Direcao Da Cura

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FUNDAMENTOS DA DIREÇÃO DA CURA PSICANALÍTICA:da angústia ao desejo na clínica da histeria e da neurose obsessiva 1 Publicado em Cadernos do Tempo Psicanalítico número 1, Ed. SPID, R.J., pags. 121-132, 1995 Introdução Para introduzir, quero chamar a atenção para a escolha do eixo dessa discussão. Privilegio a angústia em lugar da tradicional referência à transferência na abordagem à nossa questão. Passo a justificar minha escolha. Em primeiro lugar, nessa mudança de eixo rata-se de um exercício de rigor teórico: desenvolver as conseqüências para uma clínica psicanalítica da releitura por Lacan da obra freudiana, a partir do privilégio que concedeu então ao Além do Princípio do Prazer. Trato de destacar aquilo que são, de acordo com a análise do pensamento de Lacan que venho procedendo, as implicações éticas, estéticas e políticas da referência privilegiada à pulsão de morte, no que concerne aos princípios do poder da cura psicanalítica. O reconhecimento do caráter traumático, disruptivo e compulsivo das pulsões 2 , conduz Freud no sentido de um aprofundamento do mal-estar e da angústia na cultura. Esse tema, já bastante elaborado em 1908 3 , recebe novo impulso ao final da obra, quando Freud expressa explicitamente sua convicção acerca das relações entre a civilização e a renúncia pulsional, bem como com o masoquismo. As reflexões freudianas desse período nos desestimulam a procurar no cerne do funcionamento psíquico humano alguma “determinação da criação no sentido de que o homem seja feliz4 . Entre as fontes de mal-estar que acossam a existência humana, a mais difícil de aceitar, de inscrever psiquicamente, é o outro, o próximo. Reconhecemos aí as marcas da filosofia política de Hobbes. O outro é fonte de angústia (medo), porque o homem é o lobo do homem. O “próximo” não é o “semelhante”, o igual perante a lei. Daí a profunda estranheza que Freud manifesta quanto ao mandamento “Amai ao próximo com a ti mesmo”. Mandamento aberrante, exorbitante, que impõe a renúncia do gozo que é servir-se, explorar, utilizar o outro em benefício próprio. O gozo implica o mal do próximo. A lei impõe a renúncia ao gozo. Serve à economia das trocas simbólicas, trocas reguladas por uma ordem que assegura um prazer menor, mais certo, mais seguro, mais útil, ao preço de uma traição fundamental do gozo próprio. Os bens simbólicos são bens trocáveis, cujo valor é relativo. Aferimos seu valor pela sua representatividade com relação a um bem necessariamente excluído – radicalmente foracluído e por isso mesmo singularmente único – da cadeia de substitutos. Verifica-se o valor simbólico como valor sempre relativo a outros bens. Vemos assim que é o desejo do Outro que faz a lei daquilo que o sujeito deverá desejar. A proibição do gozo é seu perpétuo incitamento. A morte do gozo, a renúncia a essa “Coisa” (Ding) que o garantiria é a condição do advento do desejo e das “coisas” (Sache) que por meio dele somos levados a produzir, criar, inventar. Conseqüentemente, a insatisfação do desejo deriva da interpretação histérica da lei

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  • FUNDAMENTOS DA DIREO DA CURA PSICANALTICA:da angstia ao desejo na clnica da histeria e da neurose obsessiva1

    Publicado em Cadernos do Tempo Psicanaltico nmero 1, Ed. SPID, R.J., pags. 121-132, 1995

    Introduo

    Para introduzir, quero chamar a ateno para a escolha do eixo dessa discusso. Privilegio a angstia em lugar da tradicional referncia transferncia na abordagem nossa questo. Passo a justificar minha escolha. Em primeiro lugar, nessa mudana de eixo rata-se de um exerccio de rigor terico: desenvolver as conseqncias para uma clnica psicanaltica da releitura por Lacan da obra freudiana, a partir do privilgio que concedeu ento ao Alm do Princpio do Prazer. Trato de destacar aquilo que so, de acordo com a anlise do pensamento de Lacan que venho procedendo, as implicaes ticas, estticas e polticas da referncia privilegiada pulso de morte, no que concerne aos princpios do poder da cura psicanaltica.

    O reconhecimento do carter traumtico, disruptivo e compulsivo das pulses2, conduz Freud no sentido de um aprofundamento do mal-estar e da angstia na cultura. Esse tema, j bastante elaborado em 19083, recebe novo impulso ao final da obra, quando Freud expressa explicitamente sua convico acerca das relaes entre a civilizao e a renncia pulsional, bem como com o masoquismo.

    As reflexes freudianas desse perodo nos desestimulam a procurar no cerne do funcionamento psquico humano alguma determinao da criao no sentido de que o homem seja feliz4.

    Entre as fontes de mal-estar que acossam a existncia humana, a mais difcil de aceitar, de inscrever psiquicamente, o outro, o prximo. Reconhecemos a as marcas da filosofia poltica de Hobbes. O outro fonte de angstia (medo), porque o homem o lobo do homem. O prximo no o semelhante, o igual perante a lei. Da a profunda estranheza que Freud manifesta quanto ao mandamento Amai ao prximo com a ti mesmo. Mandamento aberrante, exorbitante, que impe a renncia do gozo que servir-se, explorar, utilizar o outro em benefcio prprio. O gozo implica o mal do prximo. A lei impe a renncia ao gozo. Serve economia das trocas simblicas, trocas reguladas por uma ordem que assegura um prazer menor, mais certo, mais seguro, mais til, ao preo de uma traio fundamental do gozo prprio. Os bens simblicos so bens trocveis, cujo valor relativo. Aferimos seu valor pela sua representatividade com relao a um bem necessariamente excludo radicalmente foracludo e por isso mesmo singularmente nico da cadeia de substitutos. Verifica-se o valor simblico como valor sempre relativo a outros bens.

    Vemos assim que o desejo do Outro que faz a lei daquilo que o sujeito dever desejar. A proibio do gozo seu perptuo incitamento. A morte do gozo, a renncia a essa Coisa (Ding) que o garantiria a condio do advento do desejo e das coisas (Sache) que por meio dele somos levados a produzir, criar, inventar. Conseqentemente, a insatisfao do desejo deriva da interpretao histrica da lei

  • como proibio. O desejo histrico sustentar o desejo do pai. A impossibilidade de realiza-lo deriva da interpretao obsessiva da lei. Recusar-se determinao simblica, reivindicar sua autonomia com respeito a ela, garantir-se de que aquilo que seu desejo visa no porta nada de incestuoso o destino obsessivo. Ambos, e cada um a seu modo, estruturam o essencial do mal-estar, da angstia neurtica diante da castrao, da limitao do gozo pela lei do desejo. Por isso Lacan dir que a angstia de castrao no o impasse ltimo da neurose, pois que a castrao, o neurtico a reconhece at muito bem5. A dificuldade reside em dedicar, em fazer de sua castrao a garantia da castrao do Outro.

    Amar ao prximo como a si mesmo, mandamento impossvel de cumprir porque exige admitir no outro essa mesma marca, esse mesmo trao unrio da constituio de todo sujeito possvel, o trao de uma falta a ser, de uma hincia, ruptura, fenda por onde se delineia uma ausncia fundadora. O inconsciente, diz Lacan, um Umbegrieff menos no sentido de que um conceito fundamental e muito mais no sentido de que o sujeito como um eterno no conceituado, no advindo, o sujeito ainda em vias de se constituir6.

    O inconsciente como causa no a lei do desejo. A lei o que determina a repetio de eventos previsveis ou, como dizamos ainda agora, substituio em cadeia dos objetos trocveis ou simblicos. O comparecimento do inconsciente o efeito de uma falha no efeito ordenador da lei, que a interveno mesma do desejo do Outro. Deixa entrever um outro objeto, cuja estrutura irredutvel aos princpios ordenadores da cadeia simblica. Esse objeto o objeto da angstia, e dele que os objetos da lei e do desejo so representantes. A cura analtica vai encontra-los como fixaes ou impasses da dialtica intersubjetiva onde o desejo se constitui como desejo do Outro. Sua funo ser restituir-lhes sua dimenso metafrica.

    Freud situou esse divrcio entre o inconsciente como causa e o inconsciente como lei do desejo por meio dos paradoxos do gozo que Lacan destaca em seu seminrio sobre a tica da psicanlise. A obedincia moral no apaziguadora e sim um incremento auto-agresso. O homem, quanto mais renunciante, mais auto-acusador se manifesta. A hipertrofia da conscincia culpada do obsessivo disso bem ilustrativa. O inverso da obedincia lei moral no constitui uma soluo. Quanto mais o sujeito avana na direo do gozo, mais alguma coisa alheia sua vontade, como por acaso, o detm, paralisa, inibe. Fracassados por causa do sucesso, ou ainda criminosos em conseqncia de um sentimento de culpa, so indivduos movidos por uma misteriosa e extraordinria fora que se manifesta como uma necessidade inconsciente de punio. Em ningum, mais do que no histrico, o sentimento de culpa parece completamente inconsciente.

    Por meio desses paradoxos, o que se entrev : mais alm do princpio do prazer, regulado pela lei inconsciente do desejo do Outro, desponta um objeto, nomeado objeto a por Lacan em funo de sua estrutura imprpria egoificao, que seu lao com o objeto do gozo. Objeto radicalmente inconsciente, representa um sujeito no regulado pela lei do significante, ou seja, no um sujeito para outro sujeito, mas um sujeito em vias de advir, propriamente falando, um objeto a ser ou a ter. no nvel das relaes do sujeito com um objeto a singular (o objeto oral na histeria e o objeto anal na neurose obsessiva) que podemos focalizar a especificidade da angstia de castrao (ou do sentimento de culpa) num e noutro caso, bem como a natureza do rochedo da castrao que embaraa o acesso feminilidade ou ao gozo.

  • A pulso de morte e o desejo do analista: tica, esttica e poltica do ato analtico ou sobre as razes para privilegiar a angstia na direo da cura analtica

    Isso posto, passemos a descrever algumas das conseqncias psquicas da radicalizao da lei da castrao que emerge da releitura de Lacan do Alm do Princpio do Prazer. Trataremos de encontrar as implicaes dessa perspectiva para uma releitura dos dois princpios do funcionamento psquico (prazer e realidade), bem como para a direo da cura psicanaltica das neuroses.

    Para comear, que o objeto inconsciente seja um a por advir significa que tudo que o homem busca irredutvel ao que poder ser reencontrado. Eis a de que os paradoxos morais so a evidncia: o essencial da lgica do funcionamento psquico que o homem se priva dos objetos comuns esses que nos confortam e que podem ser trocados, que podemos amar ou odiar para afirmar a dependncia radical do seu desejo ao um objeto inesquecvel, suprimido, apagado, censurado e portanto enfatizado pela ordem simblica. Para alm de toda medida, bom senso, acordo ou consenso, justeza ou utilidade, para alm de tudo que existe, de tudo que , de tudo que podemos ter ou no ter, h um objeto que garantiria no o prazer, mas o gozo.

    Eis porque a cura psicanaltica se rege pelo princpio de que o lugar vazio desse objeto deve ser permanentemente garantido por meio do corte introduzido pelo ato interpretativo do analista. Como na arte, e contrariamente cincia e religio, a psicanlise uma prxis que promove, que contorna, que faz surgir o lugar vazio onde se insinua, desponta o objeto do desejo. A psicanlise uma tica do desejo. Fazer surgir o vazio no assumir a castrao como certa vertente ps-lacaniana interpretou os princpios da tica. , ao contrrio, no ceder do objeto inesquecvel do seu desejo, no esquece-lo por meio do recalque, no recuar diante desta compulso que a vontade de destruio direta da pulso de morte. No transigir com os engodos que o princpio do prazer/realidade oferece satisfao pulsional. Assumir uma vontade de novos comeos, com novos custos.

    A tica da psicanlise nos impe que sejamos privados do paciente como objeto de satisfao, para sustentar nosso desejo de analista. Abstinncia do desejo de cura, eis porque a barreira do bem deve ser transposta. A revelao do desejo o princpio de uma tica cruel que pe a nu o lugar vazio na ordem das coisas do objeto do nosso desejo. Esse princpio permitiu que, com apoio nos textos freudianos, pudssemos, com Lacan, chegar a articular de maneira inteiramente nova e original a questo do prazer e da realidade. A concepo freudiana do prazer inseparvel do princpio de realidade. O prazer, para Freud, pressupe que a satisfao a ser encontrada impulsionada por uma falta radical do objeto que poderia proporciona-la. Isso significa que toda satisfao s poder ser encontrada pelas vias das satisfaes j obtidas, ou seja, reencontrada nas malhas do princpio de realidade. Eis porque a transferncia o fechamento da realidade sexual do inconsciente. Reencontramos aqui a frmula tudo que o homem encontra diferente daquilo que ele busca. E isso nos pe na trilha da proposio de Lacan com respeito repetio.

    no campo do princpio do prazer, onde se o sujeito se rege pelo retorno dos signos ligados satisfao e constituio da sua realidade que sua histria, que se abre um furo. Eis o que convoca, para alm das satisfaes encontradas se elas so reencontradas a repetio mais verdadeira, a compulso repetio, o retorno

  • desordem, ao caos, o comparecimento da angstia, afeto que no engana, ao contrrio, aponta que o objeto a est ali, na rea, Unverdrangt (no o recalcado originrio, mas o irrecalcvel).

    Vemos que a memria de uma falha, de uma falta, rival da histria individual e das satisfaes que o sujeito poder reencontrar trilhando os percursos pr-ordenados por ela. A experincia da angstia a memria dos tempos hericos do gozo que o advento da cultura destronou.

    Isso posto, vemos que a via da esttica uma estratgia na prxis analtica, pois que se trata de conduzir o sujeito pelas vias de uma busca que retorna sempre ao mesmo lugar, o de um encontro faltoso, onde se impe recomear.

    Recomeo que precisa ser sempre outro, sempre novo, ou faltar a garantia mesma do princpio do prazer/realidade: sua ancoragem no objeto do gozo. Sem isso, no haver nenhuma conseqncia poltica da prxis psicanaltica, seno a conservao da ordem, a reproduo da histria, a rememorao da biografia. escuta da analista que atribumos o papel daquilo que vem reconhecer a possibilidade da diferena no campo da repetio marcada pela histria. preciso apostar no risco implicado na repetio pulsional, no trieb por vir, no no sabido, no no historializado.

    s por isso que a psicanlise no uma cincia do inconsciente. Tambm no uma religio ou uma Weltanschaung. E isso porque no h saber, no h histria que se possa reunir acerca do objeto que o sujeito busca. Tambm no possvel esquece-lo, assumindo a impossibilidade de reencontra-lo. A poltica da psicanlise produzir essa abertura que a atualizao da realidade sexual do inconsciente: deseja-la, espera-la, implica em valorizar a angstia, que o nico sinal seguro de um algo ainda por vir.

    Dar primazia angstia dar primazia a esses momentos em que o sujeito se perde, e no ao saber que, na posterioridade dos efeitos desse encontro verdadeiramente real, lhe permite reencontrar-se. Lacan nos adverte que o sujeito a est em sua casa, na intimidade com a mais absoluta estranheza que o constitui.

    Entretanto, o manejo correto da angstia exige que o analista deva evitar reduzir o comparecimento sempre novo do sujeito s angstias prprias ao complexo de castrao: a reivindicao feminina do falo ou medo masculino de submeter-se a outro homem. Se ambas implicam o repdio da feminilidade, porque so armaduras defensivas, so angstias postias, que permitem reduzir a fora transgressora da verdadeira passagem pela angstia que onde o analista tem o dever tico de conduzir seu paciente.

    Entre o gozo e o desejo, o sujeito somente comparece neste lugar onde est em vias de se constituir pois a ele no e no tem. Na posterioridade dos efeitos desse encontro real com a falta que o renova, o sujeito ser no menos o que apenas ter sido. O sujeito , nesse sentido, radicalmente excntrico histria ou ao saber.

    O desejo verdadeiramente analtico o da pulso de morte. Este desejo no o de um obscuro retorno ao inanimado, ou de um mtico nirvana. A pulso de morte o verdadeiro desejo feminino, desejo de no ser e no ter.

    Tomar a angstia como objeto, deseja-la produzi-la, eis o que entendo que Lacan nos sugere como recurso para atravessar o impasse da castrao. deste ponto de vista que pensamos poder delimitar melhor os obstculos para o final da anlise.

    A angstia e seu objeto a na clnica da histeria e da obsessividade

  • Em toda angstia preciso estabelecer a diferena entre o ponto de desejo e o

    ponto de angstia, para que se possa cumprir pela anlise uma diferenciao entre o sujeito e o Outro, no qual, se ele est indiferenciado, est identificado a um objeto a7, um obstculo, mas tambm uma fonte da renovao subjetiva.

    Na histeria, isso se manifesta numa forma dita masoquista: desejo de nada. Desejo de um resto da demanda, de um desejo que no sirva para nada, ou melhor, que no possa tomar como ndice do seu valor, o valor relativo a outros objetos valorizados. Esse desejo se mascara na demanda do falo. Se, ao final da anlise, o paciente reivindica o falo que lhe devemos, porque no diferenciamos suficientemente o objeto do desejo do lugar da falta ou do gozo, que constitui a satisfao. De acordo com Lacan, Freud teria deixado as mulheres sobre a via da reivindicao flica. Impasse do desejo, se no se faz da angstia uma abertura. Teria escapado a Freud que se a mulher quer o falo para fazer melhor que o homem. A demanda do falo no o desejo feminino, e sua relao com a me foi Freud quem primeiro assinalou. Veja-se a homossexualidade feminina. Na reivindicao flica, a outra mulher elevada condio de phallus absoluto. Nessa condio, a mulher nada mais faz que se encarregar do fracasso masculino.

    Toda a questo da histeria, no que ela acompanhada inclusive de episdios de homossexualismo mais ou menos manifestos, o de uma conjuno em impasse: a ignorncia quanto ao lugar da conjuno sexual e a impossibilidade, portanto, de realiza-la. porque o phallus no pode realizar o encontro dos desejos que a mulher levada a reivindica-lo. O phallus no se encontra l onde deveria estar, pois o orgasmo o anula no plano imaginrio. Eis porque, ao nvel da relao genital, a angstia a verdade da sexualidade. No registro flico, a angstia relaciona-se ao campo onde a morte se liga estreitamente com a renovao da vida. A angstia o sinal do apelo a um gozo que ultrapassa os limites do eu. A morte individual, a pulso de morte, o fundamento do orgasmo. Demandamos o orgasmo para satisfazer uma demanda do Outro que nos demanda a nossa morte.

    O desejo flico no , entretanto, o desejo primordial. Para alm do complexo de castrao e do seu objeto, o phallus, preciso delimitar os regimes de funcionamento do objeto no plano das demais pulses, configurando assim os obstculos que se colocam para o final de uma anlise. A angstia o que permite esclarecer que a funo do resto, do objeto parcial, animar e sustentar o desejo, enquanto que a falta outra coisa e relaciona-se com a satisfao. Freud, segundo Lacan, no soube diferenciar um e outro. Freud no soube abordar essa no coincidncia da falta de que se trata verdadeiramente na relao com o desejo, porque no fantasma ela se estrutura sempre em torno de um objeto parcial. Essa no coincidncia em ato o que causa a angstia que visa a verdade da falta: a disjuno entre desejo e gozo. O impasse de Freud diante do complexo de castrao teria tido ento a conseqncia de levar o movimento psicanaltico a um refluxo na teoria, que procurar a soluo do problema no nvel da pulso mais primitiva, que a pulso oral. De resto, j conhecemos bastante o destino dessa problemtica. A prtica psicanaltica perdeu seu suporte na funo e campo da fala e da linguagem8 para ir buscar na suplementao da funo materna sua estratgia teraputica.

    O impasse da histeria diante do complexo de castrao se equaciona, se tomamos os destinos da pulso oral to somente como a metfora que permitiria abordar o objeto

  • desconhecido da pulso no nvel flico. Ao nvel do complexo, o objeto da funo flica phi, ou seja, no visvel, uma mancha irredutvel no campo especular. O engano do desejo coordena-se visual e espacialmente com esse lugar vazio, que sua condio sine qua non. Essa constatao exige que revisitemos a famosa experincia de satisfao do lactente ao seio da me, para elucidarmos a relao de estrutura que o desejo tem com a falta, sempre obscurecida pelas leituras que se mantm sob a crena no primado do princpio do prazer. Ao nvel da pulso oral, intervm, na constituio do objeto do desejo, uma homologia estrutural com a funo flica e a singular dissimetria entre os sexos que, um obstculo conjuno sexual. Pois, a lngua joga na suco (e no menos na fala) essa funo essencial de aspirao e sustentao do vazio. O objeto da pulso oral no o seio ou o leite, mas no vazio contornado pelo ato de sugar que ele constitudo. Isso o suficiente para explicar que a angstia, nesse nvel, do outro materno e seu fantasma de vampirismo, de ressecamento do seio.

    A condio do orgasmo igualmente a detumescncia do rgo flico. No nvel flico, igualmente, o lugar da angstia e do desejo no coincidem. Acham-se invertidos, se comparados estrutura da pulso oral. A angstia aqui do sujeito e o Outro quem deseja a privao do rgo. No orgasmo haver coincidncia entre a angstia e o desejo. Se Freud diz que o orgasmo representa a maior satisfao, apenas em razo dessa ligao com o fundo de certeza assegurado pela angstia. O orgasmo a nica angstia que no o sinal que aponta a aproximao ao objeto a, pois que a nica angstia que se atinge realmente. Eis porque a o orgasmo feminino, na falta da realidade flica, permanece no-situado. No havendo para a mulher essa coincidncia entre o desejo e a angstia, lhe faltar certamente essa garantia, essa certeza daquilo que ela quer.

    Transcender a angstia submeter anlise o objeto ao qual ela est ligada. A pulso escpica funciona a como analisador da angstia de castrao. Incitamos a contemplao da prpria angstia, tomando-a, portanto, como objeto. enfrentando-a que se pode desmascarar esses objetos aos quais a subjetividade do sujeito se mantm fixada e que se velam sob a angstia flica. Uma vez que o olho se constitui como espelho do olhar do Outro, olhar que constitui um primeiro espao, um primeiro objeto, o olho, como objeto parcial, uma mancha, um quiasma que persiste como sinal da no liquidao da relao primordial. Nulifica-lo, reduzi-lo a um ponto zero, assim que o desejo mascara a angstia daquilo que falta radicalmente ao desejo no plano imaginrio e que nos comanda se permanecermos no campo visual. A demanda de nada, de zero de desejo, reveladora da angstia histrica. Seu fantasma de evirao do falo em boca mostra o lao da histeria com a pulso oral, com a necessidade no Outro. O sujeito histrico no pode situar-se com relao ao fato de que ele no passa de um mamilo colado no corpo da me. A no disfuno do mamilo como objeto a tem a conseqncia que ele cr que o Outro que tem algo a ver com este objeto a. Assim ele pensa que tem alguma coisa a fazer, a restituir, a oferecer me, o grande Outro. O inverso da reivindicao flica a dedicao generosa de quem no espera nada para si.

    Somente a voz ultrapassa a ocultao da angstia no desejo. Sua fonte o desejo primordial, aquele vinculado ao assassinato do pai primitivo e que vem situar o interdito impossvel de transgredir9. A voz um objeto a que possibilita um detour e abre dimenses novas da relao do desejo com a angstia. A pulso invocante tem uma

  • afinidade mais evidente com a funo criadora do vazio. Toda emisso fnica ressoa num vazio que o vazio do Outro, ex-nihilo, vazio da falta de garantia do Outro. O significante entra no mundo como um eco no real, como uma voz no imperativo que reclama obedincia, convico. Todos os objetos a surgem, portanto, como dons, objetos de um sacrifcio que se levado a fazer em razo do desejo do Outro, para que o Outro no se angunstie, para que deseje, para que sejamos desejveis. A angstia gira em torno do desejo do Outro, o eco de sua voz.

    O sintoma obsessivo exemplar. Se ele no obedece, no se angustia. S ento ele pode entrar em anlise, pois s ento que isso tem uma causa, s a partir da que o objeto a aparece como causa. Eis o que possibilita que se opere a transferncia, pois que a emergncia de uma questo pe em causa o desejo do analista. A angstia do obsessivo a constatao do desejo no Outro, na medida que ele emerge a na sua forma pura, a voz que o acusa. Ele se esfora por recalcar o sentido profundamente inconsciente desse desejo, reduzindo-o demanda. O Outro deve sempre autoriza-lo e o obsessivo no cessa de demandar-lhe isso. nessa medida que o objeto a, como causa, vir se situar no estgio anal, onde a demando domina. Como todo objeto a, o objeto excrementcio situa-se como um bloqueador do desejo primordial. As vezes no so efeito do desejo anal, so a causa, pois que fecham a dialtica do desejo e sua dependncia da fala. Todas as determinaes anatmicas do homem convergem quanto ao seu valor de destino: so obstculos compreenso, uma vez que todas dependem da relao ao significante, de um lugar Outro que se aloja no real do corpo.

    Por meio de que, ento, o excremento vem a representar um papel privilegiado na constituio subjetiva do obsessivo? O desejo anal se apia na inibio do movimento de expulso de algo que no se deve reter porque um desejo e no interessa ao vivo. O excremento pode saturar o meio at torna-lo incompatvel com a vida ou pode ser ainda aquilo que tentamos reaproveitar. a demanda da me que originalmente que determina a reteno do excremento, para ento aliena-lo, sob o efeito de uma demanda, para satisfaze-la. Com relao demanda do Outro, isso ele, mas no deve ser ele; ele deve rejeitar-se. A ambivalncia prpria aos sintomas do obsessivo nasce a. Eis porque a organizao flica se prestar magnificamente para recobrir sua diviso. Quanto a ns, ficamos perplexos, pois tudo com respeito ao nvel flico est simbolizado para o obsessivo, a diviso do sujeito, a unio sexual impossvel. Somente uma coisa no est a, o desejo. Para aceder ao desejo ele toma a via da potncia, da reflexo especular, do suporte narcsico, da mestria de si com o campo do Outro. O desejo, o obsessivo s o concebe por meio dos seus fantasmas nunca realizados de potncia, projeo do sujeito no campo do ideal. A onipotncia recobre a angstia e efeito do fantasma de um deus todo poderoso, onipresente e onisciente. por isso que o obsessivo s os realiza com a condio de que no seja ele o autor desses atos. A evocao do Deus por meio da blasfmia, que to comum na neurose obsessiva, lhes assegura esse lugar de exterioridade. O obsessivo algum que cr em Deus, cr no olho universal que v todas as nossas aes. Para os grandes crentes, importante que no creiam em Deus, pois essa a condio para que a estrutura do seu fantasma fique invisvel. A eliminao do fantasma de onipotncia, no podemos nos enganar a esse respeito, no depende de que o sujeito afirme que no serve a Deus nenhum.

    Por meio dessas reflexes, podemos situar como se enquadra para o neurtico obsessivo essa disjuno fundamental, no plano sexual, entre o desejo e o gozo. O

  • lugar de impossibilidade, que o obsessivo confere ao objeto do seu desejo, testemunha esse lao a um objeto perdido nojento, objeto causa de toda a mais alta produo idealista. Esperamos ter evidenciado a estrutura do desejo obsessivo na relao ao seu fantasma e angstia que o determina.

  • NOTAS E REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    1- Agradeo a Ana Maria Rudge e a Eliane Mendlowicz pela interlocuo permanente, pelo confronto fecundo e pelo estmulo e confiana que depositaram nessa pesquisa quando ela era ainda uma promessa longnqua de uma satisfao impossvel.

    2- cf. Freud, S. 1920 Alm do Princpio do Prazer, Ed. Imago, Vol XVIII ESB 3- cf. Freud, S. 1908, Moral Sexual Civilizada e Doena Nervosa Moderna,

    Vol. IX ESB

    4- Freud toma emprestadas as palavras do poeta e que reproduzimos literalmente.

    5- Cf. Lacan, J. 1962/63 Seminrio X A Angstia, indito. 6- Cf. Lacan, J. 1964/65 Seminrio XI, Os quatro Conceitos Fundamentais,

    Jorge Zahar 7- O objeto a um resto de indiferenciao entre o sujeito e o Outro na

    dialtica intersubjetiva. Resto de literalidade, encravada na mquina simblica que uma mquina metafrica, que opera a transposio do gozo ao smbolo. um resto de corpo, de gozo no simbolizado, gozo do qual o sujeito no foi privado pelo corte simbolizante do desejo do Outro. O objeto a representa o impasse encarnado, no acesso do desejo coisa. Relaciona-se sempre com a captura do objeto do desejo no campo da demanda, ou, dito de outro modo, sua reduo a um objeto imaginrio.

    8- Cf. Lacan, J. (1953) Fonction et Champ de la Parole e du Language in

    Ecrits, Editions du Seuil, 1966 9- O homem no pode no significar. A dependncia do desejo humano com

    relao ao campo da fala e da linguagem Freud prefigurou, desde o seu Projeto de Uma Psicologia Para Neurologistas de 1895, atravs da mais inespecfica das aes humanas, o grito. Essa parte da constelao real da angstia Freud a situa de forma privilegiada como o desejo primordial que instaura o desenvolvimento da fala, assim como da lei, que a inscrio da dor, origem da linguagem.

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