seus
mentores a tradio do teatro de rua, o trabalho circense e a sacralidade do teatro como
atividade digna de entrega e seriedade (BRANDO, 2002).
A aproximao com o locus de pesquisa revelou que o Grupo Galpo, na realidade, se
desmembrava numa estrutura organizacional diversificada e complexa. Isso porque no ano de
1998 o Galpo criou um centro cultural, denominado Galpo Cine Horto. Apesar da
proximidade geogrfica entre a sede do grupo de atores e o centro cultural, h uma distncia
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3
nas relaes cotidianas entre aqueles que trabalham em cada sistema. O Grupo Galpo
mantm-se basicamente nas atividades de produo, ensaios e apresentao de espetculos,
alm de se relacionar com patrocinadores que viabilizam tais atividades. O Galpo Cine
Horto, por sua vez, abriga uma srie de projetos que ocorrem paralelamente, como o acervo
sobre memria do teatro, as aulas de teatro para crianas e adultos, e o recebimento de grupos
de atores de fora da cidade. Os patrocinadores do Cine Horto no so os mesmos do Galpo.
A estrutura Grupo Galpo-Galpo Cine Horto, em conjunto, emprega cerca de quarenta
funcionrios, mantendo um formato, algumas vezes, prximo ao empresarial.
Aps os primeiros contatos com o locus de pesquisa e tendo selecionado os grupos
especficos a serem estudados, a pesquisa partiu para sua segunda etapa, baseada em
observaes assistemticas e em entrevistas em profundidade. Durante essa fase, retomou-se
uma srie de questionamentos terico-metodolgicos a respeito do estudo das identidades.
Como identificar os aspectos identitrios dos indivduos? A identidade dos sujeitos
envolvidos nos grupos explica seus comportamentos cotidianos? Sendo pessoas muito
diferentes, o que seria exatamente a identidade coletiva? Como ela se constri? O contato com
o campo e a reviso das literaturas sobre identidade fizeram com que se optasse pela
abordagem da identidade enquanto prtica, enquanto atividade humana no mundo (CIAMPA,
2005).
A anlise das identidades realizada nesta pesquisa se baseou, dessa forma, na concepo da
identidade enquanto um atributo em constante mudana, que se constri diariamente a partir
das atividades cotidianas. Rejeita-se, nesse sentido, a ideia de identidade enquanto um
conceito formado, um substantivo ou adjetivo, que caracteriza o que o indivduo , e, a partir
disso, explica tautologicamente seus comportamentos. A identidade entendida enquanto
ao, enquanto o verbo desempenhado pelo sujeito. Dessa forma, no se cristaliza o que o
indivduo chegou a ser um dia. Abrem-se possibilidades contnuas de transformao e de
transgresso das imposies externas pelo desempenho de papis sociais. Estudar a identidade
seria, consequentemente, conceb-la como a mesmidade de pensar e ser ou seja, quando o
indivduo busca ser ele mesmo, no como forma de buscar sua essncia, mas de ser ele
mesmo como um ser que dotado de identidade (CIAMPA, 2005; ARENDT, 2004).
Sendo a identidade manifestada pela vida ativa, nem sempre o indivduo estaria apto a exercer
a mesmidade entre pensar e ser. Nem sempre haveria possibilidade de se exercer livremente a
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4
identidade, devido a restries situacionais e imposio de papis. Notadamente, no
contexto da pesquisa, observou-se que a criao artstica ocorreria quando espaos de
interao permitiam liberdade aos sujeitos, para manifestarem abertamente suas idias, para
testar prticas, ou seja, para ser eles mesmos em sua condio humana. Tais constataes
iriam ao encontro da viso da arte enquanto atividade que requer transcendncia das
condies materiais vividas. Sendo necessrio admitir a separao entre as atividades
humanas transcendentes daquelas voltadas simplesmente a questes mundanas, o estudo se
orientou segundo a lgica dialtica, baseada na filosofia negativa (MARCUSE, 1973).
Partindo-se de uma perspectiva filosfica negativa, entende-se que as prticas (discursivas)
cotidianas poderiam estar direcionadas existncia material no mundo ou a atividades que a
transcendam. Em momentos de existncia, o indivduo se dedica ao simples cumprimento de
papis sociais e pauta sua conduta em funo de sua relao objetiva mundana. Em momentos
de transcendncia, por outro lado, o indivduo poderia se dedicar contemplao, arte,
interao autntica e ao pensamento crtico. A razo humana operaria de forma diferenciada
em atividades de existncia e de transcendncia, sendo as primeiras pautadas, basicamente,
pela racionalidade instrumental e as ltimas pela racionalidade substantiva. Nesse sentido,
prticas cotidianas pautadas pelas diferentes racionalidades permitem ao indivduo exercer
identidade instrumental ou identidade autntica em seu cotidiano (ARENDT, 2004;
MANNHEIM, 1986; RAMOS, 1981).
Em sntese, esta pesquisa parte dos seguintes pressupostos:
- A realidade social enquanto produto da construo humana acessada sempre de forma
parcial a partir do conhecimento cientfico construtivo-interpretativo e dos mtodos
qualitativos (REY, 2005; BERGER; LUCKMAN, 1998).
- Segundo a filosofia negativa, caracterstico da natureza humana a capacidade de
transcender as condies materiais como forma de se viver momentos em que sejam
contempladas verdades baseadas em valores ticos ou estticos (MARCUSE, 1973;
MANNHEIN, 1986; ARENDT, 2004).
- Quando o comportamento humano se pauta por motivos existenciais a partir das condies
materiais imediatas, ele seria orientado segundo a racionalidade instrumental. Em
-
5
contrapartida, quando o homem age segundo suas convices valorativas em busca de
relaes interpessoais autnticas, ele seria motivado pela racionalidade substantiva
(MANNHEIN, 1986; RAMOS, 1981).
- A identidade um atributo em constante construo, a partir da atividade dos homens no
mundo. Ela pode ser, portanto, instrumental ou substantiva, dependendo do contexto em que o
indivduo se encontra, do grau de liberdade que lhe permitido e do grau utpico de suas
convices (CIAMPA, 2005; ARENDT, 2004; MANNHEIN, 1986).
- As prticas identitrias devem ser analisadas como prticas discursivas, pois pressupem a
revelao do sujeito que as empreende e a recepo do pesquisador que as interpreta. Mesmo
as prticas no verbais se tornam discursivas a partir do processo de semiotizao.
Inevitavelmente, haver interferncia da subjetividade do pesquisador nesse processo
(ARENDT, 2004; FAIRCLOUGH, 2003).
Partindo-se das articulaes teoricoempricas construdas e reconstrudas ao longo da
pesquisa, para se responder ampla questo Como se processa a construo das
identidades no(s) Grupo(s) Galpo(es)?, foram traados alguns objetivos especficos:
a) Entendendo que as identidades individuais e coletivas se constroem de forma
articulada e dinmica, foi necessrio, primeiramente, reconhecer as identidades
coletivas que se formam no interior da estrutura do Galpo.
b) Aps o mapeamento dessas identidades coletivas e a seleo daquelas a serem
estudadas em profundidade, o segundo objetivo foi conhecer as prticas empreendidas
pelos sujeitos em relao aos grupos, preferencialmente, no nvel cotidiano.
c) Tendo sido coletadas, objetivou-se analisar as prticas como prticas discursivas por
meio dos conceitos da anlise do discurso. Dessa forma, sentidos a respeito das
identidades individuais e coletivas foram identificados, assim como as respectivas
racionalidades subjacentes aos discursos.
d) Por fim, buscou-se evidenciar as inter-relaes envolvendo as identidades individuais
e coletivas, entendendo como as racionalidades envolvidas influenciam a construo
identitria. Assim, tornou-se possvel traar uma srie de consideraes a respeito das
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6
identidades dos indivduos, dos grupos e do Galpo enquanto uma entidade cujo nome
influencia todas as identidades em jogo.
Para a concretizao emprica desta pesquisa, realizou-se, portanto, um estudo de caso
qualitativo. A pesquisa qualitativa permitiu chegar essncia dos fenmenos estudados a
partir do trabalho de interpretao dos dados, no de maneira isolada como fatos ou
acontecimentos isolados, mas sim em um contexto em que h uma dinmica de relaes. Os
dados foram coletados por meio de observaes assistemticas, seguidas de anotaes de
campo, entrevistas semiestruturadas e fontes secundrias, como bibliotecas e acervos. Dessa
forma, pretendeu-se apreender as prticas cotidianas dos sujeitos pesquisados, seus discursos
e os discursos oficiais disponveis em publicaes institucionais e documentos (CHIZZOTTI,
2008).
Para a anlise dos discursos coletados, foram empregados elementos da anlise discurso.
Entende-se que o discurso deve ser analisado de forma socialmente contextualizada, pois um
indivduo jamais constitui um discurso sozinho, mas em constante interao com outros.
Nesse sentido, uma questo cara anlise do discurso a relao sujeito (enunciador) e
estrutura (formao discursiva) (FIORIN, 2003; FARIA, 2001). A partir de aspectos tericos
ligados formao sociolingustica das identidades individuais e coletivas, foram destacados
alguns conceitos-chave que oferecero suporte para a operacionalizao das anlises, tais
como: gnero discursivo/prticas discursivas, semntica/sintaxe, intradiscurso/interdiscurso,
enunciado/enunciao, percursos semnticos e estratgias de persuaso (BAKHTIN, 1992;
SPINK; MEDRADO, 1999; FIORIN, 2003; FARIA, 2001; MAINGUENEAU, 2000; FARIA;
LINHARES, 1993).
Torna-se relevante resgatar o conceito de identidade nesta pesquisa por vrias razes.
Primeira, pois, diante do cenrio de instabilidade no trabalho, da crescente individualidade e
aplicao predominante da lgica instrumental nas relaes sociais, abordar a construo das
identidades, individuais e coletivas permite trazer tona o ncleo subjetivo e essencial dos
indivduos. Permite humanizar o olhar sobre ambiente organizacional, ampliando a
compreenso da dinmica social e esclarecendo laos identificatrios e de pertencimento.
Em segundo lugar, o estudo se torna relevante por abordar uma organizao do setor cultural,
o que pode contribuir para promover maior entendimento da gesto nesse campo, novo e em
expanso. As organizaes culturais apresentam peculiaridades e enfrentam contradies
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7
inerentes sobrevivncia no sistema capitalista, tendncia instrumentalidade nesse sistema
e manuteno do trabalho criativo. Ao estudar o Grupo Galpo, tornou-se possvel adentrar
na realidade de uma organizao desse tipo, explorando as alternativas tticas e estratgicas
de sobrevivncia empreendidas pelos integrantes, bem como o jogo entre as racionalidades
instrumentais e substantivas por trs dessas prticas.
Por ltimo, mas no menos importante, esta pesquisa torna-se justificvel e vivel pois est
relacionada ao grupo temtico de Estudos Organizacionais, Histria, Memria e Identidade
Cultural do Ncleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS) da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), que se caracteriza pelo desenvolvimento de pesquisas
interdisciplinares, procurando realizar interfaces entre a rea da Teoria Organizacional e a do
Pensamento Social. Nos ltimos anos, foram desenvolvidas outras pesquisas relacionadas
temtica da identidade, das prticas estratgicas e tticas, e das prticas em organizaes de
produo artstica. Portanto, a participao no Ncleo proporcionou um espao de
compartilhamento de saberes e ideias que certamente enriqueceram a pesquisa e contribuiram
para sua articulao com outros estudos.
1.1 Organizao da dissertao
Esta dissertao est dividida em oito captulos, incluindo esta introduo, em que se
apresentam brevemente as motivaes e justificativas da pesquisa, os caminhos tericos e
empricos trilhados, os pressupostos tomados como base para o encaminhamento das anlises
e das concluses, a questo norteadora e os objetivos especficos a ela atrelados.
O segundo captulo descreve os posicionamentos ontolgicos e epistemolgicos da pesquisa,
com base na perspectiva construtivo-interpretativa e na abordagem qualitativa. Buscou-se
evitar a reificao das organizaes, entendendo-as como produto da atividade humana
associada.
O terceiro captulo parte da teoria crtica para delinear os conceitos de transcendncia e
existncia. A partir deles, so desenvolvidas ideias sobre as racionalidades humanas. Aborda-
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se, tambm, a questo histrica da arte e sua relao com os vrios sistemas sociais ao longo
do tempo. Dessa forma, so colocadas questes sobre a racionalidade na arte e a produo
artistica contempornea.
O quarto captulo adentra no tema da identidade, primeiramente, destacando o panorama das
diversas teorias a respeito do assunto. No subitem seguinte, so apresentadas as razes para se
transpor a dualidade entre identidade social e identidade pessoal, propondo-se a viso da
identidade enquanto prtica humana no mundo. Para isso, so delineadas as definies das
prticas empregadas na pesquisa. Ainda neste subitem, apresenta-se o modelo integrativo da
viso da identidade como prtica, da prtica como discurso e das racionalidades subjacentes.
De forma mais especfica, ento, discorre-se sobre os tipos de identidade: a instrumental e a
substantiva. O segundo subitem parte para a articulao das ideias sobre identidade coletiva,
notadamente, no contexto organizacional. Encerra-se com a apresentao do esquema de
operacionalizao das anlises.
O quinto captulo adentra no tema do Grupo Galpo, apresentando informaes preliminares
sobre o Grupo e sobre os caminhos da pesquisa.
O sexto captulo foca a construo das identidades individuais, separando por subitem
especfico o percurso semntico sobre as relaes entre o artista e sua arte.
O stimo captulo apresenta as anlises das identidades coletivas. Primeiramente, a identidade
do Grupo Galpo; depois, a identidade do Oficino 2009; e, por fim, a identidade da Cia.
Malarrumada. Ao longo das anlises, so colocadas tambm consideraes entre o material
emprico e a teoria.
Finalmente, o oitavo captulo foi reservado para as concluses finais, nas quais se retoma a
questo norteadora e traam-se consideraes sobre a relao entre as identidades dos sujeitos
pesquisados, as identidades coletivas e o contexto do setor cultural. realizada, ainda, a
anlise comparativa das identidades coletivas, sendo que tambm considerada a identidade
do Galpo enquanto entidade cujo significado vai alm da identidade do grupo de atores. Em
seguida, feito um esforo para demonstrar esquematicamente o conhecimento gerado a
partir da pesquisa, entendendo-o como forma de se expandir zonas de sentido sobre a questo
das identidades e racionalidades. Para finalizar, apontam-se quais seriam as possveis
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contribuies deste estudo para os estudos organizacionais e quais seriam tambm as crticas
colocadas a algumas abordagens dos estudos da identidade. So apresentadas as limitaes da
pesquisa e as sugestes de estudos futuros.
Esta pesquisa fruto de mais de dois anos de estudos, de discusses, de coleta de dados e,
principalmente, de experincias significativas. Foi, portanto, um perodo de transformaes
identitrias para a prpria pesquisadora. Tais transformaes levaram a reposicionamentos e a
insights, os quais, acredita-se, levaram ao enriquecimento da perspectiva inicial. Este foi um
trabalho baseado em dosagens de racionalidades, como toda atividade humana. Esteve
imbudo de instrumentalidade quando o foco foi a obteno do ttulo. Contudo,
predominantemente, foi orientado segundo uma razo substantiva, pois findou em um texto
autntico, baseado em valores ticos profundamente arraigados. Para alm do reconhecimento
acadmico, espera-se que este trabalho gere processos de autorreflexo aos interessados na
temtica e, dessa forma, os conduza a uma reviso sobre as identidades praticadas
cotidianamente.
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2. POSICIONAMENTO ONTOLGICO E EPISTEMOLGICO
Um dos pilares fundadores do pensamento cientfico representado pelo desenvolvimento da
lgica aristotlica, associada forma do pensamento correto. Qualquer cincia a pressupe,
assim como toda disciplina e todas as artes a contm. Aristteles, em seus escritos do
Organon, reconhecido como o criador das principais leis da lgica, por exemplo, a doutrina
do silogismo, que postula que dois elementos iguais a um terceiro so tambm iguais entre si.
Assim, sua lgica permite a clareza da exposio e do pensamento, considerada at hoje um
manual de etiqueta, obrigatrio para a cincia (DURANT, 1996, p. 79).
Embora o discurso da cincia esteja sob o julgo da lgica, esta pode se dar de diferentes
formas e conduzir a diferentes modos de pensar a verdade. A lgica apenas fornece um guia
para o raciocnio, mas parte de premissas a priori, que iro depender dos posicionamentos do
cientista. Marcuse (1973) destaca a existncia da lgica simblica moderna, da lgica
transcendente e da lgica dialtica. Cada uma levaria a um universo diferente de locuo e
experincia, apresentando formas diferenciadas de se dominar casos particulares em prol de
um pensamento universal. Nesse sentido, toda lgica uma forma de domnio, que pode ser
repressivo ou libertador. No primeiro caso, segundo Marcuse (1973) e Mannheim (1986),
tratar-se-ia dos modos de pensar positivos, que levam ao conformismo, ao reformismo e
ideologia; no segundo, do modo de pensar negativo, que leva ao carter especulativo,
revolucionrio e utpico.
A partir do Iluminismo, a filosofia positiva se torna hegemnica no pensamento cientfico
ocidental. A crena na lgica cartesiana, na busca por leis gerais, por verdades estatsticas e
por frmulas matemticas, influencia o desenvolvimento das cincias naturais e humanas
desde ento. Com isso, o ideal positivista de que a cincia traz o progresso tecnolgico e,
consequentemente, o progresso humano se torna um forte valor na modernidade. Contudo, o
pensamento positivo incapaz de superar as limitaes inerentes ao sistema socioeconmico
vigente, na medida em que impede a viso crtica do mundo social e o desenvolvimento de
alternativas. Nesse sentido, surgem, paralelamente, diversas correntes de pensamento calcadas
na filosofia negativa, buscando romper com o mito do progresso positivo.
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De acordo com Mattos (2006), existem vrias formas de rompimento com o paradigma
positivista nos estudos organizacionais, como a sociologia weberiana, a hermenutica crtica
da Escola de Frankfurt, o discurso da ps-Modernidade, a fenomenologia husserliana e a
anlise pragmtica da linguagem. O autor sustenta que o primeiro e mais influente
rompimento foi por meio das proposies interpretativistas de Max Weber.
Weber (1973) questiona a existncia de verdades objetivamente vlidas no terreno das
cincias da vida cultural em geral. Toda atividade cientfica pressupe uma escolha prvia de
determinados fins ltimos, que guiam, em ltima instncia, a motivao da pesquisa. Alm
disso, a prpria escolha do objeto a ser investigado faz parte de um recorte baseado em
valores norteadores. Portanto, a cincia social jamais est livre da subjetividade e no papel
da comunidade cientfica buscar uma viso nica e objetiva da realidade, livre de valores.
papel dessa comunidade, no entanto, aceitar os diversos pontos de vista possveis, sob um
julgamento crtico intersubjetivo.
Snape e Spencer (2003) assinalam que as ideias interpretativistas defendidas por Weber
(1973) so originrias da filosofia de Immanuel Kant, para quem o conhecimento do homem
sobre o mundo se baseia mais na compreenso que se faz dele a partir das experincias
vividas do que da simples observao direta. Isto porque a percepo no est relacionada
apenas aos sentidos humanos, mas tambm interpretao que se faz a partir desses sentidos.
Portanto, para Weber (1973), nas cincias sociais o interesse principal deveria ser
compreender o sentido das aes das pessoas, descobrir por que agem de certa maneira. Ao
contrrio das cincias naturais, cujo fim a causa originria que gera descrio, controle e
previso , nas cincias humanas o fim a descrio, a compreenso particularizada. Essas
cincias so, essencialmente, analticas e descritivas, e no sintticas, dedutivas e prescritivas.
Com base nesse raciocnio, o conhecimento das leis gerais no leva ao conhecimento da
realidade social. Quanto mais generalizveis, mais abstratas elas se tornam e menos capazes
de contribuir para a compreenso da significao de processos culturais individuais. As leis
no podem ser o fim da investigao, mas apenas seu meio. Mattos (2006, p. 7) aponta que
Weber insiste no lugar que tm no seu mtodo a teoria e coisa que ele distingue a criao
de tipos ideais. A teoria tem funo instrumental e auxiliar para o conhecimento, e o conceito,
funo heurstica. Os conceitos abstratos, que tipificam ideias, padres comportamentais,
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tendncias econmicas, etc., servem para orientar e ordenar o trabalho de anlise e descrio
da realidade (WEBER, 1973).
Weber (1973) observou que, muitas vezes, os conceitos das cincias sociais no so bem
determinados e se tornam ambguos, o que impede seu desenvolvimento e a ampliao da
capacidade analtica. Visando suprir tal carncia, props o uso dos tipos ideais para aprimorar
os conceitos, torn-los mais puros e referenciveis. Os tipos ideais seriam construes tericas
obtidas a partir do realce conceitual de certos elementos da realidade. So conceitos isolados,
a-histricos, puramente lgicos e no observveis na realidade. No espelham uma realidade
ideal, no sentido de que deve ser buscada. O tipo ideal deve ser algo por inteiro indiferente a
qualquer juzo valorativo e nada tem a ver com uma perfeio. Tipos ideais serviriam de base
de comparao da realidade (em que grau um fenmeno real individual se aproxima ao tipo
ideal) e auxiliariam na formulao de hipteses. De acordo com a necessidade compreensiva,
novos tipos ideais podem ser propostos, modificando o sistema conceitual vigente. Haveria
uma relao dialtica entre conceito e conceituado (WEBER, 1973).
Apesar de no defender explicitamente a metodologia weberiana dos tipos ideais, Rey (2005)
parece concordar com Weber (1973) ao defender a funo interpretativa das cincias
humanas. Mais especificamente, para Rey (2005, p. 2), em consonncia com a crtica tecida
por Ramos (1981) e Mannheim (1986), essas cincias tm se perdido em um metodologismo,
no qual os instrumentos e as tcnicas se emanciparam das representaes tericas,
convertendo-se em princpios absolutos de legitimidade para a informao produzida por eles,
as quais no passavam pela reflexo dos pesquisadores. Diante disso, para que haja a
construo do conhecimento humano e social, seria necessrio romper com o modelo de
cincia positivista e assumir de forma epistemologicamente coerente a metodologia
qualitativa de pesquisa.
Rey (2005) defende que a epistemologia qualitativa est relacionada ao carter construtivo
interpretativo do conhecimento, o que implica a concepo do conhecimento como produo,
e no como uma apropriao sistematizada e linear de uma realidade a partir de categorias
universais. Nesse ponto, o autor critica os estudos de linha qualitativa, que no assumem tal
posicionamento epistemolgico. Esses estudos acabam buscando legitimao por meio dos
instrumentos utilizados na pesquisa, e no pelos processos de produo do conhecimento. Isso
os torna incoerentes, pois o mtodo qualitativo deve ter como fim ltimo a reflexo terica em
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detrimento das evidncias empricas, levando em considerao as subjetividades como
elementos constitutivos da realidade social.
Concorda-se com Rey (2005) de que existe uma realidade social. Contudo, impossvel
acess-la de forma total e direta. O conhecimento do real sempre parcial e limitado, devido
s prprias prticas de interveno do pesquisador. Assim, no existiria uma concepo
exclusiva da realidade como realidade ltima. Seria sempre possvel aprofundar nos fatos,
sendo a realidade algo constantemente a interpretar. A partir disso, Rey (2005) apresenta o
conceito de zonas de sentido, ou espaos de inteligibilidade gerados pelas pesquisas
cientficas, capazes de abrir possibilidades de aprofundamento em um campo de construo
terica. Esse conceito pressupe a funo do conhecimento cientfico como:
[...] gerar campos de inteligibilidade que possibilitem tanto o surgimento de novas
zonas de ao sobre a realidade, como de novos caminhos de trnsito dentro dela
atravs de nossas representaes tericas. O conhecimento legitima-se na sua
continuidade e na sua capacidade de gerar novas zonas de inteligibilidade acerca do que estudado e de articular essas zonas em modelos cada vez mais teis para a
produo de novos conhecimentos (REY, 2005, p. 6).
Existem convergncias dos pensamentos de Rey (2005) com os de Weber (1973), pois ambos
propem o rompimento com a viso positivista nas cincias humanas, enfatizando a
importncia do mtodo interpretativo e qualitativo. Entretanto, os autores parecem divergir
em relao ao papel dos conceitos tericos. Enquanto Weber (1973) coloca como um
problema das cincias humanas a falta de coerncia conceitual e prope os tipos ideais como
formas conceituais mais sofisticadas, Rey (2005) parece se opor a esse posicionamento,
criticando a dicotomia entre emprico e terico, na qual o terico reduzido a mera
especulao ou simples rtulo para nomear o emprico. Para esse autor, no h separao
entre terico e emprico, pois o terico entendido como um sistema aberto, de constante
construo de zonas de sentido, a partir da coleta de dados empricos. O objetivo dar
consistncia construo do conhecimento, articulando em modelos a significao do social
na vida humana.
A partir da comparao entre os autores, sustenta-se que Rey (2005) acrescenta noo de
cincia interpretativa de Weber (1973) o carter construtivo, que parte da concepo de que a
realidade um sistema infinito de campos inter-relacionados. A abordagem construtiva do
conhecimento cientfico ganha relevncia e coerncia diante de uma realidade social que
produto da construo humana, entendida como uma complexa relao entre realidades
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objetivadas e as subjetividades. Na viso de Berger e Luckman (1998), a ordem social existe
unicamente como produto de atividade humana. O homem constri sua natureza, sendo
produto de si mesmo. Ao nascer e se socializar, a realidade da vida cotidiana aparece j
objetivada ao homem. Contudo, ao interagir com o mundo, o sujeito atribui significados
subjetivos realidade e os expressa pela atividade, contribuindo para reconstruir a ordem
institucional e as interpretaes compartilhadas.
vista do exposto, este estudo se insere na epistemologia interpretativista construtivista,
entendendo a realidade social como produto de uma construo intersubjetiva. Assim, torna-
se importante conceber as organizaes como produtos da prpria atividade humana,
rejeitando sua reificao e o enquadramento positivo como guia da interpretao. Para Berger
e Luckman (1998), quando determinados fenmenos humanos passam a ser apreendidos
como se fossem coisas independentes da vontade humana, fruto de leis csmicas ou vontade
divina, esses fenmenos passam a ser reificados. A reificao das organizaes um processo
recorrente na atualidade e pode ser nociva ao pensamento crtico e negativo, reivindicao
de mudanas por parte dos indivduos envolvidos. Nesse processo, o homem esquece sua
prpria autoria do mundo humano, tomando-o como dado e imutvel. A dialtica entre o
homem (o produtor) e seus produtos perdida de vista pela conscincia (PAO-CUNHA,
2008).
Procurando estimular a autocrtica nos estudiosos brasileiros das organizaes, Pao-cunha
(2008) tece uma contundente crtica rea dos estudos organizacionais, que se definiria a
partir da falsa concretude de seu objeto: as organizaes. Segundo o autor, a organizao
uma abstrao que tratada como concreta, sendo coisificada e mistificada. Os estudos
organizacionais operariam como um funil, que aplica teorias abrangentes das cincias
humanas s organizaes, reificando-as como espao circunscrito, determinado e a-histrico
de relaes de poder ou, mesmo, como espao homogneo de uma organizao-sujeito. O
processo de mistificao das organizaes responsvel por abstrair tanto do pensamento
acadmico quanto do cotidiano o processo de reificao, que resultado das lutas, das
relaes de foras historicamente determinadas [...]. Exige-se, assim, do pensar e do fazer
acadmicos a mesma qualidade abstrata do seu objeto (PAO-CUNHA, 2008, p. 4).
Ao sustentar a viso interpretativa construtiva da cincia, este estudo busca se contrapor
viso de cincia, predominante nos estudos organizacionais que reificam as organizaes e
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passam a investigar leis sobre-humanas de funcionamento generalizado e de controle da
ordem social. Vergara e Caldas (2005) corroboram a viso aqui sustentada de que diferenas
epistemolgicas conferem distintas concepes a respeito das organizaes. Aps realizar um
levantamento bibliogrfico da produo acadmica nos estudos organizacionais, os autores
concluram que as pesquisas interpretativistas divergem das funcionalistas ao discordarem que
as organizaes so objetos tangveis, concretos e objetivos. Para os interpretacionistas, as
organizaes so
[...] processos, teias de significados, de representaes, de interpretaes, de
interaes, de vises compartilhadas dos aspectos objetivos e subjetivos que
compem a realidade de pessoas, de movimento, de aes de pessoas individual,
grupal e socialmente consideradas (VERGARA; CALDAS, 2005, p. 71).
De acordo com Vergara e Caldas (2005), os estudos organizacionais interpretativistas no
Brasil esto presentes em trabalhos de diversos pesquisadores que, apesar de irem contra a
grande maioria de estudos funcionalistas, conseguiram manter um fluxo razovel de pesquisas
a partir da dcada de 1980. As vertentes terico-metodolgicas so diversas, como
fenomenologia, interacionismo simblico e etnometodologia na perspectiva antropolgica. Os
autores ressaltam ainda estudos que se aliceram no interpretativismo, mas no se dedicam a
analisar este tema, nem seus mtodos per se. Esses estudos abordam temas como cultura e
simbolismo, identidade, poder, emoo, relaes de gnero, esttica e espiritualidade.
Este trabalho se posiciona na ltima corrente de estudos interpretativistas brasileiros,
identificada por Vergara e Caldas (2005). O estudo sobre a identidade nas organizaes,
apesar de ter surgido no mbito do paradigma positivista-funcionalista com Albert e Whetten
(1985), pode ser explorado de diversas formas no contexto organizacional, conforme
identificado por Caldas e Wood Jr. (1997). A identidade torna-se uma categoria de anlise
relevante para a compreenso da dinmica organizacional, das relaes de identificao e do
comportamento dos indivduos no trabalho. Em um perodo de mudanas aceleradas, no qual
instituies sociais so cada vez mais questionadas, o estudo sobre a construo da identidade
e da identificao pode auxiliar na compreenso das transformaes no mundo moderno do
trabalho.
Aliado ao esforo de compreenso e interpretao, esta pesquisa buscou tambm lanar um
olhar crtico sobre a realidade. Julgou-se necessrio tal posicionamento, pois, ao se aprofundar
o estudo da identidade nas organizaes e, especialmente, na produo artstica, observou-se
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uma srie de distores, as quais no seriam satisfatoriamente compreendidas apenas pelo
paradigma interpretativista. A teoria crtica, nesse sentido, fez-se pertinente, notadamente,
tendo em vista o contexto das sociedades industriais, em que a subjetividade dos indivduos
estaria prisioneira razo moderna, que coloca como valor a ampliao do controle sobre a
natureza. Seria necessrio o desenvolvimento de uma teoria crtica da sociedade, visando
subordinar a pesquisa cientfica ao interesse cognitivo emancipatrio, encontrando maneiras
de se estimular as potencialidades humanas de autorreflexo, particularmente necessrias
produo autntica da arte. Corroborando tais ideias, esta pesquisa advoga o pensamento
filosfico negativo. Prope-se, portanto, a abordar o processo de construo do conhecimento
de forma construtiva-interpretativa, mas atendo-se ontologicamente viso crtica. No
captulo a seguir, sero apresentados os pilares de tal posicionamento para a compreenso da
identidade.
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3. A TEORIA CRTICA E A RAZO HUMANA
A filosofia negativa pressupe uma viso crtica da sociedade e a capacidade humana de
transcender tal realidade para conceber formas melhores de vida. Para Marcuse (1973, p. 14),
uma teoria crtica da sociedade implica a pressuposio de valores, que se resumem em dois
pontos tomados a priori:
1) o julgamento de que a vida humana vale a pena ser vivida, ou, melhor, pode ser
ou deve ser tornada digna de se viver. Este julgamento alicera todo esforo
intelectual; apriorstico para a teoria social, e sua rejeio (que perfeitamente lgica) rejeita a prpria teoria;
2) o julgamento de que, em determinada sociedade, existem possibilidades
especficas de melhorar a vida humana e modos e meios especficos de realizar essas
possibilidades.
A teoria crtica envolve abstrao, para negar o universo de fatos dados e para transcender
esses fatos, luz de suas possibilidades, captadas e negadas. As possibilidades de
transformao tm de estar ao alcance da respectiva sociedade e devem representar a
necessidade real da populao bsica. Dessa forma, os conceitos tericos crticos culminariam
dialeticamente em transformao social (MARCUSE, 1973).
Segundo Mannheim (1986), a transcendncia uma caracterstica humana sempre presente no
decurso da histria, pois o homem, frequentemente, se ocupou mais de objetos que
transcendem sua existncia do que com os imanentes a ela. Portanto, historicamente, sempre
coexistiram as formas de existncia e de transcendncia. Existncia pode ser definida como
toda ordem operante de vida concreta, que deve ser concebida e caracterizada em relao
estrutura poltica e econmica particular na qual se baseia.
Mas abarca igualmente todas as formas de vida em conjunto humana (formas especficas de amor, sociabilidade, conflito, etc.) que a estrutura torna possvel ou
requer; e tambm todos os modos e formas de experincia e pensamento
caractersticos deste sistema social e, consequentemente, em congruncia com ele
(MANNHEIM, 1986, p. 218).
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Mannheim (1986) explica que sempre para uma ordem existencial de vida h concepes
transcendentes, cujos contedos jamais podem ser realizados nas sociedades existentes. Nesse
sentido, todas as ideias que no cabem na ordem em curso so transcendentes e irreais,
podendo ser ideologias ou utopias. O mesmo autor ainda prope a dicotomia entre esses dois
termos, baseando-se no potencial transformador das ideias transcendentes.
Quando ideologias, as ideias so situacionalmente transcendentes, mas se mostram incapazes
de transformar a realidade social e acabam se integrando harmoniosamente na viso de mundo
caracterstica do perodo. Quando utopias, as imagens desiderativas das formas de
transcendncia assumem uma funo revolucionria, tornam-se orientaes que transcendem
a realidade e tendem a transformar-se em uma conduta que abale, parcial ou totalmente, a
ordem das coisas. As utopias estabelecem uma relao dialtica com a ordem existente, pois
em cada poca surgem ideias e valores para cada grupo social, que condensam as tendncias
no realizadas representativas das necessidades de tal poca. Por sua vez, esses elementos
intelectuais se transformam em material explosivo dos limites da ordem existente
(MANNHEIM, 1986).
Segundo Mannheim (1986), tendo em vista a possibilidade transformadora da transcendncia
humana, os grupos dominantes, com vistas manuteno da ordem, sempre pretenderam
controlar os impulsos transcendentes dos indivduos, tornando-os socialmente impotentes e
impossveis de serem efetivados no mundo concreto. Dessa forma, ideias e interesses
situacionalmente transcendentes sempre tenderam ao confinamento em um mundo alm da
histria e da sociedade, onde no pudessem alterar o status quo.
Apesar da tentativa de controle social da transcendncia, para que esta no se tornasse utpica
o pensamento transcendente ocupou lugar de importncia maior entre as atividades humanas
na Antiguidade. Arendt (2004, p. 23) fala da vita activa e da vita contemplativa de forma
anloga aos conceitos, respectivamente, de existncia e transcendncia. Para a autora,
tradicionalmente, todo tipo de atividade existencial serviria s necessidades e carncias da
contemplao, pois somente esta levaria verdade.
como a diferena entre a guerra e a paz: tal como a guerra ocorre em beneficio da
paz, tambm todo tipo de atividade, at mesmo o processo do mero pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contemplao. Todo movimento, os
movimentos do corpo e da alma, bem como o discurso e o raciocnio, devem cessar
diante da verdade.
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Nesse sentido, a vita activa deriva seu significado da vita contemplativa, somente existindo
para que a contemplao ocorra e a verdade seja buscada. Enquanto a contemplao se refere
experincia do eterno, a atividade pode, no mximo, levar a atitudes referentes
imortalidade. O ser que contempla exerce o pensamento sem o intuito de obter resultados, ao
passo que o ser que age procura resultados o tempo todo e considera intil o pensar.
Assim, embora o pensamento inspire a mais alta produtividade mundana do homo
faber (homem que fabrica), no de modo algum sua prerrogativa; comea a
afirmar-se como fonte de inspirao do homo faber somente quando este se
ultrapassa, por assim dizer, e se pe a produzir coisas inteis, objetos que no tm
qualquer relao com necessidades materiais ou intelectuais, com as necessidades
fsicas do homem ou com a sua sede de conhecimento (ARENDT, 2004, p. 184)
.
Arendt (2004) ressalta a importncia das atividades transcendentes na vida humana, pois so
elas que lhe dariam medida, no a compulsiva necessidade de vida biolgica, nem o
instrumentalismo utilitrio da fabricao e do uso de objetos. Somente com a transcendncia
humana que o mundo se torna uma morada para os homens durante sua vida na terra
(ARENDT, 2004, p. 187). A partir de tal assero, a autora se posiciona criticamente diante
da sociedade moderna, que estaria vivenciando a inverso de valores entre a vita activa e a
vita contemplativa. O homem moderno no submeteria mais sua existncia necessidade de
transcendncia. Tal colocao de Arendt (2004) vai ao encontro de outros tericos crticos
contemporneos, os quais apontam para o fim da transcendncia, do pensamento utpico e das
atividades substantivas.
Ao buscar as bases de tal processo, Arendt (2004) aponta para o pensamento cartesiano, o
qual preconizava o conhecimento a partir da certeza introspectiva da prpria existncia
humana. Nesse sentido, o homem abandona o conhecimento obtido a partir da experincia e
do senso comum, para busc-lo em suas faculdades interiores, sem relao com o mundo.
Toda a verdade estaria contida na razo humana, definida tanto por Descartes quanto por
Hobbes, como a capacidade de prever as consequncias, um processo que o homem poderia
desencadear dentro de si mesmo a qualquer momento.
A partir de ento, instaura-se a lgica simblica, que at hoje predomina no pensamento
cientfico moderno e que determina que todo conhecimento obtido por meio dos sentidos deve
ser substitudo por sistemas de equaes matemticas. O pressuposto que a linguagem
matemtica seria universal e inabalvel. Contudo, ao menosprezar o mundo tal como dado aos
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sentidos, o homem teria perdido o mundo transcendental, e com ele a possibilidade de
transcender-se o mundo material em conceito e pensamento (ARENDT, 2004, p. 302).
Nesse processo, nota-se uma alterao na concepo do que racional. O racionalismo
moderno, com sua lgica cartesiana, teria instaurado um suposto antagonismo entre a razo e
as sensaes humanas no mensurveis e quantificveis, as paixes e as experincias
transcendentais. A noo moderna de racionalidade remontaria ao perodo do Iluminismo
como o momento em que a razo foi separada da sua herana clssica. A partir de ento,
racional se transformou em sinnimo de clculo matemtico, funcional, conceitos em
frmulas e verdades estatsticas. A razo abandona a ordenao da vida do homem, a
compreenso tica, moral e religiosa. Concomitantemente a tal alterao na maneira de se
pensar a prpria razo humana, ocorreram e tm ocorrido grandes mudanas na sociedade
pr-Moderna e Moderna.
Colaborando com o esforo de se buscar as razes da racionalidade moderna, Marcuse (1969)
ressalta que nos primrdios da Revoluo Francesa estavam presentes elementos do
pensamento utpico, a partir do qual se acreditava que a situao do homem no mundo
deveria basear-se em sua prpria atividade racional livre, e no mais de qualquer autoridade
externa. Tal forma de pensar estaria em contraposio direta realidade social da poca.
Contudo, o imprio napolenico deixou de lado as tendncias radicais da Revoluo, para
consolidar suas consequncias econmicas. A realizao da razo associara-se expanso da
indstria e ideologia capitalista. A partir de ento, a razo se torna o slogan crtico da classe
mdia burguesa ascendente, que combatia as instituies do Antigo Regime: a Igreja, o
absolutismo e o mercantilismo. Os trs elementos essenciais dessa razo seriam:
a) O mundo racional deveria ser compreendido e transformado pela ao intencional
do homem.
b) A razo humana era ilimitada, sendo independente da ordem social ou qualquer
outra ordem preestabelecida. Ao longo da histria, o homem desenvolveria aptides cada vez
melhores para a satisfao de seus desejos.
c) Por fim, a razo implica universalidade. Por meio dela, tendo os conceitos como
instrumentos, o homem poderia descobrir as leis universais do mundo.
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Tal ideia de razo era identificada com a lgica cartesiana e o exerccio da cincia natural, que
se expandiu para o entendimento do mundo social, reduzindo e impedindo a exigncia de
liberdade do homem. Tudo era comandado por leis gerais, matemticas e racionais
(MARCUSE, 1969).
Instaura-se, dessa forma, a hegemonia da filosofia positiva, com sua crena no progresso
contnuo da humanidade. No positivismo no h espao para iluses transcendentes. Os
grandes avanos cientficos e tecnolgicos da primeira metade do sculo XX reforam o
ataque s ideias que transcendam as maravilhas alcanadas pelo homem no plano existencial
(MARCUSE, 1969).
O progresso tecnolgico instaurado pela hegemonia da filosofia positiva trouxe grandes
satisfaes e confortos materiais. Contudo, trouxe tambm necessidades infindveis. A espiral
de necessidades e satisfaes se torna, por sua vez, repressiva, pois garantiria a submisso
cega ao sistema. Os indivduos so levados a crer que todas as suas necessidades estariam
supridas pela vida existencial. Dessa forma, so reduzidos os momentos de transcendncia, de
contemplao, em que os indivduos estariam consigo-mesmos e sendo por-si-mesmos.
Transformam-se em objetos de sua prpria sociedade, incapazes de transcend-la enquanto
sujeitos (MARCUSE, 1969).
Todos os homens haviam sido declarados livres e iguais; todavia, ao agir de acordo
com seu conhecimento e em funo de seus interesses, os homens haviam criado e
experimentado uma ordem de dependncia, de injustia e de crises peridicas. A
competio geral entre sujeitos economicamente livres no havia estabelecido uma
comunidade racional que pudesse salvaguardar e satisfazer s necessidades e aos
interesses de todos os homens (MARCUSE, 1969, p. 27).
Com a hegemonia da razo cartesiana e a reduo da transcendncia na era moderna, assiste-
se ao processo da instrumentalizao do mundo e da prpria vida humana. Nos termos de
Arendt (2004), a vita activa se sobrepe pela primeira vez vita contemplativa, invertendo
suas posies de importncia. A atividade humana no mundo perde seu ponto de referncia na
contemplao, para se referenciar somente vida em si.
O homem moderno, perdendo sua certeza em um mundo melhor no futuro, arremessado
para dentro de si mesmo. O que lhe sobrou foram apenas seus apetites e desejos, os quais
precisariam ser supridos pelos objetos fabricados por ele mesmo, com a cincia em contnuo
progresso. Nesse sentido, a atividade de fabricao passa a ser a capacidade humana mais
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valorizada na Modernidade. Todavia, fabricar significa perceber os processos apenas como
meios para um fim. O ser humano se torna to confiante na validade global do princpio de
meios e fins que qualquer assunto passa a ser resolvido e qualquer motivao passa a ser
reduzida pelo critrio da utilidade. O resultado extremo de tal processo seria a reduo da vida
humana a uma sociedade de detentores de empregos, indivduos em funcionamento
puramente automtico, que aceitaram abandonar sua individualidade e se submeter a uma
conduta funcional e entorpecida, em prol dos benefcios materiais que aufeririam em razo de
tal submisso (ARENDT, 2004; RAMOS, 1981; MANNHEIM, 1986).
Marcuse (1969) explica que desde a sua instaurao a concepo e a realizao da razo
moderna continham elementos incompatveis com a existncia livre e plena do ser humano. O
homem contemporneo estaria escravizado pela sua prpria capacidade de produzir, pela
satisfao adiada com as coisas que ho de ser inventadas e produzidas e pelo domnio
repressivo da natureza, no homem e fora dele. As potencialidades humanas, ao se
desenvolverem em uma estrutura de dominao repressiva, tornam o prprio homem refm de
sua realidade totalitria.
Com a inverso entre atividade e contemplao, os momentos de experincias
transcendentais, em que o homem se liberta de sua introspeco e vive a mundanidade,
escapam cada vez mais da experincia humana comum. So momentos cada vez mais
limitados aos talentos de artistas, a espaos da vida humana onde se transpe a
instrumentalidade e a aparncia, para se viver autenticamente. Apesar de escassos, tratar-se-ia
de momentos imprescindveis para a vida em seu carter mais completo. So momentos que
ainda persistem, como fascas que negam o fato de que o homem moderno tenha perdido suas
capacidades humanas (ARENDT, 2004; RAMOS, 1981).
Marcuse (1969) sustenta que para que haja razo onde no h liberdade plena necessrio
haver contradio, oposio e negao. Se no h uma razo que negue a realidade, esta se
transforma em fora repressiva por sua lei positiva. Perdem-se a transcendncia e o esprito
humano. Portanto, h de se cultivar momentos de liberdade, pois a libertao s pode ser
estabelecida e empreendida por indivduos livres livres das necessidades e dos interesses
que pertencem dominao e represso (MARCUSE, 1969, p. 401).
possvel estender-se a crtica ampla da razo moderna forma como a cincia tem se
desenvolvido nesse contexto. Mannheim (1986) destaca que a anomalia do pensamento na
sociedade burguesa se estende a sua teoria social. Observa-se a tentativa de racionalizao
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generalizada do mundo, mas no sua soluo. A teoria burguesa buscaria uma
intelectualizao formal e aparente de elementos inerentemente irracionais, sob a tica
cartesiana, tais como o conflito poltico e a livre concorrncia, sem contudo, apresentar
solues. Tratar-se-ia de tautologia disfarada, ou de um pensamento que aceita critrios
inerentes ao sistema social, sendo ele prprio subproduto do sistema (RAMOS, 1981, p. 50).
A partir da crtica da teoria social tradicional e, mais especificamente, da teoria organizacional
vigente, Ramos (1981) postula que uma teoria organizacional verdadeiramente cientfica no
buscaria estabelecer um sistema cognitivo nico para qualquer organizao existente, mas
faria, antes, uma avaliao das organizaes em termos da compreenso dos seus padres de
conduta, levando em considerao o fato de que estes podem estar pautados em requisitos
funcionais ou substantivos. O cientista das organizaes deveria saber identificar em qual
enclave da vida social a organizao em questo estaria inserida. E, portanto, deveria
identificar os elementos guiadores da conduta naquele contexto.
Ramos (1981) advoga a delimitao dos sistemas sociais a partir do sentido que a interao
humana adquire em cada situao. Dessa forma, pretende-se evitar a unidimensionalizao da
vida individual e coletiva. Tal processo foi apontado como um tipo de socializao no qual o
indivduo internaliza de tal forma a razo moderna, os critrios de utilidade e a busca pela
satisfao de seus desejos em objetos em outras palavras, o modo de vida baseado no
mercado que age como se tal carter fosse o supremo padro normativo em todas suas
relaes interpessoais. O indivduo perderia a dimenso transcendental de sua vida. Segundo a
abordagem unidimensional das organizaes, h o discurso equivocado da harmonia entre o
interesse pelas pessoas e o interesse pela produo de mercadorias. Tal ideia abre caminho
para o processo de superorganizao, o qual transforma toda a sociedade em um universo
operacionalizado, um mundo administrado (MARCUSE, 1973; RAMOS, 1981).
Nesse contexto, considerou-se relevante a retomada da discusso sobre a razo humana.
Negar a unidimensionalidade da vida significa conceber a possibilidade de existirem outras
formas de racionalidade alm da razo utilitria vigente no mercado. Significa entender o ser
humano como um ser livre, capaz de pensar e agir autonomamente. A prtica e a interao de
um indivduo podem ser inspiradas por diferentes racionalidades em diferentes contextos,
assim como a construo cotidiana de sua identidade. Para clarear tais relaes, inicialmente,
sero expostas as noes principais sobre racionalidades.
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3.1 Racionalidades
A discusso sobre a racionalidade humana remete diretamente s premissas tomadas como
verdadeiras e que desencadeiam o pensamento lgico. Sob o prisma do pensamento filosfico
negativo, a razo humana poderia operar segundo diferentes critrios; basicamente, aqueles
relacionados existncia e aqueles relacionados transcendncia.
Ao se tratar do tema da racionalidade, Max Weber apontado como figura relevante
(RAMOS, 1981; MANNHEIM, 1986), especialmente por ter sido pioneiro ao diferenciar
quatro tipos de racionalidade:
A ao social, como toda ao, pode ser determinada: 1) de modo racional referente
a fins: por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo exterior e de
outras pessoas, utilizando essas expectativas como condies ou meios para alcanar fins prprios, ponderados e perseguidos racionalmente, como sucesso; 2) de
modo racional referente a valores: pela crena consciente no valor tico, esttico, religioso ou qualquer que seja sua interpretao absoluto e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do resultado; 3) de modo afetivo,
especialmente emocional: por afetos ou estados emocionais atuais; 4) de modo
tradicional: por costume arraigado (WEBER, 2004, p. 15).
Weber (2004) caracteriza como ao social aquele comportamento que se orienta pelo
comportamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro. A ao social
pressupe que o indivduo tenha conscincia do sentido de seu comportamento. Portanto,
aes estritamente reativas, de imitao ou condicionadas pela massa no se caracterizam
como ao social. Weber (2004) reconhece, contudo, que em vrios casos difcil estabelecer
distines entre um comportamento alheio e o sentido da ao prpria. Muitas vezes, o
sentido da ao no totalmente consciente. Ademais, raramente uma ao social ser
pautada exclusivamente por um tipo de racionalidade. Haveria quase sempre uma mistura de
racionalidades envolvidas.
A ao tradicional e a ao afetiva encontram-se no limite daquilo que se chama de ao
conscientemente orientada pelo sentido. O comportamento pautado pela tradio, muitas
vezes, aproxima-se da simples reao a estmulos habituais, ao passo que o comportamento
afetivo pode ser uma reao impensada a um estmulo no cotidiano. Contudo, caso haja
vinculao consciente na ao em relao tanto ao habitual quanto ao estado emocional, esta
pode se aproximar da racionalidade referente a valores ou a fins (WEBER, 2004).
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A ao referente a valores e a ao afetiva tm em comum o fato de possurem sentido em si
prprias, em suas peculiaridades, e no no resultado que as transcende. Age afetivamente,
contudo, quem busca satisfazer uma necessidade emocional, sem pensar nas consequncias ou
nos alvos ltimos da ao e sem planej-la. Age orientado por valores quem age a servio de
sua convico sobre o que certo, bom, belo, religioso, piedoso, etc. Nesse caso, a ao
pautada por mandamentos ou exigncias que o indivduo cr dirigidos a ele (WEBER, 2004).
A ao racional referente a fins ocorre quando o indivduo pondera racionalmente os meios
em relao s consequncias e os diferentes fins possveis. A deciso entre fins concorrentes
pode ser orientada por valores ou, simplesmente, pela urgncia conscientemente ponderada do
indivduo. A racionalidade quanto aos valores e a quanto aos fins se relacionam de diferentes
formas. Contudo, do ponto de vista da ltima, a ao orientada por valores ser sempre
irracional, pois quanto mais se valorize a prpria ao, menos se reflete sobre suas
consequncias (WEBER, 2004).
Mannheim (1986) se baseia claramente nas ideias de Weber ao discorrer sobre a racionalidade
substancial e a funcional.
A racionalidade substancial estaria baseada em julgamentos independentes de acontecimentos
em determinada situao, que permitiriam uma conduta tica e responsvel. Desencadearia
um ato de pensamento que revele percepo inteligente das inter-relaes dos
acontecimentos de uma determinada situao (MANNHEIM, 1986, p. 63). Por meio do
exerccio da razo substancial, o homem transcenderia a condio de um ser puramente
natural, relacional e socialmente determinado, pautando sua vida segundo imperativos ticos
ou estticos dessa razo e transformando-se em um ator poltico (RAMOS, 1981).
A racionalidade funcional diria respeito ao reconhecimento de qualquer conduta,
acontecimento ou objeto como sendo apenas meio para se atingir uma meta. Estaria
relacionada a uma srie de atos que, para atingir o objetivo, coordena os meios mais
eficientemente. Cada ato tem um papel funcional na consecuo do objetivo final. A srie de
atos funcional quando est organizada funcionalmente em relao ao objetivo e suas
consequncias so calculadas. A ao racional funcional seria observada tanto em limites de
uma organizao que opera planos estratgicos de certas autoridades quanto em sociedades
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solidificadas pela tradio cujas aes individuais tm sentido pela sua funo no todo
(MANNHEIM, 1986).
Mannheim (1986) expande os conceitos de funcional e de substancial para a esfera da
moralidade. Uma disciplina moral seria funcional quando postula padres de conduta que
garantem o funcionamento suave da sociedade. Em contrapartida, a moralidade substancial
estaria baseada em valores concretos, arraigados na f, na tica, na esttica ou em outros tipos
de sentimento que podem parecer irracionais sob o ponto de vista funcional. Nesse sentido,
para Mannheim (1986, p. 77) existiriam duas formas de proibies e tabus, observveis
durante toda a histria humana: [...] as que garantem o funcionamento da sociedade em
questo e as que expressam atitudes emocionais particulares, tradies, ou mesmo
idiossincrasias de um grupo.
Na sociedade Moderna, observa-se a tendncia a se neutralizar a moralidade substancial,
principalmente no espao pblico. As decises na esfera pblica pautam-se cada vez mais em
padres universais de tolerncia, que possuem significao meramente funcional. Nesse
sentido, entendido como bom e correto o que facilita o funcionamento das relaes sociais.
A influncia exacerbada da moralidade funcional impediria as qualificaes ticas da vida
humana. O ordenamento da vida passa a ser concedido como algo extrnseco. Cada indivduo
aceita regular e limitar suas prprias paixes de modo a no ameaar seus interesses prticos e
garantir os seus ganhos. Os valores humanos tornam-se valores econmicos, acordos tcitos
ou explcitos baseados em um clculo utilitrio de consequncias (MANNHEIM, 1986;
RAMOS, 1981).
Diante disso, Mannheim (1986) sustenta que seria necessrio proteger a vida humana contra a
expanso crescente da racionalidade funcional, acarretada pela industrializao. Um alto grau
de desenvolvimento tcnico e econmico no significaria necessariamente alto grau de
desenvolvimento tico
[...] quanto mais industrializada uma sociedade, mais avanada sua diviso do
trabalho e sua organizao, maior ser o nmero de esferas de atividade humana
funcionalmente racionais e portanto tambm previsveis antecipadamente. Enquanto
o indivduo nas sociedades antigas apenas ocasionalmente e em esferas limitadas,
agia de uma maneira funcionalmente racional, na sociedade contempornea ele
obrigado a agir dessa forma em um nmero de esferas de vida cada vez maior
(MANNHEIM, 1986, p. 65).
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A partir das distines de Weber (2004) e das definies de Mannheim (1986), Ramos (1983)
defende que somente os atos substancialmente racionais que atestam a capacidade de
transcendncia do ser humano e sua qualidade de ser racional. A racionalidade substancial se
relaciona preocupao humana em resguardar a liberdade. Somente por meio dela que o
indivduo se liberta da integrao positiva numa srie sistemtica de outros atos. Essa
integrao que impede a ao inteligente.
Ramos (1981) prope que a racionalidade substantiva se constitua como uma categoria
essencial para a teorizao sobre a vida humana associada. Nesse sentido, ele compara:
enquanto na teoria substantiva os conceitos seriam derivados do e no processo de realidade,
em uma teoria formal os conceitos seriam apenas instrumentos convencionais de linguagem,
que descrevem procedimentos operacionais. A partir disso, Ramos (1981) critica, por
exemplo, a noo de racionalidade proposta por Simon (1965), pois esta estaria totalmente
pautada pela instrumentalidade. Sendo a razo o conhecimento absoluto das consequncias,
Simon (1965) a extrai do prprio homem, colocando as organizaes como mais racionais do
que a humanidade, j que a habilidade de avaliao das corporaes, principalmente com a
informtica, seria maior do que a de um indivduo isolado. Simon (1965) concebe os critrios
da racionalidade como unicamente econmicos e prope a separao entre os elementos
valorativos e os racionais, como se a nica racionalidade existente fosse a instrumental.
Nesse sentido, ao negligenciar a racionalidade substancial e ao silenciar sobre seus
pressupostos filosficos, a cincia moderna se torna a metodologia de uma realidade histrica
predeterminada, a qual ela refora. O carter instrumentalista interno do mtodo cientfico
revela uma relao estreita entre o pensamento cientfico e sua aplicao. Essa relao segue a
lgica e a racionalidade de dominao. A cincia moderna uma tecnologia apriorstica que
funciona como controle social (MARCUSE, 1973).
A conjugao da racionalidade instrumental com a cincia moderna d origem racionalidade
tecnolgica. O aparato tcnico de produo e distribuio funcionaria como um sistema que
determina a priori seu produto e as operaes de sua manuteno e ampliao. O aparato
produtivo se torna totalitrio, pois determina no s as oscilaes, habilidades e atitudes
socialmente necessrias, como tambm as necessidades e aspiraes individuais. No
ambiente tecnolgico, a cultura, a poltica e a economia se fundem num sistema onipresente
que engolfa ou rejeita todas as alternativas. O potencial de produtividade e crescimento desse
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sistema estabiliza a dominao. A racionalidade tecnolgica ter-se- tornado racionalidade
poltica (MARCUSE, 1973, p. 19).
A racionalidade tecnolgica opera na escravizao progressiva do homem pelo aparato
produtor, reduzindo sua vida luta pela existncia. Contudo, tal racionalidade se torna ainda
mais suspeita tendo em vista que a existncia pela qual se luta em tais condies deixa de ser
uma existncia humana, pois prescinde de liberdade, vida poltica e necessidade de
transcendncia. Guiado pela razo instrumental tecnolgica, o homem aceita sua submisso
ao aparato tcnico para ampliar as comodidades de sua existncia e aumentar sua
produtividade no trabalho. Cria-se, portanto, uma sociedade racionalmente totalitria. A
fora libertadora da tecnologia a instrumentalizao das coisas se torna o grilho da
libertao; a instrumentalizao do homem (MARCUSE, 1973, p. 155).
Diante da constatao do totalitarismo racional vigente na sociedade moderna, Marcuse
(1973) prope a restaurao da racionalidade transcendente, para que as realizaes
produtivas da civilizao fossem apropriadas em prol da pacificao da existncia, conferindo
maior possibilidade de livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas. O autor
sustenta que tal racionalidade envolve inevitavelmente julgamentos de valor e premissas
tomadas como verdades a priori.
Citando Whitehead, Marcuse (1973) afirma que a funo da razo promover a arte da vida;
ou seja, buscar viver cada vez melhor. Nesse sentido, a arte, como atividade transcendental,
significa a negao das condies reais, em busca de uma verdade superior. Contudo, na
sociedade moderna a razo tem sido colocada como o oposto da arte, concedendo arte o
privilgio de ser irracional, no sujeita razo cientfica, tecnolgica e instrumental. Sendo a
arte irracional, a razo da cincia assumiu para si o compromisso de buscar uma vida melhor.
Contudo, a racionalidade cientfica fracassou em tal empreitada, pois conservou o
compromisso com a no liberdade no qual ela nasceu, com a negao de uma verdade
superior.
Uma racionalidade ps-tecnolgica submeteria a tcnica arte da vida, libertao da
brutalidade e insuficincia da natureza e reduo da misria, da violncia e da crueldade.
Nesse sentido, a funo da razo converge com a funo da arte. A racionalidade especfica
da arte est fundada nas ideias do artista, como causa final. A partir disso, ele parte para a
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construo de certas coisas. A arte, necessariamente, cria outro universo de pensamento e
prtica contra o existente e dentro dele (MARCUSE, 1973).
A capacidade inerente arte de projetar a existncia e de definir possibilidades, ao invs de
ser capturada pelo sistema como simples forma de embelezamento da realidade, deveria se
tornar uma tcnica para destruir a lgica de mercado e a misria. A arte transforma o objeto
natural, pois interfere em seus significados instrumentais e contingenciais por meio de um
aparato que livre e racional. Transformando a natureza, que opressiva, a arte se torna uma
forma de libertao. Nesse sentido, torna-se uma manifestao da racionalidade substantiva,
do autenticamente racional ou do irracional segundo a perspectiva instrumental.
A sociedade unidimensional em desenvolvimento altera a relao entre o racional e o irracional. Contrastado com os aspectos fantsticos e insanos de sua
irracionalidade, o reino do irracional se torna o lar do realmente racional das ideias que podem promover a arte da vida. Se a sociedade estabelecida controla toda comunicao normal, validando-a ou invalidando-a de conformidade com as
exigncias sociais, ento os valores estranhos a essas exigncias podem talvez no
ter qualquer outro meio de comunicao a no ser o meio anormal da fico
(MARCUSE, 1973, p. 227).
Apropriando-se das perspectivas dos autores citados neste tpico, sustenta-se aqui a viso de
que prprio da natureza humana a interao cotidiana baseada em diferentes tipos de
racionalidade, a saber, a instrumental e a substantiva. Seriam racionalidades que se mesclam,
se