Dissertação - Maria Lucia Paniago - o Manual Didático de Ciências Na Organização Do Trabalho...
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MARIA LUCIA PANIAGO LORDELO NEVES
O MANUAL DIDTICO DE CINCIAS NA
ORGANIZAO DO TRABALHO DIDTICO NA
ESCOLA CONTEMPORNEA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Campo Grande (MS)
2011
-
Ficha catalografica
Neves, Maria Lucia Paniago Lordelo.
O manual didtico de cincias na organizao do trabalho didtico na
escola contempornea/ Maria Lucia Paniago Lordelo Neves - Campo
Grande, MS, 2011.
157f; 30 cm.
Orientadora: Silvia Helena Andrade de Brito..
Dissertao (mestrado)- Universidade Federal do Mato Grosso do
Sul, PPGEdu.
Centro de Cincias Humanas e Sociais.
1. Trabalho didtico; 2. Manual didtico. I. Brito, Silvia Helena
Andrade. II. Ttulo.
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MARIA LUCIA PANIAGO LORDELO NEVES
O MANUAL DIDTICO DE CINCIAS NA
ORGANIZAO DO TRABALHO DIDTICO NA
ESCOLA CONTEMPORNEA
Dissertao apresentada como exigncia
final para a obteno do grau de Mestre em
Educao Comisso Julgadora da
Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, sob a orientao da Professora Doutora
Silvia Helena Andrade de Brito.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Campo Grande (MS)
2011
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COMISSO JULGADORA:
___________________________________________
Prof. Dr. Silvia Helena Andrade de Brito
____________________________________________
Prof. Dr. Ldia Maria Luz Paixo Ribeiro de Oliveira
___________________________________________
Prof. Dr. Ester Senna
-
Dedico aos milhes de trabalhadores e trabalhadoras que, subtrados de sua
dignidade, cotidianamente, possibilitam que continuemos vivos.
-
AGRADECIMENTOS
Silvia, a quem muito respeito como professora, orientadora e colega (nessa ordem
temporal), pela seriedade com que me mostrou os caminhos para a pesquisa e pela
confiana em mim depositada, o que me permitiu a conquista da autonomia
necessria ao trabalho acadmico.
Aos colegas que comigo compartilharam tantas dvidas e conflitos e com quem tive
o grande prazer de conviver nessa jornada.
Ao Andr e Jorge, grandes companheiros de luta e amigos que tive o privilgio de
conhecer no mestrado, portos seguros nos momentos de conflito e angstia.
Jacqueline pela ateno em nos auxiliar nos meandros da burocracia universitria.
Dimair, pela colaborao muito bem vinda na reta final do trabalho, sempre
disponvel e atenciosa nas horas de ansiedade.
Hellen, querida amiga, pela pacincia em me ouvir nos momentos solitrios de
produo intelectual.
minha famlia: irmos, sobrinhos e cunhado, pelo apoio, confiana e estmulo e em
especial a minha irm Maria Cristina pelas sesses de terapia acadmica.
Ao Marcos que, passados 36 anos, continua sendo o companheiro amado de todas as
lutas e todas as horas, sempre presente, sempre acreditando que eu daria conta, me
proporcionando as condies para todas as caminhadas e em especial esta que
encerro agora.
E mais que tudo aos meus filhos Felipe e Juliana, que do significado minha vida.
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RESUMO
O presente estudo tem por objetivo investigar a utilizao do manual didtico na
relao do trabalho pedaggico do professor e suas implicaes para a
conservao/superao do trabalho didtico em uma sociedade dominada pelo modo
de produo capitalista. O levantamento dos dados empricos foi realizado em trs
fases, no ano de 2009, enfocando: 1) a anlise dos manuais didticos de cincias de
5 e 6 anos, 2) observao, em sala de aula, dos anos escolares selecionados, 3)
entrevistas com cinco professores dos respectivos anos buscando apreender o que
pensam sobre o seu trabalho didtico e o que realizam no seu cotidiano educativo.
Foram selecionadas duas escolas, uma urbana e uma da zona rural, da Rede
Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS. Realizamos, inicialmente, uma
reviso bibliogrfica da literatura produzida sobre o objeto de investigao, com o
objetivo de levantar as questes apontadas pelos estudos sobre o manual didtico. A
base terica apresentada na perspectiva materialista histrica, em uma abordagem
com base nos estudos de Marx, explicitando aspectos terico-metodolgicos
relevantes para a compreenso do objeto em pauta. As investigaes revelaram que a
superao do manual didtico ou mesmo a elaborao de um livro didtico como
sistematizao dos conhecimentos cientficos transformados em contedos de ensino,
que desvele verdadeiramente aos alunos o que a humanidade produziu s ser
possvel quando a contradio capital e trabalho desaparecer com o advento de uma
sociedade voltada emancipao da humanidade.
Palavras-chave: Trabalho didtico; Organizao do trabalho didtico; Manual
didtico.
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ABSTRACT
This study aims to investigate the use of the teaching manual related to the teacher's
pedagogical work and its implications for conservation / overcoming of the didactic
work in a society dominated by the capitalist mode of production. The survey of
empirical data was carried out in three phases, in 2009, focusing on: 1) the analysis
of the sciences teaching manuals of fifth and sixth years, 2) observation, in the classroom, of the school years selected, 3) interviews with five teachers of the
respective years to grasp what they think about their didactic work and what they
carry out in their daily education. We selected two schools, one urban and one of the
rural area, of the Municipal Chain Education (REME) from Campo Grande/MS. We
performed, initially, a review of the literature produced about the object of
investigation, aiming to survey the questions raised by the studies about the teaching
manual. The theoretical basis is presented in the historical materialist perspective, in
an approach from the studies of Marx, describing theoretical and methodological
aspects relevant to understanding the object in question. The investigations revealed
that the overcoming of the teaching manual or even the preparation of a textbook as
systematization of scientific knowledges transformed into learning content, that truly
unveils to the students what humanity has produced, is only possible when the
contradiction capital and labor disappears with the advent of a society dedicated to
the emancipation of humanity.
Key words: Didactic work; Organization of didactic work; Teaching manual.
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SUMRIO
Introduo ......................................................................................................... 09
Captulo I - O manual didtico no interior do trabalho didtico ................ 23
1.1 As origens da organizao do trabalho didtico na escola pblica moderna 23
1.2 A utilizao do manual didtico na escola pblica da sociedade capitalista
contempornea ...................................................................................................
44
1.3 Estado e as polticas pblicas voltadas para o manual didtico ................... 48
1.3.1 Reflexes sobre o Estado na sociedade capitalista e as polticas pblicas 48
1.3.2 Sobre o manual didtico e as polticas do Estado para o setor ................ 54
1.3.3 Das polticas pblicas do Estado brasileiro para o manual didtico s
aes desenvolvidas pela SEMED de Campo Grande .......................................
63
Captulo II O ensino de cincias na escola fundamental e a utilizao do manual didtico ................................................................................................
70
2.1 A natureza apresentada pelo manual didtico: a discusso acerca da
natureza no ensino de cincias ...........................................................................
71
2.1.1 Cincias: meio ambiente .......................................................................... 72
2.1.2 Projeto Pitangu ....................................................................................... 76
2.1.3 Projeto Ararib ......................................................................................... 77
2.1.4 Reflexes a respeito dos objetivos e da abordagem dos manuais
didticos .............................................................................................................
80
2.1.5 Sobre a organizao do trabalho didtico ................................................ 91
2.2 O uso do manual didtico no ensino de cincias .......................................... 92
2.2.1 A relao professor/aluno mediada pelo manual didtico ....................... 92
2.2.2 O que os professores pensam sobre sua prtica docente .......................... 101
Captulo III - O manual didtico de cincias na relao educativa: uma
abordagem ambiental .......................................................................................
118
3.1 O manual didtico como mediador da relao educativa ............................ 119
3.2 Os limites do manual didtico de cincias na abordagem das questes
ambientais ...........................................................................................................
130
Consideraes finais ......................................................................................... 140
Referncias ........................................................................................................ 146
Apndice ............................................................................................................ 156
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INTRODUO
Os estudos aqui apresentados trazem a temtica do manual didtico como
instrumento de mediao na relao professor/aluno, tomando como foco de
discusso o ensino de cincias na abordagem das questes ambientais, uma vez que
na contemporaneidade tais questes so determinantes no processo de produo da
existncia humana.
Nosso ponto de partida para a pesquisa sobre o tema foi o fato de que a
discusso sobre o manual didtico no se esgota, visto que ele ainda permanece
como o mais importante instrumento de trabalho do professor no cenrio da
educao escolar brasileira e, portanto, o material de maior peso para o trabalho
didtico, cuja produo se inscreve na lgica do capital, sob o patrocnio do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educao (FNDE)/Ministrio da Educao (MEC),
como mercadoria fetichizada, constitutiva do processo de reproduo ampliada do
capitalismo monoplico.
Partindo desse pressuposto, buscamos compreender a educao na
sociedade em que vivemos, por meio da discusso acerca dos fundamentos do
trabalho didtico, para encontrar elementos que nos permitam identificar o papel
histrico do manual didtico no processo educativo. Para tanto, tomamos como foco
de discusso o manual didtico da disciplina de cincias, adotados nos 5 e 6 anos de
escolas da Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo Grande/MS.
As afirmaes acima ficam evidentes na literatura pertinente ao tema, o que
pode ser constatado no catlogo analtico intitulado O que sabemos sobre o livro
didtico, de 1989, na tese de doutorado de Hilrio Fracalanza, com o tema O que
sabemos sobre o livro didtico para o ensino de cincias no Brasil, defendida em
1992 e, mais recentemente, nos anais do Simpsio Internacional Livro Didtico:
Educao e Histria, realizado em 2007, na Faculdade de Educao da Universidade
de So Paulo, com 154 trabalhos. Cabe assinalar, tambm, as pesquisas em
andamento desenvolvidas pelo grupo do HISTEDBR, regional de Mato Grosso do
Sul, ligadas ao Programa de Pesquisa Instrumentos do trabalho didtico e relao
educativa na escola moderna (SOUZA, 2010, p.121).
Antes, contudo, de darmos prosseguimento s discusses a respeito do tema
sobre o qual intentamos refletir, vale esclarecer a razo de nossa opo pelo termo
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10
manual didtico. Livro didtico a denominao mais usual para esse instrumento
de trabalho do professor que neste estudo se apresenta ao debate sobre sua presena
no interior do trabalho didtico.
Porm, optamos pela categoria manual didtico por melhor exprimir uma
verso resumida e simplificada dos contedos contidos nesse recurso material que,
na concepo comeniana, tinha a funo de facilitar o ensino, de modo que qualquer
pessoa pudesse utiliz-lo para ensinar tudo a todos. Essa pessoa o professor, no
precisaria de uma formao aprofundada dos conhecimentos necessrios ao exerccio
da funo. Bastariam, a ele, os conhecimentos essenciais utilizao dos manuais
didticos, tanto do professor quanto do aluno (ALVES, 2005). Vale ressaltar que a
centralidade e a exclusividade que ocupa na relao educativa que confere a tal
instrumento o carter de manual e que o difere do livro didtico. Dessa perspectiva,
qualquer que seja o livro utilizado pelo professor pode assumir caractersticas de
manual, desde que seja utilizado como fonte nica de conhecimento mesmo porque
devemos considerar que seu carter, em princpio, este e que seu contedo seja
simplificado ao ponto de sonegar elementos da realidade humana que impeam a
autoconstruo do indivduo rumo emancipao humana.1
Elaborada sob distintas bases tericas, a extensa produo sobre o tema
apresenta discusses que envolvem a funo do manual didtico na transmisso dos
conhecimentos, sua constituio histrica, o seu polmico papel de estruturador da
atividade de ensino, a reforma do manual didtico, e tambm a discusso ideolgica
sobre os conhecimentos veiculados por esse instrumento2. Alm das obras dedicadas
exclusivamente ao manual didtico, no podemos deixar de ressaltar a existncia de
trabalhos que levantam discusses acerca de variados temas sobre educao e que
no necessariamente tratam desse recurso material, embora mencionem, explcita ou
implicitamente, alguns de seus aspectos, relacionando-os ao tema ali apontado. Isso
___________ 1 Observe-se que os autores apresentados neste trabalho utilizam indistintamente a expresso livro
didtico ou manual didtico nos textos e/ou obras em que abordam a temtica em questo, portanto,
quando nos referirmos s suas produes nos remeteremos ao termo utilizado por cada autor. 2 Os autores aqui citados so aqueles sobre os quais no faremos maiores comentrios no interior do
texto. Fernandes (2004) trata do manual didtico com enfoque na sua funo de transmisso dos
conhecimentos. Alade Oliveira (1968) e Choppin (2004), em relao ao manual didtico, analisam
como este se constituiu historicamente. Zilberman (1987) e Souza (2007) investigam o manual
didtico como estruturador da atividade de ensino. Sobre melhoria de qualidade cf. Fracalanza (1992,
2003). A respeito da ideologia veiculada pelo manual didtico, cf. Campos (1987).
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11
pode ser observado, por exemplo, em obras como de Smolka (2000), Saviani (1986),
Coletivo de Autores3 (1994) e Torres (2000).
Historicamente, o manual didtico foi concebido por Jan Amos Comenius4
com o propsito de ensinar tudo a todos de modo certo, fcil, slido, com economia
de tempo e para facilitar a execuo do mtodo. Assim, insere-se na pedagogia
comeniana como um instrumento para o professor, na organizao do trabalho
didtico, j que nele estariam contidos todos os contedos necessrios s aulas, dessa
forma, dispensando o professor do conhecimento erudito (COMENIUS, 2006).
Tal forma de organizar o trabalho didtico veio se materializar a partir do
sculo XIX, em razo do desenvolvimento das foras produtivas, propcias
instaurao da escola moderna. Segundo Alves (2005, p.141), aps a sua instituio
essa proposta petrificou-se e, ainda hoje, permanece resistindo s tentativas que se
colocam como objetivo a sua superao.
Assim, considerando a petrificao da proposta comeniana de utilizao do
manual didtico, buscamos na historiografia da rea as contribuies necessrias ao
estudo do objeto em causa.
No Brasil do sculo XX, destacam-se dois autores Ansio Teixeira (1900-
1971) e Paulo Freire (1921-1997) que, mesmo no tendo dedicado seus estudos
especificamente aos manuais didticos, tambm contriburam e permanecem
contribuindo, dada a atualidade de suas produes tericas para o desvelamento da
utilizao desse instrumento na prtica pedaggica do professor. Ao formularem suas
propostas para a educao brasileira, embora sob pressupostos diferentes, esses
educadores, pela prpria natureza do manual didtico, discutiram a sua utilizao
inserida no mbito dessas propostas (NEVES; BRITO, 2009).
Ansio Teixeira, em vrios de seus escritos, demonstra a importncia dos
livros didticos e manuais de ensino como recurso do professor. Ao assumir a
direo do, ento, Instituto Nacional de Estudos Pedaggicos (INEP), que promoveu,
poca, a produo de materiais didticos para todo o pas, declara com rigor que
[...] no podemos fazer escolas sem professores, seja l qual for o nvel
das mesmas, e, muito menos, ante a falta de professores, improvisar, sem
recorrer a elementos de um outro meio, escolas para o preparo de tais
___________ 3 Assim se intitulam os autores: Carmem Lucia Soares, Celi Nelza Zllke Taffarel, Elizabete Varjal,
Lino Castellani Filho, Micheli Ortega Escobar e Valter Bracht. 4 Bispo e educador Jan Amos Comenius (1592 -1670), nasceu em Nivnice, Moravia, hoje Repblica
Tcheca.
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professores. Depois, no podemos fazer escolas sem livros. [...] / [...] / Se
conseguirmos [...] os estudos objetivos que aqui sugerimos, e sobre eles
fundarmos diagnsticos vlidos e aceitos, no ser difcil a elaborao dos
mtodos de tratamento e a indicao dos prognsticos. Os mtodos de
tratamento surgiro nos guias e manuais de ensino para os professores e
diretores de escolas, os quais constituiro livros experimentais de
sugestes e recomendaes, para a conduo do trabalho escolar. Em
complemento deveremos chegar at o livro didtico, compreendendo o
livro de texto e o livro de fontes, buscando integrar nestes elementos de
trabalho o esprito e as concluses dos inquritos procedidos.
(TEIXEIRA, 1952, s/p).
Essa declarao mostra como tem sido forjada na educao brasileira a
dependncia da mediao do recurso didtico na relao do trabalho didtico e
evidencia-se, tambm, o entendimento desse educador sobre o que considera como
livro didtico: um tratado onde se inscrevem os mtodos e o corpo sistematizado dos
conhecimentos para a conduo do trabalho escolar.
Um formato de manual didtico que se diferencia de todos os outros por seu
carter participativo de elaborao, mas no menos instrucional do que os
tradicionais, foi proposto por Paulo Freire, educador que tratou da alfabetizao de
adultos no Brasil e em outros pases. Ele aboliu, em suas formulaes e prticas em
educao, as tradicionais cartilhas por acreditar que estas [...] pretendem fazer uma
montagem de sinalizao grfica como uma doao e que reduzem o analfabeto mais
condio de objeto de alfabetizao do que de sujeito da mesma [...] (FREIRE,
1981, p.72). Partindo do pressuposto da produo participativa dos recursos materiais
e da concepo de alfabetizando como sujeito de sua prpria alfabetizao, Freire
(1981) apresenta a sua proposta de manual didtico nos Cadernos de Cultura
Popular que consistiam de textos problematizadores [...] escritos em linguagem
simples, jamais simplista, que trata uma temtica ampla e variada, ligada, toda ela, ao
momento atual do pas [...] (FREIRE, 1984, p.45). Integrava esse material didtico o
Caderno de Exerccios, estampando fotos de situaes cotidianas acompanhadas de
frases alusivas situao ali apresentada, para os devidos debates. V-se, assim, que,
embora com uma roupagem diferenciada, esse recurso material permaneceu
exprimindo uma verso resumida e simplificada dos contedos, porm, esboava
certa autonomia do professor, quando optou pela produo coletiva dos Cadernos5.
___________ 5 Esses Cadernos eram elaborados, selecionados e confeccionados pela equipe de educadores dos
Crculos de Cultura vinculados ao Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife (NEVES;
BRITO, 2009).
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13
A produo que trata mais detidamente do manual didtico se concretiza e
se intensifica a partir dos anos de 1970, focalizando uma multiplicidade de
abordagens na literatura. Autores como Joo Oliveira, Guimares e Bomeny (1984);
Pinsky (1985); Freitag, Motta e Costa (1993) e Bitencourt (2004) identificaram, nas
investigaes sobre os manuais, a participao do Estado6 como nica instncia de
deciso na formulao e definio da poltica dos manuais didticos, ressaltando o
carter burocrtico e assistencialista dessa poltica. Apontaram tambm a
interferncia do Estado como principal consumidor da produo dos referidos
manuais, promovendo o mercado editorial no pas, sem, contudo, mostrar como e por
que assume o papel de comprador monoplico desse material para distribuio
gratuita s escolas pblicas, contribuindo, sobremaneira, com a explorao da fora
de trabalho e consequente lucro para as editoras privilegiadas nesse processo.
Na mesma linha de investigao, Hfling (2000) apresenta as aes do
Estado em termos de poltica do manual didtico, enfatizando os vrios programas
por meio dos quais materializam-se as propostas de regulamentao desse
instrumento de trabalho no contexto das polticas em educao. Na relao
Estado/manual didtico, os programas que dimensionaram as polticas
governamentais, como o Programa do Livro Didtico para o Ensino Fundamental
(PLIDEF/1972), o Programa do Livro Didtico (PLID/1972), o Programa Nacional
do Livro Didtico (PNLD/1985) e Programa Nacional do Livro e da Leitura
(PNLL/2006) tiveram como objetivo atender aos alunos do Ensino Fundamental,
promovendo a circulao escolar do manual didtico. Esses programas foram
implementados pelas sucessivas instituies governamentais, por meio do Instituto
Nacional do Livro (INL/1937), da Fundao Nacional de Material Escolar
(FENAME/1967) e Fundao de Assistncia ao Estudante (FAE/1983), que, como
mecanismos de controle, estiveram frente da produo desse material. A autora se
prope a analisar politicamente [...] as diferentes instncias que fazem as escolhas
em relao a um programa ou mesmo a uma poltica [...] (HFLING, 2000, p.160),
porm, no radicaliza a anlise ao ponto de trazer tona as intenes do Estado no
que diz respeito natureza de sua existncia, qual seja, assegurar as condies de
acumulao e valorizao da reproduo ampliada do capital.
Os conhecimentos transmitidos por meio do manual didtico colocam-se,
tambm, no quadro de discusses na forma de como os textos (trecho escrito,
___________ 6 O papel do Estado na sociedade capitalista ser apresentado no primeiro captulo deste estudo.
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exerccios e anexos) so apresentados aos alunos, induzindo-os s respostas corretas,
sem a devida compreenso dos contedos (MOLINA, 1988). A autora, ao mesmo
tempo em que assinala a precarizao dos textos, considerando [...] deplorvel [...] a
utilizao de segmentos de obras maiores, [...], j que muitas vezes, o segmento
perde grande parte de sua atrao, fora do contexto maior da obra., afirma tambm
que [...] possvel elaborar [e reformular] textos didticos mais adequados [...]
compreenso do aluno, mas que, entretanto, isso exigiria [...] um nvel de
informao e atualizao pedaggica nem sempre disponveis ao professor comum
[...] (MOLINA, 1988, p.39 e 91). Essa postura frente ao problema faz parecer que o
proposto no vai alm da to buscada reforma qualitativa do manual didtico, no
levando em conta o debate sobre a natureza do conhecimento e a vulgarizao deste
que, paulatinamente, vai ocupando o lugar de formas mais elevadas do conhecimento
socialmente acumulado.
Embora Molina (1988, p.47) evidencie as afirmaes de Eco e Bonazzi
(1980, p.18), no alcana o entendimento desses ltimos quanto s suas aspiraes de
que [...] as crianas seriam educadas para reconhecer e julgar as mentiras que
tentam incutir-lhes. A questo colocada por Eco e Bonazzi (1980) de que no se
faam mais livros textos e muito menos livros melhores. A questo para eles dar
oportunidade a professores e alunos de acesso a bibliotecas ricas e aquisio de
noes verdadeiramente teis, a partir da explorao direta do mundo.
Em contraponto a esses posicionamentos, acrescente-se as formulaes de
Saviani (2003, p.14) sobre o tipo de conhecimento a ser transmitido na escola. Para
ele, no se considera qualquer tipo de saber, mas aquele que [...] diz respeito ao
conhecimento elaborado e no ao conhecimento espontneo; ao saber sistematizado e
no ao saber fragmentado; cultura erudita e no cultura popular.
Faria (1987, p.9) elege a categoria trabalho7 como categoria de anlise para
o estudo do manual didtico, considerando-o [...] um dos veculos utilizados pela
escola para a transmisso da ideologia burguesa [...]. Como tal, julga que os textos
apresentados no manual didtico mostram o trabalho no como um ato consciente de
transformao da natureza para manuteno da existncia humana, mas como um
processo mecnico de equilbrio da natureza.
___________ 7 Por agora basta sabermos que antes de tudo, o trabalho um processo entre o homem e a Natureza,
um processo em que o homem, por sua prpria ao, media, regula e controla seu metabolismo com a
Natureza (MARX, 1985a, p.149). Essa categoria ser melhor explicitada no primeiro captulo.
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15
A autora demonstra como a viso burguesa de trabalho no manual didtico
idealista, casustica, linear e genrica, tornando superficiais as explicaes dadas
por esse instrumento de trabalho, o que impossibilita uma viso de totalidade. Para
ela, como o manual didtico traz a viso burguesa de sociedade, no permite o
desvelamento dos antagonismos de classe prprio dessa formao social.
Assim, a autora entende que o manual didtico como portador da ideologia
dominante, como instrumento da burguesia para manuteno do poder estabelecido,
[...] contribui para a reproduo da classe operria [...], mas que ainda assim
oferece [...] algumas informaes [...] que sendo elaboradas versus a vivncia da
classe operria poder tornar-lhe mais um instrumento para a sua luta para a
transformao social [...] (FARIA, 1987, p.77-79, grifo da autora). Para tal
necessrio um professor que conhea o contedo desse manual, e assim possa
apontar aos alunos as contradies entre o discurso do manual didtico e as
experincias vividas por eles (FARIA, 1987).
Para romper com a ideologia do livro didtico, Faria (1987, p.80) prope
um novo professor e um novo livro didtico que [...] realmente ensinem e eduquem
o aluno [...] para a transformao da sociedade.
Saviani (1986, p.102), ao tratar do livro didtico, aponta esse recurso como
necessrio ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem, esclarecendo
que a assimilao dos conhecimentos pelo aluno deve estar ao seu alcance e que o
veculo de comunicao tem de estar [...] impregnado de mensagem, do mesmo
modo que esta no tem sentido se no se corporificar no meio [...]. Para o autor, so
os conhecimentos que devem predominar sobre o meio ou instrumento e considera
que tais conhecimentos so necessrios ao educador, visto que ele quem
determinar quais instrumentos so capazes de viabilizar a assimilao daqueles
conhecimentos pelos alunos.
Nesse sentido, Saviani levanta a questo da predominncia de smbolos
visuais (livros) e verbais nas escolas, o que levaria necessidade de ampliao dos
recursos materiais utilizveis no processo educativo, dada a situao histrica que
oferece variadas alternativas para esse fim. Entretanto, pergunta:
Isto significaria que o livro didtico, enquanto recurso educativo, est em
vias de ser ultrapassado e fadado a desaparecer? Ao contrrio; significa
que sua faixa de referncia se amplia (j que como instrumento mais
abstrato ele propicia maior campo de abrangncia) para se articular e, em
certos casos, abarcar outros recursos pedaggicos. Em outros termos,
caber ao livro didtico servir como elemento estimulador a professores e
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16
alunos no sentido de aguar-lhes a capacidade criadora levando-os
descoberta e uso de novos recursos, atravs de sugestes mltiplas e ricas.
(SAVIANI, 1986, p.103, grifo nosso)
Por um lado, afirma Saviani (1986) que o conhecimento, daquela forma
convenientemente arranjado no livro didtico para a compreenso do aluno, acabou
por se transformar em um conjunto de enunciados estticos e conclusivos. Por outro
lado, pondera que existe uma diferena entre conhecimento com fins cientficos e
conhecimentos com fins de ensino. Segundo ele, por exemplo, o gegrafo tem por
objetivo esclarecer o fenmeno geogrfico e o professor de geografia a promoo do
homem, na medida em que os contedos de Geografia so apenas um meio para se
atingir esse fim.
Caberia, portanto, ao professor selecionar e organizar esses contedos para
subsidiar os alunos quanto aos elementos da realidade a serem conhecidos, os quais o
levaro ao desenvolvimento real e concreto, de modo a compreender a lgica dessa
realidade, superando-a a partir de suas prprias contradies.
Para Saviani (1986, p.104, grifo nosso), o livro didtico o instrumento em
que se veicula o conhecimento cientfico transformado em conhecimento educativo.
No apenas adequado a esse fim, [...] mas insubstituvel, uma vez que os demais
recursos no se prestam para a transmisso de um corpo de conhecimentos
sistematizados como o aquele [...]. Em outras palavras, entende o autor que o livro
didtico tem uma funo educativa prpria, qual seja, a de transmitir o conhecimento
cientfico sistematizado para fins educacionais e no a cincia em si mesma.
H que se concluir dessa discusso proposta por Saviani que,
dialeticamente, o livro didtico, ao mesmo tempo em que pode ser um instrumento
simplificador do conhecimento acumulado historicamente pode, tambm, ser um
instrumento, um meio de promoo do homem, tendo em vista os limites impostos
pelo sistema capitalista emancipao humana8.
Diferentemente de Saviani, que considera a imprescindibilidade do livro
didtico como um instrumento disseminador do conhecimento sistematizado com
finalidade educacional, Alves (2005) defende que o manual didtico comeniano
objeto a ser eliminado/suprimido como mediador da relao educativa.
___________ 8 Emancipao humana no sentido de atendimento das necessidades genuinamente humanas e no a
deformao das necessidades existentes hoje, prprias da sociedade capitalista.
-
17
Pesquisando a educao, tambm na perspectiva do trabalho, porm, com o
foco na produo material da escola, Alves (2001) busca, nas concepes
comenianas, uma discusso sobre os caminhos da organizao do trabalho didtico
(categoria rubricada por esse autor) no interior das instituies educacionais,
vinculado organizao tcnica do trabalho. O autor apresenta essa categoria
esclarecendo que:
No plano mais genrico e abstrato, qualquer forma histrica de
organizao do trabalho didtico envolve, sistematicamente trs
aspectos: a) ela , sempre, uma relao educativa que coloca, frente a
frente, uma forma histrica de educador, de um lado, e uma forma
histrica de educando(s), de outro; b) realiza-se com a mediao de
recursos didticos, envolvendo os procedimentos tcnico-pedaggicos do
educador, as tecnologias educacionais pertinentes e os contedos
programados para servir ao processo de transmisso do conhecimento, c)
e implica um espao fsico com caractersticas peculiares, onde ocorre
(ALVES, 2005, p.10-11, grifo do autor).
Assim, como parte constitutiva da organizao do trabalho didtico,
presente no contexto da mediao entre professor e aluno, o manual didtico passou
a ser analisado por Alves (2001) como um instrumento de trabalho resultante da
diviso do trabalho didtico no processo manufatureiro da escola comeniana. Vale
ressaltar que para ele, o manual didtico se mantm historicamente, apesar das
modificaes metodolgicas e de contedo que se processaram ao longo do tempo.
Dessa forma, Alves (2001, p.246) considera que as condies materiais j
esto presentes em certas experincias contemporneas para a superao do manual
didtico, fazendo a seguinte comparao:
Caso algum se propusesse a construir um arado de melhor qualidade
para a agricultura seria motivo de riso, pois, hoje, a mquina o
parmetro do qual se parte. Antes da descoberta das armas de fogo,
possivelmente, seriam bem-vindas iniciativas que aumentassem o alcance
das flechas pela potencializao de fora do arco [...]. Hoje, iniciativas
semelhantes seriam consideradas esdrxulas, pois esses instrumentos
foram superados pelo tempo. [...] Em relao a ele [manual didtico]
torna-se canhestro qualquer esforo de melhoria. Esse arado do trabalho
didtico precisa, pura e simplesmente, ser suprimido. (ALVES, 2001,
p.270-271, grifo do autor)
Embora o debate em relao ao uso do manual didtico, definido por Alves
(2001) como anacrnico para o nosso tempo, tenha avanado em direo sua
supresso da relao educativa, ele ainda permanece presente na escola, mesmo na
forma mais desenvolvida da educao, como a EaD (LANCILOTTI, 2010).
-
18
Assim, as questes que essa pesquisa coloca so: a) como, apesar de ser
considerado anacrnico para a escola contempornea e do seu carter de
simplificao e objetivao do conhecimento, o manual didtico permanece soberano
nas salas de aula?; b) de que forma essa presena se materializa no trabalho do
professor, particularmente considerando a REME/Campo Grande, nos 5 e 6 anos do
Ensino Fundamental?; c) que limites impem os contedos veiculados pelo manual
didtico para a compreenso da contradio entre transformao da natureza para
acumulao do capital e a transformao da natureza para obteno dos meios de
subsistncia do homem como conjunto da sociedade?
Nesses termos, o presente estudo tem por objetivo investigar a utilizao do
manual didtico na relao do trabalho pedaggico do professor e suas implicaes
para a conservao/superao do trabalho didtico em uma sociedade dominada pelo
modo de produo capitalista. Especificamente investigaremos trs aspectos do tema
central: 1) analisar em que medida o manual didtico permanece como principal
instrumento de trabalho do professor; 2) determinar no ensino de cincias quais os
limites impostos pelo manual didtico para a compreenso da relao
homem/natureza como fruto do trabalho; 3) investigar como o professor utiliza, no
ensino de cincias, o manual didtico.
Para esta pesquisa realizamos, inicialmente, uma reviso bibliogrfica da
literatura produzida sobre o objeto de investigao, com o objetivo de levantar as
questes apontadas pelos estudos sobre o manual didtico. Desta reviso, foram
descartadas as obras que fazem referncia superficial ou no trazem contribuies
significativas para a discusso da temtica em pauta. Posteriormente, os textos foram
divididos conforme a relevncia para a anlise constante dos captulos deste trabalho.
O levantamento dos dados empricos foi realizado em trs fases, no ano de
2009. Inicialmente, analisamos os manuais didticos de cincias de 5 e 6 anos, com
a finalidade de apontar de que maneira o manual didtico comeniano permanece
estabelecendo a simplificao e objetivao do conhecimento historicamente
acumulado, cujas evidncias so apontadas pelos estudos j realizados. Para essa
anlise quatro aspectos foram observados: 1) a estrutura do manual didtico; 2) o
tratamento dado s questes ambientais; 3) as orientaes aos professores sobre o
modo de utilizao desse instrumento de trabalho; 4) o nvel de autonomia do
professor para buscar em outras fontes clssicas e/ou cientficas os conhecimentos e
formas para o desenvolvimento do trabalho didtico.
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19
Na segunda fase, optamos pela observao, em sala de aula, das sries
selecionadas para verificar como ocorre a utilizao do manual didtico nas questes
relativas ao ambiente, na organizao do trabalho didtico. Consideramos as
observaes uma imposio metodolgica, uma vez que apenas a anlise literria no
condio para a apreenso do objeto. Nesse sentido, tornou-se necessrio
evidenciar como se d a mediao real do manual didtico na relao educativa, a
partir do contato direto com professores e alunos. Na realizao das observaes
buscamos constatar: 1) de que forma o professor utilizou, ou no, o manual didtico,
se ultrapassou os limites desse manual e que outros recursos foram utilizados; 2) que
tratamento foi dado pelo professor ao conhecimento sobre as questes ambientais e
3) como os professores organizam o trabalho em sala de aula.
A terceira fase teve como objetivo cotejar as observaes em sala de aula
com o que pensa o professor sobre o seu trabalho didtico e o que realiza no seu
cotidiano educativo. Para tal, foram realizadas entrevistas semiestrutradas (roteiro de
entrevista no Anexo) com os professores das turmas selecionadas, para apontar as
possveis contradies presentes nas suas prticas pedaggicas. O roteiro das
entrevistas foi organizado de forma a captar do pensamento dos professores os
seguintes aspectos: concepo, uso, vantagens e limites do manual didtico,
utilizao de material complementar, organizao do trabalho didtico, abordagem
das questes ambientais.
As entrevistas foram realizadas, com agendamento prvio, na localidade das
escolas selecionadas. Nessa fase da pesquisa, utilizamos um gravador para registro
dos depoimentos orais, que foram transcritos ulteriormente. Posterior coleta das
informaes, os dados foram confrontados com a bibliografia que d sustentao
terica ao trabalho.
Para o levantamento dos dados foram selecionadas duas escolas, uma
urbana e uma da zona rural, da Rede Municipal de Ensino (REME) de Campo
Grande/MS. Na escola da rea urbana entrevistamos trs professores, sendo um do 5
ano e dois do 6 ano e, na escola da zona rural, um professor de cada srie.
Quanto escolha do universo da pesquisa, optamos por duas escolas da
REME9, em virtude da facilidade de acesso s informaes necessrias
investigao, j que no momento dessa opo, estvamos atuando como profissional
___________ 9 A opo poderia ser por qualquer escola, privada ou pblica, o que no interferiria nos rumos da
pesquisa.
-
20
da educao, no rgo central dessa rede. Dois aspectos na escolha desse universo
so importantes destacar, por oferecerem a possibilidade de comparao na anlise:
1) a preferncia por uma escola urbana e uma de zona rural permitiu a observao
das condicionantes geogrficas e histricas na realizao da prtica docente; 2) a
opo pelos 5 e 6 anos das escolas destacadas proporciona a oportunidade de
verificar as diferenas entre a utilizao do manual didtico por um professor com
formao pedaggica e um professor especialista.
Das escolas selecionadas, uma situa-se na regio central do permetro
urbano de Campo Grande e outra na BR-163 km 444 Fazenda Cachoeirinha (40
km), com duas extenses. A primeira escola atende alunos da Educao Infantil ao
Ensino Fundamental, com a particularidade de estar situada em uma regio central da
cidade. Esses alunos, em sua maioria, so filhos de trabalhadores domsticos, de
rgos pblicos, do comrcio e moram na periferia, sendo necessrio o seu
deslocamento at a escola.
A segunda escola participante da pesquisa recebe filhos de trabalhadores
rurais que vivem em propriedades do entorno da escola e suas extenses. Alm de
atender os alunos com o ensino regular, essa escola oferece, tambm, classes
multisseriadas e a modalidade Educao de Jovens e Adultos (EJA) para os que no
tiveram acesso educao escolar ou continuidade dela nas etapas da Educao
Bsica.
As categorias trabalho didtico, organizao do trabalho didtico e
manual didtico, dentre outras, ganham centralidade neste estudo em decorrncia da
temtica escolhida para a investigao. Em se tratando de categorias derivadas da
categoria trabalho na perspectiva de anlise materialista histrica, faremos,
primeiramente, uma abordagem a partir dos estudos de Marx, explicitando aspectos
terico-metodolgicos relevantes para a compreenso do objeto em pauta. A
compreenso da sociedade capitalista se faz necessria para estabelecer as relaes
entre o processo de produo da vida material e a educao como uma atividade
humana.
Nesse sentido, compreender a sociedade de classes implica conhecer com
base em que condies se produz a vida material, o que nos leva necessariamente
discusso das relaes de trabalho que se estabelecem na presente sociabilidade.
Contemporaneamente isso se expressa na forma como tais relaes se realizam
-
21
provocando a intensificao do processo de transformao da natureza para obteno
de lucros astronmicos.
A sociedade tem se deparado com o que atualmente est sendo denominado
de crise ambiental (2010) como o mais recente ciclo de crises do sistema
capitalista10
. Se observarmos sua constante presena na mdia, esse tema tem
levantado as mais diferentes e dissonantes discusses quanto real condio de
destruio impingida ao planeta pelo modelo de produo que esta sociedade
construiu.
A opo pela discusso a respeito da questo ambiental retratada no manual
didtico est relacionada atual fase histrica do capitalismo, em que as condies
ambientais, resultado [...] da acumulao no quadro da dominao mundial do
capital financeiro [...] (CHESNAIS e SERFATI, 2003, p.40), tem se agravado, dado
o acelerado ritmo de degradao das condies fsicas da reproduo social e,
portanto, a degradao da vida. Essas condies, em verdade, foram gestadas desde
as origens do capitalismo e determinadas pela forma como o homem produziu os
seus meios de vida, por meio do processo de transformao da natureza. Este debate
reveste-se de importncia no mbito da educao escolar em razo da necessidade de
apreenso da totalidade11
, visto que entender a existncia do homem no planeta
depende do conhecimento e compreenso de como o capital determina a reproduo
metablica universal e social (MSZAROS, 2005).
No desenvolvimento da pesquisa, tomamos como fundamento terico a
anlise das bases materiais do modo de produo capitalista, na perspectiva do
materialismo histrico. Procuramos entender, com base nos estudos de Marx, como,
por quais vias, por quais mediaes, os homens fazem a totalidade de sua histria.
Para o pensador alemo
Os pressupostos de que partimos no so arbitrrios, nem dogmas. So
pressupostos reais de que no se pode fazer abstrao a no ser na
imaginao. So os indivduos reais, sua ao e suas condies materiais
de vida, tanto aquelas por eles j encontradas, como as produzidas por sua
prpria ao. Estes pressupostos so, pois, verificveis por via puramente
emprica. (MARX e ENGELS, 1991, p.26-27)
___________ 10
2008 crise do preo dos alimentos, 2009 crise dos mercados. 11
Categoria de anlise que apreende a realidade nas suas contradies, de forma a compreend-la a
partir de suas relaes sociais mais ntimas, revelando dialeticamente suas conexes internas. Nas
palavras de Cury: A totalidade no um todo j feito, determinado e determinante das partes, no uma harmonia simples, pois no existe uma totalidade acabada, mas um processo de totalizao a
partir das relaes de produo e de suas contradies. (CURY, 2000, p.35)
-
22
na categoria trabalho que Marx encontra o fundamento para demonstrar
essa totalidade histrica. Dessa forma, nossa anlise estar pautada em tal categoria
para procedermos a analisar do uso do manual didtico na relao do trabalho
docente.
Este estudo se organiza em trs captulos, sendo que no primeiro captulo,
O manual didtico no interior do trabalho didtico, apresentamos uma discusso
sobre como esse manual se insere na organizao do trabalho didtico e como como
se d a sua utilizao escolar no mbito da sociedade capitalista contempornea.
Nesse captulo, examinaremos mais detidamente a categoria trabalho, donde se
originam as categorias centrais deste estudo. Enfocaremos, tambm, o papel do
Estado burgus na manuteno da sociabilidade capitalista, como reforo expanso
de escola pblica e, consequentemente, da utilizao do manual didtico comeniano.
Procuramos, ainda, desenvolver a trajetria histrica do trabalho didtico a partir dos
estudos de Alves, por considerarmos relevante a sua investigao sobre o tema na
sociedade capitalista, chegando ao trabalho didtico nos dias atuais.
No segundo captulo, O ensino de cincias na escola fundamental e a
utilizao do manual didtico, abordamos o ensino de cincias na escola
fundamental e a utilizao do manual didtico, considerando como a natureza
apresentada pelo manual e como o professor utiliza ou no esse recurso didtico,
partindo das observaes e entrevistas realizadas na REME de Campo Grande.
No terceiro captulo, O manual didtico de Cincias na relao educativa:
uma abordagem ambiental, analisamos como se constitui o manual didtico sob a
lgica sociometablica do capital, apontando seus limites para a compreenso da
relao homem/natureza como fruto do trabalho na relao educativa, apontando
para a superao do manual didtico.
Finalmente, nas consideraes finais, resgatamos, a partir das anlises
desenvolvidas ao longo dos captulos, os questionamentos que promoveram esta
investigao e suas respectivas discusses.
-
CAPTULO I
O MANUAL DIDTICO NO INTERIOR DO TRABALHO DIDTICO
O objetivo deste captulo verificarmos como o manual didtico se
apresenta no interior do trabalho didtico, reconstruindo o percurso histrico da
organizao do trabalho didtico proposto por Comenius at a atualidade, tratando
mais detalhadamente de sua origem com Comenius e as propostas de superao de
sua utilizao na organizao do trabalho didtico. Examinaremos, tambm, o
manual didtico nas polticas pblicas, com base no Plano Nacional do Livro
Didtico, como instrumento do Estado para a regulamentao de aes em educao
e suas relaes ntimas com o capital, seja no mbito da indstria editorial ou da
conformao ideolgica da sociedade capitalista contempornea.
Como pressuposto para a formulao deste captulo, assumimos por
princpio que toda ao educativa tem um carter filosfico. Isto requer uma
concepo de mundo, de homem e de histria; uma concepo a respeito de como se
d o conhecimento e como se realiza a teoria e a prtica. Aprende-se a todo
momento, mas o que se aprende depende de onde e de como se faz esse
aprendizado. (MSZROS, 2005, p.16, grifo nosso).
Ao postularmos a ao educativa como uma produo humana, estamos
afirmando que ela o resultado exclusivo da ao dos homens como construtores de
sua prpria histria e que so, portanto, no seu conjunto, responsveis por aquela
ao. Como so os homens que fazem a histria, so eles os articuladores das
transformaes que levariam superao coletiva do modo de produo capitalista,
ao qual est subordinado o atual estgio da educao. Donde se pode inferir que o
que, onde e como fazemos a educao construo do conjunto da sociedade.
dessa perspectiva que abordaremos as questes aqui propostas.
1.1 As origens da organizao do trabalho didtico na escola pblica moderna
Tendo como perspectiva o exposto acima, pretendemos demonstrar como
foi determinada a escola a partir das proposies de Comenius e quais as
-
24
possibilidades de transformao da organizao do trabalho didtico12
engendrado
por ele. Duas obras de Alves (2001; 2005), que comportam extensa investigao
sobre o tema, servem de base terica para precisarmos as formas histricas
assumidas pelo manual didtico, no perodo que vai de seu surgimento com
Comenius at a proposta de superao pelo prprio Alves (2001; 2005), no presente
momento da sociedade capitalista.
Para procedermos discusso anunciada, inicialmente, tornou-se necessria
a determinao da origem e da concepo do objeto em estudo para estabelecer a
relao entre a organizao do trabalho didtico e o instrumento de trabalho do
professor. Tambm buscaremos desvelar o porqu se discute, ainda hoje, a utilizao
do manual didtico como material de primeira necessidade na prtica pedaggica,
no obstante o avano tecnolgico alcanado pela sociedade. Posteriormente,
apresentaremos as alternativas propostas para a superao do trabalho didtico
fundada por Comenius que, na sua essncia, permanece no espao da escola.
No que concerne s questes do trabalho didtico, onde se insere nosso
objeto de estudo, antes examinaremos a categoria trabalho como elemento fundante
do ser social, por ser ela o fundamento do trabalho didtico. a partir do pensamento
marxiano que abordaremos essa categoria, em razo de ser Marx o autor que
definitivamente trouxe clareza ao entendimento da relao homem e natureza pelo
trabalho, embora nem sempre considerado.
A discusso sobre o trabalho o eixo central nas descobertas e formulaes
a que Marx se dedicou, para captar e traduzir o processo de o homem tornar-se
homem. Foi estudando o modo como os indivduos produziram e continuam
produzindo a sua vida material que o pensador chegou compreenso sobre a
capacidade histrica da humanidade de, necessariamente, assegurar a sua
subsistncia pelo processo metablico intencional na relao com a natureza.
A existncia humana est visceralmente ligada a esse pressuposto na medida
em que, para manterem-se vivos, os homens devem transformar a natureza
cotidianamente, e esse um fato ineliminvel do mundo dos homens. Nas palavras
de Marx (1985a, p.149): Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence
exclusivamente ao homem. essa relao com a natureza que o diferencia dos
___________ 12
Categoria rubricada por Alves (2005, p.8) a fim de [...] assegurar clareza terica temtica tratada [...], impondo-se [...] a necessidade de objetivar o contedo conferido [...] a essa expresso, que ganha sentido como ferramenta no entendimento da realidade social.
-
25
animais. Na produo da vida material os homens necessitam do intercmbio
orgnico com a natureza para produzirem os meios pelos quais sero satisfeitas as
suas necessidades fundamentais (comer, beber, vestir-se etc). Esse processo se d
pelo trabalho.
Marx aponta (1985a, p.149):
Antes de tudo, o trabalho um processo entre o homem e a Natureza, um
processo em que o homem, por sua prpria ao, media, regula e controla
seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matria
natural como uma fora natural.
A partir do trabalho, o homem apropria-se dos recursos naturais
modificando a natureza e, ao faz-lo, lana as bases para a construo material da
sociedade e constri-se como indivduo. Na formulao de Marx (1985a, p.149):
Ele pe em movimento as foras naturais pertencentes a sua
corporalidade, braos e pernas, cabea e mo, a fim de apropriar-se da
matria natural numa forma til para sua prpria vida. Ao atuar, por meio
desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modific-la, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua prpria natureza. Ele desenvolve as
potncias nela adormecidas e sujeita o jogo de suas foras a seu prprio
domnio.
Diferentemente dos animais que executam operaes instintivas para
reproduzir as suas existncias, os homens projetam na conscincia as suas aes e
respectivos resultados, antes de realiz-las. Ao objetivarem o que projetaram na
conscincia, transformam a realidade criando uma nova situao, pois, nesse
movimento, aprende-se algo com a ao anterior, o que modifica tanto a realidade
quanto o indivduo. Em uma prxima ao, a habilidade e a experincia adquiridas
sero empregadas a uma nova situao.
Marx continua (1985a, p.149-150):
No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio
deste existiu na imaginao do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele
no apenas efetua uma transformao da forma da matria natural;
realiza, ao mesmo tempo, na matria natural seu objetivo, que ele sabe
que determina, como lei, a espcie e o modo de sua atividade e ao qual
tem de subordinar sua vontade. E essa subordinao no um ato isolado.
Alm do esforo dos rgos que trabalham, exigida a vontade orientada
a um fim, que se manifesta como ateno durante todo o tempo de
trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo prprio
contedo e pela espcie e modo de sua execuo, atrai o trabalhador,
portanto, quanto menos ele o aproveita como jogo de suas prprias foras
fsicas e espirituais. / Os elementos simples do processo de trabalho so a
-
26
atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus
meios.
O conhecimento adquirido nesse processo no individual, visto que, ao
construir um objeto, o indivduo utilizou-se de conhecimentos anteriores acumulados
social e historicamente pelo conjunto dos homens. Quaisquer objetivaes de ideias
previamente pensadas, ou seja, projetadas na conscincia, possuem uma dimenso
social e coletiva, portanto, histrica. Esse conhecimento assume uma forma
generalizada, uma vez que pode ser utilizado, no apenas no aperfeioamento de um
objeto inicial, mas tambm em circunstncias diversas.
Dessa forma, podemos dizer que todo ato de trabalho adquire uma dimenso
social. So trs os motivos dessa afirmativa: 1) ele o resultado histrico de
desenvolvimentos anteriores; 2) um novo objeto modifica situaes histricas
concretas de toda a sociedade, abrindo novas possibilidades e gerando novas
necessidades para um futuro desenvolvimento; 3) os conhecimentos acumulados so
aplicveis em diferentes circunstncias e convertidos em bem cultural compartilhado
por todos os homens (LESSA e TONET, 2008).
Podemos, ento, retomar a afirmao anterior de que, o pressuposto da
existncia humana o trabalho como fundamento do ser social, porque ao
transformar a natureza na base material os indivduos transformam tambm a si
mesmos. Portanto, se fazem diferentes da natureza como seres autnomos que se
relacionam entre si, o que permite sempre a construo de novas circunstncias
histricas e novas relaes sociais.
De acordo com Marx e Engels (1991, p.39, grifo do autor),
[...] o primeiro pressuposto de toda a existncia humana e, portanto, de
toda a histria, que os homens devem estar em condies de viver para
poder fazer histria. Mas, para viver, preciso antes de tudo comer, beber, ter habitao, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato
histrico , portanto, a produo dos meios que permitam a satisfao
dessas necessidades, a produo da prpria vida material, e de fato este
um ato histrico, uma condio fundamental de toda a histria, que ainda
hoje, como h milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas
as horas, simplesmente para manterem os homens vivos.
O processo de trabalho que implica o ato histrico perene se caracteriza,
segundo Marx, pela ao do homem conduzida com a finalidade de produzir valor de
uso a partir da submisso da natureza para atender s necessidades humanas, o que
feito com a mediao de instrumentos para esse fim. Esse processo que envolve o
-
27
desenvolvimento das foras produtivas13
e, consequentemente, a superao histrica
de determinado modo de produo da vida material14
, alcana alto grau de
simplificao na sociedade capitalista, obtendo como resultado um produto que nessa
sociedade se configura como mercadoria, assim explicitada pelo autor: A
mercadoria , antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas
propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espcie. (MARX, 1985a,
p.45).
Porm, sob essa coisa externa se esconde uma relao entre homens, no
mundo em que as coisas aparecem se relacionando entre si, mundo em que a criao
domina o criador. A partir do momento em que a matria se transforma em
mercadoria pelas mos do trabalhador para atender s necessidades humanas de
consumo imediato ou como meio de produo, ela se caracteriza como valor de uso.
Entretanto, quando o objeto produzido vai ao mercado para ser trocado por outro,
desaparece o seu valor de uso para transformar-se em uma relao de troca de
produtos de quantidades diferentes ou iguais entre si, o que o torna valor de troca.
Em outras palavras, o valor de troca uma relao de quantidades de objetos que,
abstrados de suas propriedades materiais, trocam-se entre si como valores de uso de
espcies diferentes.
Dessa forma, a mercadoria se distingue pelas qualidades diferentes enquanto
valor de uso e quantidades diversas como valor de troca, tendo ao mesmo tempo
valor de uso e valor de troca. O elemento comum que determina o seu valor o
tempo de trabalho materializado na produo dessa mercadoria, o que inclui o valor
dos meios de produo (matria-prima, instrumentos de trabalho, edificaes etc). A
riqueza social que domina o modo de produo capitalista constituda pelo
___________ 13
Foras produtivas so todos os instrumentos e meios de trabalho utilizados na produo da vida
material. 14
Com base nos estudos de Marx identificamos como modo de produo de uma sociedade a maneira
pela qual ela se organiza socialmente para garantir a sua subsistncia a partir do trabalho. Na
sociedade primitiva a base dessa organizao era a coleta de alimentos com pequena produtividade, o
que no possibilitava a explorao do homem pelo homem. Na sociedade escravista e asitica,
primeiras na explorao do homem pelo homem com o surgimento do excedente de produo, ainda
que caracterizada pelo lento desenvolvimento das foras produtivas que deu origem s classes sociais,
ocorre a apropriao privada das riquezas sociais e seus consequentes instrumentos de manuteno
dessa apropriao: Estado e Direito. O feudalismo, que sucede a formao social anterior, com base na
organizao em feudos, apoiou-se no trabalho dos servos que entregavam parte de sua produo aos
senhores feudais. Como era interessante aos servos o aumento da produo, desenvolveram-se as
tcnicas e ferramentas o que aumentou e melhorou a alimentao, havendo, consequentemente,
crescimento da populao, que leva ao ressurgimento do comrcio e a um novo modo de produo em
um patamar totalmente diverso dos anteriores o modo de produo capitalista que persiste ainda hoje. Esse sistema est ancorado na explorao do trabalho alheio pela compra e venda da fora de
trabalho, reduzindo-a a mera mercadoria para enriquecimento privado dos indivduos.
-
28
conjunto das mercadorias individuais produzidas pelos trabalhadores. A sociedade
regida pelo capital o mundo das mercadorias, onde tudo se compra e tudo se vende,
inclusive a fora de trabalho.
Na produo de mercadorias esto envolvidos o trabalhador, cuja nica
propriedade a sua fora de trabalho15
, e o capitalista proprietrio dos meios de
produo e do capital. A relao que se estabelece entre os dois proprietrios de
explorao: a utilidade da fora de trabalho, comprada pelo capitalista ao
trabalhador, apenas de produo; como mercadoria que o trabalhador deve
produzir mais do que o equivalente ao seu custo, portanto, o capitalista que comprou
a fora de trabalho tem, ao final do processo, um valor maior do que aquele que
pagou ao trabalhador. A esse valor maior Marx denomina mais-valia, que est
relacionada jornada de trabalho. Diz o autor:
[...] a jornada de trabalho est desde o princpio dividida em duas partes:
trabalho necessrio e mais-trabalho. Para prolongar o mais-trabalho
reduz-se o trabalho necessrio por meio de mtodos pelos quais o
equivalente do salrio produzido em menos tempo. A produo da mais-
valia absoluta gira apenas em torno da durao da jornada de trabalho; a
produo da mais-valia relativa revoluciona de alto a baixo os processos
tcnicos do trabalho e os agrupamentos sociais. (MARX, 1985b, p.106)
Nesse sentido, podemos dizer que a importncia do trabalho produtivo para
o capital o de agregar valor ao capital empregado, extrado do trabalho no pago.
Portanto, para uma sociedade sob a regncia do capital, s trabalho produtivo
aquele que gera mais-valia. Para Marx, o que determina o carter de ser trabalho
produtivo ou improdutivo so as relaes sociais a envolvidas.
Assim o pensador explica o trabalho produtivo e improdutivo no sistema de
produo capitalista:
Trabalho produtivo, portanto, o que no sistema de produo capitalista produz mais-valia para o empregador ou que transforma as condies materiais de trabalho em capital e o dono delas em capitalista,
por conseguinte trabalho que produz o prprio produto como capital.
(MARX, 1980, p.391, grifos do autor)
___________ 15
Assim Marx define essa categoria: Por fora de trabalho ou capacidade de trabalho entendemos o conjunto das faculdades fsicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de
um homem e que ele pe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer espcie. (MARX, 1985a, p. 139)
-
29
De outra forma o trabalho improdutivo no produz mais-valia diretamente;
nesse processo no h incorporao de trabalho excedente pelo capital, o que sucede
na compra, por exemplo, de servios para consumo direto apenas a circulao do
dinheiro como valor de uso e no como capital.
Aponta Marx (1980, p.399, grifos do autor):
Se compro o servio de um professor, no para desenvolver minhas
faculdades, mas para adquirir aptides que me possibilitem ganhar
dinheiro ou se outros compram para mim esse professor e se de fato aprendo alguma coisa (e isso, em si, em nada depende do pagamento do
servio), esses custos de educao, como os do meu sustento, pertencem
aos custos de produo da minha fora de trabalho. Mas, a utilidade
particular desse servio em nada altera a relao econmica; no se trata
a de relao em que transformo dinheiro em capital ou por meio da qual
o supridor do servio, o professor me converta em seu capitalista.
Das categorias desenvolvidas por Marx para a compreenso dos
antagonismos entre capital e trabalho16
, prprios das relaes capitalistas de
produo, destacamos a produo material e imaterial para explicar o trabalho
didtico no mbito da educao, sendo esta, um dos complexos da totalidade social.
Se considerarmos as relaes que se estabelecem na sociedade capitalista,
veremos que, como acessria do trabalho produtivo, a produo material, aquela que
produz riqueza material, se submete ao modo de produo capitalista uma vez que
todos os trabalhadores produtores de mercadoria se defrontam com os meios de
produo como capital. Da mesma forma, a produo imaterial encontra-se sob o
domnio do capital que, para Marx, pode ser de duas espcies: uma em que o produto
se separa do produtor, adquirindo autonomia em relao a produtor e consumidor;
outra em que o ato de produzir e o produto so inseparveis.
Nas palavras do autor, a produo imaterial:
1. Resulta em mercadorias, valores de uso, que possuem uma forma
autnoma, distinta dos produtores e consumidores, quer dizer, podem
existir e circular no intervalo entre produo e consumo como
mercadorias vendveis, tais como livros, quadros, em suma, todos os
produtos artsticos que se distinguem do desempenho do artista
executante. [...] / 2. A produo inseparvel do ato de produzir, como
sucede com todos os artistas executantes, oradores, atores, professores,
___________ 16
Os antagonismos presentes na relao capital e trabalho devem-se explorao do trabalho alheio
para acumulao de riquezas privadas, situao que somente pode ocorrer se os indivduos viverem
em sociedade. Essa relao marcada por interesses inconciliveis, j que as necessidades que
impulsionam a produo no so mais as necessidades humanas, mas as necessidades de reproduo
do capital.
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mdicos, padres etc. tambm a o modo de produo capitalista s se
verifica em extenso reduzida e, em virtude da natureza dessa atividade,
s pode estender-se a algumas esferas. Nos estabelecimentos de ensino,
por exemplo, os professores, para o empresrio do estabelecimento,
podem ser meros assalariados; h um grande nmero de tais fbricas de
ensino na Inglaterra. Embora eles no sejam trabalhadores produtivos em
relao aos alunos, assumem essa qualidade perante o empresrio. Este
permuta seu capital pela fora de trabalho deles e se enriquece por meio
desse processo. O mesmo se aplica s empresas de teatro,
estabelecimentos de diverso etc. O ator se relaciona com o pblico na
qualidade de artista, mas perante o empresrio trabalhador produtivo.
Todas essas manifestaes da produo capitalista nesse domnio, se
comparadas com o conjunto dessa produo, so to insignificantes que
podem ficar de todo despercebidas. (MARX, 1980, p.403-404, grifos
nossos).
Tomando o pressuposto de que para o capital s produtivo o que produz
diretamente mais-valia, o trabalho do professor em relao ao aluno passa a ser
trabalho imaterial. Por outro lado, o dono da escola compra a fora de trabalho do
professor que se materializa na aula como mercadoria vendida aos pais por um valor
maior do que o que nela investiu (salrio e custos da escola). A aula uma
mercadoria que no produz quantum, que no produz riqueza material social. Ao ser
produzida e consumida no valoriza o capital (LESSA, 2007), diferente do trabalho
que produz riqueza material social, ou seja, aquele que produz e valoriza o capital
(MARX, 1985b, p.188, nota 70). Nesse caso h apenas a valorizao do capital,
portanto, trabalho imaterial.
Nesse sentido, o trabalho do professor produtivo ao produzir mais-valia e
improdutivo por no produzir capital, isto , no produz meios de produo ou de
subsistncia como produto final, os quais servem de meios de acumulao do capital.
Portanto, o seu trabalho no aumenta o capital social global na reproduo do capital.
A aula consumida ao tempo em que produzida, dela nada mais restando. Dela no
permanece nenhum novo contedo material que resultaria em um novo quantum que
poderia ser acumulado em mercadoria, meios de trabalho e meios de subsistncia.
O professor ao produzir mais-valia no produz capital, mas gera mais-valia,
a partir de riquezas produzidas anteriormente, que se apresenta como a mensalidade
paga pelos pais e que vai para o capitalista dono da escola. Vale ressaltar que desse
pressuposto existem dois tipos de professores: os que vendem a sua fora de trabalho
ao Estado (escolas pblicas), portanto, no produzem mais-valia (trabalho
improdutivo) e os de escola privada (trabalho improdutivo/produtivo) que produzem
mais-valia sem, contudo, produzir contedo material da riqueza social.
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31
Retomando a afirmao inicial de que as aes humanas so histricas e que
o que, onde e como fazemos a educao construo do conjunto da sociedade, de
importncia decisiva determinarmos o processo pelo qual o trabalho didtico foi
construdo a partir desse pressuposto. Assim, tomaremos a transio do feudalismo
para o capitalismo nas anlises aqui erigidas, por ser esse o momento em que surge,
se configura e assume carter prprio no mbito da educao.
O ato de se educar surge no momento em que o homem se distingue da
natureza, transformando-a para atender s suas necessidades. Para continuarem
vivos, os homens devem reproduzir indefinidamente essa transformao, e isso,
como j vimos, se faz pelo trabalho. Portanto, no princpio [...] viver era o ato de se
formar homem, de se educar [...] (SAVIANI, 2003, p.94), o que exigia a
transmisso sucessiva, de uma gerao a outra, dos conhecimentos construdos
anteriormente. Isso era feito coletivamente at o aparecimento da propriedade
privada.
Com a propriedade privada ocorre a submisso do homem pelo homem e a
liberao do trabalho para os proprietrios de terra, o que permite a ociosidade de
alguns poucos que no precisavam trabalhar para continuarem vivos. na ocupao
do tempo livre que tem origem a escola, a qual, at o surgimento do modo de
produo capitalista, exercia, na educao da classe dominante, funo secundria e
[...] dependente da no-escolar, que era o trabalho [...] (SAVIANI, 2003, p.95).
A superao do modo de produo feudal, por meio do grande
desenvolvimento das foras produtivas, gestado no feudalismo, traz a criao de
novas necessidades que impem a ampliao do conhecimento racional, metdico e
cientfico. A consolidao da burguesia no poder exigia a apreenso desses
conhecimentos como condio de sua dominao.
Em consequncia, diz Saviani (2003, p.96):
[...] a partir da poca moderna, o conhecimento sistemtico a expresso letrada, a expresso escrita generaliza-se, dadas as condies da vida na cidade. Eis por que na sociedade burguesa que se vai colocar a
exigncia de universalizao da escola bsica. H um conjunto de
conhecimentos bsicos que envolvem o domnio dos cdigos escritos, que
se tornam importantes para todos. / Com o advento desse tipo de
sociedade, vamos constatar que a forma escolar da educao se generaliza
e se torna dominante. Assim, se at o final da Idade Mdia a forma
escolar era parcial, secundria, no generalizada, quer dizer, era
determinada pela forma no-escolar, a partir da poca moderna ela se
generaliza e passa a ser a forma dominante, luz da qual so aferidas as
demais.
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Na passagem do modo de produo feudal para o modo de produo
capitalista, duas formas de produo da vida material se sucederam inicialmente, a
cooperao e a manufatura.
Antes, porm, de identificarmos essas duas formas de produo, vale
lembrar o que diz Marx (1985a, p.257) sobre a origem do sistema capitalista:
[...] a produo capitalista comea [...] de fato onde um mesmo capital
individual ocupa simultaneamente um nmero maior de trabalhadores,
onde o processo de trabalho, portanto, amplia sua extenso e fornece
produtos numa escala quantitativa maior que antes.
Assim, a cooperao o ponto de partida da produo sob a ordem do
capital. Ela a forma de trabalho fundada na diviso do trabalho em que, um
determinado nmero de trabalhadores ocupa o mesmo local (edificaes) ao mesmo
tempo, para produzirem mercadorias de igual natureza ou de natureza diferente,
porm, conectas. Tal processo se d de maneira planejada e sob a regncia do
capitalista, produzindo, assim, maior quantidade de valor de uso em menos tempo. A
cooperao capitalista somente pode se realizar na existncia do trabalhador livre
para vender a sua fora de trabalho ao capital.
Na manufatura, a cooperao atinge sua forma mais evoluda,
permanecendo como trao distintivo do modo de produo capitalista. Essa forma de
produzir mercadoria avana para a diviso, em parcelas, das operaes de produo,
onde cada trabalhador executa apenas uma das operaes do processo, o que permite
a simplificao do trabalho pela cristalizao da funo exclusiva de um trabalhador.
Tal diviso do trabalho cria a necessidade de novos instrumentos e ferramentas
especializados que atendam aos tambm especializados trabalhadores parcelares,
tornando a produo de mercadorias um processo coletivo dos trabalhadores. O que
caracteriza a forma manufatureira de trabalho o fato de que, a partir da diviso do
trabalho, a autonomia anterior da produo de uma mercadoria por inteiro d lugar
ao domnio do processo pelo capitalista, na medida em que este o detentor da
matria-prima, dos meios de produo e do capital e, portanto, planeja
intencionalmente todas as operaes.
Com o advento das invenes mecnicas, que reunira vrios instrumentos
em um s mecanismo, a mquina revoluciona a indstria como meio de trabalho,
tirando das mos dos trabalhadores funes que antes eram suas. A esse respeito,
Marx (1985b, p.17) afirma que:
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Como maquinaria, o meio de trabalho adquire um modo de existncia
material que pressupe a substituio da fora humana por foras naturais
e da rotina emprica pela aplicao consciente das cincias da Natureza.
Na manufatura, a articulao do processo social de trabalho puramente
subjetiva, combinao de trabalhadores parciais; no sistema de mquinas,
a grande indstria tem um organismo de produo inteiramente objetivo,
que o operrio j encontra pronto, como condio de produo material.
Na cooperao simples e mesmo na especificada pela diviso do trabalho,
a supresso do trabalhador individual pelo socializado aparece ainda
como sendo mais ou menos casual. A maquinaria, com algumas excees
[...], s funciona com base no trabalho imediatamente socializado ou
coletivo. O carter cooperativo do processo de trabalho torna-se agora,
portanto, uma necessidade tcnica ditada pela natureza do prprio meio
de trabalho.
O sistema de maquinaria, por no necessitar de fora muscular como fora
motriz, traz consigo: um aumento de explorao da fora de trabalho pelo capital,
utilizando o trabalho de mulheres e crianas; subtrai o tempo de vida do trabalhador
com jornadas de trabalho excessivas e exaustivas; o progresso (com o auxlio da
cincia) que aumenta a produtividade em maior velocidade, servindo de meio
sistemtico de liberao de mais-trabalho, alm de intensificar a explorao da fora
de trabalho.
Com a grande indstria o capital alcana a sua forma mais desenvolvida de
explorao do trabalho, o que permite maior acumulao de riquezas materiais. Para
tanto, faz-se necessria a sua expanso para outras formas de trabalho que ainda no
controlam na totalidade. Uma dessas formas a educao escolar que tem no
trabalho didtico a sua realizao.
Tambm o trabalho didtico, como ato de realizao da educao escolar,
tal qual outras dimenses da totalidade social, transformou-se pela sua subsuno17
ao capital, na transio do modo artesanal para o modo manufatureiro de ensinar.
O processo histrico pelo qual passou o trabalho didtico no perodo da
baixa Idade Mdia foi marcado por uma organizao em que um nico mestre
(preceptor) atendia, individualmente, um nmero restrito de alunos (quando no
apenas um ou dois) e no qual se concentrava todo o saber a ser transmitido aos
alunos. Essa forma do trabalho didtico, segundo Manacorda (2007), era privilgio
dos jovens da classe dominante. Diz o autor:
___________ 17
Subsuno, para Marx (1985b, p.88), o movimento de objetivao do trabalho pela submisso
deste ao capital. Sobre esse fundamento, cada ramo especfico da produo encontra empiricamente a configurao tcnica que lhe adequada, aperfeioa-a lentamente e cristaliza-a rapidamente, assim
que atingido certo grau de maturidade. O que aqui e acol provoca modificaes , alm de novos
materiais de trabalho fornecidos pelo comrcio, a mudana paulatina do instrumento de trabalho.
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Apenas as classes possuidoras, [...], conheceram uma instituio
especfica para o cuidado e a educao das jovens geraes; as classes
produtivas no a conheceram, isto , nunca existiu para elas um local que
fosse exclusivo das crianas e dos jovens. Desde o tempo em que os
escribas do antigo Egito, como na recomendao de Ptahotep (Brunner,
1957), orgulhoso de sua sorte de pessoas que, por meio da escola, se
destinaram a uma situao social sem chefe, a contrapunha sorte de
quantos eram educados para trabalhar duramente sob a superviso de
outros, a escola tem se apresentado, na sociedade histrica, com essa
funo. (MANACORDA, 2007, p.119)
Como j afirmado anteriormente, at o advento do capitalismo a educao
dava-se pelo trabalho. Nas Corporaes, caractersticas do final da Idade Mdia, o
conhecimento era transmitido aos aprendizes18
pelos mestres das oficinas que
guardavam em segredo os procedimentos de seu ofcio. De acordo com Rugiu (1998,
p.38),
As circunstncias nas quais se trabalhava e se aprendia favoreciam o
segredo, principalmente o prevalecer quase absoluto da tradio oral ou
intuitivo-gestual (escuta as minhas palavras, nas Artes liberais ou mesmo olhe como eu fao, nas Artes mecnicas) unida ausncia de textos de documentao escrita sobre a atividade produtiva e de subsdios
didticos ad hoc [...].
A partir da forma artesanal do trabalho didtico, que tambm existia tanto
nas escolas pblicas como nas primeiras escolas burguesas, surgem as Universidades
da mesma maneira envoltas em mistrios tpicos das corporaes. A
institucionalizao das universidades, que fixou um contingente de mestres e
discpulos em um nico espao fsico, difundiu o modus italicus de ensinar. Essa
forma de organizar o trabalho didtico implicava em que apenas um mestre atendesse
a certo nmero de discpulos, no importando o seu nvel de conhecimento tampouco
a sua idade, no havendo diferenciao nos termos da aula nem para alunos novos
nem para os mais antigos. Os estudantes estavam diretamente ligados aos seus
preceptores, o que impossibilitava a sua participao em outras aulas de outros
mestres.
Os instrumentos de mediao da relao educativa individual, nesse
perodo, foram buscados em extratos manuscritos de obras clssicas, inicialmente da
cultura greco-romana, a seguir com textos das Sagradas Escrituras, catecismo e dos
autores renomados da patrstica e, posteriormente, retomando os clssicos greco-
___________ 18
Jovens da classe trabalhadora que permaneciam nas oficinas sob os servios e a orientao de um
mestre para aprender os segredos das Artes mecnicas.
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latinos, juntamente com as obras catlicas da escolstica. Com o advento da
inveno de Gutenberg foram lanadas as bases materiais para o surgimento do
instrumento de trabalho do professor que permanece at nossos dias o manual
didtico, questo sobre a qual trataremos mais adiante.
A reunio de preceptores com seus respectivos grupos de discpulos em um
s espao criou as condies para maior objetivao do trabalho didtico, que
ocorreria por meio do modus parisiensis de ensinar, tal qual a cooperao o fizera ao
agrupar os artesos sob o mesmo teto, propiciando a passagem manufatura.
O modus parisiensis revela um novo passo em direo diviso do trabalho
no interior da escola, como observa Alves (2005, p.51-52):
Diversamente do modus italicus, o modus parisiensis de ensinar
implicava uma forma de distribuio dos alunos por nveis de
adiantamento, o que resultou na formao de classes. A maior
homogeneidade das turmas constitudas permitiu que se estabelecesse
uma tmida diviso do trabalho, no interior do trabalho didtico, e que
diferentes professores assumissem a responsabilidade por classes e
matrias distintas (JULIA, 2001, p.14). Tambm insinuou a progresso
dos nveis de escolarizao, que, com o tempo, foi se fixando e
aperfeioando, at configurar um plano de estudos sistemticos com
articulao horizontal e vertical. Com isso, mudava, ainda, a concepo
de espao em relao ao local devotado ao ensino e, como decorrncia,
impunha-se o desenvolvimento das condies materiais que lhe
correspondiam. O local de ensino, que era um apndice no monastrio e
na catedral a escola cuja funo era a de reunir o mestre e seus discpulos -, elevou-se ao primeiro plano, quando deu origem ao colgio e
ganhou visibilidade.
No sculo XIV, os movimentos da Reforma (Alemanha, Inglaterra, Hungria,
ustria) e da Contra-Reforma (Frana, Itlia, Espanha) trouxeram para o cenrio da
educao importantes mudanas relacionadas ao trabalho didtico, com Lutero19
e a
Companhia de Jesus, respectivamente. Nesse momento, a emergncia da burguesia
exigia que a educao se disseminasse para atender s necessidades de sua
consolidao. Lutero, indiretamente influenciado pelas idias humanistas, foi um dos
principais reformadores da Igreja. Assim como outros reformadores, ele entendia a
educao como a redentora dos males da sociedade e foi acompanhado por
Comenius, seu seguidor, que se props a ensinar tudo a todos, como ser observado
mais frente.
___________ 19
Martinho Lutero, que viveu no sculo XVI, foi um importante reformador dos dogmas da Igreja e
propositor de reformas tambm no ensino.
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36
A Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada, em 1546, sob princpios
militares, pelo espanhol Incio de Loyola, e pautada nos preceitos catlicos, teve
entre outros objetivos (pregao, caridade, converso) o de [...] ensinar ao prximo
todas as disciplinas convenientes ao nosso Instituto, de modo a lev-lo ao
conhecimento e amor do Criador e Redentor nosso [...] (s/d, s/p). no Ratio
Studiorum, instrumento de organizao e plano de estudos da Companhia de Jesus,
que se delimitaram as regras do mtodo pedaggico dos jesutas, influenciado pelo
modus parisiensis de ensinar.
Com base nos esclarecimentos expostos acima, que embasam as discusses
realizadas, trataremos, a seguir, do processo histrico que levou constituio e
permanncia da organizao do trabalho didtico elaborado por Comenius que
afirma:
Que a proa e a popa da nossa didtica sejam: buscar e encontrar um
mtodo para que os docentes ensinem menos e os discentes aprendam
mais; que nas escolas haja menos conversa, menos enfado e trabalhos
inteis, mais tempo livre, mais alegria e mais proveito; que na repblica
crist haja menos travas, menos confuso, menos dissenses, mais luz,
mais ordem, mais paz e tranqilidade (COMENIUS, 2006, p.12).
O imenso desenvolvimento das foras produtivas, propiciado pelos avanos
tecnolgicos, fez com que os homens ultrapassassem o estgio de conscincia
anterior, em que se viam sujeitos ao arbtrio da natureza, passando para um momento
em que se perceberam como conhecedores das leis que regem o universo, isto ,
como os artfices da histria humana. A partir de ento, a natureza passou a exercer
papel secundrio, ou quase papel nenhum, na determinao da histria do homem.
Entretanto, ainda restava uma limitao: a ideia de que a essncia humana era
imutvel porque as aes humanas seriam uma determinao da vontade de Deus.
O mundo um cosmos, isto , uma ordem fixa de lugares e funes que
cada ser (minerais, vegetais, animais e humanos) ocupa necessariamente e
nos quais realiza sua natureza prpria. Os seres do cosmos esto
organizados em graus e o grau inferior deve obedincia ao superior,
submetendo-se a ele. [...] No existe a idia de indivduo, mas de ordem
ou corporao a que cada um pertence por vontade divina [...] (CHAU,
2000, p.390).
Com o desenvolvimento tecnolgico das foras produtivas, na sua fase
manufatureira (Idade Moderna), surgem novas necessidades que conduzem os
homens a uma nova etapa de seu processo histrico. Essa etapa foi marcada pelo
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surgimento da burguesia20
, classe que s existiria se continuamente transformasse os
instrumentos de produo, ocasionando, portanto, mudanas nas relaes de
produo e, consequentemente, em todo o conjunto das relaes sociais. Nas
palavras de Marx (1985b, p.88), [...] o que vlido para a diviso manufatureira do
trabalho no interior da oficina vale para a diviso do trabalho no interior da
sociedade [...].
nesse momento histrico que o bispo e educador Jan Amos Comenius
(1592 1670)21 elaborou a sua proposta didtica como a arte universal de ensinar
tudo a todos. Para tanto, era necessria a expanso da escola, embora houvesse
limites concretos para tal expanso, na demanda de alunos e no nmero reduzido de
mestres. Portanto, como apontou Comenius (2006), os custos de uma instruo nos
moldes antigos eram impraticveis, tornando-se, assim, imprescindvel o
barateamento da educao. A soluo encontrada por Comenius foi a proposio de
uma nova forma de ensinar que possibilitasse a todos o acesso escola.
Num perodo em que a sociedade avanava do modo de produo feudal
para o modo de produo capitalista22
, o modelo manufatureiro de organizao do
trabalho, apropriando-se das tcnicas do artesanato, parcela as operaes
componentes desse modo de produo, tornando os trabalhadores especialistas em
operaes especficas, prvia e intencionalmente planejadas (ALVES, 2001). Dessa
forma, por fora do avano das foras produtivas, a educao, como uma das
dimenses da sociedade, tambm se transformava pelas mos de vrios outros
pensadores como Ratke, Alsted, Andreae23
.
Com o propsito de ensinar tudo a todos de modo certo, fcil e slido,
Comenius (2006) concebeu, tambm para a educao escolar, uma forma de ensinar
propugnada em sua obra