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Eduardo Pitta
DESOBEDIÊNCIAPoemas Escolhidos
Prefácio de Nuno Júdice
PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTELISBOA
2011
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Título: Desobediência. Poemas Escolhidos© 2011, Eduardo Pitta e Publicações Dom QuixoteEdição: Cecília AndradeRevisão: Clara Joana Vitorino
Pré-impressão de capa: Critério – Produção Gráfica, Lda.Paginação: Júlio de Carvalho
ISBN: 9789722045650Reservados todos os direitosGuid
Publicações Dom QuixoteUma editora do Grupo LeyaRua Cidade de Córdova, n.o 22610-038 Alfragide – Portugalwww.dquixote.ptwww.leya.com
O FIDALGO E O LAVRADOR
Este volume colige poemas escritos entre 1971 e 1996. Considera-sedefinitiva a presente fixação de texto e excluídos da obra os poemas queo autor deixou de fora.
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ÍNDICE
Prefácio, por Nuno Júdice:Uma poética desobediente ..................................................................................... 17
Sílaba a Sílaba ............................................................................................................. 25
Ocupamos a paisagem ........................................................................................... 29Eu diria dos apátridas que somos .......................................................................... 31Ontem choveu chuva cinza. .................................................................................. 32Pouco tenho para alinhavar. .................................................................................. 33Fazemos o circuito ................................................................................................ 34Queria que ficasses ................................................................................................ 35Meia dúzia de linhas ............................................................................................. 36Foi então que te vi inteiriçado ............................................................................... 37Um dia destes ........................................................................................................ 38Agora que o sorriso envidraçado das quizumbas .................................................... 39As invertebradas artérias da cidade ........................................................................ 40Foi contigo que aprendi a cidade, .......................................................................... 41Temos um tempo breve para amar ........................................................................ 42Sabias que era inútil surumar ................................................................................ 43Se eu te dissesse dos imponderáveis ....................................................................... 44A manhã toda topázio. .......................................................................................... 45
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Agora que as palavras secaram ............................................................................... 46Falo de uma terra .................................................................................................. 47 Doloroso compasso de espera ................................................................................ 48Não temos espaço ................................................................................................. 49Custa-nos o discurso indirecto .............................................................................. 50Ficamos de pedra .................................................................................................. 51Perseguem-me fantasmas ....................................................................................... 52
Um Cão de Angústia Progride .................................................................................... 53
Um cão de angústia progride ................................................................................. 57Continuamos no limiar ......................................................................................... 58A estrada a rarefazer-se .......................................................................................... 59Absorve-nos um silêncio ....................................................................................... 60Há um cansaço velho ............................................................................................ 61Tropeço no ensurdecedor ...................................................................................... 62Agora que temos um país ...................................................................................... 63Inútil dizer-te ........................................................................................................ 64Detenho-me a roer ................................................................................................ 65Tacteio as horas ..................................................................................................... 66Cumpres da boca à raiz ......................................................................................... 67Adivinhamos inquietos os olhos ............................................................................ 68A tua ausência ....................................................................................................... 69A língua mergulha ................................................................................................. 70De novo entre ....................................................................................................... 71 E só agora ............................................................................................................. 72 Temos das coisas a lembrança das viagens ............................................................. 73Do gesto ao verbo mais antigo a recordação do primeiro olhar. ............................ 74
A Linguagem da Desordem ........................................................................................ 75
Duramente aprendemos. ....................................................................................... 79Nomeado inominável: ternura a levedar ................................................................ 80
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Tarde demais para regressar: inter .......................................................................... 81
As crianças surgem, rápidas, na sombra da manhã. ............................................... 82De algumas perguntas tememos o som e o desenlace ............................................ 83Essa gente não sabe dos corpos a linguagem da desordem. .................................... 84Digamos que há uma gazela dissimulada na vossa apatia ....................................... 85Abandonado e lento como um rio, o corpo ........................................................... 86Gosto da claridade penumbrosa ............................................................................ 87Avelãs: no mar de Mykonos, no scotch ................................................................. 88É pela música que chego ....................................................................................... 92De Homero falavas ............................................................................................... 93Temos alguns mortos de intervalo ......................................................................... 94Propósito torpe e desolado .................................................................................... 95Tinha na retina corpos .......................................................................................... 96A cidade incendiada pelo olhar desprevenido. ....................................................... 97As pedras perseguem-nos ....................................................................................... 98De alguns corpos sabemos o objecto ..................................................................... 99Construímos a nossa casa .................................................................................... 100Acolhia-se aos destroços ...................................................................................... 101Assim nos coube a pior aprendizagem ................................................................. 102Os meus amigos andam perdidos ........................................................................ 103Não basta nomear-lhes um prestígio ................................................................... 104Aquela mulher não excessivamente velha ............................................................. 105Nostalgia haurida ................................................................................................ 106No limite do cânhamo ........................................................................................ 107Monossilabamos o medo ..................................................................................... 108Londres tem o sossego ......................................................................................... 109
Olhos Calcinados ...................................................................................................... 111
Anos a fio a vida lhe passou sempre .................................................................... 115Pouco sabia de espelhos: tem ............................................................................... 116
O móbil era outro ............................................................................................... 117
Instante muito breve ........................................................................................... 118
Nenhum de nós passeia impune .......................................................................... 119
Cave alguma os redime ....................................................................................... 120
Em redor das dunas ............................................................................................ 121
Inapelavelmente próximo .................................................................................... 122
Vejo-os chegar à velocidade ................................................................................. 123
Poucos nos embaraçam já .................................................................................... 124
Transportam-se com a lentidão ........................................................................... 125
A história deles pode ter sido, ............................................................................. 126
A insânia dos seus olhos. ..................................................................................... 127
Temos sido espectadores ...................................................................................... 128
Anna Soror e Wolfgang Peterson ......................................................................... 129
Foi longa e dura a batalha do silêncio ................................................................. 130
Temos que baste: a pátria à janela ....................................................................... 131
Era o Fevereiro mais longo: maçãs preguiçosas .................................................... 132
Mais do que uma casa era um refúgio ................................................................. 133
Nunca me tinhas dito: um quarto assim ............................................................. 134
Ardias devagar. .................................................................................................... 135
Regresso quando tudo é mais exacto. .................................................................. 136
Houve ali um rosto ............................................................................................. 137
De noite morremos. Um lapso, um ..................................................................... 138
Estradas muito claras, o desenho nítido .............................................................. 139
Archote Glaciar ......................................................................................................... 141
A noite toda a selva ............................................................................................. 145
Nunca se deteve nas Escrituras. ........................................................................... 146
Está um rapaz a arder .......................................................................................... 147
O damasco da noite, um corvo ........................................................................... 148
Esse mundo acabou. ............................................................................................ 149
Não sei de atalhos. .............................................................................................. 150
Eu vi o tédio atravessar o tempo .......................................................................... 151
O desejo tem um tempo ..................................................................................... 152Deve ter sido o último gesto que fez. .................................................................. 153
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Arbítrio ..................................................................................................................... 155
Mandrágora ......................................................................................................... 159
Iam demasiar-se pelo imprevisto ......................................................................... 161Ficava indeciso entre a neblina ............................................................................ 162Hesita bastante. O inferno .................................................................................. 163Como se crias de cadela ...................................................................................... 164Um vento camiliano risca os olhos ...................................................................... 165Noite cega. Mandrágora. Cinza primitiva. ........................................................... 166Ainda um dia te levo comigo .............................................................................. 167
Lâminas ............................................................................................................... 169
Os cães eram mudos e deu com eles por ............................................................ 171Antes de nós outros tentaram. ............................................................................. 172As coisas são como são. ....................................................................................... 173Gente propensa a ver a luz por um funil ............................................................. 174Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz. ...................................................... 175Negros e jarros não voltam a ser como dantes. .................................................... 176Toda a noite a luz multiplicou ............................................................................ 177O vício, essa maquinação do arbítrio. .................................................................. 178Nada de muito óbvio mas havia .......................................................................... 179
Amuletos ................................................................................................................... 181
A vida é uma ferida? ............................................................................................ 185A chuva insistia: excelente pretexto ..................................................................... 186Foi ao som de cristais .......................................................................................... 187Os putos de Tompkins Square ............................................................................. 188O corpo estilhaça-se com avidez .......................................................................... 189Hesitas quanto à natureza do travo na língua, ..................................................... 190O doutor Cukrowicz não queria acreditar na sinuosa .......................................... 191
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Dois poemas em prosa .............................................................................................. 193
1796 ................................................................................................................... 197Corvos ................................................................................................................ 199
Marginália: crítica seleccionada ................................................................................ 201
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UMA POÉTICA DESOBEDIENTE
É sobre uma linha de avanços e recuos que se desenha a poética deEduardo Pitta, fazendo de cada livro uma sílaba da linguagem da de-sordem a que ele procura restituir um vocabulário coerente. Trata-sede um trabalho sobre o lirismo, na tradição que vem não tanto de Ce-sário como de Nobre; mas o elemento narrativo e descritivo dessespoetas é reduzido ao essencial, e é nesse plano de uma substância des-pojada que se realiza o investimento de uma poética que se joga entrea negação e a afirmação. Não sei bem se se pode falar de negação, ouantes de esvaziamento daquilo que são os valores instalados, bastandopara isso um prefixo: desobediência, desordem, ou um vocabulário quetraça os restos do que já não é visível: a angústia que nasce do oxímoro(archote glaciar) ou do excesso (metal fundente), e os olhos calcinados,punição do que seria uma visão da cidade proibida.
Há uma procura da síntese nesta poética, e o pseudo-índice inicialcorresponde a esse concentrar de cada livro num poema que registanão tanto os seus temas (o que seria um redundante resumo) maso que se pode designar como o ambiente produtivo de cada livro:a «ocupação da paisagem» de Sílaba a Sílaba, o espaço limiar de UmCão de Angústia Progride, o corpo de A Linguagem da Desordem, omundo especular de Olhos Calcinados, o fogo nocturno de ArchoteGlaciar, o inferno alquímico de Arbítrio, a reflexão sobre a vida deAmuletos. Por este «índice» se pode ver o que é o projecto de EduardoPitta: uma relação estreita entre a poesia e a vivência, não no sentido
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de uma descrição realista ou experimentalista do que é a realidade dopoeta, sempre empobrecedora e banalizante, mas antes uma procurada voz que se inscreve no «silêncio de paredes / brancas e esqueci-das», captada sílaba a sílaba para que não se perca «o circuito / inevi-tável das coisas ociosas / sem sentido».
É esta luta contra o nada, o vazio, a ausência, que dá uma fortetensão dialéctica a cada poema, o que se inscreve bem na própria es-sência do lirismo, na busca dos «imponderáveis / plausíveis» que cons-tituem essa fonte daquilo a que os surrealistas chamavam o «acasoobjectivo» e que, longe já desse universo, mais não pretende do quefugir às «invertebradas artérias da cidade / domesticada», que tem noseu reverso uma «terra / intacta e pura» que o poeta gostaria de habi-tar. Utopia, claro, mas que nalguns momentos se realiza – em locaiscomo a Grécia, Veneza – fora dessa «cidadela sitiada» onde a resistên-cia se faz fracturando o sonho «enquanto o medo se perfila». E é pe-rante este espaço negativo que surge o espelho, convertendo a páginanum «espaço / dos sinais primevos» onde o ser se materializa «na opa-cidade / de um esboço // rigoroso, / laminado corpo a corpo». É essadimensão plástica que transporta o dizer para o silêncio – mas um si-lêncio que «ameaça detonar», e, quando o faz, se converte no «ensur-decedor / silêncio da tua voz».
Tem início, então, a demanda que percorre esta poética, ligada aotempo e ao amor: «Tacteio as horas / à tua procura.» A realização dá--se numa dualidade que o olhar revela: «Adivinhamos inquietos osolhos / e o poema dos dois corpos.» O erotismo afirma-se e adquireuma expressão metafórica, na «contenção de espelhos» que se im-prime no limite da pulsão reflexiva e narcísica onde se sente o «insu-bordinado pulsar / de outra vontade», libertando o poeta de umfechamento egoísta. E o dizer materializa a substância do que seafirma na insubmissão e inquietação do mundo: «Nomeado inomi-
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nável: ternura a levedar / na polpa dos meus dedos. Uma vontademuito / branca para o crime. Os dentes nas espáduas.»
Colocadas estas premissas no que se poderia considerar não tantoo prólogo como as traves mestras da sua poética, Eduardo Pitta pros-segue com livros em que o tempo deixa as suas marcas, no duplosentido de uma relação com o espaço poético a que vai buscar os seusreferentes, por um lado, e de uma procura de inscrever o seu próprioolhar no curso dos poemas, por outro. Olhos Calcinados será assimuma homenagem a uma linguagem determinante de uma linha da poe-sia mais recente, trazendo o discurso poético para um espaço de alusõesidentificáveis, quer pela sua sinalização geográfica, quer pelo que sepode descrever como uma combustão de instantes que contamina opróprio olhar que se esgota na calcinação desse objecto temporal.
Outra amplitude tem Archote Glaciar, que vai buscar a uma tra-dição milenar a reflexão sobre o curso da História, e o lamento a queo poeta se sabe condenado. Pranto, quase à maneira de Villon, sen-tem-se os cadafalsos que ficam de um mundo que acabou, vestígiosque condenam o homem à errância e são um símbolo exacto da pre-sente condição humana: «Varrido por um sopro insaturável / o olharvacila, acossado / entre ruínas / e a traficada solidão.» E regressamosao prefixo negativo do início, à desordem que conduz à desobediên-cia porque, nesse contexto, não existe nem autoridade nem regrassenão as que o próprio homem pode definir dentro de uma ética derespeito pelo ser em que se projecta. Estamos no espaço do Arbítrio,evocando o tempo da decisão própria, mas retirando o adjectivo livreque, de certo modo, condiciona a liberdade, uma vez que o contextoteológico em que se aplica essa liberdade deixou de existir, sendoentão num espaço contemporâneo, inaugurado por André Gide e pelasua concepção de entregar ao personagem a decisão final dos seus actos,que Eduardo Pitta coloca essa entrega nascida de um «embaraçado
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ímpeto», da situação de quem «ficava indeciso entre a neblina / e asgencianas iluminadas», do gesto de quem «hesita bastante», que ter-mina em deflagração, em caminho, mesmo quando se sabe que «Todaa demanda é vã».
É, portanto, um percurso coerente que subjaz a esta escolha, e quea orienta, sendo de sublinhar esse final rizomático de onde nascemfilões diversos que indiciam não ser esta uma poética conclusa, masem devir, dentro desse modelo de uma fidelidade a modelos e a umacultura marcada por um sólido conhecimento da tradição, desde aclássica à moderna, dando à poesia de Eduardo Pitta um lugar própriona literatura contemporânea na nossa língua portuguesa.
Paris, 28-29 de Dezembro de 2010
O FIDALG
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O FIDALGO E O LAVRADOR
Tenho só este exíguo e perplexo pecúlio
de palavras à beira do silêncio.
RUI KNOPFLI
O FIDALGO E O LAVRADOR
Ocupamos a paisagemque, desocupada, se ocupade nós.Tempo de ocupação, este.
Somos o estrangeiroque o silêncio de paredesbrancas e esquecidasperturbou.
Extasiado ao menor rumorde um estioduro e claro— todo lâminas.
Perplexo da memória destes diassufocados em tédioe cal.
Da palavra para a pedraarrastando-se aquáticos— as mais sazonadasas menos polidas.
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Eu diria dos apátridas que somosdaquela pátria que nos sobra.Diria daqueles que por amá-laproscritos ficaram,proscritos morreram.Diria do exorcismo de um povona beira-mar da aventura,do medo que em nós germina,da labareda do sonho,do entardecer da agonia.Diria da mordaça,dos estropiados,dos vagabundosque nos calcorrearampor dentro.Diria ainda da História e da guerraali ao lado.Náufragos irremediáveis dos mares da Chinaa que não fomos.
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Ontem choveu chuva cinza.Era Veneza, São Marcosem azulejo.
Recear não era lícitoe a volúpia volatiza-se.Nenhuma testemunha para redimir o gesto.
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Pouco tenho para alinhavar.Dizer-te que estou longenão apaga esta ausência queinelutavelmentenos distanciou.
Cercam-nos muros de silêncioopresso.A própria hera não ousana despudorada nudez brancade paredes que interditam
a fantasia ao forasteirovoraz.O gesto tolhidoo pretexto adiadoa memória a estiolar.
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