Dissertação Maisa Elena Ribeiro- Ultima Correção

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MAISA ELENA RIBEIRO PSICOLOGIA NO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: reflexões críticas sobre as ações e dilemas profissionais

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MAISA ELENA RIBEIRO

PSICOLOGIA NO SISTEMA NICO DE ASSISTNCIA SOCIAL: reflexes crticas sobre as aes e dilemas profissionais

PUC-CAMPINAS2013MAISA ELENA RIBEIRO

PSICOLOGIA NO SISTEMA NICO DE ASSISTNCIA SOCIAL: reflexes crticas sobre aes e dilemas profissionais

Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao Stricto Sensu em Psicologia do Centro de Cincias da Vida da PUC-Campinas, como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia como Profisso e Cincia.

Orientadora: Prof. Dra. Raquel Souza Lobo Guzzo.

PUC-CAMPINAS2013

Ficha CatalogrficaElaborada pelo Sistema de Bibliotecas eInformao - SBI - PUC-Campinas

t302 Ribeiro, Maisa Elena.R484p Psicologia no Sistema nico de Assistncia Social: reflexes crticas sobre aes e dilemas profissionais / Maisa Elena Ribeiro. Campi- nas: PUC-Campinas, 2013. 120p. Orientadora: Raquel Souza Lobo Guzzo. Dissertao (mestrado) - Pontifcia Universidade Catlica de Cam- pinas, Centro de Cincias da Vida, Ps-Graduao em Psicologia. Inclui bibliografia. 1. Psicologia social. 2. Polticas pblicas. 3. Psicologia comunitria. 4. Sistema nico de Assistncia Social. I. Guzzo, Raquel Souza Lobo. II. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas. Centro de Cincias da Vida. Ps-Graduao em Psicologia. III. Ttulo. 22. ed. CDD t302

Dedico este trabalho:

A Deus pela vida e fortalecimento nos momentos mais difceis;

Aos meus pais, Aparecida Clia da Cruz Ribeiro e Homero Lemes Ribeiro, pelo profundo amor, carinho, dedicao, afeto e disponibilidade dispensados em todos os momentos da minha vida;

E a todos os usurios e trabalhadores da Assistncia Social que vivenciam cotidianamente as sequelas e mazelas das injustias e desigualdades sociais.

Agradecimentos

A Deus por me proporcionar pais e amigos to especiais, para compartilhar os momentos difceis e alegres da minha vida.

Aos meus pais, por sempre me apoiarem, darem suporte afetivo e financeiro para poder me dedicar vida acadmica.

amiga e companheira de apartamento Maria urea Pereira Silva pelo companheirismo, carinho, apoio e afeto compartilhados em casa e na universidade neste perodo de minha vida.

Aos amigos Ludmila Rodrigues de Figueiredo, Maira urea Pereira Silva, Walter Mariano de Faria Silva Neto e namorado Fernando Bento Chaves Santana por disponibilizarem-se a ler o trabalho e darem suas contribuies.

Aos velhos e novos amigos pelo companheirismo e carinho nos momentos de angustias, tristezas, alegrias e diverso.

Aos meus tios Lazaro e Rosa por me hospedarem com tanto carinho em sua casa, antes da minha mudana para Campinas.

s companheiras do grupo de pesquisa Raquel Pondian Tizzei e Mariana Ferreira Rodrigues pela amizade, contribuies tericas e prticas nos trabalhos e discusses realizadas no grupo.

Aos colegas do grupo de pesquisa Adinete, Mariana Lemos, Ana Paula, Larissa, Etienne, Flvia, Daniel, Jacqueline, Priscila, Annelize, Antnio, Lucian, Michel, Thaisa, Cristina e Luiz Roberto pelas vivncias, discusses e reflexes compartilhadas.

A todos os professores e profissionais que fizeram e fazem parte da minha formao como psicloga e trabalho no SUAS, especialmente Tommy Akira Goto, Arialdo Germano Jr., Francisco Rogrio Bonatto, Tatiane Aparecida da Silva e Bernadete Pereira de Almeida.

s professoras Mrcia Hespanhol Bernardo e Vernica Morais Ximenes pela leitura, anlise e crticas ao trabalho na qualificao e defesa. Tais contribuies foram extremamente importantes para o aprimoramento desta pesquisa.

Ao CNPq pelo financiamento da pesquisa.

E finalmente, agradeo minha orientadora Raquel Souza Lobo Guzzo por proporcionar diversas reflexes tericas, metodolgicas e polticas acerca da minha formao e atuao profissional durante as orientaes e discusses no grupo de pesquisa.

A todos meu muito obrigada!

RESUMO

Ribeiro, Maisa Elena. Psicologia no Sistema nico de Assistncia Social: reflexes crticas sobre as aes e dilemas profissionais. 2013. 108 p. Dissertao (Mestrado em Psicologia como Profisso e Cincia) - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Centro de Cincias da Vida, Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Campinas.

A partir da aprovao da Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS) em 2004 e implementao do Sistema nico de Assistncia social (SUAS), o psiclogo compe as equipes tcnicas dos servios dessa poltica pblica, inaugurando oficialmente um novo campo de atuao. Com essa insero, o psiclogo lida com demandas das classes populares, o que exige da psicologia, como cincia e profisso, novas concepes e prticas que possam contribuir de forma efetiva para mudana social e melhoria da qualidade vida do pblico-alvo destes servios. O objetivo dessa pesquisa foi problematizar a insero e atuao do psiclogo no SUAS, para refletir e discutir criticamente sobre as aes, problemas e dilemas enfrentados pelo profissional nesse contexto. Trata-se de uma pesquisa qualitativa fundamentada no Materialismo Histrico Dialtico, em que foram realizadas anlises das seguintes fontes de informao: Referncias Tcnicas do Conselho Federal de Psicologia (CFP); e Dirios de Campo construdos a partir das reflexes da pesquisadora durante a participao em eventos pblicos sobre o tema (seminrios, fruns, debates etc.). As anlises desses materiais explicitaram as contradies entre o que proposto pela PNAS e nas orientaes do CFP com o que realizado e vivenciado pelos profissionais na prtica. Os resultados da pesquisa apontaram que apesar da insero no SUAS representar um novo espao de atuao para o psiclogo, os profissionais ainda reproduzem velhas prticas. Tal afirmao deve-se identificao de aes que mantm a perspectiva de uma psicologia tradicional que tende a deter-se apenas aos aspectos individuais e subjetivos para a compreenso dos problemas das pessoas. Ademais, os profissionais queixaram-se da sua formao e da falta de espao para discutir sua prtica, o que, muitas vezes, faz com que a repercusso de suas aes no atinja os objetivos almejados. Alm do problema da formao, que no atende a esse novo contexto de atuao, o profissional ainda encontra nos servios do SUAS diversas outras dificuldades como por exemplo: condies inadequadas de trabalho devido falta de infraestrutura fsica para funcionamento dos servios e vnculos de trabalho precarizados. No entanto, a pesquisa identificou tambm prticas convergentes com as demandas do SUAS como: a insero na comunidade e trabalhos em grupos com um vis mais participativo e coletivo. Foram ainda identificadas algumas estratgias de superao dos problemas e dilemas por meio da organizao coletiva e da participao poltica de alguns profissionais, como por exemplo, os fruns de trabalhadores do SUAS.

Palavras Chave: Psicologia Crtica, Psicologia e Polticas Pblicas, Sistema nico de Assistncia Social, Psicologia Social da Libertao, Psicologia Comunitria.ABSTRACTRibeiro, Maisa Elena. Psychology in the Unified Social Assistance System: critical reflections about professional actions and dilemmas. 2013. 108 p. Dissertation (Master in Psychology as a Profession and Science) - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, Sciences of Life Center, Psychology Postgraduate Program, Campinas.After the National Policy of Social Assistance (PNAS) approval in 2004 and the implementation of the Unified Social Assistance System (SUAS), the psychologist became a technical team member for this public policy services, launching officially a new work field. With this participation, the psychologist deals with the popular class demands, demanding from Psychology as science and profession new conceptions and practices that can contribute in an effective way for social change and better quality of life for the target users of these services. The aim of this research was to question the psychologist presence and work in the SUAS, to reflect and discuss critically about the actions, problems and dilemmas faced by the professional in this context.It is a qualitative research based on the principals of Dialectical and Historical Materialism, where analyses of the following sources of information were carried through: technical references from the Federal Psychology Council (CFP); field diaries composed by the researcher with reflections about the participation in public events on this theme (seminars, forums, debates, etc.). The analyses of these materials showed the contradictions between what is proposed by the PNAS and the CPF orientations, with what is carried through and experienced by the professionals practice. The research results revealed that although the SUAS participation presents a new work field for the psychologist, these professionals still reproduce old practices. This affirmation is due to the identification of actions that maintain a traditional psychology perspective that tend to focus in individual and subjective aspects to understand peoples problems. In addition, the professionals complained about their education and the lack of a space for discussions about their practice, what often results in actions that dont achieve their intended goals. Apart form the education problem, which doesnt encompass this new context and field of work, the professional encounters in the SUAS services problems such as: inadequate work conditions due to the lack of physical infrastructure required for the services operation, also precarious working attachments. However despite the problems, the research also identified practices that converge with the SUAS demands such as: community participation and group works with a collective and participative bias. Furthermore, it was identified some strategies to overcome problems and dilemmas through collective organization and political participation of some professionals, for example, the SUAS workers forum.Keywords: Critical Psychology, Psychology and Public Policy, Unified Social Assistance System, Liberation Social Psychology, Community Psychology.

LISTA DE SIGLAS

BVS Biblioteca Virtual de SadeCAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel SuperiorCadSUAS Cadastro Nacional do Sistema nico de Assistncia SocialCFESS Conselho Federal de Servio SocialCFP Conselho Federal de PsicologiaCMDCA Conselho Municipal de Direitos da Criana e do AdolescenteCRAS Centro de Referncia de Assistncia SocialCREAS Centro de Referncia Especializado de Assistncia SocialCREPOP Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e Polticas PblicasCRP Conselho Regional de PsicologiaIBGE Instituto Brasileiro de Geografia e EstatsticaIES Instituio de Ensino SuperiorLOAS Lei Orgnica de Assistncia SocialMDS Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate FomeMHD Materialismo Histrico DialticoNOB-RH/SUAS Norma Operacional Bsica de Recursos Humanos do Sistema nico de Assistncia SocialONG Organizao no GovernamentalONU Organizao das Naes UnidasPIB Produto Interno BrutoPNAS Poltica Nacional de Assistncia SocialPNUD Programa das Naes Unidas para o DesenvolvimentoRMC Regio Metropolitana de CampinasSUAS Sistema nico de Assistncia SocialUNICAMP Universidade Estadual de Campinas

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Composio das equipes de referncia do CRAS ...................................42

Quadro 2: Composio das equipes de referncia do CREAS .................................43

Quadro 3: Distribuio dos Servios do SUAS .........................................................45

Quadro 4: Resultados Referncias Tcnicas ............................................................83

Quadro 5: Resultados Dirios de Campo ..................................................................85

LISTA DE TABELA

Tabela 1: Indicadores sociais de pobreza .................................................................29

SUMRIO

AgradecimentosviRESUMOviiABSTRACTviiiLISTA DE SIGLASixLISTA DE QUADROSxLISTA DE TABELAxi1- INTRODUO131.1-Apresentao131.2-Justificativa141.3-Objetivos172-FUNDAMENTAO TERICA182.1-Polticas Sociais, Polticas Pblicas e Capitalismo192.2-Pobreza, Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS e Psicologia272.2.1- Pobreza272.2.2- Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS392.2.3- A Insero do Psiclogo no SUAS462.3- Psicologia: do Compromisso para a Mudana Social522.3.1- Psicologia e Compromisso social522.3.2- Psicologia: Crtica, Libertao e Comunidade563- MTODO663.1-Fundamentos Metodolgicos663.2-Procedimentos Tcnicos723.3-Fontes de Informao743.4-Implicaes ticas da pesquisa774-PROCEDIMENTO DE ANLISE DOS RESULTADOS795-RESULTADOS825.1- Apresentao dos resultados825.2- Discusso dos resultados: explicaes e mediaes possveis856 CONCLUSO1066.1- Sntese1066.2- Superaes identificadas e possveis1076.3-Consideraes finais109REFERNCIAS111APNDICES119

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1- INTRODUO

1.1- Apresentao

Desde meus estudos na graduao em Psicologia, tive interesse pelos aspectos histricos, sociais, culturais e polticos que se relacionam ao processo de constituio do sujeito e da sociedade. Consequentemente, durante a formao dediquei-me a monitorias de disciplinas, estgios extracurriculares, projetos de extenso e grupos de pesquisa voltados a discusses e intervenes do psiclogo na comunidade e nas polticas pblicas. Por outro lado evitei as abordagens, espaos e intervenes tradicionalmente individualistas e elitistas da psicologia, tendo contato com estas apenas nas disciplinas e estgios obrigatrios. Durante a graduao na PUC-Minas, fui estagiria por dois anos na Secretaria Municipal de Assistncia Social de Poos de Caldas/MG. A princpio, realizava estgio no Programa Sentinela[footnoteRef:1] que era destinado a atender crianas e adolescentes vtimas de abuso e explorao sexual, bem como suas famlias. Posteriormente, com a implementao e regularizao do Sistema nico de Assistncia Social (SUAS) no municpio, o Programa Sentinela foi extinto. A equipe de profissionais do Sentinela, que era composta por uma psicloga, uma assistente social, uma pedagoga e duas estagirias do curso de Psicologia, foi realocada para o Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social (CREAS), compondo, a partir de ento, o ncleo que seria responsvel pelo atendimento de crianas e adolescentes vtimas de violncia como um todo, e no apenas de abuso e explorao sexual. [1: O Programa Sentinela visa atender no mbito da Poltica de Assistncia, atravs de um conjunto articulado de aes dos governos federal, estaduais e municipais, crianas e adolescentes vitimados pela violncia com nfase no abuso e explorao sexual (Brasil, 2001).]

As atividades durante o estgio envolviam atendimentos individuais e em grupo com supervises da psicloga do servio e do professor da universidade; visitas domiciliares, juntamente com a psicloga ou a assistente social e atividades de divulgao, com a pedagoga, do servio nas escolas e outras instituies de atendimento criana e ao adolescente. Essa experincia, durante o estgio, me levou a cursar uma especializao/aprimoramento em atendimento a Crianas e Adolescentes na Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Durante esse curso tive a possibilidade de aprimorar meus conhecimentos na rea da infncia, juventude e em polticas pblicas, uma vez que o programa tinha o objetivo de preparar profissionais para atuarem nos servios pblicos de Sade. Ao terminar o aprimoramento, no incio do ano de 2010 fui chamada a trabalhar como psicloga do CREAS no municpio de Poos de Caldas/MG. Retornei cidade para atuar no mesmo servio no qual havia sido estagiria. No entanto, nesse retorno encontrei uma nova configurao, inclusive nos contextos polticos e organizacionais. Nesta segunda passagem pelo SUAS, permaneci por mais um ano e meio e me desliguei no final do ano de 2011 para dedicao ao processo seletivo do mestrado. Em 2012, ingressei no curso de mestrado no Programa de Ps-graduao em Psicologia da PUC-Campinas. A pesquisa apresentada nesta dissertao foi desenvolvida na rea de concentrao Psicologia como cincia e profisso, linha de pesquisa Preveno e Interveno Psicolgica, no grupo de estudos Avaliao e Interveno Psicossocial: Preveno, Comunidade e Libertao.

1.2- Justificativa

A trajetria desde a graduao, passando pelo curso de especializao alm da atuao no CREAS, suscitou-me diversos questionamentos acerca do processo de formao e das prticas realizadas pelo psiclogo no servio pblico. Tais questionamentos me levaram a buscar maior aprofundamento em estudos sobre a Poltica Nacional de Assistncia Social (PNAS), bem como acerca da atuao do psiclogo nos servios do SUAS. Essas indagaes foram fundamentais para evidenciar contradies entre o que est proposto na PNAS e o que concretamente vivenciado pelos sujeitos envolvidos com a prtica (profissionais e usurios). Dentre tais questes destaco: Os objetivos propostos (ideais) so realizveis ou realizados (reais) pelos servios? Os fatores polticos e institucionais que atravessam a prtica profissional do psiclogo interferem no desenvolvimento do seu trabalho? Os psiclogos tm clareza sobre o seu papel e as possibilidades de atuao neste contexto? As dificuldades encontradas limitam suas aes? Existe conscincia quanto s repercusses poltico-sociais de suas aes? O quanto os usurios dos servios so envolvidos no processo de construo das aes a eles destinadas? O que a psicologia tem a contribuir nesse contexto com suas teorias e modelos de interveno? A formao do psiclogo oferece subsdios para a atuao no SUAS? So diversas perguntas que, possivelmente, no sero exploradas totalmente nesta dissertao, mas pretende-se avanar as reflexes em relao a alguns aspectos, que sero definidos posteriormente nos objetivos gerais e especficos da pesquisa.Quando a psicologia foi instituda como profisso no Brasil, atravs da lei 4119/62 (Brasil,1962), a formao e atuao do psiclogo se estruturaram em torno de trs principais reas: a clnica, a escolar e a industrial.Dentre essas reas a que mais teve destaque na formao e prtica foi a rea clnica, com a concepo clssica de atuao individualizada e voltada para as classes mdia e alta da populao. Tal concepo trouxe algumas consequncias para a atuao do psiclogo, porque ao reproduzir noes de atendimento individualizado e curativo, os psiclogos, geralmente, se remetiam somente a fenmenos mentais e pessoais. Com isso no buscavam entender a pessoa na sua integralidade, muitas vezes desconsiderando as influncias que os contextos sociais, econmicos e polticos exercem no sujeito (Botom, 2010/1979; Ferreira Neto, 2004; Yamamoto, 2003). O lema do compromisso social da psicologia surge a partir das crticas relativas ao carter elitista, individualista e predominantemente clnico da profisso. Em 1994, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) realizou uma pesquisa que investigou a emergncia dos novos fazeres e contextos de atuao profissional. A pesquisa apontou como resultado: a) a necessidade de reviso terica das concepes em psicologia, b) a incluso no social como fator fundamental para investigar a subjetividade e finalmente, c) o campo multidisciplinar e transdisciplinar como base indispensvel para a produo do conhecimento e atuao do psiclogo (CFP, 1994).A insero do psiclogo nos servios pblicos cresceu significativamente, principalmente, aps a Constituio brasileira de 1988 e implementao de diversas polticas pblicas no campo da seguridade social, No entanto, a presena do psiclogo nesses servios no representou, em si, a efetivao do compromisso social da psicologia, pois este mais do que a abrangncia e abertura de mercado de trabalho em polticas sociais, para possibilitar que as classes subalternas tenham acesso ao psiclogo. O compromisso est, essencialmente, em discutir o que realmente a psicologia tem a contribuir nesses novos contextos para uma mudana social, conscientizao e melhoria de vida das classes populares. Alm disso, outro aspecto que precisa ser considerado diz respeito s limitaes que as polticas pblicas e seus servios trazem devido a sua organizao e conjuntura dentro do modo de produo capitalista. A organizao do Estado para lidar com a questo social fragmentada, o que faz com que os problemas sociais sejam tratados de forma isolada e remediativa, sem a anlise e intervenes nas origens dos problemas (Guzzo & Lacerda, 2007; Yamamoto, 2007). No que diz respeito PNAS, a pesquisa realizada por Macedo et al. (2011), contabilizou no Cadastro Nacional do Sistema nico de Assistncia Social (CadSUAS)[footnoteRef:2], entre julho de 2010 a janeiro de 2011, 8.079 psiclogos atuando no SUAS. Com este nmero, os psiclogos aparecem como segunda categoria profissional mais presente no SUAS, o que demonstra a grande expanso e representao da psicologia nesta poltica pblica. [2: O CadSUAS uma ferramenta de gesto do MDS de uso obrigatrio que permite a atualizao e o monitoramento dos servios, da rede socioassistencial e dos demais rgos governamentais, conselhos, fundos e trabalhadores do SUAS (Macedo et al. 2011, p. 482).]

A prtica do psiclogo no SUAS foge dos padres tradicionais da psicologia, desde a clientela que vai atender, aos espaos que vai ocupar e as aes que sero propostas. No entanto, vrias pesquisas na rea (Centro de Referncia Tcnica em Psicologia e Polticas Pblicas [CREPOP][footnoteRef:3]; CFP, 2007, 2011, 2013; Macedo et al. 2011; Senra, 2009; Ximenes, Paula & Barros, 2009) apontam que devido ao contexto de formao e recente insero dos psiclogos no SUAS, no esto bem definidas as atribuies e prticas para tal servio, o que tem como consequncias: uma atuao descontextualizada da realidade e da poltica na qual se est inserido; a prevalncia de prticas clnicas, individuais, tradicionais da rea; a falta de anlise crtica dos aspectos polticos e sociais que perpassam a prtica do psiclogo; e a discrepncia entre o que est previsto nos documentos oficiais e o cotidiano dos servios. [3: O CREPOP um centro de pesquisa do CFP criado em 2006 que produz Referncias Tcnicas para orientar a atuao dos psiclogos que atuam em servios vinculados a polticas pblicas (CREPOP, 2013).]

Diante desse panorama, esses autores levantam a necessidade de que os psiclogos construam metodologias alternativas s tradicionalmente realizadas pela cincia psicolgica, metodologias estas que devem ultrapassar os limites das salas de atendimento e ampliar suas anlises para alm da perspectiva individualizante. Nesse sentido os desafios para o psiclogo vo alm da atuao tcnica (abordagens e metodologias psicolgicas), pois envolvem aspectos polticos e institucionais que perpassam sua prtica, o que demanda deste profissional um olhar e posicionamento crtico diante da realidade que se defrontar (CREPOP, 2013; Senra & Guzzo, 2012; Macedo et al., 2011; Senra, 2009; Ximenes, Paula & Barros, 2009).A partir de tais resultados trazidos pelas pesquisas anteriormente citadas levantam-se dois aspectos relevantes: o primeiro refere-se carncia na formao por parte dos psiclogos quanto a sua insero no SUAS. O segundo evidencia que a insero deste profissional nas polticas pblicas ainda carece de reflexes polticas, tericas e metodolgicas. Diante disso, preciso que se faa uma anlise das aes que vm sendo realizadas, a fim de: levantar dos dilemas e dificuldades encontradas pelos profissionais e identificar a compreenso que os psiclogos tm do papel profissional, poltico e social no contexto no qual esto inseridos.Diante dos questionamentos levantados e do interesse da pesquisadora pelo tema, corroborados pelas reflexes de Martn-Bar (1985/1996), que apontam que o saber psicolgico pode contribuir para a conscientizao, emancipao e fortalecimento das pessoas para enfrentarem e superarem as injustias sociais, pretende-se aprofundar os estudos, pesquisando sobre o papel social e poltico do psiclogo no SUAS, analisar o compromisso social da psicologia e sua real contribuio para mudana social. Nesta perspectiva, buscar-se- relacionar as reflexes da prtica com o aprofundamento terico desenvolvendo uma pesquisa Materialista Histrica Dialtica, com o intuito de contribuir com a construo do conhecimento, reflexo e fortalecimento do psiclogo e suas prticas no mbito da Assistncia Social.

1.3- Objetivos

A presente pesquisa tem como objetivo geral: problematizar a insero e atuao do psiclogo no SUAS e como objetivos especficos: identificar as orientaes para a atuao do psiclogo nos servios do SUAS; conhecer as aes realizadas pelos psiclogos; compreender os problemas e dilemas vivenciados pelos profissionais neste contexto.

2- FUNDAMENTAO TERICA

A fundamentao terica desta pesquisa parte de um fundamento marxista, que pressupe a necessidade de anlise da vida concreta, considerando a histria, a realidade e o sistema social, nos quais a sociedade se desenvolve. Para tanto necessrio o conhecimento das circunstncias diretas e indiretas presentes nos contextos de vida de da classe trabalhadora, sobretudo em espaos de insero social do psiclogo. Nesta perspectiva terico-metodolgica, toda pesquisa tem o intuito de refletir e propor mudanas sociais, partindo da anlise da realidade em sua totalidade concreta, associada a uma capacidade de ao singular ou coletiva. Diante de tal proposta, discutir a insero e atuao do psiclogo no SUAS pensar aes que promovam o desenvolvimento humano, conscientizao, fortalecimento e mudana social. Para tanto, extremamente importante a construo de intervenes psicossociais que respondam aos problemas da camada da populao que sofre opresso, violncia e desamparo (Guzzo, 2009; Paulo Netto, 2011). A fundamentao terica deste trabalho est dividida em trs eixos. O primeiro eixo, denominado Polticas Sociais, Polticas Pblicas e Capitalismo, visa discutir as manifestaes na questo social e as aes do Estado, bem como analisar o desenvolvimento social e histrico da construo das polticas sociais e polticas pblicas no Brasil, bem como as influncias do modo de produo capitalista na vida das pessoas e na configurao de tais polticas.No segundo eixo, intitulado Pobreza, PNAS e Psicologia ser realizada uma discusso sobre os conceitos de pobreza, visando apresentar uma viso crtica acerca dos indicadores sociais utilizados para mensurao e qualificao deste fenmeno. Alm disso, buscar uma reflexo acerca dos aspectos objetivos e subjetivos inerentes pobreza. Posteriormente ser apresentada a PNAS, suas diretrizes, objetivos e organizao dos servios, trazendo alguns estudos que fazem uma anlise crtica da mesma. Ao final, ser realizada uma discusso sobre a insero e atuao do psiclogo no SUAS a partir de algumas pesquisas cientficas sobre o tema. J no terceiro eixo, intitulado Psicologia: do Compromisso para Mudana Social, discutir-se- a Psicologia enquanto cincia e profisso. O primeiro subitem realizar uma discusso do desenvolvimento da profisso no Brasil e sua insero nos servios pblicos, refletindo a respeito das implicaes desta insero e do chamado compromisso social da profisso. Depois ser apresentada a Psicologia Crtica como um movimento contra-hegemnico da Psicologia, que questiona as teorias e prticas tradicionais que contribuem para a manuteno do modo de produo capitalista e adaptao das pessoas nesse sistema (Parker, 2007). Dentro desta mesma perspectiva de rompimento com as prticas hegemnicas da Psicologia, sero apresentadas a Psicologia Social da Libertao e a Psicologia Comunitria como referenciais tericos e metodolgicos da Psicologia que podem subsidiar a atuao do psiclogo no SUAS.

2.1- Polticas Sociais, Polticas Pblicas e Capitalismo

Este eixo da fundamentao terica tem o objetivo discutir o modo de produo capitalista, os reflexos dessa forma de organizao econmica e social na vida das pessoas e nas aes do Estado. Aps esta contextualizao sero discutidos os conceitos de polticas sociais e polticas pblicas.

Vida no Capitalismo

A sociedade contempornea organizada a partir do modo de produo capitalista e constitui-se em uma sociedade de classes, em que a classe dominante (minoria burguesa detentora dos meios de produo) explora a classe trabalhadora (maioria da populao). Tal modelo de organizao socioeconmica repercute injustias e desigualdades, uma vez que a classe dominante cada vez mais tem posse e poder dos bens e riquezas produzidas e a classe trabalhadora vende sua fora de trabalho a preo mnimo para poder satisfazer suas necessidades bsicas de sobrevivncia. E quem no pode ou no tem condies de vender sua fora de trabalho fica excludo (Byron, 2003).Diante de tal conjuntura, os problemas sociais e o modo de produo capitalista esto diretamente relacionados, visto que a pobreza, misria, violncia e excluso social surgem, principalmente, como reflexo desta forma sistemtica de organizao, que baseada na explorao da classe trabalhadora e acumulao do capital pelas classes dominantes, causando a desigualdade social, devido ao acmulo dos bens produzidos nas mos de poucos. Ao mesmo tempo em que revoluo industrial[footnoteRef:4] trouxe um rpido e gigantesco aumento na produo de bens e riqueza e contribuiu para o desenvolvimento do comrcio, do transporte, da comunicao e de diversas tecnologias fez tambm com que ocorresse o crescimento das cidades sem a devida infraestrutura. Esse processo, segundo Engels (1845/2010), resultou no surgimento de uma nova classe social, a classe operria, formada principalmente por imigrantes vindos de pases e regies menos desenvolvidas no que diz respeito ao crescimento econmico exponencial dos grandes centros urbanos. [4: A Revoluo Industrial considerada o marco histrico de ascenso do modo de produo capitalista como forma de organizao econmica e social, que ocorre primeiro na Inglaterra e depois se expande para outros pases (Engels, 1845/2010).]

Tal classe que migra para os centros urbanos em busca de trabalho e melhores condies de vida acabam por vivenciar, o que Engels chama de verdadeiro inferno social devido explorao, mau pagamento, abandono, moradias precrias em barracos e favelas, condies que essas pessoas tm que se submeter para sobreviver nas cidades. Este fenmeno ocorre, principalmente devido demanda de trabalhadores que extrapola a oferta de trabalho, e nessa concorrncia pelo trabalho, a classe burguesa se aproveita de tal situao para desvalorizar e explorar a fora trabalho das pessoas. Esses aspectos da revoluo industrial e do desenvolvimento do capitalismo fazem com que ocorra um enriquecimento da burguesia e a situao de misria do operrio, o que posteriormente Marx chamou de lei da acumulao capitalista, segundo a qual, no modo de produo capitalista, a produo da riqueza social implica, necessariamente, na reproduo contnua da pobreza (Paulo Netto, 2011, p.23). Tal caracterstica reflete a grande contradio do modo de produo capitalista, uma vez que o aumento na produo da riqueza no reflete na diminuio da pobreza, pelo contrrio a acentua, devido desigualdade na distribuio dos bens produzidos. O conjunto desses problemas consequentes da forma de organizao da sociedade capitalista chamado de questo social, que Yamamoto (2007) define como: o conjunto de problemas polticos, sociais e econmicos postos pela emergncia da classe operria no processo de constituio da sociedade capitalista. Questo social pode, pois, ser traduzida como a manifestao no cotidiano da vida social da contradio capital-trabalho (p. 31).

Manifestaes da questo social no Brasil e as aes do Estado

O Brasil, pas marcado inicialmente pela colonizao portuguesa, traz em todo seu desenvolvimento histrico e econmico o estigma da explorao de sua terra e seu povo. Mesmo aps deixar de ser um pas submetido a Portugal e tornar-se Repblica[footnoteRef:5], o poder sai da coroa portuguesa e vai para as mos da elite burguesa do pas. Patto (1999), ao fazer uma anlise dos problemas sociais e das intervenes do Estado no perodo da primeira repblica no Brasil, diz que a luta pela Repblica no foi um esforo por direitos sociais, mas uma luta da burguesia pelo poder econmico e poltico no pas. [5: ARepblica(dolatimres publica, "coisa pblica") umaforma de governona qual ochefe do Estado eleito pelos cidados ou seus representantes, atravs do voto livre e secreto tendo a sua chefia uma durao limitada (Michaelis online, 2012).]

Segundo esta autora, a elite reprimia a participao popular e os representantes do povo defendiam apenas os seus interesses particulares. Diante deste contexto econmico e poltico havia, na sociedade brasileira, tanto no meio rural quanto no urbano, a explorao do trabalho e condies desumanas sem nenhuma garantia de direitos bsicos aos trabalhadores eram recorrentes. Observa-se que, desde a implantao da Repblica, no havia nenhuma preocupao com as mudanas sociais e justia social, mas sim com a manuteno das classes sociais e imensa desigualdade na distribuio das riquezas. O processo de industrializao no Brasil demandou mo de obra livre, ou seja, no escrava, para o trabalho nas indstrias, o que impulsionou o processo de urbanizao no pas a partir de 1888. No entanto, a oferta de trabalho formal e legal no correspondia ao nmero de pessoas que migravam para as cidades, desse modo, nem todos conseguiam se empregar, se manter e ter acesso aos benefcios da cidade grande. Assim, as pessoas foram se instalando nas periferias de forma indiscriminada, se espalhando pelas ruas e favelas, desenvolvendo trabalhos informais. Esse processo acelerado de urbanizao sem planejamento comeou a trazer uma srie de problemas sociais e de sade pblica que ficavam cada vez mais escancarados, o que comeou a causar incmodo burguesia (Heidrich, 2006; Maricato, 2003; Patto, 1999). A consolidao e expanso do capitalismo no pas, representadas pelo processo de industrializao e urbanizao, marcaram tambm a propagao dos problemas sociais, o que evidencia a contradio fundamental do capitalismo nomeado como questo social (Paulo Netto, 2001; Yamamoto, 2007). Alm disso, o Paulo Netto (2001) ressalta que essa contradio, tambm mobiliza as classes exploradas a reivindicarem melhores condies de vida, que culminam no desenvolvimento de movimentos sociais contra-hegemnicos e ao mesmo tempo leva o Estado a desenvolver estratgias e aes para conter tais movimentos. A questo social expressa-se de diversas maneiras ao longo do desenvolvimento do modo de produo capitalista. No entanto, mesmo com diferentes formas de expresso, sua origem sempre a mesma: surge da explorao de uma classe social sobre a outra, e da produo dos bens e riquezas que no refletem uma distribuio igualitria a todas as pessoas (Heidrich, 2006).Assim como a configurao da questo social vem sofrendo algumas mudanas, as formas de ao do Estado sobre a mesma tambm foi mudando ao longo da histria. Patto (1999) discute que, na poca da Repblica, qualquer forma de manifestao popular contra as injustias e desigualdades era vista como vandalismo ou desordem, que contrariava os ideais positivistas e progressistas, os quais o Estado buscava instalar no pas com o lema de ordem e progresso, e para tanto, utilizada a violncia para conter as reivindicaes. Desde ento, o Estado utiliza o direito para legalizar e legitimar a represso policial sobre os pobres e oprimidos com o discurso de defender os interesses da nao, nao esta que se reduzia a uma pequena elite burguesa que detinha o poder poltico e econmico do pas. Outro fator que suscitou a ao do Estado foi o aparecimento de diversas doenas e epidemias, decorrentes da aglomerao de pessoas de forma indiscriminada e sem as devidas condies de instalao como, por exemplo, saneamento bsico, servios de limpeza urbana e assistncia sade. Diante de tais problemas o Estado se mobilizou e efetivou aes higienistas de excluso das pessoas pobres contaminadas como justificativa de controle das epidemias e da proliferao de doenas (Patto, 1999). Heidrich (2006), em sua anlise relativa s transformaes do estado capitalista e as formas de expresso da questo social, apresenta distintas formas de ao do Estado que vo desde a iseno do Estado no que diz respeito questo social, que uma caracterstica do Estado Liberal[footnoteRef:6], at uma poltica de Estado voltada para a superao das desigualdades e problemas sociais, como no caso do Welfare State[footnoteRef:7]. Nesta ltima forma de governo, h uma mudana na viso da classe operria, que deixa de ser vista apenas como pobre e desamparada, para tornar-se uma classe com potencial para o consumo. [6: Estado Liberal: mnima responsabilidade do Estado sobre a questo social. Supe-se que o prprio mercado se autorregula e qualquer interferncia pode trazer desequilbrio. O prprio mercado tem poder absoluto de prover todas as necessidades humanas (Heidrich, 2006).] [7: Welfare State (Estado do bem-estar social): forma de governo desenvolvida na Europa que visava, atravs da ao do Estado, fazer uma reconstruo econmica, moral e poltica do pas defendendo ideias como justia social, solidariedade e universalismo (Heidrch, 2006).]

Pode-se perceber que, desde a Repblica, as aes do Estado diante dos problemas sociais sempre denotaram excluso e represso das pessoas, reprimindo suas manifestaes e interesses para mant-las controladas e no incomodarem a classe dominante. Para tanto, o Estado utilizava um discurso legal e cientfico para reforar a desqualificao dos pobres e justificar suas aes de disciplina, higienizao e controle (Patto, 1999). Posteriormente, como trazem Heidrich (2006) e Paulo Netto (2001), a questo social sofreu outras intervenes, com as manifestaes populares e as transformaes no modo de produo capitalista. Tais aes evidenciam um intuito de incluso econmica da classe trabalhadora e criao de novos consumidores. No entanto, em todos os momentos, as aes do Estado sempre se voltaram para os problemas sociais de forma isolada e no para a compreenso da questo social como algo estrutural.

Polticas Sociais e Polticas Pblicas

neste contexto que surgem as polticas sociais, as quais, segundo Faleiros (2004), so aes do Estado ou da sociedade civil para intervir nos problemas sociais. Essas aes comearam a ser desenvolvidas no mbito da caridade e filantropia, em que a burguesia organizava obras de assistncia aos desamparados: Atravs dessas medidas, o Estado e os polticos aparecem como bons para o povo, preocupados com sua situao social, e aparentemente resolvendo seus problemas no dia a dia em relao doena, moradia, educao e alimentao, que constituem questes de sobrevivncia imediata para o trabalhador de hoje (Faleiros, 2004, p.12).

Posteriormente, com a promulgao da Constituio de 1988 no Brasil, o Estado se responsabiliza, oficialmente, em garantir os direitos sociais da populao: So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados na forma desta Constituio (Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, Artigo 6). E, para organizar e efetivar tais direitos, o Estado desenvolve Polticas Pblicas para viabilizar o acesso da populao aos seus direitos garantidos por lei. Nesse sentido, as Polticas Pblicas so definidas como a ao direta do Estado no que tange s demandas da sociedade. Segundo Souza (2006) as polticas pblicas buscam, ao mesmo tempo, colocar o governo em ao e analisar os impactos das mesmas, para propor mudanas na direo das aes quando necessrio. A formulao das polticas pblicas traduzem os objetivos do governo em programas e aes que visam mudanas no mundo real. Aps serem formuladas, as polticas pblicas desdobram-se em planos, programas e projetos e, quando postas em prtica, so implementadas, acompanhadas e avaliadas. As polticas pblicas traduzem as aes do poder pblico no que tange aos direitos e demandas da sociedade, portanto, sempre representam polticas sociais. No entanto, nem todas as polticas sociais so polticas pblicas, uma vez que existem polticas sociais e aes da iniciativa privada que no so executadas pelo Estado, mas podem ser financiadas com dinheiro pblico. No que se refere formulao de polticas pblicas, essencial partir de estudos e indicadores da realidade concreta para que seus objetivos atendam s reais demandas da sociedade. A implementao a concretizao da poltica pblica em programas e servios que sero ofertados. O acompanhamento reflete a necessidade de fiscalizao da poltica para verificar sua efetividade e o quanto os Estados e municpios conseguem colocar as propostas em ao, quais as dificuldades encontradas pelos atores (gestores, profissionais e usurios). E finalmente, a avaliao a anlise da eficcia e potencial que a poltica tem em responder satisfatoriamente aquilo que se props a realizar.No entanto, no modo de produo capitalista as classes que dominam o dinheiro (o capital), dominam tambm o Estado, a poltica, a justia, os meios de comunicao, a educao; as foras armadas etc. ( Casimiro, 1999, p.3). Assim, como sempre, prevalece o interesse da classe dominante e os problemas sociais so tratados pelos seus sintomas e no por suas origens, pois tratar suas origens significa mexer com os interesses da classe hegemnica e na estrutura do modo de produo capitalista, ou seja, so tratados os problemas, mas no a questo social. Dessa forma, as aes do Estado incentivam polticas econmicas que visam interesses particulares, refletem mais uma manuteno do sistema, do que uma real inteno de mudana social, o que tende a manter ou aumentar as desigualdades sociais. Nesse sentido, a formulao de polticas pblicas no suficiente para a efetivao e concretizao de seus objetivos, uma vez que o Estado, enquanto gestor das polticas pblicas, nem sempre gerencia os recursos pblicos a favor dos interesses da maioria da populao. Pode-se dizer, ento, que as polticas sociais no Brasil no so prioridade para o Estado, carecem de investimentos e muitas vezes o Estado delega sua realizao para instituies do terceiro setor, que por sua vez realizam estes servios de maneira privatizada e de acordo com suas ideologias e interesses. Com isso, os servios sociais sotransformados em mercadorias, se instala a filantropia, repercute o assistencialismo, obscurece o carter tcnico das aes e de acesso aos direitos garantidos por lei (Guzzo, Mezzalira e Moreira, 2013; Yamamoto, 2007).Apesar dos direitos estarem garantidos por lei, a sua aplicao s ocorre quando os interesses da classe dominante esto em jogo. Maricato (2003) explicita bem tal dinmica da utilizao das leis pelo Estado, em sua reflexo quanto s intervenes relacionadas ocupao de terras. A ao do Estado em ocupaes ilegais tem a justificativa de proteo das pessoas e das reas ambientais ocupadas, no entanto, tais aes s ocorrem em ocupaes que de alguma forma so consideradas prejudiciais aos interesses da classe dominante, seja por especulao imobiliria, ou proximidade com bairros de classe alta. Assim, comunidades negligenciadas pelo Estado, que nunca tiveram acesso a servios bsicos como gua, luz e esgoto, so percebidas, apenas, quando interesses econmicos e/ou polticos partidrios se fazem presentes. Caso essas ocupaes no comprometam nenhum interesse da classe dominante h um consentimento tcito em relao ocupao ilegal de terras. A tolerncia pelo Estado em relao ocupao ilegal, pobre e predatria de reas de proteo ambiental ou demais reas pblicas, por parte das camadas populares, est longe de significar uma poltica de respeito aos carentes de moradia ou aos direitos humanos (Maricato, 2003, p.158). Tal aspecto explicita o carter ambguo, contraditrio e desigual das aes do Estado na aplicao da lei de forma arbitrria, o que possibilita injustias, privilegia poucos, mantm o status quo e dificulta mudanas conjunturais. Dessa forma, para as classes populares, a lei mais vista e sentida como ameaa do que como proteo. Ao discutir o carter pblico e privado das aes do Estado no enfrentamento da questo social, Bonfim (2010) ressalta que, ao responsabilizar apenas os indivduos pelos problemas sociais, as polticas sociais focam suas aes nos indivduos excludos como se fosse algo exclusivo deles e independente da dinmica e estrutura social do capitalismo, o que deseconomiza (no olha para o sistema econmico) e desistoriciza (no olha para a histria) a questo:A lgica neoliberal ao mesmo tempo em que identifica os problemas sociais como responsabilidade dos indivduos tambm sugere que sejam resolvidos no mbito privado atravs de esforos prprios ou, quando isso no possvel, atravs de instituies privadas da sociedade civil atreladas s prticas de doao e do trabalho voluntrio (Bonfim, 2010, p. 272).

Essa dinmica est, ideologicamente, presente nas formas de compreenso e interveno dos problemas sociais e execuo das polticas pblicas. Tomemos como exemplos alguns discursos propagados na sociedade, principalmente nos veculos de comunicao de massa e no discurso das pessoas: o analfabetismo um problema social, mas a dificuldade de aprendizagem na maioria das vezes diagnosticada como um problema do aluno. O desemprego um problema social, mas a falta de capacitao para sua insero dos trabalhadores no mercado de trabalho um problema da pessoa. A pobreza um problema social, mas a ascenso econmica resultado de um esforo individual[footnoteRef:8]. [8: Tais aspectos ideolgicos presentes na forma de compreenso e interveno do Estado na pobreza e da psicologia no que tange esses problemas sero mais bem discutidos nos captulos 2.2 e 2.3 desta fundamentao.]

Nesse sentido, Yamamoto (2007) e Guzzo, Mezzalira & Moreira (2013) ressaltam que pensar as questes sociais e as polticas pblicas e sociais explorar contradies e intervir diretamente na conjuntura do modo de produo capitalista, permeado pelo confronto de interesses contrrios de grupos e classes. Tal confronto um desafio para os profissionais, gestores e usurios das polticas pblicas, uma vez que caracteriza um movimento contra hegemnico ao que imposto e reproduzido por quem detm o poder.2.2- Pobreza, Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS e Psicologia

Bebida gua, comida pasto. Voc tem sede de que? Voc tem fome de que?A gente no quer s comida, a gente quer comida, diverso e arte.A gente no quer s comida, a gente quer sada para qualquer parte.A gente no quer s comida, a gente quer bebida, diverso, bal.A gente no quer s comida, a gente quer a vida como a vida quer.Bebida gua, comida pasto. Voc tem sede de que? Voc tem fome de que?A gente no quer s comer, a gente quer comer e quer fazer amor.A gente no quer s comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor.A gente no quer s dinheiro, a gente quer dinheiro e felicidade.A gente no quer s dinheiro, a gente quer inteiro e no pela metade.Diverso e arte para qualquer parte. Diverso, bal, como a vida querDesejo, necessidade, vontade. Necessidade, desejo, eh! Necessidade, vontade, eh! Necessidade...

(Comida, Arnaldo Antunes)

Este eixo da fundamentao terica foi divido em trs subitens: o primeiro ir discutir alguns aspectos objetivos e subjetivos da pobreza, da desigualdade social e apresentar alguns indicadores sociais utilizados para medir e classificar tais aspectos em uma populao. No segundo subitem, ser apresentada a PNAS, que se caracteriza pela poltica pblica social brasileira, a qual se prope a lidar com as diversas facetas da questo social, dentre elas a pobreza. E finalmente, o terceiro ir discutir a insero e atuao do psiclogo nos servios do SUAS.

2.2.1- Pobreza

A msica Comida de autoria do cantor e compositor Arnaldo Antunes, apresentada em epgrafe, representa bem o que se pretende discutir neste subitem em relao aos aspectos objetivos e subjetivos da pobreza, quais indicadores so utilizados para mensurar o nvel de pobreza de uma populao, e como tais indicadores so empregados para formular e implementar as polticas pblicas do pas.

Aspectos objetivos da Pobreza

H diversas maneiras utilizadas para mensurao e classificao da pobreza, algumas mais restritas e outras mais abrangentes. Dentre as mais restritas esto as que se servem das abordagens unidimensionais, ou seja, apenas um indicador, como por exemplo, a renda, para classificar pobres e no pobres. J as mais abrangentes correlacionam diversos fatores (moradia, situao domiciliar, escolaridade, acesso a bens e servios pblicos) para representar o nvel de pobreza de uma determinada populao (Lopes, Macedo & Machado, 2004).As chamadas linhas de pobreza e de indigncia ou pobreza extrema, estabelecidas pela Organizao das Naes Unidas (ONU), so medidas de pobreza monetria absoluta e representam abordagens unidimensionais. A linha da indigncia ou pobreza extrema caracteriza o valor mnimo necessrio para uma pessoa adquirir uma cesta de alimentos, com a quantidade calrica mnima para sua sobrevivncia, o que corresponde atualmente, em nvel internacional a U$1,25 por dia. J a linha da pobreza considera alm da alimentao, despesas com transporte, moradia e vesturio, o que, atualmente, corresponde a U$2,50 por dia (Brasil 2011). No Brasil, o Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS) utiliza como referncia para medir a pobreza extrema famlias com renda per capita[footnoteRef:9] de at R$70,00 (Brasil, 2011). No entanto, vrios autores (Vasconcelos, 2007; Lopes, Macedo & Machado, 2004) consideram essa medida limitada, devido complexidade e mltiplas faces da pobreza, alm do que em um pas de enorme extenso territorial como o Brasil, em que as disparidades regionais so fortemente acentuadas, tais valores deveriam ser avaliados por regio. [9: A renda per capita corresponde ao valor total da renda familiar dividido por todos os membros da famlia (Brasil, 2004).]

H tambm o conceito de pobreza no monetria, que de acordo com Lopes, Macedo e Machado (2004) so aspectos que no esto diretamente relacionados renda, mas que afetam diretamente o bem-estar, desenvolvimento e qualidade de vida das pessoas. Dentre os aspectos da pobreza no monetria, os autores apontam:gua potvel, rede de esgoto, coleta de lixo, acesso ao transporte coletivo, educao so bens imprescindveis para que os indivduos possam levar vidas saudveis e tenham chances de insero na sociedade. Esta abordagem tem como caracterstica principal a universalidade, uma vez que estas so necessidades de todo e qualquer indivduo (Lopes, Macedo & Machado, 2004, p. 4).

Mesmo que haja consenso sobre as diversas dimenses da pobreza, elas podem ser representadas e concebidas de maneira distinta entre os diferentes grupos sociais e regionais. Tais aspectos foram representados pelo estudo de Lopes, Macedo e Machado (2004), que consideram diversos indicadores objetivos como renda, escolaridade, situao domiciliar e criminalidade para analisar e comparar o nvel de pobreza no Estado de Minas Gerais e no Brasil. Ao analisar esses indicadores separadamente, como, por exemplo, a renda, foi observado que algumas regies do Estado de Minas Gerais mostravam-se mais pobres do que outras. No entanto, quando analisavam outros indicadores, como a escolaridade, a ordenao quanto ao ndice de pobreza de cada regio se modificava. Tal discrepncia tambm foi observada na comparao dos dados entre Brasil e Minas Gerais. As anlises demonstram que o percentual de pobreza se assemelha em alguns indicadores, mas tambm se diferenciam muito em outros conforme tabela a seguir:

Tabela 1: indicadores sociais de pobrezaIndicadoresBrasilMG

Diferenasrenda per capita367,98335,83

domiclios sem infraestrutura16,12%12%

ausncia de rede geral de gua22%17%

ausncia de servio de limpeza20%21%

ausncia de banheiro16%9%

ausncia de luz eltrica5%4%

Semelhanassituao precria de ocupao/trabalho30%30%

tempo de escolaridade4,94,9

defasagem idade/srie60%60%

Fonte: Lopes, Macedo e Machado (2004).

Com tal estudo, Lopes, Macedo e Machado (2004) concluem que o cenrio da pobreza muda, de acordo com o indicador observado, o que ressalta a importncia de realizar anlises regionais e multidimensionais de pobreza para pensar aes especficas e pontuais em cada contexto. H, portanto, na construo de polticas pblicas, a necessidade de considerar as peculiaridades de cada regio e dar abertura para que os programas e servios sejam flexveis, para atender tais especificidades. Uma anlise mais ampla e aprofundada dos indicadores sociais importante para que se tenha uma viso mais crtica sobre o que veiculado e propagado nos meios de comunicao acerca dos ndices de crescimento e desenvolvimento do pas. A esse respeito, Genari (2012) faz uma anlise do quanto esses ndices podem esconder ou mascarar a realidade. Por exemplo, propagado que o Brasil um pas em grande desenvolvimento e crescimento, tais dados so confirmados pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e consumo da populao. No entanto, o crescimento econmico no quer dizer necessariamente o desenvolvimento e melhoria da qualidade de vida da maioria da populao:Neste sentido, alguns dados do Censo 2010 nos trazem de volta realidade de um Brasil que no mudou tanto quanto querem nos fazer crer. De 2000 a 2010, a economia cresceu 40,34% e foram criados cerca de 13 milhes e 360 mil novos empregos. Ento, por que, de acordo com o Censo do IBGE, a populao que vive em favelas, palafitas e outros assentamentos irregulares aumentou 75% ao passar de 6,5 milhes em 2000 para 11,4 milhes dez anos depois? (Genari, 2012, p.8).

Outro estudo realizado pelo Grupo Tcnico de Estudos e Anlises [GTEA] (2012), no municpio de Campinas, tambm demonstra esta contradio entre crescimento econmico e aumento da pobreza. A partir dos dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) de 2000 a 2010 foi feita uma comparao entre os ndices de riqueza e pobreza no municpio de Campinas e Regio Metropolitana de Campinas [RMC]. Foi observado que neste perodo houve um crescimento de 44% no Produto Interno Bruto (PIB) deste municpio, ou seja, um aumento significativo na primeira dcada do sculo XXI. Tal evoluo no ndice absoluto de riqueza faz com que a cidade em comparao aos demais municpios do Brasil seja hoje a 11 economia mais rica do pas. No entanto, o nvel de pobreza da populao ao invs de diminuir, aumentou nos ltimos 10 anos. Foi indicado pelo estudo que o ndice de pobreza absoluta subiu 5,5% no mesmo perodo e a taxa de pobreza extrema teve um aumento de 4,8%. O ndice de riqueza aumentou, mas o nmero de pessoas vivendo em situao de pobreza e misria no diminuiu, pelo contrrio aumentou. O que evidencia a desigualdade e a concentrao de riquezas geradas pelo municpio. Os dados do censo demogrfico de 2010 indicam que o Brasil conta atualmente com 6% da sua populao vivendo em situao de pobreza extrema, o que corresponde a mais de 16,2 milhes de pessoas. Com relao ao perfil desta populao, observa-se que a maioria reside na zona rural, 71% so negros e cerca de 50% vivem em domiclios sem rede de gua e esgoto, e 27% so analfabetas. Tais dados mostram que a pouca renda dessas pessoas est vinculada a outras carncias, o que as mantm no crculo vicioso da excluso social (Brasil, 2011).O filsofo e economista indiano Amartya Sen (2000) desenvolveu uma perspectiva de pobreza baseada na teoria das capacidades. Tal teoria defende que alm de aspectos materiais (como renda, moradia, segurana, acesso a bens e servios), a pobreza tem, tambm, uma dimenso simblica (que envolve as tendncias ideolgicas de marginalizao e culpabilizao do pobre por sua condio). Ambos os aspectos (materiais e simblicos) esto intrinsecamente relacionados no processo de desenvolvimento do sujeito e de suas capacidades de ao e transformao da realidade. Nesse sentido, reduzir a compreenso da pobreza e as aes para sua superao, apenas aos aspectos materiais de renda, no possibilita entender o que o autor chama de pobreza real que contempla, por exemplo, como a renda de uma famlia distribuda entre seus membros, ou mesmo o gasto excessivo que uma pessoa tem com medicamentos, tendo que se privar de outros gastos para sua sobrevivncia. Com seus estudos, o autor demonstra que para a pessoa ter qualidade de vida, alm do acesso a uma srie de bens materiais, preciso que se compreenda como o sujeito desenvolve suas capacidades para alcanar esses bens e satisfazer suas necessidades.A partir da perspectiva de pobreza multidimensional, foi desenvolvido pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mede o progresso e desenvolvimento dos pases, a partir da avaliao de trs dimenses: renda, sade e educao. Anualmente o PNUD lana o Relatrio de Desenvolvimento Humano, no qual traz um panorama mundial das tendncias e desafios para o desenvolvimento das naes (PNUD, 2013). No ltimo relatrio do lanado pelo PNUD em 2013, o Brasil apresentou o IDH de 0,727 o que o coloca na 84 posio sendo considerado um pas com desenvolvimento humano elevado. No entanto, como ressaltado no relatrio, ao mesmo tempo em que o IDH apresenta progresso, o ndice de desigualdade tambm cresce. Este aumento da desigualdade social, como apresentado anteriormente pelas pesquisas do GTEA (2012) e de Genari (2012), demonstra que a pobreza est diretamente relacionada desigualdade social e concentrao de riquezas, e explicitam a grande contradio do modo de produo capitalista. O aumento na produo de riquezas no reflete na diminuio da pobreza e melhoria da qualidade de vida da grande maioria da populao. Nesse aspecto o relatrio do PNUD (2013) ressalta que: (...) o progresso exige mais do que uma melhoria mdia do IDH. No ser desejvel, nem sustentvel, que os progressos no IDH sejam acompanhados pelo aumento das desigualdades de rendimento, padres insustentveis de consumo, despesas militares elevadas e uma fraca coeso social (...) (p.3)Uma componente essencial do desenvolvimento humano a equidade. Toda a pessoa tem o direito a viver uma vida plena de acordo com seus prprios valores e aspiraes. Ningum deve ser condenado a uma vida curta ou a ser miservel, por ter nascido na classe ou no pas errados, no grupo tnico ou raa errados, ou com o gnero errado (...) A desigualdade reduz o ritmo de desenvolvimento humano e, em alguns casos, pode inclusivamente impedi-lo por completo (p.29)Registraram-se, a nvel mundial, nas ltimas dcadas, redues muito mais acentuadas da desigualdade na sade e na educao do que no rendimento. (p.31).

Alm desses indicadores, os relatrios anuais do PNUD foram agregando outros indicadores que visam complementar o IDH, como por exemplo: o ndice de Desenvolvimento Humano Ajustado Desigualdade (IDHAD), o ndice de Desigualdade de Gnero (IDG) e o ndice de Pobreza Multidimensional (IPM). O IDHAD considera o nvel de desigualdade na distribuio das riquezas produzidas entre as diferentes classes sociais e o acesso das mesmas aos trs aspectos medidos pelo IDH (renda, educao e sade). Com isso, o IDH passa a demonstrar um ndice de desenvolvimento potencial que certo pas poderia atingir, j o IDHAD revela o ndice real que o pas atinge, evidenciando assim as desigualdades sociais. O IDG mede as desigualdades de gnero no que se refere sade reprodutiva, autonomia e atividade econmica entre homens e mulheres. E o IPM avalia a pobreza multidimensional (PNUD, 2013).No Brasil, o Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas (IPEA) desenvolveu ,em 2006, uma pesquisa baseada no IPM. A pesquisa foi realizada a partir das informaes coletadas pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), do IBGE. Nesta pesquisa foram avaliadas seis dimenses da pobreza: a) vulnerabilidade; b) acesso ao conhecimento; c) acesso ao trabalho; d) escassez de recursos; e) desenvolvimento infantil; e f) carncias habitacionais (Barros, Carvalho & Franco, 2006, p.16). Em cada uma dessas dimenses eram explorados outros fatores que visavam identificar as principais dificuldades encontradas pelas famlias para sua sobrevivncia. A novidade deste estudo, alm da perspectiva multidimensional, que ele possibilita avaliar os nveis e dimenses da pobreza, que so mais evidenciados em diferentes localidades e grupos demogrficos, correlacionar tais dimenses e, avaliar o quanto uma dimenso da pobreza est ou no ligada no agravamento de outras (Barros, Carvalho e Franco, 2006). O conhecimento e anlise dos indicadores sociais importante para que os mesmos sejam utilizados na formulao e orientao das polticas pblicas e sejam focadas as maiores necessidades de cada territrio, grupo social e quais aes devem ser priorizadas. Por exemplo, em uma localidade em que a dimenso de acesso ao conhecimento mais precria do que o a escassez de recursos no vivel focar em programas de transferncia de renda, mas sim em investimentos na educao, como construo de escolas e qualificao de professores, por exemplo (Barros, Carvalho e Franco, 2006; Vasconcelos, 2007).

Pobreza: aspectos subjetivos

Alm das medidas absolutas e multidimensionais, citadas nas pesquisas, h ainda a chamada pobreza relativa, que diz respeito percepo que o sujeito tem acerca da sua condio social. Lopes, Macedo e Machado (2004) apontam que essa dimenso da pobreza, por ter um carter mais subjetivo, mais difcil de ser mensurada, classificada e pouco explorada nas pesquisas sobre o tema e nas polticas de enfrentamento pobreza. Os autores destacam que

As vrias faces da pobreza requerem um indicador de abordagem multidimensional e que leve em considerao a situao auto-avaliada, ou seja, como o indivduo percebe sua prpria situao social. (...) um bom indicador de pobreza deve levar em considerao os diversos aspectos da pobreza com o intuito de proporcionar um melhor entendimento da questo e, assim, permitir a construo de um plano de ao eficiente no que diz respeito a este enorme problema social. Entretanto, a disponibilidade de dados relativos auto percepo dos indivduos quanto pobreza , ainda, fortemente limitada. Em geral, no existem informaes com vasta abrangncia que contemplem este tipo de dados (Lopes, Macedo & Machado, 2004, p. 4-5).

Assim, a condio de pobreza envolve diversos fatores de privao, dentre eles: simblicos, sociais, psicolgicos e materiais, universais e regionais, fatores estes que segundo Sen (2000) impedem o sujeito de exercer sua liberdade e desenvolver-se. Ou seja, condies concretas de vida marcadas pela pobreza e privaes influenciam no desenvolvimento da subjetividade e identidade do sujeito, na forma como se reconhecem, so reconhecidos e agem diante das condies adversas. Cidade, Moura Junior e Ximenes (2012), a partir do conceito de pobreza multidimensional e da teoria das capacidades, fazem uma reflexo acerca das implicaes psicolgicas da pobreza para o povo latino-americano:Como cenrio de compreenso multidimensional da pobreza, percebe-se que a Amrica Latina se situa como uma realidade em que a pobreza evidenciada em suas ramificaes sociais, polticas, estruturais e ideolgicas. Significa dizer que a pobreza est expressa em diversos mbitos, seja na insuficincia de renda de uma significativa parcela da populao latino-americana; nos governos geralmente centralizadores de riqueza; nas crenas que visualizam a pobreza como indigna, ruim e perigosa; ou na organizao societria que anula as possibilidades de mudana das trajetrias dos indivduos pobres (p.89).

Os autores discutem que certas formas de governo contribuem para acentuar e manter a condio de pobreza dos povos latino-americanos. A partir desta constatao, argumentam que os governos ditatoriais tiraram o carter de direitos sociais e dignidade, inviabilizando o desenvolvimento de emancipao e cidadania dos sujeitos. E tais governos fazem isto por meio de prticas assistencialistas e clientelistas e tambm a partir da proibio e coero de qualquer tipo de manifestao democrtica de denncia das injustias e desigualdades sociais. Acerca destas dimenses subjetivas da pobreza, Freire (1981) discute algumas categorias subjetivas que emergem em condies de pobreza e opresso, dentre elas destacamos a Cultura do Silncio e o Fatalismo. Na sua experincia e estudos com camponeses que vivam na estrutura latifundiria, Freire observou que a vida marcada pela subalternidade ao patro em que no se vislumbrava a possibilidade de questionamento, mas s aceitar e fazer o que lhe era solicitado , fez com que os camponeses desenvolvessem o que o autor denominou de cultura do silncio. Podemos relacionar com o ditado popular: manda quem pode e obedece quem tem juzo. Ou seja, quem tinha o poder eram os donos da terra, e os camponeses, ao dependerem destas terras para morar e sustentar suas famlias, viam como nica opo obedecer as ordens sem questionamento. A cultura do silncio se estendeu a outros contextos, no quais eles teriam a possibilidade de se expressar, mas no o faziam. Tal comportamento de no questionamento e expresso de suas opinies deve-se a experincias anteriores de subalternidade e opresso (Freire, 1981).No fatalismo, o sujeito acredita na predeterminao de sua condio de pobre, no vislumbra possibilidades de mudana. As explicaes por sua condio so remetidas a fatores transcendentais e inatingveis, como por exemplo, a vontade de Deus ou o destino, tais explicaes fatalistas tornam o sujeito passivo e conformado com sua condio. O fatalismo para Freire uma modalidade de conscincia que impossibilita a percepo estrutural dos problemas sociais, o que por consequncia impede o desenvolvimento da criticidade para o processo de mudana social (Freire, 1981). Tais categorias subjetivas dificultam a percepo do sujeito sobre as condies de opresses e explorao as quais est submetido. Com isso, no desenvolve posturas de questionamento e enfrentamento diante dos problemas que vivencia. Seja pela subordinao, culpabilizao do indivduo por sua condio ou na crena de uma perspectiva de futuro predeterminada por Deus, tais dimenses subjetivas da pobreza fazem com que o sujeito tome uma postura de conformismo diante da realidade. Tais dimenses psicolgicas da pobreza so demonstradas por Moura Junior (2011), em seu estudo sobre a identidade de moradores de rua. Neste estudo o autor demonstra que estes moradores, apesar de relatarem em sua histria de vida fatores concretos, como violncia domstica e pobreza, que corroboraram para que fossem morar nas ruas, tendem a se culpabilizar por sua situao e demonstrarem posies conformistas e fatalistas:Francisco e Alberto, ento, parecem seguir a lgica fatalista. Segundo Martn-Bar (1998), as atitudes fatalistas esto fortemente vinculadas f religiosa que obscurece a compreenso crtica da realidade e que torna o ser humano passivo frente s adversidades vigentes. Dessa forma, Deus e a natureza passam a ser responsveis pela realidade de sofrimento, sendo o destino traado pela f e a submisso e a docilidade um ato de obedincia Deus a partir do conformismo. Observo ento que Francisco tem a opaca compreenso de que seu contexto social tem um carter opressor, pois segundo seu entendimento, a realidade somente sofrida para as pessoas que no seguem Deus e so culpadas pelo prprio sofrimento (Moura Junior, 2011, p. 74)

Euzbios Filho e Guzzo (2009) fazem uma discusso relacionada dimenso subjetiva da pobreza, a partir do relato de um jovem, da periferia de Campinas, sobre como o mesmo percebe sua condio social. Na pesquisa, os autores observaram que as caractersticas da desigualdade social, segundo o participante, esto relacionadas a fatores como: forma de viver, morar, vestir-se, relacionar-se e lidar com a vida. No entanto, o participante relaciona apenas ao indivduo as causas da desigualdade social e da pobreza, o que reflete uma caracterstica do Estado neoliberal, uma vez que o pensamento liberal culpabiliza os oprimidos por sua condio social, reforando uma ideologia que mantm quem est no poder, e consequentemente, a pobreza e a desigualdade social. O participante da pesquisa relaciona tambm a pobreza com o preconceito quando se remete ao tratamento que recebe dos outros devido ao local onde mora, ou a maneira como se veste. Esse preconceito muitas vezes dificulta a insero no mercado de trabalho e a participao em outros espaos sociais (Euzbios Filho & Guzzo, 2009). Para romper com o fatalismo, cultura do silncio e culpabilizao Paulo Freire prope a conscientizao[footnoteRef:10], e desenvolve que sua metodologia de trabalho que visa dar voz aos oprimidos para libert-los das condies de opresso (Freire, 1979). [10: O conceito de conscientizao e sua relao com a psicologia ser discutido no prximo captulo.]

A partir da escuta e da valorizao da experincia do sujeito, o intuito instig-lo a problematizar a realidade e sua condio de vida para vislumbrar possibilidades de transformao. A problematizao da realidade e compartilhamento de experincias permite o sujeito superar a "viso focalista da realidade e ir ganhando a compreenso da totalidade" (Freire, 1981, p.23). A totalidade, no caso da pobreza, perceb-la como algo muito mais amplo do que a falta de dinheiro, e seus motivos vm da forma de organizao do modo de produo capitalista e no pela vontade de Deus ou falta de vontade ou capacidade do pobre em mudar sua situao de vida.Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010) realizaram uma anlise da produo do conhecimento e atuao do psiclogo com a temtica da pobreza. Foi observado que a partir dos anos 1980, houve um aumento de 98% nas publicaes relacionadas a esta temtica nos peridicos nacionais. Os autores remetem tal acrscimo principalmente a dois fatores: 1) a criao de cursos de ps-graduao que refletem um aumento nas pesquisas em psicologia; 2) o momento histrico em que muitos psiclogos comeam a questionar o carter elitista da profisso, propondo novas prticas e espaos de insero e atuao profissional. A crtica ao carter elitista da profisso e consequente insero dos psiclogos no campo do bem-estar social corresponde tambm crise do mercado privado, o que faz com que os profissionais da rea busquem incluso em outros espaos como servio pblico e Organizaes No Governamentais (ONGs). Considerando que a populao pobre encontrada pelo profissional de psicologia nestes novos espaos no foi sequer discutida nos conhecimentos psicolgicos produzidos na rea. Surge, desta forma, a necessidade de produzir novos saberes a respeito. No entanto, os autores ressaltam que a participao nestes novos espaos no garante, em si, o chamado compromisso social[footnoteRef:11] da psicologia, uma vez que para esse compromisso se concretizar necessria a qualificao, contextualizao dessa prtica e conscincia dos limites profissionais diante o contexto sociopoltico em que vivemos. Para tanto, preciso ultrapassar as prticas meramente assistencialistas para buscar mudanas significativas nas condies de vida das populaes consideradas pobres (Dantas, Oliveira & Yamamoto, 2010). [11: O termo compromisso social est colocado entre aspas, pois ser discutido no prximo eixo da fundamentao terica.]

Tal insero demanda uma produo de conhecimento condizente com a realidade em que se atua, todavia, os autores observaram que pouco se tinha de produo de conhecimento na rea, dado que a maioria dos trabalhos remetia a uma adequao de teorias e tcnicas. Outro aspecto observado na pesquisa que pouco se discute sobre as causas da pobreza, a maioria das pesquisas refere-se s consequncias da mesma para a vida das pessoas, ou seja, pouco se pesquisa e se intervm nos fatores que geram e mantm a condio de pobreza. Nas pesquisas analisadas pelos autores, a pobreza aparece como causadora de outros problemas sociais, ou como obstculo para o desenvolvimento de crianas e adolescentes, mas pouco ou quase nada se discute sobre as causas da pobreza. Alm disso, a maioria dos estudos sobre a populao pobre usa referenciais tericos e metodolgicos tradicionalmente elitistas voltados para a populao de nvel de maior renda, e as dificuldades do trabalho do psiclogo so sempre colocadas na populao atendida e no na falta de formao profissional. Apesar de alguns questionamentos acerca das formas tradicionais de interveno com a populao pobre, no levantamento bibliogrfico realizado por Dantas et al. (2010), no foi encontrado nenhum estudo que apresente novas formas e modelos de interveno para este contexto.Tais dados demonstram que o compromisso social da psicologia tem sido, via de regra, com a manuteno da ideologia dominante e no um compromisso com a mudana das condies de vida das pessoas que sofrem com a pobreza demais desigualdades sociais. Nesse sentido, podemos pensar alguns questionamentos relativos insero do psiclogo nas polticas sociais e quais os objetivos do trabalho com a populao pobre. Ser o de ajudar as pessoas a conviverem melhor com sua condio de pobreza, ou entenderem o porqu desta condio e lutarem por melhores condies de vida? Ao corroborar com as concepes ampliadas de pobreza que demonstram que esta condio envolve aspectos materiais e no materiais, objetivos e subjetivos, concretos e simblicos, podem-se vislumbrar alguns aspectos essenciais em relao interveno psicossocial dos profissionais nas polticas pblicas. Guzzo, Moreira e Mezzalira (2011), em um artigo sobre avaliao psicossocial em contextos educativos e comunitrios, apontam que a dimenso psicossocial da avaliao e interveno consiste no olhar ampliado para as dimenses sociais e psicolgicas que esto envolvidas no processo de desenvolvimento e adoecimento do sujeito, tanto no que se refere garantia de aspectos materiais para a sobrevivncia do sujeito, quanto na compreenso dos aspectos simblicos, visando o desenvolvimento da conscincia e emancipao[footnoteRef:12]. Ou seja, sem comida o ser humano no consegue buscar meios para sua sobrevivncia, mas, por outro lado, sem ter conscincia das condies adversas em que se encontra, suas causas e aspectos que as mantm, no consegue vislumbrar possibilidades de enfrentamento e superao dessas condies. Uma poltica de oferta de condies apenas materiais de sobrevivncia (modelo assistencialista) no garante, por si s, a emancipao e desenvolvimento do ser humano. E este aspecto ampliado da dimenso da sobrevivncia humana e da pobreza que so explicitados poeticamente na msica Comida citada em epgrafe. [12: O conceito de conscincia e conscientizao sero discutidos no prximo captulo deste trabalho.]

Nesse sentido, ver a pobreza apenas sob a questo da renda e direcionar as aes e anlises destes problemas apenas pelos indicadores absolutos, alm de dizerem pouco sobre este fenmeno, no oferecem caminhos para sua superao e no proporcionam o desenvolvimento das capacidades,. Assim, o papel do psiclogo com a populao pobre envolve o conhecimento sobre o contexto de pobreza e as implicaes objetivas e subjetivas na vida das pessoas, para que possa focar o seu trabalho no desenvolvimento da criticidade dos povos, no dilogo e articulao coletiva para reivindicao dos direitos e na luta pela transformao da realidade. Tudo isso est relacionado, antes de tudo, com a conscientizao do psiclogo sobre o seu papel e repercusses da sua atuao nesse contexto (Cidade, Moura Junior, Ximenes, 2012; Guzzo & Lacerda, 2007; Martn-Bar, 1985/1996).

2.2.2- Poltica Nacional de Assistncia Social PNAS

Este item tem o objetivo de apresentar a PNAS, a partir do que est descrito nas leis e documentos oficiais: seus princpios, diretrizes, objetivos e a organizao dos servios. Ao final so apresentados alguns apontamentos crticos acerca da efetivao do SUAS no Brasil a partir de pesquisas sobre o tema.Demo (1996) faz uma diferenciao entre assistncia social e assistencialismo. Para o autor a assistncia social um direito humano que visa atender emergencialmente as necessidades bsicas da populao que vo muito alm da sobrevivncia material. O atendimento a essas necessidades visam desenvolver a participao e emancipao do sujeito, o que ultrapassa as aes da PNAS e exigem aes integradas de outras polticas pblicas. J o assistencialismo visto como uma ajuda e no como um direito, e tal ajuda, ao invs de romper, cultiva o problema social e contribui para a manuteno da desigualdade social.Com a Constituio brasileira de 1988, o Estado se responsabilizou em garantir os direitos sociais de todo o cidado brasileiro, e a partir da, criou leis e organizou polticas pblicas para efetivar tais direitos. O captulo II do ttulo VIII da Constituio trata, especificamente, da seguridade social, que diz respeito s aes que o Estado far para garantir o mnimo necessrio para o cidado ter uma vida digna e segura. A assistncia social juntamente com a sade e a previdncia social compem o chamado trip da seguridade social. As aes da assistncia social tiveram incio na caridade e filantropia e deram origem s primeiras polticas sociais, como foi destacado anteriormente por Faleiros (2004). No entanto com a Constituio de 1988, as aes deixaram, oficialmente, de ser caridade para tornar-se dever do Estado e direito de todo o cidado brasileiro. Em 1993 foi aprovada a Lei Orgnica da Assistncia Social LOAS (Lei n 8742) que logo em seu primeiro artigo anuncia seu carter universal e no contributivo: A assistncia social, direito do cidado e dever do Estado, Poltica de Seguridade Social no contributiva, que prov os mnimos sociais, realizada atravs de um conjunto integrado de iniciativa pblica e da sociedade, para garantir o atendimento s necessidades bsicas (Lei Orgnica da Assistncia Social, 1993, Artigo 1). Mesmo tendo sua lei aprovada em 1993, a assistncia social s foi ter uma poltica nacional 11 anos depois. Apenas em 2004 foi aprovada a PNAS que possibilitou uma organizao nacional da prestao de servios da assistncia social. Antes disso, mesmo com a Constituio de 1988 e a LOAS, as aes da assistncia eram desarticuladas, fragmentas e pontuais, no tendo um projeto poltico e universal.A PNAS tem cinco princpios bsicos: a equidade, que se difere da igualdade, uma vez que, garante a supremacia do atendimento s necessidades sociais sobre as exigncias de rentabilidade econmica (Brasil, 2004, p.26). Ou seja, tem prioridade no atendimento quem mais precisar dos servios ofertados, visando atingir a justia social, pois no d para estabelecer direitos iguais de acesso em uma sociedade que marcada pela desigualdade social.O segundo princpio a universalizao dos direitos sociais, que visa que o pblico-alvo das aes sociais possam usufruir os servios destinados a ele na Assistncia Social e demais polticas pblicas. O terceiro princpio garante o respeito dignidade do cidado, sua autonomia e ao seu direito a benefcios e servios de qualidade, bem como convivncia familiar e comunitria, vedando-se qualquer comprovao vexatria de necessidade (Brasil, 2004, p.26). Tal princpio tem por objetivo romper com o assistencialismo e reforar as aes da assistncia social como um direito e no como uma caridade ou favor, e uma vez que direito tem que ser ofertado com qualidade a todos que dela precisarem.O quarto princpio refere-se igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminao de qualquer natureza, garantindo-se equivalncia s populaes urbanas e rurais (Brasil, 2004, p. 26). Esse princpio, como expresso, garante que todas as pessoas, independente de raa, gnero ou local de moradia tenham os mesmos direitos de acesso aos servios.E o ltimo princpio estabelece que todos os benefcios, servios, programas e projetos assistenciais, bem como os recursos oferecidos pelo Poder Pblico e seus critrios de concesso sejam divulgados amplamente, para que todas as pessoas tenham conhecimento dos mesmos. Em relao s diretrizes, a PNAS estabelece quatro: descentralizao poltico-administrativa, distribuindo a gesto do SUAS para as trs esferas do governo (federal, estadual e municipal); a participao popular prope que a populao em geral, principalmente os usurios dos servios, participe da construo, avaliao e fiscalizao das polticas. A terceira estabelece que o Estado seja o principal responsvel na conduo da PNAS. E a ltima diretriz aponta que todos os benefcios, servios, programas e projetos devem estar centrados na famlia, desde sua concepo at sua implementao. Ou seja, amplia o foco das aes ao indivduo para toda a famlia, entendendo famlia como todas as pessoas que mantm vnculo afetivo com a pessoa tendo ou no vnculo consanguneo (Brasil, 2004). Os usurios da PNAS so cidados e grupos em situao de vulnerabilidade a risco e os principais objetivos dessa poltica so: Prover servios, programas, projetos e benefcios de proteo social bsica e, ou, especial para famlias, indivduos e grupos que deles necessitarem; contribuir com a incluso e a eqidade dos usurios e grupos especficos, ampliando o acesso aos bens e servios socioassistenciais bsicos e especiais, em reas urbana e rural; e assegurar que as aes no mbito da assistncia social tenham centralidade na famlia, e que garantam a convivncia familiar e comunitria (Brasil, 2004, p.27).

Para que fosse implementada e efetivada a PNAS no pas, foi criado o SUAS, que tem por finalidade a unificao e normatizao da oferta de servios em todo territrio nacional. No entanto, mesmo propondo a normatizao, a PNAS ressalta que todos os servios tm que desenvolver suas aes de acordo com as demandas suscitadas em seus territrios (Brasil, 2004).Para organizar a oferta de servios, o SUAS foi dividido em dois nveis de Proteo Social a Bsica e a Especial em que seus servios e programas so distribudos de acordo com a demanda e o nvel de complexidade. A Proteo Social Bsica tem seu foco na preveno e seu objetivo prevenir situaes de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisies, e o fortalecimento dos vnculos familiares e comunitrios (Brasil, 2004, p. 27). Seu pblico-alvo so pessoas em situao de vulnerabilidade social devido : pobreza; fragilizao de vnculos afetivo-relacionais e de pertencimento social; e falta de acesso e gozo dos direitos e servios pblicos fundamentais para garantir as condies de sobrevivncia. Os servios da Proteo Social Bsica so ofertados nos Centros de Referncia de Assistncia Social (CRAS) que desenvolvem servios, programas e projetos locais de acolhimento, socializao e convivncia de famlias e indivduos. Para tanto, previsto que os CRAS tenham equipes multiprofissionais compostas, principalmente, por assistentes sociais, psiclogos e educadores sociais. Tais profissionais, juntamente com a rede socioassistencial local desenvolvem aes de carter preventivo, protetivo e proativo, para que sejam identificados os problemas da comunidade, feitas as intervenes e apresentadas as solues necessrias. Segundo a Norma Operacional Bsica de Recursos Humanos do SUAS [NOB-RH/SUAS] (Brasil, 2006), aprovada no ano de 2006, as equipes de referncia dos CRAS devem ser compostas da seguinte maneira:

Quadro 1: Composio das equipes de referncia do CRAS

Fonte: NOB-RH/SUAS (Brasil, 2006).

A Proteo Social Especial foi subdividida em dois nveis: Proteo Social de Alta Complexidade e Proteo Social Especial de Mdia Complexidade. A Proteo Social Especial de Alta Complexidade tem o intuito de garantir a proteo integral a indivduos e famlias em situao de risco pessoal e social, com vnculos familiares rompidos ou extremamente fragilizados. Para tanto oferta servios que garantam o acolhimento institucional em tempo integral com privacidade e promovam o fortalecimento dos vnculos familiares e/ou comunitrio e o desenvolvimento da autonomia das pessoas atendidas (Brasil, 2004).A Proteo Social de Mdia Complexidade prevista quando os usurios em situao de risco, pessoal ou social, ainda mantm os vnculos familiares preservados. As aes so desenvolvidas pelo Centro de Referncia Especializado de Assistncia Social (CREAS), que tem como objetivo oferecer apoio, orientao e acompanhamento s famlias com um ou mais de seus membros em situao de ameaa ou violao de direitos, contribuindo assim para o fortalecimento no desempenho de sua funo protetiva (Brasil, 2004). Segundo a NOB-RH/SUAS a composio das equipes de referncia dos CREAS devem ser compostas segundo essas orientaes:

Quadro 2: Composio das equipes de referncia do CREAS (Brasil, 2006).

Fonte: NOB-RH/SUAS (Brasil, 2006).

A partir de tais disposies sobre a composio das equipes de referncias, o quadro a seguir apresenta os servios ofertados no SUAS, segundo a Tipificao Nacional de Servios Socioassistenciais (Brasil, 2009), distribudos por nvel de proteo social e complexidade que almejam atingir:

Quadro 3 Distribuio dos Servios do SUAS.NVEIS DEPROTEO SOCIALSISTEMA NICO DE ASSISTNCIA SOCIAL SUAS

BsicaProteo Social Bsica (CRAS)

Servio de Proteo e Atendimento Integral Famlia (PAIF); Servio de Convivncia e Fortalecimento de Vnculos; Servio de Proteo Social Bsica no domiclio para pessoas com deficincia e idosas.

Mdia complexidadeProteo Social Especial: Mdia Complexidade (CREAS e ONGs)

Servio de Proteo e Atendimento Especializado a Famlias e Indivduos (PAEFI); Servio Especializado em Abordagem Social; Servio de Proteo Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestao de Servios Comunidade (PSC); Servio de Proteo Social Especial para Pessoas com Deficincia, Idosas e suas Famlias; Servio Especializado para Pessoas em Situao de Rua.

Alta complexidadeProteo Social Especial: Alta Complexidade (Abrigo institucional, Casa-Lar, Casa de Passagem, Residncia Inclusiva)

Servio de Acolhimento Institucional; Servio de Acolhimento em Repblica; Servio de Acolhimento em Famlia Acolhedora; Servio de Proteo em Situaes de Calamidades Pblicas e de Emergncias.

Fonte: Tipificao Nacional de Servios Socioassistenciais (Brasil, 2009).

Est a forma de organizao e estruturao do SUAS atualmente, que visa romper com aes assistencialistas e dar o carter de direito s aes da assistncia social, para que sejam garantidos os direitos sociais da populao brasileira. No entanto, Moreira (2008) aponta que a forma como a PNAS tem sido implantada demonstra uma tendncia histrica e cultural de manter a assistncia social margem das polticas pblicas. Diante disso, romper com os paradigmas assistencialistas, clientelistas e de culpabilizao da pobreza ainda um desafio a ser superado nos servios e programas do SUAS. Por isso a importncia de realizao de pesquisas para explicitar os elementos polticos e ideolgicos contidos na PNAS, bem como as contradies entre a teoria e a prtica, para que diante desse conhecimento da realidade concreta possam ser desenvolvidas estratgias de trabalho que contribuam para a superao destes problemas. Alm disso, a autora ressalta que as vulnerabilidades da PNAS nem sempre esto explicitadas nos indicadores sociais, por isso a importncia do conhecimento do cotidiano do trabalho no SUAS, pois neste cotidiano que essas vulnerabilidades e contradies da poltica so emergidas e precisam ser apreendidas e avaliadas pelos trabalhadores (Moreira, 2008).Um dos problemas levantados pela autora refere-se forma de concepo de pobreza. Apesar de a PNAS apresentar uma dimenso ampla da situao de pobreza e propor diretrizes que consideram a vulnerabilidade social como algo muito mais amplo do que a questo da renda, a maioria dos benefcios e programas do SUAS usam a renda como principal critrio de insero:(...) todos os programas de transferncia de renda determinam o corte de renda, o que dificulta apreender as necessidades sociais como aquelas que, embora articuladas ao econmico, no determinam e nem suprimem isoladamente o conjunto de riscos a que grande parcela da populao encontra-se exposta. Estamos falando, por exemplo, da violncia em suas mltiplas manifestaes e as relaes com movimentos financeiros, de poder poltico, cultural, ideolgico. Trabalhar com isso impe, alm de identificar as limitaes inerentes s polticas sociais, uma interveno qualificada em contedos que ultrapassam a anlise scio-econmica para balizar a deciso de acompanhamento social de famlias envolvidas nesses contextos (Moreira, 2008, p. 6).

A pesquisa realizada por Mollo (2013) apresenta uma anlise das aes da assistncia social no municpio de Campinas no que se refere a crianas e adolescentes em situao de rua. Os resultados da pesquisa mostram que as aes do SUAS voltadas para este pblico preservam marcas de assistencialismo, represso, aes de cunho religioso, polticas repressivas de higienizao poltico social ora executadas pelo poder pblico, ora por agentes da sociedade civil (comrcio, taxistas, juzes, promotores) (p.181), realizao de aes voltadas a interesses privados em detrimento dos direitos das crianas e adolescentes atendidos. Outro ponto levantado pela autora refere-se precarizao das relaes e condies de trabalho principalmente devido terceirizao dos servios que so executados em sua maioria por ONGs, alm da desqualificao e insuficincia da rede socioassistencial para atendimentos da demanda, demanda esta que sempre superior aos servios e nmero de funcionrios disponveis. Diante de todas essas mazelas da execuo do SUAS, que envolvem diversos fatores sociais, polticos, econmicos, culturais e organizacionais, a autora destaca que as responsabilidades pelo fracasso ou sucesso da poltica recaem unicamente nos trabalhadores. Diante de todas essas problemticas Mollo (2013) aponta que as questes imediatas a serem enfrentadas so: a terceirizao na implantao do SUAS; melhoria nas relaes e condies de trabalho e mudana na composio dos conselhos municipais, uma vez que estes incidem no poder e na fora poltica das entidades socioassistenciais (p.175). A autora ressalta ainda a urgncia emretomar a participao dos usurios e dos trabalhadores na formulao da poltica e na efetivao do controle social; a imediata elaborao e efetivao de concurso pblico, diminuio do campo das ONGs e conquista de condies dignas de trabalho para os profissionais de OG e ONG com faixa salarial e carga horria equnimes; implementao de mecanismos de execuo direta do Estado; laicidade dos servios prestados e construo de mecanismos de publicizao dos processos de gesto visando transparncia e garantia de controle social (Mollo, 20