Discurso de despedida do internato de medicina

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Discurso para o Hospital Geral de Fortaleza em agradecimento pela acolhida dos internos de medicina da turma de 2003.1 da Universidade Federal do Ceará [Com os erros da coloquialidade. Transcrição de uma gravação do dia] Primeiro de tudo, é uma grande emoção tá aqui, né? Primeiro, porque o público é grande, mas não só em extensão em profundidade também, né? As pessoas são muito especiais, nesses dois anos que a gente passa. Eu recebi a difícil missão de conseguir falar em mais ou menos cinco minutos, emoções de dois anos. Então, é difícil, mas a gente tenta. Eu queria, então, inicialmente convidar vocês a fazer uma reflexão comigo, como é de praxe. É... A nossa vida, e isso... isso não é... isso não é fechado, ela basicamente passa por uma polêmica muito gostosa, que é... a polêmica dos momentos de graça e os momentos de reconstrução da nossa história – eu explico, né? Os momentos de graça, o filósofo diz, é mais ou menos quando ele tá com a filha dele e ele mergulha num mar cristalino, límpido, lindo, a menina dos olhos dele e no mar que ele sempre sonhou. Esse momento de graça, ele parece um momento de suspensão, onde ele vê toda a beleza que o mundo pode proporcionar pra ele e ele vivendo com a pessoa que ele mais ama. O momento de reconstrução é quando... a gente vê que a natureza não é tão bonita assim porque às vezes a gente destrói. Eu não tenho filha, nem nunca tive um momento de graça dentro do mar, mas eu posso dar o meu momento de graça e que pode coincidir com muito do de vocês. Que é o quê? Que é, por exemplo, quando você dá o seu primeiro beijo, de amor, lá no Dragão do Mar. E aí você tem aquele momento sublime de suspensão, como se nada mais importasse, nem futuro, nem passado, só importa o momento presente. Só que, de repente... de repente vem um menino, todo sujo, todo maltrapilho, de olhos secos e pede uma esmola e acaba com aquele momento. Você poderia odiá-lo, mas como odiar uma coisa que o mundo tem? E naquele momento você passa a querer transformar o mundo, então você sai do momento de graça, onde a única coisa que importa é o momento presente e você passa ao momento de querer modificar a história. Isso acontece tanto no momento do beijo, quanto no momento da... do mar, quanto, por exemplo, no momento do amor pelo o que aquela pessoa tem, pela vida que aquela pessoa tem. E se a gente está aqui nesse hospital, é porque a gente acredita que nós podemos modificar uma história, que a história da doença. Mas, ao mesmo tempo em que a gente pode modificar essa história, a gente não deixa de ter momentos de graça, porque embora a natureza aqui do HGF sempre foi muito sofrida, a gente sempre encontrou aqueles momentos que a gente queria viver aquele momento presente, com os nossos residentes, com os internos amigos que a gente sempre encontrava mais e mais, com os staffs, às vezes mais severos, porque tem que ter o momento de reconstrução, mas às vezes mais amenos porque sabem que o momento de graça é essencial à vida. E uma coisa não dá pra resumir a outra. Quer dizer, não dá pra viver sempre em momento de graça, mas também não dá pra viver sempre triste porque o mundo é do jeito que é. Então, as duas coisas na vida ficam se intercalando.

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Discurso proferido na ocasião da despedida dos internos de medicina do Hospital Geral de Fortaleza ao ano de 2008.

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Discurso para o Hospital Geral de Fortaleza em agradecimento pela acolhida dos internos de medicina da turma de 2003.1 da Universidade Federal do Ceará [Com os erros da coloquialidade. Transcrição de uma gravação do dia] Primeiro de tudo, é uma grande emoção tá aqui, né? Primeiro, porque o público é grande, mas não só em extensão em profundidade também, né? As pessoas são muito especiais, nesses dois anos que a gente passa. Eu recebi a difícil missão de conseguir falar em mais ou menos cinco minutos, emoções de dois anos. Então, é difícil, mas a gente tenta. Eu queria, então, inicialmente convidar vocês a fazer uma reflexão comigo, como é de praxe. É... A nossa vida, e isso... isso não é... isso não é fechado, ela basicamente passa por uma polêmica muito gostosa, que é... a polêmica dos momentos de graça e os momentos de reconstrução da nossa história – eu explico, né? Os momentos de graça, o filósofo diz, é mais ou menos quando ele tá com a filha dele e ele mergulha num mar cristalino, límpido, lindo, a menina dos olhos dele e no mar que ele sempre sonhou. Esse momento de graça, ele parece um momento de suspensão, onde ele vê toda a beleza que o mundo pode proporcionar pra ele e ele vivendo com a pessoa que ele mais ama. O momento de reconstrução é quando... a gente vê que a natureza não é tão bonita assim porque às vezes a gente destrói. Eu não tenho filha, nem nunca tive um momento de graça dentro do mar, mas eu posso dar o meu momento de graça e que pode coincidir com muito do de vocês. Que é o quê? Que é, por exemplo, quando você dá o seu primeiro beijo, de amor, lá no Dragão do Mar. E aí você tem aquele momento sublime de suspensão, como se nada mais importasse, nem futuro, nem passado, só importa o momento presente. Só que, de repente... de repente vem um menino, todo sujo, todo maltrapilho, de olhos secos e pede uma esmola e acaba com aquele momento. Você poderia odiá-lo, mas como odiar uma coisa que o mundo tem? E naquele momento você passa a querer transformar o mundo, então você sai do momento de graça, onde a única coisa que importa é o momento presente e você passa ao momento de querer modificar a história. Isso acontece tanto no momento do beijo, quanto no momento da... do mar, quanto, por exemplo, no momento do amor pelo o que aquela pessoa tem, pela vida que aquela pessoa tem. E se a gente está aqui nesse hospital, é porque a gente acredita que nós podemos modificar uma história, que a história da doença. Mas, ao mesmo tempo em que a gente pode modificar essa história, a gente não deixa de ter momentos de graça, porque embora a natureza aqui do HGF sempre foi muito sofrida, a gente sempre encontrou aqueles momentos que a gente queria viver aquele momento presente, com os nossos residentes, com os internos amigos que a gente sempre encontrava mais e mais, com os staffs, às vezes mais severos, porque tem que ter o momento de reconstrução, mas às vezes mais amenos porque sabem que o momento de graça é essencial à vida. E uma coisa não dá pra resumir a outra. Quer dizer, não dá pra viver sempre em momento de graça, mas também não dá pra viver sempre triste porque o mundo é do jeito que é. Então, as duas coisas na vida ficam se intercalando.

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E é isso o que o HGF representou pra gente nesses dois anos. Ele teve muito momento de graça, momento de riso, momentos que a gente queria fotografar, e fotografamos, momento que a gente quis parar no tempo, e paramos, pra conseguir viver; momentos que vão ficar na nossa memória pra sempre. Vocês formaram a gente médicos e médicos com todas essas lembranças, que a gente não quer perder. Mas, também tinha momento de sofrimento, tinha momento de perda. Tinha momento de... de desespero, de desânimo. Todo mundo que passou na emergência tem uma amostra disso. São esses momentos em que a gente tenta... que a gente converte nossa raiva em energia pra conseguir transformar o mundo, né? A nossa indignação para conseguir fazer este mundo melhor. E é por isso, é por esses momentos que vocês proporcionaram pra gente, porque esses momentos não dá pra ser vivido só, que nós agradecemos a todos vocês que estão aqui. Muitíssimo obrigado, de coração! (Aplausos) [A partir de agora, extrapolando os cinco minutos concedidos, decido fazer um discurso pessoal, porque era o único momento que eu teria de fala para fazer minha voz chegar bem longe onde eu queria, de forma bem intensa. Me permiti fazer um discurso pessoal, porque todos compartilham dessa espécie de amor. Faz parte da nossa condição humana amar singularmente alguém e não outro. Essa parte do discurso, então, não deixa de ser em nome da turma.] Essa formatura, ela não poderia ter acontecido se não tivesse existido na minha vida uma pessoa que trabalhou contra o mundo e até no movimento dele para me proporcionar vários instantes de graça e possibilidades de eu ter instantes de graça, instantes sublimes, em que eu não precisava me preocupar com o mundo. Essa pessoa não está aqui, fisicamente. Ela faleceu quando eu descobri, entrando no internato, que eu queria ser realmente médico, porque até então eu tinha dúvidas. Então, ele entregou o meu diploma antes. Essa pessoa é meu pai... (Aplausos) Eu não sou médium, então, eu não estou vendo ele aqui fisicamente, mas eu sou filho e eu sinto ele. E... vocês todos devem ter passado por isso, porque nós lidamos com uma profissão de perda... Às vezes as pessoas me perguntam por que eu não choro. Já faz um ano e meio que ele faleceu. É... eu não choro um choro triste, e também um choro constante. Mas, eu também não posso chorar, por causa da presença, constante, que ele existe em meu peito. Então, por este momento aqui e por tudo que vai acontecer, isso também é pra você, Meu Pai... (Aplausos e lágrimas)