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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

Contentores de bebidas alcolicas: Usos e significados na Porto Alegre oitocentista

Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Histria, rea de Concentrao em Arqueologia.

Paulo Alexandre da Graa Santos

Orientador: Prof. Dr. Klaus P. K. Hilbert

Porto Alegre, janeiro de 2005

Jaque e Cau

AGRADECIMENTOS

Minha gratido e reconhecimento a todos aqueles que, de um modo ou de outro, contriburam para a realizao deste trabalho. Em especial, gostaria de agradecer:

ao meu orientador, o arquelogo Prof. Dr. Klaus P. K. Hilbert, que desde o incio acreditou no potencial desta idia, pelo seu incentivo e dedicao. A ele gostaria tambm de agradecer por seus desenhos; arqueloga Profa. Dra. Fernanda Bordin Tocchetto, a quem devo a minha formao em Arqueologia Histrica, pelo estmulo e apoio incessante. No decorrer do estgio no Museu Joaquim Jos Felizardo e da bolsa de iniciao cientfica da FAPERGS aprendi a admirar a forma como respeita diferena, o seu modo democrtico de compartilhar experincias e atividades no setor e o seu jeito de administrar marcado pela coerncia entre discurso e prtica; ao arquelogo Prof. Dr. Arno A Kern com quem tive a oportunidade de esmiuar questes tericas da Arqueologia; ao Museu Joaquim Jos Felizardo pelo apoio institucional, absolutamente indispensvel para o desenvolvimento da pesquisa; CAPES, pela concesso da bolsa de mestrado que viabilizou a realizao deste projeto; ao arquelogo e colega Alberto Tavares Duarte de Oliveira pelas fotografias dos fragmentos, anncios e caricaturas de jornais; ao arquelogo Diogo Meneses com quem aprendi a valorizar o potencial da anlise de artefatos de vidro; ao socilogo Prof. Dr. Pedro Andrade pelo envio dos seus textos sobre tabernas; ao arquelogo Luis Cludio Symanski pelas boas idias e sugestes; aos funcionrios dedicados do Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, do Arquivo Histrico de Porto Alegre Moyss Velinho, da Biblioteca Pblica do Estado do Rio Grande do Sul, da Junta Comercial de Porto Alegre, do Museu de Comunicao Social Hiplito Jos da Costa e do Museu Joaquim Jos Felizardo; s secretrias do Curso de Ps-Graduao em Histria Carla e Alice pela

ateno e boa vontade em ajudar;

minha esposa Jaque, pelo carinho e tolerncia ao longo desses dois anos de trabalho.

SUMRIO

RESUMO........................................................................................................................05

CONSIDERAES INICIAIS: UM APERITIVO....................................................09

1. OS STIOS PESQUISADOS....................................................................................15

1.1 Introduo....................................................................................................15 1.2 Unidades Domsticas..................................................................................19 1.2.1 Stio Casa da Riachuelo (RS.JA-17)...............................................19 O contexto histrico-espacial.......................................................19 A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................20 O perodo do consumo de bebidas alcolicas..............................24 1.2.2 Stio Solar da Travessa Paraso (RS.JA-03)....................................27 O contexto histrico-espacial.......................................................27 A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................28 O perodo do consumo de bebidas alcolicas..............................31 1.2.3 Stio Solar Lopo Gonalves (RS.JA-04).........................................34 O contexto histrico-espacial.......................................................34 A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................35 O perodo do consumo de bebidas alcolicas..............................37 1.2.4 Stio Chcara da Figueira (RS.JA-12).............................................39 O contexto histrico-espacial.......................................................39 A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................39 O perodo do consumo de bebidas alcolicas..............................42 1.3 Lixeiras Coletivas.........................................................................................44 1.3.1 Stio Mercado Pblico (RS.JA-05).................................................44 O contexto histrico-espacial.......................................................44 A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................45 O perodo de descarte dos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas.........................................................................48 1.3.2 Stio Praa Rui Barbosa (RS.JA-06)...............................................50 O contexto histrico-espacial.......................................................50

A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................51 O perodo de descarte dos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas.........................................................................55 1.3.3 Stio Pao Municipal (RS.JA-20)....................................................57 O contexto histrico-espacial.......................................................57 A estratigrafia e o material arqueolgico....................................59 O perodo de descarte dos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas.........................................................................63 1.4 Stio Antiga Cervejaria Brahma (RS.JA-22).............................................65 O contexto histrico-espacial.......................................................65 A estratigrafia e o material arqueolgico.....................................67 O perodo de descarte dos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas.........................................................................70 2. OS CONTENTORES DE VIDRO E GRS PARA BEBIDAS ALCOLICAS..............................................................................................................72 2.1 Aspectos tecnolgicos e cronolgicos dos mtodos de fabricao de artigos de vidro...................................................................................................73 2.2 Notas sobre a produo do vidro no Brasil e no exterior no sculo XIX e incio do XX........................................................................................................82 2.3 Forma e funo.............................................................................................92 2.4 Processos de reciclagem.............................................................................128 2.4.1 A reutilizao de garrafas.............................................................128 2.4.2 Uso secundrio com alterao na dimenso formal do artefato....131

3. OS ARTEFATOS E OS ATOS DE BEBER NA PORTO ALEGRE OITOCENTISTA........................................................................................................136 3.1 A caricatura: consistncia figurativa na interpretao dos artefatos...138 3.2 A taberna: paraso do cio e antro da vadiagem....................................165

4. O CONSUMO E AS PRTICAS RELACIONADAS S BEBIDAS ALCOLICAS NOS STIOS PESQUISADOS........................................................181

4.1 Unidades domsticas..................................................................................181 4.1.1 Stio Casa da Riachuelo (RS.JA-17).............................................181 4.1.2 Stio Solar da Travessa Paraso (RS.JA-03)..................................185 4.1.3 Solar Lopo Gonalves (RS.JA-04).............................................189 4.1.4 Stio Chcara da Figueira (RS.JA-12)...........................................195 4.2 Lixeiras coletivas........................................................................................198 4.2.1 Mercado Pblico Central (RS.JA-05)...........................................198 4.2.2 Stio Praa Rui Barbosa (RS.JA-06).............................................202 4.2.3 Stio Pao Municipal (RS.JA-20)..................................................205

4.3 Stio Antiga Cervejaria Brahma (RS.JA-22)...........................................208

CONSIDERAES FINAIS: A SAIDEIRA........................................................210

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................221

ANEXO - Ficha de anlise das peas de vidro e grs...............................................236

RESUMO A cultura material vinculada ao consumo de bebidas alcolicas, por estar integrada ao sistema de vida e de valores de vrias sociedades, possui uma posio estratgica para a pesquisa arqueolgica. Cada grupo social faz uso de um cenrio prprio constitudo de elementos materiais indispensveis e convergentes para degustao da sua bebida privativa. Os locais especficos para beber so espaos privilegiados em que se manifestam as particularidades culturais com cdigos extremamente bem integrados. Por sua vez, o uso de artefatos para beber como um modo de se comunicar e se expressar atribuiu a estes objetos determinados significados do consumo de lcool. Alm disso, as formas, as cores e os acabamentos destes artefatos podem formar um grupo de atributos capazes de se estabelecer um indicador seguro para a datao do registro material. A recuperao eventual de marcas de fabricantes, afora a possibilidade de ser um ndice cronolgico, pode fornecer tambm informaes importantes sobre a estruturao de redes comerciais e procedncia da pea. O propsito desta dissertao, portanto, o de interpretar os significados vinculados fabricao, apropriao e utilizao de artefatos de vidro e grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas em stios de unidades domsticas e lixeiras coletivas oitocentistas do municpio de Porto Alegre, alm de organizar um conjunto de dados que sirvam de referencial para anlise destes artefatos em stios arqueolgicos do sculo XIX.

CONSIDERAES INICIAIS: UM APERITIVO1

As pesquisas desenvolvidas no Brasil em stios histricos, desde a dcada de 60, na sua maioria estiveram relacionadas a determinadas categorias materiais. Categorias como o vidro e o grs foram preteridas ou precariamente exploradas pelos pesquisadores brasileiros. Um artigo na revista Science de autoria dos antroplogos Alan Macfarlane e Gerry Martin (2004) sobre a importncia do vidro em quase todas as transformaes que a Europa ocidental conheceu entre os sculos XIII e XIX, destaca o mrito do estudo sobre esta categoria material e levanta uma questo sobre a produo intelectual na Arqueologia Histrica brasileira. A aplicao de material vtreo em determinadas atividades teve um papel fundamental, segundo os autores, no advento das revolues cientficas e industrial abrindo a mente e os olhos das pessoas para novas possibilidades de observao, ao transformar a percepo humana da forma auditiva para a visual e ainda os recipientes de vidro simplificaram o transporte e a estocagem de comidas, bebidas e medicamentos; estufas ajudaram a desenvolver a agricultura e faris e lanternas facilitaram a vida noturna (Macfarlane and Martin, 2004: 1407-8). O que intriga diante da comparao entre a importncia desta categoria material no desenvolvimento das cincias e a produo de textos e artigos na Arqueologia Brasileira a escassez de trabalhos relacionados a estes artefatos, embora tenham uma presena constante pelo menos em stios urbanos oitocentistas2. O mesmo quadro quanto raridade de estudos e incidncia nos stios pode ser verificado com as peas de grs3. Em grande parte o menor apreo facultado pelos pesquisadores brasileiros aos fragmentos ou peas de vidro e grs pode estar vinculado reutilizao destes objetos para diferentes propsitos ao longo do sculo XIX. Prtica difcil de ser percebida no registroO uso do termo aperitivo, alm claro da relao com o objeto de pesquisa, refere-se tambm inteno do autor em abrir o apetite dos leitores, ou seja, a uma provocao de parte de quem escreve com o propsito de instigar a curiosidade, por meio da degustao leitoral de uma parcela pequena mas significativa de um todo. 2 Dentre os poucos estudos relacionados anlise de artefatos de vidro em stios histricos no Brasil possvel citar: Symanski (1998), Camargo e Zanettinni (s/d) e Macedo (1997). 3 Segundo Shvelzon (2001: 249) o grs se caracteriza por ser um produto cermico de alta qualidade, de tradio claramente europia foi habitual nos pases do norte e centro do continente desde a metade do sculo XV. Diferencia-se por sua alta temperatura de coco que o torna resistente, impermevel e com granulao muito fina e sem impurezas, alm da cor da pasta (branca, bege, marrom e cinza) (idem).1

arqueolgico, a reutilizao tornaria complexa a tarefa de atribuir a funo e a trajetria de vida dos recipientes, principalmente as garrafas. Outro fator a ser considerado est relacionado a uma superioridade em termos de quantidade e diversidade de fragmentos ou peas cermicas nos stios relatados e um aparente fascnio da maioria dos arquelogos brasileiros por esta categoria material. A loua decorada, principalmente, seduz os pesquisadores com o seu atrativo visual e at mesmo ttil. No caso dos vidros, a presena de atributos nem tanto atraentes e a exigncia de um cuidado no manuseio para se evitar talhos e cortes, ao que parece, contribuem tambm para que sejam colocados em segundo plano nas investigaes arqueolgicas. No que tange os artefatos de vidro e grs utilizados no consumo de bebidas alcolicas existem alguns aspectos, tidos como depreciativos, ligados aos atos de beber que igualmente promovem a repulsa de grande parte dos pesquisadores4. Em partes representativas no s no campo da Arqueologia como em outras reas do conhecimento existe um evidente descrdito sobre as atividades que fazem apelo aos sabores. Como bem pontuadas por Onfray (1999b) as questes relacionadas ao paladar gozam de baixa reputao por serem enfticas em lembrar o quanto o ser humano que faz uso do

entendimento e da razo ao mesmo tempo um animal que sente prazer em saborear. Especificamente no caso do consumo de bebidas alcolicas, ainda que seja corrente em todas as civilizaes desde os seus primrdios, entre a maioria dos pesquisadores a temtica tida como vil o bastante para no se transformar em objeto de estudo. O estigma dos atos de beber possivelmente decorra das suas eventuais deturpaes na faculdade de pensar, por sua contribuio no estmulo ao entusiasmo e, conseqentemente, a promoo de um afastamento ocasional das virtudes da sabedoria e da moralidade. O curioso que pesquisadores da cultura material5, em algumas ocasies, possam desvalorizar certos estudos justamente em razo do registro material encarnar aspectos

Sobre o consumo de bebidas alcolicas no Brasil possvel mencionar os trabalhos ligados Antropologia e Histria de: Cascudo (1968), Santos (1998) e Scarano (2001). 5 O conceito de cultura material tratado neste estudo corresponde ao que Bezerra de Meneses (s/d: 22) especifica como (...) aquele segmento do meio fsico que socialmente apropriado pelo homem. Por apropriao social convm supor que o homem intervm, modela, d forma a elementos do meio fsico, segundo propsitos e normas culturais (idem). Nesta relao existe uma interao entre homem e meio material onde os artefatos podem agir como instrumentos de comunicao e expresso que podem condicionar e s vezes controlar a ao social ( Beaudry, 1991: 151).

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negativos que por conveno esto ligados a determinadas prticas. No deveria ser o contrrio? Ao invs da falta de apreo, existir o interesse ou pelo menos a considerao? A repulsa deste tema, no que diz respeito a ser objeto de pesquisa, talvez seja fruto de uma possvel incongruncia entre a prtica de consumir bebidas alcolicas e o esteretipo do arquelogo com os seus arremedos de um esprito intrpido, erudito e interessado no que pode ser considerado belo e imponente. O arquelogo travestido de Apolo se esfora em rechaar Dionsio, o outro que lembra histeria, insensatez, o que ao mesmo tempo esquisito e indigno (Onfray, 1999a). A cultura material vinculada ao consumo de bebidas alcolicas, no que diz respeito investigao arqueolgica, possui uma posio estratgica por estar integrada ao sistema de vida e de valores de vrias sociedades. Cada grupo social faz uso de um cenrio prprio constitudo de elementos materiais indispensveis e convergentes para degustao da sua bebida privativa. Estes locais e seus aparatos so espaos privilegiados em que se manifestam as particularidades culturais com cdigos6 extremamente bem integrados. Diante destas circunstncias, por se tratar de um tema abrangente, o pesquisador tem a oportunidade de trabalhar com diversas possibilidades. Em stios arqueolgicos oitocentistas, por exemplo, a recuperao dos vestgios de contentores7 de bebidas alcolicas podem indicar a presena de determinadas prticas cotidianas com os seus significados sociais. Aspectos como a fabricao, apropriao, e utilizao destes artefatos podem estar intimamente vinculados a determinados ambientes, bem como ao perfil social das pessoas que utilizaram estes objetos e os seus contedos. Alm disso, as formas, as cores e os acabamentos destas peas podem formar um grupo de atributos capazes de estabelecer um indicador seguro para a datao destes artefatos. A recuperao eventual de vestgios de marcas de fabricantes, afora a possibilidade de ser um indcio cronolgico, pode fornecer tambm informaes importantes sobre a estruturao de redes comerciais e a procedncia da pea. O propsito desta dissertao, justamente, o de interpretar os significados vinculados fabricao, apropriao e utilizao de artefatos de vidro e grs relacionados

O conceito de cdigo aplicado neste estudo corresponde a um conjunto de regras atravs do qual mensagens so convertidas, de modo convencionado e reversvel, de uma representao para outra (Jakobson, 1978). 7 Contentor corresponde aquilo que contm algo (Ferreira, 1986). Neste caso garrafas, copos, taas e clices podem receber esta denominao.

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s bebidas alcolicas em stios de unidade domesticas e lixeiras coletivas oitocentistas do municpio de Porto Alegre, alm de organizar um conjunto de dados que sirvam de referencial para analise destes artefatos em stios arqueolgicos do sculo XIX. Tendo em conta a significativa potencialidade do estudo dos usos destes artefatos e os seus significados em centros urbanos e considerando a necessidade de analisar amostras diversificadas8 para evitar relaes por demais simplificadas, que este trabalho se identifica com a denominada Arqueologia Urbana. Noes tradicionais sobre o estudo da cultura material muitas vezes esto fundamentadas em premissas onde o processo histrico interpretado por meio de proposies teleolgicas, com tendncia ao determinismo. Por intermdio desta viso o vestgio material passa, freqentemente, a fazer parte de relaes diretas e unvocas. Dentro de uma perspectiva mais abrangente a Arqueologia Urbana procura interrelacionar a cultura material com os contextos urbanos. Staski (1982: 97) a caracteriza como (...) o estudo das relaes entre cultura material, comportamento humano e cognio em um cenrio urbano (idem). A Arqueologia Urbana refere-se s sociedades, que tenham se fixado em reas onde se manifesta, ou se manifestou, uma concentrao de pessoas ou energias (ibidem). Considerando que o objeto de estudo desta dissertao est vinculado a um contexto histrico caracterizado pela penetrao da lgica capitalista no Brasil do sculo XIX, que este trabalho se identifica igualmente com uma prtica arqueolgica voltada para o estudo sobre o mundo moderno (Orser, 1992). Dentro desta concepo, a investigao tem como foco as manifestaes materiais, nos seus aspectos sociais, culturais e histricos, em contextos marcados pelos efeitos do surgimento e desenvolvimento do capitalismo (idem). Seguindo esta linha de raciocnio, ao longo do processo interpretativo as obras que foram utilizadas como referencial terico foram Braudel (1995), sobre o consumo de bebidas alcolicas e os seus significados, Sennet (1989) referente relao entre os domnios privado e pblico na vida social do sculo XIX, Barreiro (2002) e Oliven (2001)8

A base emprica para o desenvolvimento deste trabalho constitui-se de artefatos de vidro e grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas e recuperados em oito stios arqueolgicos oitocentistas de Porto Alegre, que so: o Stio da Antiga Cervejaria Brahma; as unidades domsticas evidenciadas nos stios Solar da Travessa Paraso, Solar Lopo Gonalves, Stio Chcara da Figueira e Casa da Riachuelo; as lixeiras coletivas evidenciadas nos stios Mercado Pblico Central, Praa Rui Barbosa e Pao Municipal. Maiores detalhes quanto aos stios e aos conceitos de unidade domstica e lixeira coletiva sero tratados no prximo captulo.

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sobre a modernidade no Brasil oitocentista, Chalhoub (1986) e Barreiro (2002) sobre o cotidiano dos grupos subalternos em lugares pblicos para beber no Brasil do sculo XIX e de Certau (1994) com relao aos conceitos sobre estratgia, ttica, consumo e maneiras de fazer. No que diz respeito Arqueologia foram utilizadas obras que servem de referncia para uma abordagem crtica e interpretativa, que so: Shanks and Tilley (1987), Hodder (1991) e Beaudry et al (1991). Uma Arqueologia crtica, segundo esta concepo, se caracteriza por ser uma prtica interpretativa marcada por ajustes incessantes entre conceitos, representaes e idias e conhecimento e prtica9 (Shanks and Tilley, 1987). Uma abordagem crtica uma interveno ativa que relaciona o passado e o presente, ou seja, corresponde a um processo em que incide a simultaneidade da reflexibilidade (crtica de si mesmo) e da crtica dos aspectos relacionados ao passado (idem). O pesquisador deve ter em mente a importncia dos significados do passado para o presente. Aspectos ligados interpretao arqueolgica como os conceitos, o modo como as informaes so interpretadas, a realizao das anlises, tudo isto produz significados para o presente. (ibidem). As interpretaes sobre o passado, no entanto, no so entendidas como unvocas, ao contrrio, elas so, conforme este ponto de vista, mltiplas e tolerantes a constantes alteraes e reavaliaes (Shanks and Tilley, 1987; Hodder, 1991; Beaudry et al, 1991). Concepes tradicionais baseadas na diviso entre o arquelogo e os dados, entre o assunto e o objeto, entre a subjetividade e objetividade so, portanto, descartadas, na medida em que se destaca a existncia de uma srie de mtuas influncias na relao entre o pesquisador e as fontes, entre o passado e o presente. A produo do conhecimento percebida como uma prtica social nascida das atividades ou das prxis dos seres humanos no mundo (Shanks and Tilley, 1987). Alm disso, uma abordagem crtica deve ter como foco investigativo no s as inter-relaes funcionais e substantivas da cultura material, mas buscar interpretar tambmConforme Shanks and Tilley (1987) qualquer interpretao do passado est no interior de um crculo hermenutico, ou melhor, um espiral que envolve alteraes e trabalho terico sobre o que ser interpretado. No crculo hermenutico, ainda segundo os autores, o pesquisador se aproxima de uma cultura material a partir de uma abundancia contextual, o que permite a pressuposio de um entendimento inicial dos seus significados (idem: 106). A tarefa hermenutica se torna automaticamente um interrogatrio dos objetos e sempre determinada em parte por isto, na medida em que os pressupostos so inevitavelmente modificados de um modo progressivo para permitir uma compreenso satisfatria (ibidem).9

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o modo pelo qual foram construdos os seus significados; refletir sobre os interesses, as estruturas e as condies sociais em que se originam (idem). A chave para interpretao est na busca de um contexto da forma mais abrangente e abundante possvel, onde os significados da cultura material sejam situados e particularizados (Beaudry et al, 1991). imprescindvel, portanto, adquirir, da melhor forma possvel, coerncia sobre os vrios aspectos relacionados aos artefatos e entre a teoria adotada e a totalidade das informaes obtidas (Hodder, 1991; Kern, 1996). Tendo como propsito aplicao dos princpios tericos acima que esta dissertao foi organizada em quatro captulos. No primeiro captulo so apresentados os dados empricos da pesquisa, com a localizao temporal e espacial dos oito stios pesquisados. No segundo so tratados os aspectos ligados morfologia, mtodos de fabricao, cronologia e reutilizao de contentores de bebidas alcolicas, alm de algumas consideraes sobre o uso e consumo de artigos de vidro no Brasil e a produo de vidro no pas e no exterior no sculo XIX e incio do sculo XX. Com a inteno de estabelecer uma construo detalhada do contexto histrico e cultural do uso do artefato so apresentadas no terceiro captulo as possibilidades interpretativas relacionadas percepo dos membros da elite intelectual porto-alegrense com relao aos atos de beber e o conjunto de elementos materiais especficos de que se lanava mo nestas circunstncias. Alm disso, so apresentadas tambm as possibilidades interpretativas relacionadas viso de determinados grupos sociais quanto s prticas nas tabernas da Porto Alegre oitocentista, dentre elas as que incidem o uso dos artefatos vinculados ao consumo de bebidas alcolicas. No ltimo captulo so apresentadas as interpretaes relacionadas ao consumo e as prticas ligadas s bebidas alcolicas nos stios pesquisados. Tendo como foco de interpretao no s os aspectos funcionais, fsicos e tecnolgicos do registro material, mas tambm o modo pelo qual idias, reveladas por meio dos artefatos, cumprem uma funo na conformao e fundamentao da sociedade, que se busca suplantar o carter empirista que muitas vezes atribudo ao estudo da cultura material e destacar o potencial significativo da pesquisa sobre estes artefatos.

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1. OS STIOS PESQUISADOS

1.1 Introduo

No municpio de Porto Alegre foram iniciadas as pesquisas em Arqueologia Histrica a partir de 1997 pelo Museu Joaquim Jos Felizardo, por intermdio do Programa de Arqueologia Urbana (Tocchetto et al, 1999). Desde ento foram cadastrados, em reas centrais e perifricas do municpio, dezoito stios histricos, que denotam uma significativa diversidade de ocupaes. A despeito de uma grande gama de impactos no solo urbano, um rico acervo material foi recuperado nestes stios. Exemplos de empreendimentos bem sucedidos foram os salvamentos e acompanhamentos arqueolgicos de obras de restaurao, reforma e reestruturao de prdios e locais pblicos na rea central do municpio. O acompanhamento arqueolgico, por parte da equipe do Museu, das obras na Praa Rui Barbosa, no Mercado Pblico Central, na Praa Parob e no Pao Municipal, entre 1995 e 2001, possibilitou a identificao de grandes depsitos de lixo do sculo XIX. Uma extensa diversidade de fragmentos e objetos de loua, cermica, vidro, metal, ossos, entre outras categorias, foi evidenciada nestes stios. Estes vestgios materiais so uma importante fonte de informao sobre a diversidade cultural da Porto Alegre oitocentista. So detentores de um potencial capaz de auxiliar na interpretao tanto das prticas relacionadas ao consumo de vrios grupos sociais, como das vinculadas ao descarte do lixo e quanto s noes de limpeza e sade (Santos e Tocchetto, 2001). Em reas urbanas constante a incidncia de depsitos constitudos por prticas coletivas de descarte de lixo. Estas lixeiras se caracterizam por um processo de formao de refugo secundrio10. O acmulo deste refugo decorre da tendncia dos habitantes das cidades de descartar o lixo nas reas onde outros j o haviam colocado. Esta prtica coletiva de rejeito de lixo conhecida nos Estados Unidos como efeito Arlo Guthrie trash-magnet (Wild and Schiffer, 1979 apud Schiffer, 1991). Normalmente as pessoas fazem uso destas lixeiras coletivas at o momento em que

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Segundo Schiffer (1991:58), dentre os processos de formao cultural de um registro arqueolgico est o refugo secundrio, que corresponde ao refugo depositado em reas que no fazem parte do local de utilizao do artefato.

cessa a capacidade do local de receber refugo ou que se encontre alternativas mais convincentes (Schiffer: 1991). Em visita a Porto Alegre, entre 1820 e 1821, SaintHilaire (1939:79) comentou o aproveitamento das margens do Guaba como rea para descarte de lixo:

(...) poucas casas possuem jardins e muitas no tem mesmo ptio, redundando isso no grave inconveniente de serem atiradas rua todas as imundcies, tornando-as de uma extrema sujeira. As encruzilhadas, os terrenos baldios e principalmente as margens do lago so entulhadas de lixo (...). (idem). Justamente em razo de problemas vinculados aos despejos do lixo urbano e insalubridade11, o Cdigo de Posturas Policiais de 1837 determinou dez pontos para descarte de lixo na margem do Guaba (Santos e Tocchetto: 2001). Atualmente, dentre estes pontos, esto localizados o Pao Municipal, o Mercado Pblico, correspondentes ao antigo trecho entre a Praa do Paraso e o Porto dos Ferreiros12 e a Praa Rui Barbosa, entre a Rua da Misericrdia e Rua do Rosrio13 (idem). Nas sondagens mais profundas das obras de reestruturao destes locais, aps a retirada do piso ou asfalto e do solo proveniente de aterros, se observou um solo cinza escuro, muito mido, com presena de material arqueolgico e orgnico, o que veio a comprovar que estas reas se localizam onde era o antigo leito do Guaba. Estes locais, possivelmente, se constituram em reas estigmatizadas pelos despejos de lixo e pela afluncia da populao mais pobre da sociedade, como escravos e trabalhadores informais. Posteriormente, entre os anos quarenta e setenta do sculo XIX, estas reas foram cobertas com aterros fartos em material arqueolgico, com exceo do aterro para construo do Mercado Pblico. Solos extrados de diferentes reas da cidade e arredores foram utilizados como aterro.

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Segundo Pesavento (1994:86) com o cerco da cidade, no decorrer da Revoluo Farroupilha (18351845), os rejeitos de lixo e esgoto, e o abate de reses passaram a ser efetuados na rea central, o que ampliou de maneira significativa os problemas relacionados concentrao urbana. 12 Cdigo de Posturas Municipais de 1837, cap. 50, Arquivo Histrico Moiss Vellinho. 13 Cdigo de Posturas Municipais de 1837, cap. 50, Arquivo Histrico Moiss Vellinho.

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O poder pblico, alm do processo de normatizao dos rejeitos de lixo, promovia, simultaneamente, a expanso da malha urbana e o encobrimento das lixeiras coletivas, atravs de aterramentos das margens do Guaba14 (Santos e Tocchetto: 2001). Entre as aes coordenadas do governo local, em meados do sculo XIX, a limpeza e o asseio de locais pblicos comeava adquirir relevncia. Paulatinamente ocorria a difuso e apropriao, principalmente entre intelectuais e administradores, de todo um enunciado relacionado influncia do meio sobre o comportamento e a constituio fsica dos seres humanos (Pesavento: 1994). Segundo esta lgica era imperioso, portanto, junto necessidade de ampliao e reorganizao do espao urbano, se livrar da imundcie de determinados locais da cidade. Inseridos neste contexto esto os descartes de lixo praticados em unidades domsticas. Antes da regularizao do servio de limpeza pblica, institudo no final do sculo XIX, predominava, entre a populao, afora o j mencionado rejeito de lixo nas margens do Guaba ou em terrenos baldios, o simples descarte ou enterramento dos dejetos cotidianos nos ptios das casas. Por intermdio de pesquisas, com problemticas e objetivos bem definidos, por parte do Setor de Arqueologia do Museu Joaquim Jos Felizardo/SMC, foi possvel identificar estas prticas oitocentistas nos ptios de quatro unidades domsticas. Esta amostra composta pelos stios Casa da Riachuelo, localizado na rea central da cidade, Solar Lopo Gonalves e Solar Travessa Paraso, situados, no sculo XIX, em reas perifricas da cidade que posteriormente foram anexadas malha urbana, e pelo stio Chcara da Figueira, localizado em rea rural no decorrer do sculo XIX. As evidncias materiais, pertencentes aos contextos arqueolgicos dessas unidades domsticas, podem ser fontes importantes para interpretaes de elementos vinculados s prticas cotidianas e seus significados simblicos. Os depsitos de lixo nos ptios das casas, como produto de prticas rotineiras, segundo Lima (1999:191), contm mostras pouco tendenciosas das atividades de seus moradores e de sua dinmica interna. Os descartes de lixo, como aes em geral inconscientes so, por sua vez, potencialmente reveladores das estruturas subjacentes de uma sociedade. O local de residncia contm em si diversas formas de comunicao e significados para os seus freqentadores. Sendo espaos onde, em um tempo determinado, se concentram certas atividades dirias, as unidades domsticas seAtualmente a rea central de Porto Alegre corresponde ao triplo da extenso do incio do sculo XIX (Souza, 1997).14

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transformam em um elemento importante na constituio de prticas sociais. Giddens (1995:399), referindo-se s sedes, conceito vlido tambm para as unidades domsticas, afirma que estas por serem regies possuidoras de delimitadores fsicos e simblicos, exercem grande influncia nas inter-relaes entre as prticas cotidianas e o seu meio fsico. A unidade domstica, sendo um cenrio convergente, traz em si profundas implicaes sobre os vnculos dos moradores com o seu corpo, com o cotidiano familiar e a utilizao do espao (Correia: 2004). Com relao ao desenvolvimento desta pesquisa, alm das unidades domsticas e das lixeiras coletivas, importante mencionar, tambm, o stio da Antiga Cervejaria Brahma, localizado no Bairro Floresta. O salvamento e acompanhamento arqueolgico das obras de reestruturao e implantao do Total Shopping de Descontos15 no terreno da cervejaria, evidenciou uma significativa quantidade de fragmentos de garrafas de vidro e de grs. Estes artefatos esto relacionados, na sua grande maioria, aos rejeitos da prpria cervejaria. Os materiais descartados correspondem segunda metade do sculo XIX e incio do XX, e foram utilizados como aterro para nivelamento do terreno da fbrica. Toda a potencialidade e complexidade do conjunto destes stios e dos seus registros materiais, por sua vez, tornam evidente o mrito de estudos que procurem inter-relacionar estas diversas ocupaes. Foi justamente a partir desta perspectiva que foi constituda a base emprica para o desenvolvimento desta pesquisa. A amostra das evidncias materiais analisadas neste trabalho corresponde, portanto, aos artefatos de vidro e grs relacionados s bebidas alcolicas e exumados no stio da Antiga Cervejaria Brahma; nas unidades domsticas16 evidenciadas nos stios Solar da Travessa Paraso, Solar Lopo Gonalves, stio da Figueira e Casa da Riachuelo; e nas lixeiras coletivas encontradas nos stios Mercado Pblico Central, Praa Rui Barbosa, e Pao Municipal. Aps esboar, de forma sinttica, alguns dos trabalhos arqueolgicos realizados em Porto Alegre e os seus vnculos com o desenvolvimento desta dissertao ser apresentado no tpico seguinte a contextualizao histrica espacial e temporal dos stios selecionados, e os dados empricos relacionados s anlises dos vestgios materiais, aos trabalhos de campo e s fontes escritas.15

Trabalho coordenado pela arqueloga Beatriz Vallado Thiesen entre julho de 2002 e junho de 2003, e realizado nos quadros do Programa de Arqueologia Urbana de Porto Alegre. 16 As pesquisas de campo e laboratrio, relacionadas a estes stios, resultaram, respectivamente, em tese de doutorado de Tocchetto (2004) e dissertao de mestrado em Histria de Symanski (1998 a), PUCRS.

18

1.2 Unidades Domsticas

1.2.1 Stio Casa da Riachuelo (RS.JA-17)

O contexto histrico-espacial O lote urbano onde foi realizada a escavao arqueolgica, atualmente situa-se na rua Riachuelo n 66117. Localizado no centro histrico da cidade, o stio Casa da Riachuelo foi pesquisado entre 1999 e 2001, pela equipe do Museu Joaquim Jos Felizardo18. O depsito relacionado ao descarte domstico foi identificado nos fundos do terreno, concentrado em uma rea de 6m, aonde seria o antigo ptio da casa. Neste terreno, marcado por um aclive em direo a rua Duque de Caxias e medindo 41m de profundidade por 4,5 m de largura, foi construda, no decorrer do sculo XIX, uma moradia de poro alto ou assobradada. A opo de se construir uma casa de poro alto, mesmo que de dimenses reduzidas, se explica em razo do aproveitamento do relevo do terreno, no caso em aclive, para construo deste tipo de prdio (Tocchetto: 2004). O assobradado teria, conforme perfil abaixo, alm do poro alto, o primeiro terrao, onde provavelmente estaria a cozinha e, ou varanda, e a rea de servio; e o segundo terrao, que seria um local destinado para o descarte do lixo domstico.

Figura 01: Perfil do Stio Casa da Riachuelo, com parte da rea de escavao. Desenho: EPAHC/SMC. Fonte: Tocchetto (2004).

No foi possvel verificar a data da primeira ocupao do terreno, mas certo afirmar que no final da dcada de 1830 j havia uma habitao no lote, pois na Planta de Porto Alegre de L.P. Dias, de 1839, consta uma edificao no terreno (idem). Alm17

Este trecho, da atual rua Riachuelo, at 1865 era designado como Rua da Ponte. Trata-se de uma das mais antigas ruas de Porto Alegre. 18 As informaes sobre o stio Casa da Riachuelo foram extradas de Tocchetto (2004.

19

disso, a pesquisa realizada em fontes escritas primrias no possibilitou a identificao dos moradores da casa. O registro da quitao do imposto predial da casa relativo ao ano de 1893, em nome de Joaquim Pereira Martins, e o inventrio de 1911 da sua esposa, com a qual casou em 1889, Angelina Cardoso Martins, so as nicas referncias de proprietrios da casa no sculo XIX19. O que no quer dizer que o casal morasse nesta habitao. Ao invs disso, bem provvel que o casal locasse esta habitao, junto com outras propriedades, pois nos inventrios de Angelina (1911) e Joaquim (1919) so arrolados vrios imveis. Entre as propriedades relacionadas no inventrio de Angelina consta um sobrado com cinco aberturas na sua parte superior bem prximo do local pesquisado. Este sobrado, devido ao seu maior conforto e espao em relao aos outros imveis, poderia muito bem servir de moradia para o casal. Com relao s transformaes das caractersticas do prdio, Tocchetto (2004: 31) afirma que, inicialmente, havia no terreno uma casa com poro alto, de 4,5m de largura por 8,5 de profundidade, e que a sua ampliao, possivelmente em 1896, de assobradado para sobrado resultou, provavelmente, no encobrimento da lixeira domstica. O certo, ainda segundo a autora, que, nas ltimas dcadas do sculo XIX, por intermdio da construo ou pela interrupo do despejo do lixo nos fundos do terreno, a lixeira deixou de ser utilizada (idem). A formao, atravs do descarte de lixo domstico, da lixeira localizada nos fundos do lote, ou seja, no segundo terrao, estaria relacionada, portanto, com o cotidiano dos moradores da casa de poro alto (ibidem).

A estratigrafia e o material arqueolgico Na escavao se evidenciou a presena de cinco camadas arqueolgicas20. Com exceo de uma das sete quadriculas de 1 m, localizada na parte sul da escavao, o restante das quadrculas revelou um quadro similar. A estratigrafia nestas quadrculas constitua-se, basicamente, nas camadas: I) pavimento de concreto e contra-piso arenoso, com 14 cm de espessura; II) estrato fino de solo compacto de colorao marrom, com 1 a 2,5 cm de espessura; III) solo avermelhado, solto, com pouca presena de material relacionado ao sculo XIX, tendo19

A pesquisa em fontes primrias foi efetuado pelo autor entre 2000 e 2001, na poca estagirio do Museu Joaquim Jos Felizardo PMPA/SMC. 20 A escavao for realizada pela arqueloga Fernada Bordin Tocchetto, pelo estagirio do Museu JJF Diogo Menezes Costa e por estudantes da UFRGS e PUCRS, por intermdio de Termos de Cooperao Tcnica estabelecidos com a PMPA/SMC.

20

de 4 a 6 cm de espessura; IV) solo de cor marrom escuro, com grande concentrao de material arqueolgico com 45 a 50 cm de espessura; V) solo mido de cor marrom escura, estreo.

Fonte: Tocchetto (2004). Edio: Paulo Alexandre da Graa Santos.

O material recuperado na escavao atingiu o total de 4.629 fragmentos. Desta amostra, 2.460 (53,14%) corresponde categoria cermica, 1.003 (21,66%) vtrea e

21

408 (8,81 %) metlica21. Do total da categoria vtrea 295 fragmentos correspondem ao material arqueolgico oitocentista relacionado ao consumo de bebidas alcolicas, evidenciado na camada IV. No houve incidncia de fragmentos de grs com estas caractersticas.

21

A anlise do material arqueolgico foi efetuada pela arqueloga Fernanda Bordin Tocchetto, pelo autor e pelo colaborador Diogo Menezes da Costa.

22

A seguir, a tabela referente s anlises do material vtreo vinculado a consumo de bebidas alcolicas:

Tabela 01 Freqncia de peas por categoria funcional.

Item

Forma

Categoria Material

Terminao

Cor

Nmp Nfrg

Garrafa para vinho Garrafa para vinho ou conhaque Garrafa para bebida alcolica Garrafa para bebida fermentada Garrafa para bebida fermentada Garrafo Copo Copo pequeno Copo Taa ou clice No identificado

Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica Cilndrica Cilndrico Cilndrico c/paredes facetadas Sem motivos decorativos aparentes Sem motivos decorativos aparentes Sem motivos decorativos aparentes

Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro 2 anis superior cone inferior arredondado

Verde oliva escuro Verde escuro Verde oliva escuro Verde escuro Verde oliva escuro Verde mdio Transparente Transparente Transparente Transparente

2 1 1 5 2 2 21

3 4 3 31 18 5 21

1 2

1 2 225

Total

19

295

23

O perodo do consumo de bebidas alcolicas Para atingir um perodo aproximado da intensificao do consumo nos stios, a partir dos fragmentos ou peas relacionadas s bebidas alcolicas, foi utilizado como expediente o grfico de barras desenvolvido por South (1978). Ainda que tenha sido indicado especificamente para a pesquisa de amostras de louas, o diagrama rene todas as condies para ser aplicado em outras categorias materiais desde que o conjunto de fragmentos e peas apresente perodos de produo bem delimitados, o que pode ser verificado no caso do vidro e do grs. Cabe ressaltar que a meta principal a ser atingida com a aplicao do grfico de barras a obteno de um perodo aproximado de intensificao do consumo de bebidas alcolicas, se bem que por meio do confronto das informaes dos grficos de barras da loua22 e do vidro e grs dos stios possvel, tambm, fazer algumas consideraes sobre os perodos de ocupao mais intensos e as divergncias entre os intervalos. O stio Casa da Riachuelo est entre os stios que podem ser includos neste caso. O grfico de barras (South, 1978), referente s informaes obtidas da anlise da loua e do vidro, indicou uma ocupao mais intensa da casa, relacionada ao descarte de lixo nos fundos do terreno, entre 1828 e 1875. No entanto, a necessidade de uma delimitao mais precisa da data final dos grficos e uma divergncia entre o intervalo do grfico de vidro com o de loua, sugerem uma discusso mais aprofundada sobre os resultados dos grficos de barras23. Comparando o perodo que compreende o grfico de barras da anlise da loua (1828-1875) com o do material vtreo relacionado ao consumo de bebidas alcolicas24 (1840-1870), se verifica um perodo mais reduzido de ocupao do stio por parte do grfico do vidro. Nas outras unidades domsticas estudadas, tambm, se constatou a tendncia do grfico de barras do vidro, ou do vidro e do grs, em apontar um intervalo de tempo menor, se comparado com o de louas25.

Com relao aos perodos obtidos nos grficos de loua dos stios de unidades domesticas pesquisados ver Tocchetto (2004). 23 Em razo de um provvel prosseguimento do descarte de lixo domstico na unidade domstica por alguns anos do ltimo quartel do sculo XIX, constatado a partir da localizao de alguns fragmentos de vidro e loua na estratigrafia, Tocchetto (2004: 56), sugere que no se adote como data final do grfico de barras o ano de 1875. 24 No foi verificada na amostra do stio Casa da Riachuelo a incidncia de fragmentos de grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas. 25 Os fatores que promoveram um grande avano no desenvolvimento do processo de fabricao industrial e massivo dos objetos de vidro e o seu uso e consumo de modo mais intenso no Brasil, a partir da metade do sculo XIX, sero tratados no prximo captulo.

22

24

Considerando que, por vrias razes, o consumo e a utilizao de forma mais intensa de artigos de vidro no Brasil ocorreu somente a partir de meados do sculo XIX26, h que se delimitar como data inicial da formao do depsito de lixo domstico escavado o ano de 1828, no caso a data do grfico de barras da loua. Buscando um estabelecer um perodo de intensificao do consumo por partes dos moradores do assobradado, Tocchetto (2004) defende a delimitao de um intervalo entre 1840/50 e 1870, baseando-se na grande incidncia, entre os fragmentos de loua recuperados, de peas em faiana fina decoradas com pintura mo livre, populares entre 1840 e 1860, e no uso de forma mais intensa de artigos de vidro a partir de meados do sculo XIX. Com relao ao estabelecimento da data final do grfico de barras um debate promovido por Newmann (1970) sobre a determinao de datas para as tcnicas de fabricao de garrafas pode ser vlido para este caso. O autor afirma que a data do desenvolvimento de uma nova tcnica de fabricao de garrafas no possibilita, simplesmente, o estabelecimento do perodo final de utilizao da tcnica antiga que foi substituda. A demora de alguns fabricantes na substituio de uma tcnica antiga de produo, o intervalo de tempo resultante do armazenamento na fbrica e do transporte para o local de comercializao, e a possibilidade de re-utilizao da garrafa antes do descarte final, so aspectos que devem ser considerados (idem). Visando atingir datas mais precisas, o autor sugere um avano de dez anos na data de substituio de uma tcnica antiga (ibidem). Seguindo a mesma linha de raciocnio, com relao delimitao do perodo de ocupao do stio Solar Lopo Gonalves, Symansky (1998a) acrescentou dez anos data terminal no grfico de barras da loua, tendo em conta a existncia de um intervalo de tempo maior entre o incio da produo da pea e o seu descarte como refugo. De acordo com esta orientao, a barra da direita do grfico deve avanar pelo menos dez anos, chegando a 1885 como limite mnimo para a data terminal de ocupao mais intensa do stio. De acordo com a proposta deste intervalo de tempo, o grfico de barras correspondente aos fragmentos de vidro relacionados ao consumo de bebidas alcolicas indica um perodo de 1840 a 1870.26

Este quadro, relacionado ao uso e consumo de artigos de vidro no sculo XIX, ao que parece no est restrito somente ao Brasil. Fontana (1968) na sua anlise de artefatos de vidro recuperados em stios dos sculos XVIII e XIX em Magdalena de Kino, Sonora, Mxico, indicou para os fragmentos mais antigos uma cronologia situada na metade do sculo XIX. No entanto, o autor no se deteve sobre as causas e motivos que levaram a isto.

25

Grfico de barras 01 - peas de vidro relacionadas ao consumo de bebidas alcolicas - Stio: 17 - Casa da Riachuelo

11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Legenda 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Terminao com tira de vidro aplicada sem uso de ferramentas para acabamento de topo (lipping tool )- at 1840 Pontel de vidro - at 1870 Pontel de vidro e areia - at 1870 Pontel de tubo - at 1870 Molde de 2 ou 3 partes - at 1880 Ferramenta de acabamento de topo (lipping tool ) e superfcie do vidro com aparncia de metal martelado - 1840 a 1870 Ferramenta de acabamento de topo (lipping tool ) - 1840 a 1920 Instrumento de sustentao (snape case) - 1850 a 1920 Demanda crescente por vidro transparente - a partir de 1850 Utilizao do centro da base de garrafa de vidro para inscrio comercial - a partir de 1850 Produo de terminaes sem emendas ou marcas - a partir de 1870

26

1.2.2

Stio Solar da Travessa Paraso (RS.JA-03)

O contexto histrico-espacial O Solar da Travessa Paraso27, atual sede do Centro de Educao Patrimonial e Ambiental da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, est localizado no Morro Santana, no endereo Travessa Paraso n 71, bairro Menino Deus. Em novembro de 2001, nos fundos do Solar, ou seja, no quintal da casa, um depsito de refugo domstico oitocentista foi localizado pela equipe do Museu Joaquim Jos Felizardo28. Com relao aos antigos proprietrios do Solar no sculo XIX, a aquisio mais remota que a pesquisa histrica29 conseguiu evidenciar, diz respeito a uma compra efetuada em 1809, por parte de Francisco Prestes de Paulo Barreto. Vinte anos aps essa transao, o combatente nos conflitos contra Artigas (1821-26) e da Cisplatina (182528), e futuro coronel farroupilha, Onofre Pires da Silveira Canto, adquiriu a chcara. A posse do Solar e do terreno por parte de Onofre persistiu at 1844, quando ocorreu a sua morte causada por ferimentos resultantes de um duelo com Bento Gonalves da Silva. A partir da morte de Onofre Pires o proprietrio da chcara passou a ser o vereador de Porto Alegre Francisco Pinto de Souza. Uma nova transferncia ocorreu, em 1854, quando o mdico homeopata Dionsio Oliveira Silveiro recebeu a chcara como reembolso de dvidas pendentes de Onofre Pires. Dionsio e sua famlia mantm a posse da chcara at 1908, quando Nogueira Barbosa passa a residir no local. Dentre os proprietrios do Solar no sculo XIX foi possvel verificar que tanto Onofre Pires como Dionsio residiam no centro da cidade e, possivelmente, utilizaram a chcara como rea de lazer e produo. Segundo Tocchetto (2004), provvel que aps a morte de Dionsio em 1871, no mnimo a partir de 188830, o seu filho Afonso de

27 28

Os dados relacionados ao Stio Solar da Travessa Paraso foram extrados de Tocchetto (2004). O trabalho de campo foi efetuado pela arqueloga Fernanda Toccheto, pelo autor, na poca bolsista de iniciao cientfica da FAPERGS, pelo colaborador Diogo Menezes Costa e pelo oficiando do Museu Joaquim Jos Felizardo, Rodrigo Bragio Bonaldo. 29 A investigao relacionada propriedade foi iniciada em 1994 pelo arquelogo Cludio B. Carle e estagirio da EPAH/SMC, no momento em que comearam as intervenes arqueolgicas no stio. Em 2002, o estagirio Fabiano Aiub Branchelli e a oficinanda Camila da Silva Freitas, vinculados ao MJJF, prosseguem com a pesquisa sobre a documentao primria, no caso escrituras de compra e venda, inventrios e testamentos . 30 No inventrio da esposa de Dionsio, Maria Sophia, de 1888, existe o registro de que Afonso, herdeiro da parte da chcara onde estaria o sobrado, residia na Freguesia do Menino Deus. O que no quer dizer que Afonso no tenha vindo morar no Solar antes desta data. Inventrio de 02/05/1888, 3 Cartrio do Cvel, mao 1, feito 7, estante 3 (APERGS).

27

Oliveira Silveiro tenha utilizado o Solar como moradia at 190331, data de seu falecimento. J no perodo em que Francisco Pinto de Souza (1844/54) foi proprietrio existe a possibilidade da chcara ter sido abandonada32.

A estratigrafia e o material arqueolgico No decorrer das intervenes arqueolgicas foi possvel verificar a presena de trs camadas: I) solo arenoso e mido de colorao marrom escura, com material do sculo XX e XIX, tendo entre 5 a 26 cm de espessura; II) solo arenoso de maior granulao que a camada I, com material arqueolgico oitocentista, com exceo de uma quadrcula que apresentou uma intruso de lixo do sculo XX, sendo que sua espessura variou entre 10 a 55 cm; III) solo arenoso e mido, com granulao fina e de colorao marrom clara, estril. O material arqueolgico recuperado na escavao atingiu um total de 8.392 fragmentos33, sendo que 2.739 fragmentos, 32,64 % da amostra, correspondem categoria vtrea; 2.636, 31,41% da amostra, referem-se categoria cermica; e 1.113, 13,26% da amostra, dizem respeito categoria metlica. Do total dos fragmentos de vidro 832, e no caso do grs 7 fragmentos correspondem aos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas recuperados na camada II.

31

Entre 1903 a 1908, o proprietrio do Solar foi o cunhado de Afonso, Virglio Rodrigues do Valle, que o adquiriu atravs de um arremate em um leilo, em razo de a propriedade estar hipotecada. 32 Na escritura de venda da propriedade para Dionsio verificada a possibilidade de abandono atravs da existncia de um registro que menciona as precrias condies em que se encontrava a chcara. Escritura de venda, anexo do inventrio de Dyonsio de Oliveira Silveiro de 03 de julho de 1879, 3 Cartrio do Cvel, mao 1, feito 7, estante 3 (APERGS). 33 A pesquisa em laboratrio foi realizada pela arqueloga Fernanda Bordin Tocchetto, pelo colaborador Diogo Menezes da Costa, pelo autor, na poca bolsista de Iniciao Cientfica da FAPERGS, e contou tambm com a participao do oficinando Rodrigo Bragio Bonaldo e do estagirio Fabiano Branchelli / MJJF / SMC.

28

Fonte: Tocchetto (2004). Edio: Paulo Alexandre da Graa Santos.

29

A seguir, a tabela referente s anlises do grs e material vtreo vinculado a consumo de bebidas alcolicas:

Tabela 02: Frequncia de peas por categoria funcional

Item

Forma

Cat.

Terminao

Cor

Nmp Nfrg

Garrafa para cerveja Garrafa para champanhe Garrafa para champanhe Garrafa para vinho Garrafa para vinho Garrafa para champanhe Garrafa para vinho Garrafa para vinho Garrafa para vinho ou cerveja Bebida fermentada Bebida fermentada Bebida fermentada Fuo original no identificada Garrafa para genebra ou aguardente Garrafa para genebra Garrafa para cerveja Garrafo Copo Caneco para chopp Clice para licor, ou vinho do Porto Taa para vinho, ou champanhe No identificado

Cilndrica Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica

Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro

Terminao para rolha metlica 2 anis arredondados

mbar Verde oliva claro Verde oliva claro

1 1 1 2 1 1 1 1 1 1 1 2 11

1 1 1 3 1 2 1 1 1 3 6 2 60 3 3 4 1 5 2 2 16 720

Faixa de vidro aplicada Faixa de vidro aplicada Terminao Champanhe Faixa de vidro aplicada Faixa de vidro aplicada 2 anis superior reto, inferior cone

Verde oliva claro mbar mbar Verde mdio Verde oliva claro Verde escuro Verde oliva escuro Verde escuro mbar

Tronco piramidal invertida Cilndrica Cilndrica Cilndrico Cilndrico c/paredes facetadas Cilndrico c/paredes facetadas

Vidro Grs Grs Vidro Vidro Vidro Vidro

Anel em forma de cone Anel em forma de cone

Verde oliva escuro Marrom avermelhado Bege e marrom claro Verde mdio Transparente Transparente Transparente Transparente

1 1 1 1 3 1 1 5

C/ decorao

Vidro

Total

39

839

O depsito formado pelo descarte de lixo dos moradores do Solar corresponde s evidncias materiais do sculo XIX encontradas na camada II. Prximo aos antigos muros de arrimo, na rea do lote onde incide o maior declive, era efetuado o rejeito do lixo oitocentista (ver planta abaixo).

30

Figura 02: Planta de topo do quintal do stio Solar da Travessa Paraso, 1994. Arquelogo: Cludio B. Carle. Edio: Paulo Alexandre da Graa Santos

O perodo do consumo de bebidas alcolicas Os grficos de barras (South, 1978), correspondentes s informaes obtidas da anlise da loua e do vidro e grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas, indicam um perodo de ocupao mais intensa do stio entre 1840 e 1905. Acrescentando-se, claro, mais dez anos para atingir um perodo que alcance o incio da produo das peas, sua compra, utilizao e descarte como refugo.

31

Tendo em conta a possibilidade de abandono da chcara, citada anteriormente, o intervalo de tempo est relacionado, principalmente, a duas ocupaes do stio por parte da famlia Silveiro, no caso a de Dionsio, de 1854 a 1871, e do seu filho Afonso, de 1888 (ou antes disso) a 1903. Cabe ressaltar que o perodo que compreende o grfico de barras dos fragmentos relacionados ao consumo de bebidas alcolicas (entre 1850 a 1895), alm das questes relacionadas produo do vidro, evidencia justamente o intervalo de ocupao mais intensa correspondente ao de Dionsio e sua famlia.

32

G rfico d e b a rra s 02 d e p eas d e vid ro e g rs relacio n ad as a o co n s u m o d e b eb id as alco lic as S tio : 03 - S o lar d a T ravessa P araso15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

16

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16

L eg e nd a T erminao com tira de vid ro ap licada se m o u so de fe rramen ta de a caba mento de to po - at 1840 P ontel de vidro - at 1 870 S uperfcie do vidro com aparncia d e metal m artela do - at 1870 M old e de 2 o u 3 p artes - a t 18 80 F erra menta de aca bame nto de topo (lipping to ol ) - 184 0 a 1 920 In strume nto d e sustenta o (sn ape case) - 1850 a 19 20 U tiliza o do ce ntro da base de garra fa de vid ro pa ra inscrio come rcia l - a pa rtir de 18 50 H aste de ta a com deg rau centra l tra nspa ren te - 1 850 a 187 0 D eman da cre scen te po r vidro transparente - a partir de 185 0 M q uina dotad a d e agulha s cauterizado ra s - 1870 a 19 30 H aste de ta a tipo b alaustre - 187 0 a 18 90 P rod uo d e terminaes se m e mend as ou marcas - a pa rtir de 18 70 M old e de torne ar (tu rn m old )- 1870 a 19 30 U lizao e m la rga e scala de M anga ns co mo agen te descoloran te - 18 88 a 1915 P rocesso semi-automtico ou au tom tico - a partir de 1889 ou 1 904 T erminao para ro lha metlica - a pa rtir de 18 95

33

1.2.2

Stio Solar Lopo Gonalves (RS.JA-04)

O contexto histrico-espacial O Solar Lopo Gonalves34 est localizado na rua Joo Alfredo, 582, bairro Cidade Baixa. Atualmente a sede do Museu Joaquim Jos Felizardo, que pertence Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre35. A construo do Solar ocorreu entre 1845 e 1855, nos fundos de uma chcara, a mando do comerciante portugus Lopo Gonalves Bastos (Giacomelli, 1992). Suas atividades comerciais envolviam vendas de produtos importados e escravos, na loja da Rua da Praia em que era proprietrio, investimentos em aes, imveis e emprstimos em dinheiro, alm de uma sociedade com o seu sogro no ramo de transportes e embarcaes, em uma loja de fazendas na Praa da Alfndega, e at 1839, em um armazm de molhados na Rua da Praia (Symanski, 1998a). Afora os empreendimentos comerciais, Lopo Gonalves adquiriu notoriedade em Porto Alegre, tambm, por sua participao em aes de caridade e pelo exerccio de cargos pblicos36. Por intermdio de fontes materiais e documentais, o que pode ser verificado sobre a ocupao vinculada a Lopo Gonalves e sua esposa, foi de que neste perodo esteve relacionada a atividades produtivas, e, possivelmente, voltada, tambm, para o lazer. O comerciante e sua esposa tinham como domiclio o sobrado, onde estava instalada a loja de fazendas (Symanski, 1998a). Com a morte de Lopo Gonalves, em 1872, seu genro e sobrinho, Joaquim Gonalves Bastos Monteiro recebe a chcara de herana37. Segundo Symanski (1998a: 113) possvel que entre a data da morte de Lopo Gonalves at a realizao de seu inventrio (1878), Joaquim e sua esposa Maria Luisa Gonalves Bastos Monteiro passassem a residir no Solar. A utilizao do Solar

34 35

As informaes relacionadas ao Stio Solar Lopo Gonalves foram extradas de Symanski (1998a). Nos fundos do Solar, depsitos formados pelo descarte de lixo do sculo XIX relacionados aos seus moradores, foram evidenciados e escavados, em 1996, pelo arquelogo Luis Cludio Pereira Symanski. A sua pesquisa de campo e laboratrio no Solar resultou em dissertao de mestrado em Histria, PUCRS, e publicao do livro Espao privado e vida material em Porto Alegre no sculo XIX (1998a). 36 Lopo Gonalves foi vereador de Porto Alegre por duas vezes (mandatos de 1833-1837 e 1845-1849), e suplente de vereador (entre 1849 e 1852), Juiz na Junta de Execuo do Cdigo do Processo Criminal, Juiz Municipal de rfos, Juiz da Paz, tesoureiro do asilo de Santa Leopoldina (1858), e da Obra do Seminrio Episcopal (1866), Prior da Ordem Terceira de Nossa Senhora das Dores (1857-61), e benemrito da Santa Casa de Misericrdia (1851) (Giacomelli, 1992). 37 Inventrio de Lopo Gonalves Bastos e Francisca Lopo Teixeira Bastos, 1 Cartrio Cvel, N 429, M19, E-27 E/C, 1878 (APERGS).

34

como morada por parte do casal, provavelmente, se estendeu at o incio do sculo XX (idem). As duas ocupaes estavam, entre outras razes, articuladas com o processo de expanso da malha urbana. At a dcada de setenta, localizada em rea no urbanizada e prxima do centro da cidade, a chcara, possivelmente, foi utilizada com fins de produo e de lazer. A partir do ltimo quartel do sculo XIX, com a sua incorporao ao processo de urbanizao da cidade e o afastamento de grupos sociais mais abastados da rea central de Porto Alegre, o Solar passou a servir de moradia.

A estratigrafia e o material arqueolgico No decorrer da escavao, que atingiu uma rea total de 22m, se evidenciou a presena das seguintes camadas: I) solo escuro e hmico, com material do sculo XX e XIX, tendo em torno de 25 cm de espessura; II) solo de colorao castanha, com material do sculo XIX, e 40 cm de espessura, aproximadamente; III) solo escuro, argiloso e estril, a partir de 65 cm de profundidade. A amostra do material recuperado na camada II corresponde s ocupaes do grupo domstico relacionado a Lopo Gonalves, entre 1845 e 1872; e a subseqente vinculada a Joaquim Gonalves Bastos Monteiro e esposa, entre 1872 e 1915.

35

A quantificao e anlise do material recuperado, por parte de Symanski (1998a), foram realizadas nas categorias cermica e vtrea. No que diz respeito ao vidro, do total de 497 fragmentos, 194 correspondem a vestgios recuperados na camada II e relacionados ao consumo de bebidas alcolicas. No houve incidncia de fragmentos de grs com estas caractersticas.

36

Tabela 03: Frequncia de peas por categoria funcional

Item

Forma

Cat.

Terminao

Cor

Nmp Nfrg

Garrafa para vinho ou champanhe Garrafa para vinho Garrafa para vinho Garrafa para genebra ou aguardente Garrafa para usque ou cerveja Bebida fermentada Funo original no identificada Copo Copo pequeno Copo Copo Taa para vinho ou champanhe Taa para vinho ou champanhe No identificado

Cilndrica Cilndrica Cilndrica c/pescoo abrutpo Tronco piramidal invertida Cilndrica Cilndrica

Vidro Vidro Faixa de vidro aplicada Vidro Faixa de vidro aplicada Vidro Vidro Vidro Vidro

Verde mdio Verde oliva claro Amarelo Verde oliva escuro mbar Verde escuro

2 1 1 1 1 3 11

2 1 40 3 40 40 35 81

Cilndrico c/paredes facetadas Cilndrico c/paredes facetadas Sem motivos decorativos aparentes Octogonal facetado C/ decorao Sem motivos decorativos aparentes

Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro

Transparente Transparente Transparente Transparente Transparente Transparente

51

1 2 3 3

1 3 4 3 13

Total

35

194

O perodo do consumo de bebidas alcolicas O perodo de ocupao do Solar, indicado pelos grficos de barras (South, 1978) da loua e do vidro, teve como data inicial 1840 e terminal 1892. Em razo da construo do prdio ter sido realizada, possivelmente, entre 1845 e 1855, Symanski (1998) acrescentou mais cinco anos data inicial. O grfico de barras do material vtreo, de forma similar ao das outras unidades domsticas pesquisadas, apontou para um perodo menor de ocupao do stio, entre 1855 e 1892 (Tocchetto: 2004). O Grfico das peas de vidro relacionadas ao consumo de bebidas alcolicas correspondeu ao perodo de 1850 a 1870.

37

Grfico de barras 03 de peas de vidro relacionadas ao consumo de bebidas alcolicas - Stio: 04 - Solar Lopo Gonalves

13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Legenda 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 Terminao com tira de vidro aplicada sem o uso de ferramento para acabamento de topo - at 1840 Molde inteirio (dip mold ) - at 1850 Superfcie do vidro com aparncia de metal martelado - at 1870 Molde de 2 ou 3 partes - at 1880 Molde tripo, e superfcie do vidro com aparncia de metal martelado - 1810 a 1870 Ferramenta de acabamento de topo (lipping tool ) - 1840 a 1920 Instrumento de sustentao (snap case) - 1850 a 1920 Superfcie do vidro com aparncia de metal martelado, e instrumento de sustentao (snap case ) - 1850 a 1870 Demanda crescente por vidro transparente - a partir de 1850 Inscrio em painis (plate molds ) - a partir de 1860 Selo comemorativo do casamento entre o principe de Gales Albert com a princesa da Dinamarca Alexandra em 1863 Produo de terminaes sem emendas ou marcas - a partir de 1870 Molde de tornear (turn mold )- 1870 a 1930

38

1.2.4 Stio Chcara da Figueira (RS.JA-12)

O contexto histrico-espacial Situado no sop do Morro Santana, na divisa entre os municpios de Porto Alegre e Viamo, o stio Chcara da Figueira38 tem como endereo atual o residencial Trs Figueiras. Os trabalhos de prospeco na regio encontraram na superfcie do terreno, material arqueolgico do sculo XIX e indcios de uma edificao de pequenas dimenses39. No decorrer das tradagens, das coletas superficiais e da escavao do interior da estrutura, dois tipos de refugos foram identificados no local. Provenientes de um processo de abandono, restos materiais foram encontrados na parte interna da casa, caracterizando um refugo de fato, e no entorno da estrutura foi evidenciado um refugo secundrio (Tocchetto: 2004). A investigao em fontes documentais primrias no conseguiu alcanar o perodo de ocupao verificado na anlise das evidncias materiais recuperadas40. A data mais remota de transferncia da propriedade refere-se ao ano de 191841. O certo que at os anos 40 do sculo XX, nas reas prximas do Morro Santana havia o predomnio de chcaras voltadas para a produo agropecuria (idem). Alm disso, vestgios materiais vinculados ao trabalho no campo e a objetos domsticos de uso cotidiano, encontrados no decorrer das investigaes arqueolgicas, indicam uma ocupao do local com fins produtivos e de moradia (ibidem).

A estratigrafia e o material arqueolgico Ao longo das intervenes, que alcanaram uma rea total de 3.700 m, se evidenciou a presena das seguintes camadas arqueolgicas: I) solo de colorao marrom escura, hmico, contendo ossos, objetos metlicos e material construtivo do sculo XX, de 2 a 5 cm de espessura, aproximadamente; II) solo, arenoso, de colorao marrom claro, com presena de material arqueolgico, de 10 a 30 cm de espessura. A amostra do material evidenciado nesta camada parece estar vinculada com a ocupao da casa; III) Solo de colorao avermelhada, apresentando na sua extremidade inicial38 39

As informaes sobre o stio Chcara da Figueira foram extradas de Tocchetto (2004). Os trabalhos de prospeco no Morro Santana foram realizados pelos arquelogos Jos Alberione dos Reis e Cludio B. Carle. A investigao arqueolgica estava inserida no projeto de localizao da sede da primeira sesmaria de Porto Alegre promovido pela Secretaria Municipal da Cultura/PMPA. 40 A pesquisa na documentao primria foi efetuada pela estagiria Mrcia Costa do Museu Joaquim Jos Felizardo, em 1999. 41 Escritura de compra, 01/04/1918, Livro 3-H, fls.362, n.29.335, 1 Zona, Porto Alegre.

39

uma granulao mais solta do que a composio argilosa e compacta evidenciada com uma profundidade maior. Nesta camada houve pouca incidncia de material arqueolgico, e em reas prximas da edificao pareceu estar perturbada por ao antrpica.

Fonte: Tocchetto (2004), edio: Paulo Alexandre da Graa Santos

O material recuperado nas intervenes arqueolgicas atingiu o total de 3.287 fragmentos, sendo que 757 (23%) correspondem categoria cermica, 567 (17,25%) vtrea e 490 (14,91) metlica42. Do total de fragmentos de vidro, 71, e no caso do grs, 2, correspondem a vestgios recuperados na camada II e relacionados ao consumo de bebidas alcolicas.

42

O trabalho de anlise no laboratrio foi efetuado pela arqueloga Fernanda Tocchetto e pelo estagirio Diogo Menezes da Costa, Museu Joaquim Jos Felizardo/SMC.

40

Tabela 04: Frequncia de peas por categoria funcional

Item

Forma

Categoria Terminao

Cor

Nmp Nfrg

Garrafa para bebida fermentada Garrafa para bebida alcolica Garrafa para genebra ou aguardente Garrafa para genebra Copo Copo pequeno

Cilndrica com pescoo abrupto Cilndrica Tronco piramidal invertida Cilndrica Cilndrico c/paredes facetadas Octogonal com paredes facetadas

Vidro Vidro Vidro Grs Vidro Vidro

Verde oliva mbar Verde oliva escuro Marrom avermelhado Transparente Transparente Total

3 1 1 2 11

27 9 33 2 11

9

73

41

O perodo do consumo de bebidas alcolicas Os grficos de barras (South, 1978), relacionados aos dados obtidos da anlise da loua e do vidro, indicam um perodo de ocupao mais intensa do stio entre 1828 e 1899. Procurando estabelecer um perodo de ocupao mais apurado, Tocchetto (2004:147) defende a delimitao de um intervalo entre 1840/50 e 1885, baseando-se na grande incidncia, entre os vestgios recuperados na camada II, de fragmentos de loua, vidro e elementos construtivos da casa que remontam segunda metade do sculo XIX, e uma moeda de 1885. Por outro lado, os fragmentos de loua e vidro, que apontam para um perodo posterior a 1885, foram encontrados, na sua maioria, na parte externa da casa, indicando a possibilidade de serem originrios de outras atividades ou locais (idem). Em consonncia com a proposta deste intervalo de tempo, o grfico de barras correspondente aos fragmentos de vidro relacionados ao consumo de bebidas alcolicas indica um perodo de 1850 a 1870.

42

Grfico de barras 04 de peas de vidro relacionadas ao consumo de bebidas alcolicas - Stio: 12 - Chcara da Figueira

4 3 2 1

Legenda 1 2 3 4 Instrumento de sustentao (snape case) - 1850 a 1920 Demanda crescente por vidro transparente - a partir de 1850 Molde de 2 partes com inscrio em painis (plate molds ) - a partir de 1860 Molde de tornear (turn mold )- 1870 a 1930

43

1.3. Lixeiras Coletivas

1.3.1 Stio Mercado Pblico (RS.JA-05)

O contexto histrico-espacial Localizado no largo Glnio Peres, em rea central de Porto Alegre, o Mercado Pblico43 tem como demarcadores a Av. Borges de Medeiros a sudoeste, a Praa Parob a nordeste, a Av. Jlio de Castilhos a noroeste e o prprio largo a sudeste. Tombada em 1979, pelo Conselho do Patrimnio Histrico e Cultural do Municpio de Porto Alegre, a edificao em estilo neoclssico teve as suas instalaes reformadas e reestruturadas no ano de 1994. Em razo do rebaixamento do piso e da implementao de cobertura metlica e escadas rolantes no prdio, foi requisitado equipe do Museu Joaquim Jos Felizardo que fizesse, ao longo dessas intervenes44, o acompanhamento e salvamento arqueolgico45. A construo do Mercado Pblico Central fez parte de um processo de expanso urbana, iniciado em meados do sculo XIX na cidade. Com um expressivo desenvolvimento de sua economia, impulsionado principalmente pelo comrcio com as colnias alems, Porto Alegre comeava a ampliar, de maneira significativa, a sua malha urbana. Edificaes imponentes e melhor aparelhadas foram construdas na rea central, no lugar dos prdios ou construes j existentes ou, ainda, em terrenos resultantes de aterro46. Por outro lado, segundo a lgica das autoridades locais, o rpido crescimento comercial de gneros alimentcios exigia uma infra-estrutura, que propiciasse uma maior regulamentao e fiscalizao dessas atividades.

Os dados relacionados sobre o Stio Mercado Pblico Central foram extrados de Tocchetto (1995). O trabalho dos pesquisadores envolveu uma rea de 4.705 m. As sondagens mais profundas, no decorrer das intervenes, atingiram 3,30 metros de profundidade, aproximadamente. 45 O acompanhamento arqueolgico, entre 1994 e 1996, foi realizado pela equipe formada pelos arquelogos Fernanda Tocchetto, Cludio Baptista Carle, pela pesquisadora com bolsa de aperfeioamento da FAPERGS ngela Cappelletti, e os bolsistas de iniciao da FAPERGS Alberto Tavares de Oliveira e Srgio Ozrio. A partir da quarta e ltima etapa das obras no Mercado Pblico Central, entre abril e julho de 1996, os trabalhos foram coordenados pela arqueloga Beatriz dos Santos Landa. 46 Neste perodo, alm do Mercado Pblico, so exemplos destas transformaes na cidade: a demolio e reconstruo da Casa da Cmara, e da Beneficncia Portuguesa (Souza, 1997).44

43

44

Os trabalhos relativos construo do Mercado Pblico comearam em 1864, na antiga Praia do Paraso, aps a finalizao do aterro do local iniciado em 1845. A sua inaugurao ocorreu em 1870, no mesmo ano em que o antigo Mercado47 foi demolido. Do incio das atividades at a sua reestruturao em 1994 houve algumas modificaes estruturais no prdio. Dentre estas alteraes esto: o calamento da parte interna do Mercado em 1871; a arborizao do interior do prdio em 1873; a retirada das rvores e a construo de 24 bancas de madeira em 1887; a edificao de um segundo piso e substituio das antigas bancas por chals construdos em cimento e ferro, entre 1912 e 1913; e, finalmente, nos anos 40 do sculo XX a elevao do piso no ptio interno do prdio (Franco: 1998).

A estratigrafia e o material arqueolgico Durante as obras de reestruturao e reforma foi possvel observar uma estratigrafia composta, basicamente, pelas seguintes camadas arqueolgicas: I) solo formado pela elevao do piso no ptio interno na dcada de 40 do sculo XX, com a presena de material do perodo em questo; II) solo de colorao clara, constitudo de saibro, com pequena incidncia de material arqueolgico oitocentista, se comparada com a camada III. A camada II est relacionada ao aterro realizado a partir de 1845 para construo do prdio; III) solo de colorao escura, mido, com grande presena de material arqueolgico oitocentista e restos orgnicos, de 90 a 160 cm de profundidade, dependendo da localizao das sondagens, e com uma espessura variando de 10 a 40 cm. A amostra do material recuperado corresponde, na sua maioria, s prticas de descarte do lixo nas margens do Guaba na Praia do Paraso e poucas peas esto relacionadas ao aterro do ptio interno do Mercado efetuado em 1871.

Construdo entre 1842 e 1844, o antigo mercado se localizava, na poca, na Praa do Paraso, mais tarde denominada Praa do Mercado, na rea onde atualmente est a parte ajardinada da Praa 15 de Novembro (Franco: 1998). Foi o primeiro Mercado Pblico da cidade.

47

45

O material arqueolgico recuperado atingiu, entre objetos inteiros e fragmentos, a soma de 9.681 peas48, sendo que do total das peas de vidro 512, e no caso do grs 246 fragmentos, correspondem aos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas.

48

A anlise dos fragmentos de faiana fina evidenciados nos stios Mercado Publico Central, Praa Rui Barbosa, e Solar Lopo Gonalves realizada pelos pesquisadores Fernanda Bordin Tocchetto, Luis Cludio Pereira Symanski, Srgio Rovan Ozrio, Alberto Tavares Duarte de Oliveira e ngela Maria Cappelletti resultou, em 2001, na publicao A faiana fina em Porto Alegre: vestgios arqueolgicos de uma cidade, UE/SMC/PMPA.

46

Tabela 05: Frequncia de peas por categoria funcional

Item

Forma

Categoria MaterialVidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro vidro Vidro Vidro Vidro Vidro

Terminao

Cor

Nmp Nfrg

Garrafa para vinho, cerveja ou conhaque Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho Garrafa para vinho Garrafa para usque Garrafa para genebra ou aguardente Garrafa para genebra ou aguardente Garrafa para bebida alcolica Garrafa para bebida alcolica Garrafa para bebida fermentada Garrafa para vinho, champanhe Garrafa para vinho, champanhe Garrafa para champanhe Contedo no identificado Garrafa para genebra Garrafa para genebra Garrafa para cerveja Garrafa para cerveja Garrafo Garrafo Copo Copo Clice para licor, ou vinho do Porto Clice para licor, ou vinho do Porto No identificado

Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica Poligonal Tronco piramidal invertida Tronco piramidal invertida Cilndrica Cilndrica Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual

2 anis, superior em forma de cone, inferior arredondado 2 anis em forma de cone 2 anis em forma de cone 2 anis superior reto, inferior em forma de cone Borda expandida c/2 anis arredondados 2 anis em forma de cone 2 anis em forma de cone 2 anis em forma de cone 2 anis superior reto, inferior em forma de cone 2 anis superior reto, inferior em forma de cone Faixa de vidro aplicada Faixa de vidro aplicada

Verde oliva escuro Verde escuro Verde oliva escuro Verde escuro Verde escuro Verde escuro Verde oliva escuro Verde oliva claro Verde oliva escuro Verde escuro Verde oliva claro Verde oliva claro mbar

1 9 1 1 1 7 1 1 1 2 1 1 1 1 2 4 1 23 1 1 1 5

3 22 2 2 1 22 2 2 2 5 2 5 1 7 22 4 1 54 2 6 1 5 39 207 2 1 1 10 2 1 1 4 317

Anel com dobragem externa Anel com dobragem externa

Verde escuro Verde oliva escuro Verde oliva escuro Verde oliva claro Verde oliva escuro Verde oliva escuro Verde oliva claro Verde oliva claro

Cilndrica Cilndrica Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrico c/paredes facetadas Cilndrico c/paredes facetadas Painis de corte vertical, estilo "flute" Haste com degrau central

Grs Grs Vidro Grs Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro

Anel estreito em forma de cone Anel estreito em forma de cone Anel arredondado (blob top ) Anel em forma de cone Faixa de vidro aplicada Faixa de vidro aplicada

Marrom claro Marrom avermelhado Verde oliva claro Bege Verde oliva claro Verde escuro Transparente Transparente Transparente Transparente

8 10 1 1 1 1 2 1 1 2

Total

95

758

47

O perodo de descarte dos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas Existem outros indicadores que podem ser utilizados para delimitao do perodo de formao do registro arqueolgico, alm da presena ou ausncia de determinados artefatos na amostra do stio. As informaes sobre a construo de obras ou prdios no local podem ser um elemento importante para a definio da data final da formao do stio. o caso da construo da Praa Rui Barbosa, e dos prdios do Mercado Pblico e Pao Municipal. A delimitao do perodo de encobrimento dos registros arqueolgicos, por intermdio das obras de edificao ou remodelao nos locais, possibilita a designao de uma data absoluta do tipo no depois de. J para a definio do perodo inicial o indicador mais preciso, como nos outros stios, corresponde, em grande parte, a data de fabricao do artefato mais antigo recuperado no local49. O perodo mais intenso indicado pelo grfico de barras (South, 1978), atravs da anlise dos artefatos de vidro e grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas, teve como data inicial 1830 e terminal 187050. O intervalo de tempo obtido pelo grfico est de acordo com as informaes relacionadas s prticas de descarte de lixo na antiga Praia do Paraso, o aterro do local, e o calamento da parte interna do Mercado Pblico em 1871. No entanto, de todos os grficos de barras dos fragmentos de vidro e grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas dos stios pesquisados, o elaborado com material do Mercado Pblico o nico em que a data inicial abarca quase a totalidade do segundo quartel do sculo XIX, perodo anterior ao consumo e utilizao de forma mais intensa de artigos de vidro no Brasil51.

Com relao definio do perodo de formao do registro arqueolgico, Deetz (1977: 16) utiliza os termos terminus post quem para a data mais remota adquirida para o comeo da formao do stio, e terminus ante quem para o marco temporal obtido para o final do depsito. 50 Os grficos de barras (South, 1978) relacionados aos dados obtidos da anlise da loua nos stios Mercado Publico Central, Pao Municipal e Praa Rui Barbosa no foram realizados. 51 As dessemelhanas entre os perodos do consumo de bebidas alcolicas dos stios correspondentes s lixeiras coletivas sero tratadas no capitulo 4.

49

48

Grfico de barras 05 de peas de vidro e grs relacionadas ao consumo de bebidas alcolicas Stio: 05 - Stio Mercado Pblico Central22 21 20 19 18 17 16 15 14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Legenda1 Terminao flamejada - at 1840 2 Terminao com tira de vidro sem o uso de ferramentas lipping tool - at 1840 3 Molde inteirio (dip mold ) - at 1850 4 Pontel de vidro - at 1870 5 Pontel de vidro e areia - at 1870 6 Pontel de tubo - at 1870 7 Superfcie do vidro com aparncia de metal martelado - at 1870 8 Molde de 3 partes - 1810 a 1880 9 Molde de 2 ou 3 partes - at 1880 10 Molde Ricketts - 1820 ao incio do sculo XX 11 Painis no estilo pregueado "flute" - a partir de 1830 12 Ferramenta de acabamento de topo (lipping tool ) - 1840 a 1920 13 Instrumento de sustentao (snap case) - 1850 a 1920 14 Haste de clice com degrau central transparente - 1850 a 1870 15 Demanda crescente por vidro transparente - a partir de 1850 16 Utilizao do centro da base de garrafa de vidro para inscries - a partir de 1850 17 Inscrio em forma de panis - a partir de 1860 18 J.T. Gayen Altona, Fabricante de usque, Schiedam, Holanda - a partir de 1860 19 Inscrio "H R", Hormann Rohrbacher, Philadelphia - a partir de 1860 a 1904 20 Fabricante Henry Kennedy/Barrowfiels Pottery/Glasgow, Esccia, 1866 a 1929 21 Molde de tornear (turn molde ) - 1870 a 1930 22 Produo de terminaes sem emendas ou marcas - a partir de 1870

49

1.3.2 Stio Praa Rui Barbosa (RS.JA-06)

O contexto histrico-espacial A Praa Rui Barbosa est localizada no centro de Porto Alegre, entre a rua Voluntrios da Ptria e Av. Julio de Castilhos, tendo a sudoeste a rua Dr. Flores como limite52. Em virtude da implantao, na praa, de fundaes para novos terminais de nibus e instalao de esgoto pluvial, foi realizado, no ms de junho de 1995, o trabalho de salvamento arqueolgico pela equipe do Museu Joaquim Jos Felizardo53. Neste perodo a rea trabalhada pelos pesquisadores atingiu um total de 124m, composta por uma trincheira de 91m x 1m, e 11 buracos de 1,5m x 2m para sapatas. O aterro do local, onde hoje a Praa Rui Barbosa, foi efetuado em 1879 com pores de terra retiradas de reas prximas, como a Praa da Conceio e ruas So Rafael e Pinto Bandeira. A nova rea transformou-se em praa pblica, tendo como funo principal o parqueamento de carretas dos abastecedores do Mercado Pblico. Antes mesmo do aterro, a margem do lago, prxima ao local, tinha outras finalidades. Com o Caminho Novo, atual Voluntrios da Ptria, aberto em 1806, o lugar passou a fazer parte da conexo entre o centro urbano e as quintas situadas beira do lago. Entre 1836 e 1840, durante o cerco farroupilha, foi instalado, temporariamente na regio, um matadouro pblico. No entanto, o uso mais duradouro deste espao, no sculo XIX, foi por atividades ligadas ao conserto e construes de embarcaes. O local, em 1839, j era denominado de Praa ou Praia do Estaleiro. Apenas em 1879, com uma nova destinao, que o lugar passou a ser chamado de Praa das Carretas. No entanto, a utilizao de parte da rea, por parte de estaleiros, persistiu pelo menos at 1887.

52 53

As informaes sobre o stio Praa Rui Barbosa foram extradas de Tocchetto (1995). O salvamento e acompanhamento arqueolgico foi efetuado pelos arquelogos Fernanda Tocchetto, Luis Cludio Symanski, e Cludio de Carle, pelos bolsistas da FAPERGS ngela Maria Cappelletti, Alberto T. Duarte de Oliveira, Srgio Rovan Ozrio, e pela estagiria do Museu Ana Letcia de A. Vignol.

50

A estratigrafia e o material arqueolgico O processo de formao do stio envolveu uma grande gama de impactos no solo. O local passou, do final do sculo XIX at a reestruturao em 1995, por vrias alteraes, ocasionadas por seguidas elevaes de nvel do terreno e ampliaes em direo ao lago. Uma grande variedade na composio do solo foi constatada no transcurso dos trabalhos de salvamento arqueolgico. O stio apresentou uma estratigrafia extremamente complexa. Diversas composies de camadas de aterro foram evidenciadas. Mesmo diante de tais circunstncias, foi possvel verificar a configurao do terreno anterior execuo do aterro e a presena de uma camada mida, que corresponderia ao material descartado como lixo e atirado s margens do lago.

51

Fonte: Tocchetto (1995). Edio: Paulo Alexandre da Graa Santos

52

Tabela 06: Frequncia de peas por categoria funcional

Item

Forma

Categoria Material

Terminao

Cor

Nmp Nfrg

Garrafa para bebida fermentada Garrafa para bebida fermentada Garrafa para bebida fermentada Garrafa para vinho Garrafa para vinho Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho, cerveja ou conhaque Garrafa para vinho, cerveja ou conhaque Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho ou cerveja Garrafa para vinho Garrafa para vinho Garrafa para genebra ou aguardente Funo original no identificada Garrafa para genebra Garrafa para cerveja Garrafa para cerveja Copo pequeno Clice para licor, ou vinho do Porto Taa ou clice Taa ou clice No identificado

Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo gradual Cilndrica c/pescoo gradual Tronco piramidal invertida

Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro Vidro 2 anis superior reto, inferior arredondado Faixa de vidro aplicada 2 anis em forma de cone 2 anis em forma de cone 2 anis em forma de cone 2 anis superior reto, inferior em forma de cone 2 anis superior reto, inferior em forma de cone 2 anis superior reto, inferior arredondado 2 anis superior reto, inferior arredondado 2 anis em forma de cone 2 anis superior reto, inferior em forma de cone Faixa de vidro aplicada Faixa de vidro aplicada Faixa de vidro aplicada

Verde oliva escuro Verde oliva claro Verde escuro Verde escuro Verde oliva claro Verde escuro mbar Verde oliva escuro Verde oliva escuro mbar Verde oliva claro Verde oliva escuro Verde escuro mbar Verde oliva claro Verde oliva escuro Verde oliva escuro

6 2 1 2 5 1 1 2 1 1 1 2 3 1 2 1 1 6

7 2 1 6 10 1 2 8 2 2 2 6 6 3 6 4 2 6 13 8 3 2 1 4 5 348

Cilndrica Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrica c/pescoo abrupto Cilndrico c/paredes facetadas Copa sem decorao

Grs Grs Grs Vidro Vidro Vidro 2 anis superior cone, inferior arredondado

Marrom avermelhado Bege Bege e marrom claro Transparente Transparente Transparente Transparente

2 2 1 1 1 3 3

Copa facetada

Vidro

Total

52

460

53

O material arqueolgico proveniente das atividades de salvamento arqueolgico na Praa Rui Barbosa atingiu a soma de 4.423 fragmentos ou objetos, sendo que, deste total, 2.174 peas (48,02%) correspondem categoria cermica e 890 (20,12%) vtrea. Do conjunto dos vestgios de vidro, 436, e no caso do grs, 24, correspondem aos fragmentos ou peas relacionados ao consumo de bebidas alcolicas, recuperados nas camadas de aterro e lixeira coletiva.

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O perodo de descarte dos vestgios relacionados ao consumo de bebidas alcolicas O grfico de barras (South, 1978), correspondente s informaes obtidas da anlise dos fragmentos de vidro e grs relacionados ao consumo de bebidas alcolicas, indica um perodo entre 1848 e 1870. A data inicial do grfico aponta para uma intensificao do descarte dos vestgios correspondentes ao consumo de bebidas alcolicas, num momento posterior ao do material recuperado na rea do mercado pblico e Pao Municipal.

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Grfico de barras 06 de peas de vidro e grs relacionadas ao consumo de bebidas alcolicas Stio: 06 - Praa Rui Barbosa14 13 12 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

Legenda 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 Terminao com tira de vidro aplicada sem o uso de ferramentas para finalizao de topo (lipping tool )- at 1840 Pontel de vidro - at 1870 Superfcie do vidro com aparncia de metal martelado - at 1870 Molde de 2 ou 3 partes - at 1880 Molde inteirio ou triplo - at 1880 Ferramenta de acabamento de topo (lipping tool ) - 1840 a 1920 Inscrio "G & H", fabricante Gray & Hemingray, Cincinnati, Ohio, ou Covington, Ky. - 1848 a 1864 Utilizao do centro da base de garrafa de vidro para inscrio comercial - a partir de 1850 Demanda crescente por vidro transparente - a partir de 1850 Superfcie do vidro com aparncia de metal martelado e uso de instrumento de sustentao - 1850 a 1870 Instrumento de sustentao (snap case) - 1850 a 1920 Inscrio "Dowlton Lambeth", Inglaterra - 1858 a 1916 Inscrio em painis (plate molds ) - a partir de 1860 Molde de tornear (turn mold ) - 1870 a 1930

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1.3.3 Stio Pao Municipal (RS.JA-20)

O contexto histrico-e