Descartes - Discurso Do Método

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DISCURSO DO MÉTODO René Descartes Traduçào MARIA ERMANTINA GALVÃO Revisão da traduçào MONICA STAHEL Marims Fontes São Paulo 2 0 0 1

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Descartes - Discurso Do Método

Transcript of Descartes - Discurso Do Método

  • DISCURSO DO MTODORen Descartes

    Traduo MARIA ERMANTINA GALVO

    Reviso da traduo MONICA STAHEL

    Marims FontesSo Paulo 2001

  • Ttulo original: LE DISCOURS DE LA MTHODECnpyrisht (?) 19R9. Livraria Martins Fonte*. Editora Lrda

    So Paulo, para a presente edio.

    1 ediojulho de 1989

    2K edio dezembro de 1996

    3a tiragemabril de 2001

    lYaduoMARIA ERMANTINA GALVO

    Reviso da traduoMonica Stahel

    Reviso grfica Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa

    Solange Martins Produo grfica

    Geraldo Alves Capa

    Katia Harumi Terasaka

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Descartes. Ren, 1596-1650.Discurso do mtodo / Ren Descartes; [traduo Maria Ermantina

    Galvo]. - So Paulo : Martins Fontes, 19%. - (Clssicos)

    ISBN 85-336-0551-X

    1. Descartes. Ren, 1596-1650 2. Filosofia francesa - Sculo 17 I. Ttulo. II. Srie.

    96-4362___________________________________________________CDD -194

    ndices para catlogo sistemtico:1. Descartes : Obras filosficas 194

    Todos os direitos desta edio reser\'ados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho. 330/340 01325-000 So Paulo SP Brasil Tel. (11)239.3677 Fax (11) 3105.6867

    e-mail: [email protected] http:!/vnvvr.martinsfontes.com

  • ndice

    Prefcio......................................................................... VIICronologia.................................................................... XXXINota desta Edio....................................................... XXXIX

    DISCURSO DO MTODO........................................... 1Primeira Parte............................................................... 5Segunda Parte............................................................... 15Terceira Parte................................................................ 27Quarta Parte.................................................................. 37Quinta Parte.................................................................. 47Sexta Parte.................................................................... 67

    Notas.............................................................................. 87

  • Prefcio

    I. O Horizonte da Reflexo de Descartes

    H todo um meio de idias no qual se formou o pensamento de Descartes: ao mesmo tempo que se esfora para separar-se dele, adere-lhe por grande quantidade de laos invisveis, observa Victor Del- bos1. Se quisssemos definir exatamente a originalidade de Descartes, poderamos, e por certo deveramos, tentar pr em evidncia esses laos e determinar-lhes a natureza e o alcance. Tarefa necessria mas delicada, sem dvida excederia os limites de uma edio do Discurso. Em contrapartida, parece que uma rpida lembrana do meio de idias em que se formou o pensamento cartesiano no fora de propsito, permitindo ao leitor conhecer alguma coisa do clima intelectual em que o texto foi escrito e publicado. Queramos, nas prximas pginas, lembrar-lhe os elementos mais caractersticos.

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  • Discurso do Mtodo

    1. A Escolstica

    Basta uma leitura rpida do Discurso para se perceber que a filosofia da Escola nunca deixa de estar presente no esprito de Descartes. Isso nada tem de surpreendente, pois a filosofia que lhe foi ensinada, que ele combate e sonha substituir pela sua. Por outro lado, embora h muito tempo escarnecida por todos os lados, a Escolstica conserva, na primeira metade do sculo XVII, uma influncia considervel; continua sendo a filosofia oficial, a da Igreja, dos Colgios, a eventualmente protegida pelos poderes pblicos. O mais curioso que essa criao do catolicismo medieval atinge at os meios protestantes, fenmeno inexplicvel enquanto nos obstinarmos em considerar a Escolstica, conforme uma imagem que data do Renascimento, como uma sucesso de disparates. Mas, quaisquer que sejam as restries que se possam ter a seu respeito, ela no nada disso. A filosofia Escolstica, na medida em que esta expresso aceitvel, apresenta-se essencialmente como um corpo de doutrinas constitudas no sculo XIII pela combinao de elementos tirados de Aristteles com elementos originrios da especulao sobre os textos sagrados. uma tentativa de organizao racional do dado humano na perspectiva da f, atravs de instrumentos conceituais de origem peripattica. Por outro lado, obra exclusivamente de homens da Igreja e de professores, preocupados acima de tudo em defender e transmitir as idias reveladas. Da suas principais caractersticas.

    VIII

  • Prefcio

    Exteriormente, a forma pela qual se expressa no mais das vezes, pelo menos no sculo XIII, o comentrio ou a suma. Ambos esto vinculados ao ensino mas, enquanto o primeiro origina-se diretamente da explicao de texto, a segunda rene num conjunto ordenado as questes tratadas, expondo-as de maneira direta. O mtodo utilizado o da sntese, em que todas as proposies so tiradas, por deduo, de princpios, sendo estes fornecidos pelos textos revelados, interpretados de acordo com a tradio. Da resulta uma dupla conseqncia. O ponto de partida nunca objeto de pesquisas: considerado como aquisio definitiva. Em contrapartida, a deduo particularmente cuidada e atesta, entre os grandes autores, uma agilidade intelectual notvel. Se tanto se censurou a Escolstica por um excesso de sutileza, no foi totalmente por acaso.

    Outra caracterstica dessa filosofia que une procedimentos da f e procedimentos da razo - ponto capital, a cujo respeito cometeram-se muitos erros. Entretanto, a posio da maioria dos autores, em especial de So Toms, inteiramente clara:

    - F e razo provm ambas de Deus - logo, no se podem opor realmente.

    - No entanto, como a razo humana no pode ter a pretenso de ser a Razo absoluta, deve aceitar o controle da f.

    Esta ltima proposio, contudo, contrariamente ao que muitas vezes se diz, no significa de modo algum que a Escolstica sacrifica os direitos da inteli

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  • Discurso do Mtodo

    gncia; ela apenas os limita. E nunca visa a conferir ao argumento da autoridade - o mais fraco de todos, segundo So Toms - um valor superior evidncia racional. No mximo admite-se que, no ponto em que esta vacila, aquele se adiante.

    Conclui-se ento que no se pode afirmar, com Louis Liard, que a inovao do cartesianismo tenha consistido em substituir a evidncia da autoridade pela autoridade da evidncia. Em relao Escolstica, a originalidade de Descartes reside muito mais no fato de ele ter inaugurado uma reflexo independente da f. Com ele, o que a filosofia encontra uma certa autonomia.

    2. A Herana do Renascimento

    natural que a herana do Renascimento tambm se tenha imposto ao pensamento de Descartes. Seria um engano, entretanto, apresentar sua filosofia como um prolongamento puro e simples dos impulsos oriundos do sculo XVI. H certa continuidade entre as filosofias do Renascimento e o cartesianismo, mas h tambm uma ruptura que no se deve subestimar.

    Decerto, o Renascimento representa um perodo de magnficas conquistas. As grandes descobertas ampliaram a imagem do mundo. A astronomia modificou a concepo do universo. Os eruditos divulgaram as grandes obras do passado. Fizeram reviver as doutrinas

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  • Prefcio ---------

    da Grcia e do Oriente: Plato, Plotino, o Estoicismo, o Epicurismo, o Cepticismo, o Hermetismo, a Cabala. Enfim, o Renascimento deu aos homens, com a vontade de ampliarem seus conhecimentos, o gosto pelo pensamento autnomo. E sob esse aspecto Descartes , sem dvida, um herdeiro dessa poca. Alis, encontram-se nele alguns temas que o Renascimento desenvolveu incessantemente, como por exemplo a crtica a Aristteles e Escolstica, a noo de mtodo; a idia do universo infinito.

    O enriquecimento dos conhecimentos, entretanto, teve seu preo. Ao longo de todo o sculo XVI percebe-se, ao lado das marcas triunfantes da vontade de saber, uma nota de lassido inquieta: Da incerteza e da vaidade das cincias e das artes ( o ttulo de um livro de Agrippa de Netteshein); cincia sem conscincia no passa de runa da alma (Rabelais); no se sabe nada (Sanchez); o que sei? (Mon- taigne). Assim, o Renascimento, ao mesmo tempo que abriu novos horizontes, favoreceu o ceticismo. Mais exatamente, levou alguns homens, como Mon- taigne e Charron, a admitirem que a cincia permanece irremediavelmente incerta, mas que definitivamente mais importante para o homem regrar sua conduta do que saber. Ou seja, do Renascimento ori- ginou-se uma filosofia resignada ao divrcio entre a sabedoria e a cincia. Ora, para Descartes, a prpria idia desse divrcio inconcebvel. Ele no pode admitir a idia de uma cincia incerta nem a de uma sabedoria que se desenvolva fora da cincia. A noo

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  • Discurso do Mtodo

    de filosofia envolve a seus olhos a de um saber seguro, possibilitando uma moral certa. Nesse ponto, ele rompe resolutamente com o Renascimento. Na verdade, mais do que o herdeiro do Renascimento, Descartes contemporneo de uma prodigiosa revoluo cientfica.

    3- O Grande Desenvolvimento das Cincias

    Por certo, h que se admitir que no decorrer dos sculos XV e XVI as cincias fizeram progressos considerveis. Inmeros matemticos (Tartaglia, Cardan, Vite) trabalharam na simplificao dos sinais algbricos e na unificao da noo de nmero. Inmeros sbios (Leonardo da Vinci, Benedetti, Vite) tiveram a idia de que conjugando a experincia com a matemtica poderiam se forar os segredos da natureza. Finalmente, a astronomia com Coprnico e Tycho Brah desenvolveu-se admiravelmente. Entretanto, o Renascimento mais prepara do que inaugura a cincia moderna. o incio do sculo XVII que marca o seu verdadeiro comeo.

    Primeiro aspecto impressionante desse perodo: a pesquisa constantemente praticada em quase todas as partes da Europa. A Itlia d o exemplo. J em 1603 forma-se em Roma a Academia de Lincei, da qual membro Galileu. Flandres e os Pases-Baixos, regies ricas e ativas, acompanham-na: S. Stvin, engenheiro de diques, ocupa-se da hidrosttica, e Isaac

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  • ------------Prefcio _

    Beeckman (a quem Descartes por certo dever muitas sugestes), da fsica matemtica. Na Frana, tanto em Paris como nas provncias, constituem-se sociedades cientficas em torno de certas personalidades. As duas mais importantes acham-se em Paris, reunidas em torno do Rev. Pe. Mersenne e dos irmos Dupuy. Movimento paralelo ocorre na Inglaterra, onde so publicadas, em menos de trinta anos, trs obras essenciais: Do m, por Gilbert, Novum orga- non, de Bacon, e a Dissertao sobre o movimento do corao, de Harvey. Excetuando-se a obra de Kepler, apenas a Europa central, devastada pelas guerras, no integra esse movimento.

    Esse vasto movimento de pesquisas particularmente fecundo. Galileu cria a mecnica moderna. Anteriormente aperfeioara um telescpio que permitira a descoberta das manchas solares, dos satlites de Jpiter e do relevo lunar. Cavaliere, com o clculo dos indivisveis, d um primeiro passo para o clculo integral. O mtodo experimental, celebrado por Bacon e aplicado por Galileu, utilizado por Roberval, Torricelli e Pascal. Certamente, as pesquisas sobre a matria continuam decepcionantes e tributrias da alquimia: no entanto, Gilbert contribui com um primeiro estudo cientfico do magnetismo. Paralelamente, por falta de conhecimentos suficientes em qumica, a biologia no progride, mas Harvey estabelece o fato do movimento do corao, enquanto zologos e botnicos enriquecem o quadro das

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  • Discurso do Mtodo

    espcies vivas coligidas. Isto quer dizer que o progresso quantitativo das coisas conhecidas (R. Leno- ble) ento dos mais notveis, sendo contudo menos importante que a transformao dos espritos qual est vinculado.

    Sente-se certa dificuldade, hoje, em avaliar corretamente essa transformao. Habituados a viver num meio modelado pela cincia e pela tcnica, temos dificuldade em imaginar o mundo e mentalidade dos sculos anteriores s conquistas cientficas do sculo XVII. A fsica ento dominante era a da Escolstica, procedente de Aristteles. Qualitativa, descritiva e classificatria, de inteno contemplativa, ela se baseava na idia de que o mundo forma uma totalidade finita, ordenada, em que todas as coisas tm um lugar definido, como num imenso organismo. O sculo XVII rompe com essa imagem do mundo e com esses hbitos de pensamento para constituir uma fsica quantitativa, matemtica, suscetvel de inmeras aplicaes e na qual o mundo apreendido como uma imensa mquina. Como pde ocorrer tal revoluo? Por certo foi preparada pelo Renascimento que acostumara os espritos idia de um universo sem limites. Por certo foi favorecida pelas transformaes econmicas, tcnicas e sociais da poca, que suscitaram o sonho de uma cincia operativa. Mas nem o contexto histrico, nem a influncia do sculo anterior explicam claramente a mutao intelectual que tornou possvel uma revo-

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  • luo nesses moldes. Por isso, preciso admitir que ela est fundamentalmente ligada iniciativa de alguns espritos, ao lance de audcia intelectual pelo qual certas pessoas romperam com as antigas maneiras de ver. Um dos melhores exemplos o de Galileu. Quando, em 1623, ele afirma que a natureza est escrita em linguagem matemtica", por certo parte de algumas constataes, mas ultrapassa em muito o que elas autorizavam a afirmar. Por outro lado, considerando resolutamente as coisas dessa maneira, cria um novo ap riori que nortear a constituio da nova fsica. Descartes contemporneo dessa revoluo. Que papel representa nela? Uma lenda de devoo pretende que tenha sido seu promotor, mas ela no resiste ao exame; basta consultar as datas e ler alguns textos para saber que a fsica mecanicista, nascida na poca de Descartes, no foi criada por ele. Em contrapartida, certo que foi um de seus artesos, junto com Galileu, Pascal e Mer- senne. Mas, mais do que estes, foi tambm seu terico. Ora, no se pode contestar que nesse ponto ele ocupa um lugar privilegiado. Sob esse aspecto, ningum uniu mais audcia a mais profundidade. Nisso Descartes sbio foi fiel sua vocao: sua vocao de filsofo, da qual encontraremos no Discurso do mtodo, se no a expresso perfeita, pelo menos uma das mais notveis manifestaes.

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  • Discurso do Mtodo

    II. Introduo ao Discurso

    O Rev. Pe. Rapin anota em algum lugar: Podemos crer que entendemos o Discurso do mtodo sem entend-lo. E Descartes, por sua vez: Vejo que se enganam facilmente acerca das coisas que escrevi.

    No espao restrito de uma introduo, no o caso de se prevenirem todos os enganos a que o texto do Discurso possa dar lugar. Em contrapartida, tudo indica que possvel, tendo presentes certos fatos e certos traos, entend-lo com maior segurana. Gostaramos de lembrar aqui alguns deles.

    1. A Gnese do Discurso

    Primeira obra publicada por Descartes, o Discurso no foi a primeira a ser escrita. Quando jovem, Descartes redigir inmeras notas sobre os mais variados assuntos. Em 1628, comeara (em latim) uma obra relativa aos problemas das cincias e do mtodo: Regras p ara a direo do esprito. Um pouco mais tarde, por volta de 1629, traara as primeiras linhas de sua metafsica num esboo atualmente perdido. Por outro lado, j granjeara certo renome entre os eruditos graas s cartas que enviava ao Rev. Pe. Mersenne e que este, conforme os hbitos da poca, fazia circular. Finalmente, em novembro de 1633, estava a ponto de mandar publicar O mundo ou tratado da luz. No podemos ler o Discurso sem lem-

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  • ------------Prefcio

    brarmos a existncia desses textos, especialmente de O mundo. De fato, a gnese do primeiro vincula-se diretamente s circunstncias que levaram o autor a adiar a publicao do segundo.

    Em O m undo ou tratado da luz, Descartes desenvolvera, a propsito do problema particular da luz, as idias diretrizes de sua fsica. A obra refutaria definitivamente a antiga cosmologia de inspirao aristotli- ca, ainda ensinada nas escolas, e fundaria, finalmente, o mecanicismo dos modernos. Mas a doutrina era vinculada s concepes heliocntricas que, desde Coprnico, despertavam um interesse cada vez maior. Ora, o Santo Ofcio acabava de condenar Galileu, que delas se utilizava. Assustado, Descartes renunciou publicao de seu livro. Eis em que termos (novembro de 1633) explica sua deciso ao Pe. Mer- senne:

    ...propusera-me enviar-vos meu Mundo como presente de fim de ano [...], mas vos direi que, mandando indagar estes dias, em Leiden e em Amsterd, se o Sistema do mundo de Galileu achava-se venda, porque parecia-me ter sabido que fora impresso na Itlia no ano passado, comunicaram-me que era verdade que fora impresso, mas que todos os exemplares haviam sido queimados em Roma, ao mesmo tempo que o condenaram a retratar-se; o que me surpreendeu tanto que quase resolvi queimar todos meus papis ou, pelo menos, no os mostrar a ningum. Pois no podia imaginar como ele, que italiano, e mesmo estimado pelo papa, [...] pudesse ter

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  • Discurso do Mtodo

    sido criminalizado, a no ser por ter desejado, por certo, demonstrar o movimento da Terra [...] e confesso que, se isto estiver errado, todos os fundamentos de minha filosofia o estaro tambm, pois esse movimento demonstrado por eles com evidncia. E to ligado a todas as partes de meu tratado, que no poderia retir-lo sem deixar o restante totalmente claudicante. Mas, como no queria, por nada neste mundo, que sasse de mim um discurso em que se encontrasse qualquer palavra que fosse desaprovada pela Igreja, achei melhor suprimi-lo do que public- lo estropiado.

    Essas linhas expressam bem a emoo e o receio de Descartes diante da idia de ser desaprovado pela Igreja. Por que, entretanto, teme tanto uma condenao? Ela teria acarretado para ele as mesmas conseqncias que para Galileu? No, por certo. Mas Descartes naturalmente respeitoso da ordem na Igreja (bem como na sociedade). Esse esprito livre no tem nenhum pendor revolta. E, depois, pensa em sua obra. Ora, as brigas com Roma atrapalhariam sua realizao. Por fim, nociva e mais espetacular do que eficaz, a revolta tambm lhe parece intil; Roma pode recusar a verdade, a verdade acabar por impor-se prpria Roma: No perco totalmente a esperana de que acontea o mesmo que com os An- tpodas, que outrora foram condenados quase da mesma maneira, e de que, assim, meu Mundo possa, com o tempo, ser publicado.

    XVIII

  • Prefcio

    Se em 1633 Descartes se resigna e no perde a esperana, em 1637 julga que no basta ter esperana, mas que preciso agir; e por isso publica o Discurso.

    Inmeras razes parecem t-lo levado a tomar essa deciso. A primeira relaciona-se sua reputao. Refere-se a ela duas vezes no Discurso. E as duas passagens revelam igualmente o vivo desejo de estar altura da imagem que a fama traou dele: quer aceitar o desafio que esta representa. Nesse sentido, escreve o Discurso para mostrar do que capaz. Por outro lado ele espera, por meio desse livro, suscitar algum interesse por seus trabalhos. Por certo no tenciona, como foi dito algumas vezes, promover pesquisas em comum. Tambm no pretende apelar generosidade de ricos mecenas. Como mostra a sexta parte, queria sobretudo chamar a ateno dos poderes pblicos. Para prosseguir seus trabalhos, ele necessita realmente empreender muitas pesquisas onerosas. Julga que cabe ao Estado (ao pblico) ajud-lo nesse plano. Com efeito, este pode assegu- rar-lhe, alm de tempo disponvel, crditos financeiros. Decerto no obtm satisfao a esse respeito. Esperava-o realmente? No se tem certeza. Em todo caso desejava-o. E esta a segunda razo por que publica o Discurso. Mas h uma outra, mais importante.

    Alguns meses antes da publicao do Discurso, Descartes confessa ao Pe. Mersenne (27 de abril de 1637):

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  • Discurso do Mtodo

    ...S falei [nesta obra] como concebo minha Fsica a fim de incitar aqueles que a desejam a fazerem mudar as causas que me impedem de public-la.

    A outro correspondente, escreve no mesmo dia:

    Quanto ao tratado de Fsica cuja publicao fazeis a gentileza de me pedir, no teria sido to imprudente para falar sobre ele do modo que falei, se no tivesse vontade de public-lo, caso as pessoas o desejem e se nisso eu tiver proveito e segurana. Mas gostaria de dizer-vos que o nico propsito do trabalho que mando imprimir desta vez preparar-lhe o caminho e sondar o terreno.

    Estes dois fragmentos no deixam dvida. Descartes publica o Discurso para poder, proximamente, publicar o Mundo. Por isso quer sondar o terreno, isto , testar as opinies. Alm disso, quer preparar o caminho, ou seja, conseguir levantar o obstculo que impede a publicao - em outras palavras, conseguir que as autoridades romanas reconsiderem o juzo proferido acerca das doutrinas do movimento da Terra. Mas Descartes evita, a esse respeito, tentar uma ao direta.

    Pretende fazer agir os que desejam a publicao de seu tratado, esperando que, entre os eruditos que o lero, alguns tenham bastante influncia em Roma para levar o Santo Ofcio a tomar as medidas necessrias. Como se v, uma ttica perfeitamente clara: o Discurso deve despertar em alguns a vontade de co-

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  • ---------- Prefcio

    nhecer o Mundo, a ponto de intervirem junto ao Santo Ofcio para permitir a Descartes public-lo sem perigo. A manobra, de muita audcia, certamente fracassou, mas estaramos errados em perd-la de vista quando lemos o Discurso, pois ela esclarece muitos de seus aspectos. Alis, no h nada de surpreendente nisso. A condenao de Galileu fora um drama para Descartes tambm. Comprometia, num certo prazo, a reforma das cincias e da filosofia por ele projetada. Resignar-se por mais tempo teria sido perder as esperanas, ao que Descartes no muito inclinado.

    Dito isso, como comps o Discurso? Problema difcil. Se a histria das circunstncias que acompanham e das intenes que dominam o nascimento do texto pode ser estabelecida sem muita dificuldade, a da redao desse texto permanece mal conhecida. As etapas e as modalidades do trabalho nos escapam. A correspondncia, todavia, fornece algumas indicaes. Uma primeira aluso ao que se tornar o Discurso acha-se numa carta de 1Q de novembro de1635. Nela Descartes menciona um prefcio que ainda no fez, mas que queria juntar a Meteoros e a Diptrica, em que trabalhou durante o vero. Mas o que deveria conter esse prefcio? Por que Descartes pensa escrev-lo? Perguntas sem resposta.

    Seis meses depois, envia uma carta a Mersenne. Nela, o propsito se define. Anuncia-lhe, com efeito, que pretende publicar um livro, acrescentando:

    XXI

  • Discurso do Mtodo

    ... a fim de que saibais o que desejo mandar imprimir, haver quatro tratados, todos em francs, e o ttulo geral ser: Projeto de uma cincia universal que possa elevar nosso esprito a seu mais alto grau de perfeio. Mais a Diptrica, os Meteoros e a Geometria, em que as mais curiosas matrias que o autor possa ter escolhido para comprovarem a cincia universal que prope so explicadas de tal modo que mesmo os que no estudaram podem entend-las.

    Logo a seguir, Descartes observa:

    Nesse projeto revelo uma parte de meu mtodo, procuro demonstrar a existncia de Deus e da alma separada do corpo e acrescento vrias outras coisas, que, creio, no sero desagradveis ao leitor.

    O comeo deste texto claro: faz aluso segunda e quarta partes. Quais so as coisas que no sero desagradveis? Os elementos biogrficos? As passagens dedicadas fsica? No sabemos. Apostamos que se trata destas ltimas. As preferncias da poca, apesar de Montaigne, tendem menos s confidncias de um erudito do que s suas descobertas. E Descartes, com certa razo, tem o sentimento de que sua fsica esperada.

    Seja como for, pode-se admitir que a partir de maro de 1636 o plano do Discurso est determinado em suas linhas gerais. Se considerarmos, por outro lado, que a impresso do texto deve ter comeado em maro de 1637 (ver a carta a Mersenne dessa da

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  • ta), poderemos concluir facilmente que a composio do Discurso estendeu-se ao menos por um ano, talvez por dezoito meses2.

    Mas como procedeu Descartes? Em que medida utilizou os inditos, os rascunhos e os esboos que possua? Quais so, no texto atual, as passagens tiradas de textos antigos? Por que reformulaes passaram? No sabemos quase nada. E as pesquisas, sem dvida louvveis, aperfeioaram mais as conjeturas do que enriqueceram nossas certezas. Somente sobre dois pontos no h dvida alguma: o Discurso foi escrito relativamente depressa, mas por um autor que no havia parado de trabalhar e de meditar durante quinze anos. Por outro lado, essa obra-prima uma obra circunstancial; mais ainda: a mquina de combate3 - dupla concluso da histria de sua gnese, que seria grande erro menosprezar.

    ---------- ------------------------------------------------------------------Prefcio _________ _________________________ ________________________

    2. Estrutura e Contedo da Obra

    difcil conter um movimento de surpresa quando se examina rapidamente o contedo do Discurso do mtodo. O ttulo do livro parece prometer uma explanao sobre mtodo. Ora, encontramos sobre esse ponto no mximo algumas pginas, alis obscuras e difceis. Em compensao, o Discurso contm vrios elementos inesperados: uma narrativa sucinta da carreira do autor e um esboo bastante amplo de sua doutrina. Como se articulam esses dois elementos?

    XXIII

  • Discurso do Mtodo

    Qual sua relao com o mtodo? So perguntas difceis, sem dvida, mas no so insolveis se nos dermos ao trabalho de considerar, sem idias preconcebidas, a estrutura da obra. Mas quem diz estrutura diz, ao mesmo tempo, organizao de um todo e inteno dominante suscetvel de justific-lo. Ser possvel esclarecer a inteno para poder elucidar a organizao? Parece que sim. Duas passagens, em especial, so reveladoras a este respeito.

    ... meu propsito no ensinar aqui o mtodo que cada um deve seguir p ara bem conduzir sua razo, m as somente mostrar de que m odo procurei conduzir a minha, l-se no ltimo pargrafo da p. 7 do Discurso. E, mais adiante, Descartes acrescenta que prope este escrito apenas com o uma histria, ou, sepreferir- des, apenas com o um a fbu la . Talvez nem sempre se tenha reparado bem nestas linhas, entretanto notveis. Nelas sobressai claramente que a inteno do Discurso no didtica, e sim narrativa. O Discurso um a histria destinada a mostrar como Descartes conduziu sua razo; entretanto, se preferirmos, podemos ver nela uma fbu la. O que se deve entender da? Essa palavra designa, no uso corrente, quer uma narrativa fictcia sem nada em comum com a realidade, quer uma narrativa instrutiva comportando uma moralidade. Por certo Descartes se compraz em jogar com a ambigidade do termo. Contudo, parece que no seria o caso de se insistir muito no primeiro sentido: Descartes no pretende fazer o Discurso passar por um conto. Logo, foroso admitir que a histria

    XXIV

  • que nos prope comporta um ensinamento. Ou seja, embora a inteno da obra no seja didtica, mas histrica, ela no puramente histrica. Mais precisamente, inteno histrica sobrepe-se uma outra, que Descartes sugere ao introduzir a palavra fbula, mas evita definir. Poder ser caracterizada de modo mais preciso? No, se nos ativermos apenas ao texto do Discurso. Sim, se consultarmos a carta a Mersenne de maro de 1637. Nela, Descartes fornece as seguintes explicaes:

    ... no ponho Tratado do mtodo, e sim Discurso do mtodo, o que o mesmo que Prefcio ou Advertncia sobre o mtodo, para mostrar que no tenho inteno de ensin-lo, mas somente de falar sobre ele. Pois, como se pode ver pelo que exponho sobre ele, consiste mais em prtica que em teoria, e chamo os ensaios que vm depois de Ensaios deste mtodo, porque pretendo que as coisas que contm no poderiam ser encontradas sem ele, e que atravs delas podemos reconhecer o que ele vale; assim como inseri alguma coisa de metafsica, de fsica e de medicina no primeiro discurso para mostrar que o mtodo estende-se a todos os tipos de matrias.

    Essas linhas, certamente, repetem de algum modo o fim do prembulo, no sem darem, entretanto, algumas indicaes suplementares que merecem ateno. Primeiro ponto: especificam que no se deve esperar do Discurso um tratado e que a palavra

    _____________________________________________ -...................- Prefcio _________________________________________________________

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  • Discurso do Mtodo

    deve se ater aqui ao sentido de prefcio ou advertncia. Quer dizer que o objetivo do Discurso, segundo a confisso do prprio Descartes, no expor seu mtodo, mas chamar sobre ele a ateno de quem ler os Ensaios (Diptrica, Meteoros e Geometria) que o seguem. Estes so realmente aplicaes do mtodo e, como mtodo mais questo de prtica que de teoria, sobretudo atravs deles que Descartes pensa fazer com que o conheam. Isto nos mostra que o centro de gravidade da publicao de 1637 no se acha, para ele, no Discurso do mtodo, e sim nos trs ensaios que esse discurso introduz. Esse aspecto atualmente no levado em conta, mas importante no perd-lo de vista, pois mostra bem que o Discurso no constitui uma obra autnoma. No s isso. Mediante esses ensaios, diz ainda Descartes, pode-se saber o que vale o mtodo - pequena frase que parece secundria, mas capital. Em nenhum outro lugar ele explica melhor seu pensamento, que precisamente evidenciar a eficcia de seu mtodo, seu valor. Isto quer dizer que a inteno dominante da obra , no sentido estrito do termo, apologtica. Esta inteno, comum aos Ensaios e ao Discurso, no se expressa todavia em ambos da mesma maneira. Nos Ensaios, Descartes limita-se a apresentar amostras de seu mtodo; em contrapartida, no Discurso, pretende evidenciar as virtudes de seu mtodo mediante a narrativa da evoluo de seu esprito e de suas conquistas intelectuais. Da a originalidade desse texto, que propriamente uma histria apologti-

    XXVI

  • Prefcio

    ca do esprito do autor ou, como diz muito bem Descartes, uma fbula.

    Desse modo, esclarecem-se muitos aspectos da estrutura desta obra. Se o espao nela reservado ao mtodo restrito, no por acaso ou por inabilidade. A finalidade do Discurso no , realmente, analisar os principais aspectos do mtodo, mas sugerir seus mritos.

    Por outro lado, tambm se pode explicar a utilizao conjugada de uma narrativa autobiogrfica e de um esboo doutrinai, que pode surpreender primeira vista. Quando queremos mostrar que neste ou naquele perodo de nossa vida tivemos razo, o que fazemos no contar as circunstncias que determinaram nossas escolhas, e os sucessos que elas nos permitiram obter? Uma justificao abstrata seria possvel e talvez mais convincente: mas ser que persuadiria tanto e to facilmente? Certamente no. por isso que Descartes, que to admiravelmente exps sua filosofia de acordo com a ordem das razes nas M editaes, e que foi perfeitamente bem-sucedido ao exp-la novamente de modo didtico nos Princpios de acordo com uma ordem sinttica, preferiu a ordem histrica com o sentimento muito seguro de seus recursos. Desta maneira pode-se resolver tambm, ao que parece, o problema do plano desta obra que tanto embaraou os comentadores. Evidentemente, esse histrico, como alis o indica certo nmero de articulaes do texto: por exemplo, na segunda parte, estava ento na Alemanha-, na tercei

    XXVII

  • Discurso do Mtodo

    ra parte, recom ecei a viajar; etc. Em compensao, igualmente evidente que a histria no relatada por si mesma. Da a importncia dos fragmentos doutrinais que, no mais das vezes, tendem a encobrir a linha da narrativa. Mas no resta dvida de que a doutrina, por sua vez, no apresentada por si mesma. Por isso a exposio fica pouco elaborada, o que no importa muito, uma vez que Descartes no quis desenvolver sua filosofia no Discurso, mas evoc-la como testemunha da fora e da universalidade de seu mtodo. Da se depreende que a leitura correta do Discurso, em certo sentido, no tanto a que se prende aos diferentes elementos do texto, mas a que tenta recuperar seu prprio dinamismo.

    Quer dizer que os elementos so de qualidade discutvel, que s se encontra no Discurso uma autobiografia suspeita e uma exposio doutrinai feita s pressas? Houve quem o dissesse. Entretanto, nada mais incorreto. A obra deve ser lida com precauo. Mas, paradoxo da obra-prima, este texto, que uma espcie de arrazoado p ro domo, escrito com finalidades estratgicas, no deixa de ser uma obra cujo interesse humano e alcance filosfico so quase incontestveis. Sem dvida, no um texto decisivo em todos os pontos. um grande texto, e a iniciao de Descartes passa por ele, do mesmo modo como a reflexo sobre sua filosofia no poderia dispensar uma volta a ele.

    Certamente, a autobiografia de Descartes breve e rpida. No se parece nem com a dos Ensaios de

    xxvi n

  • Montaigne, nem com a das Confisses de Rousseau. Descartes s relata os acontecimentos de sua existncia na medida em que indicam as circunstncias em que se formou seu pensamento, e a histria a narrada no tanto a de um homem quanto a de um esprito. Pretendeu-se por vezes que lhe falta veracidade. Assim escreveu h tempos um historiador:

    Na realidade, a narrativa [de Descartes] comporta inexatides to graves, que o primeiro dever de quem deseja conhecer a verdadeira histria de seu pensamento considerar como sem valor o que ele nos diz sobre ela e tentar reconstitu-la por seus prprios meios.

    Severidade injustificada. Como bem demostraram tienne Gilson e Henri Gouhier, os dados biogrficos do Discurso se confirmam quando cotejados com outros documentos. No se pode negar, entretanto, que o Discurso s restabelece a vida de Descartes atravs da imagem que ele tem dela. Mas poderia ser de outra maneira? Por outro lado, no h dvida de que deixa muitas coisas na sombra e ilumina muito outras, mas por que haveramos de nos queixar? O esboo no melhor que um romance, desde que conserve o principal e sugira o que no diz? Ora, este o caso do Discurso. A narrativa estilizada dos acontecimentos evoca um clima e nos faz sentir a presena do homem. Assim, atravs das pginas dedicadas ao colgio La Flche, adivinha-se o

    ................................................................................ ...................................P refcio _________________________________________________________ __

    XXIX

  • Discurso do Mtodo

    que ter sido o adolescente; atravs daquelas do fim da terceira parte, a atitude do jovem erudito que procura se achar antes de se fixar na Holanda; atravs de toda a sexta parte, o homem na maturidade, com a conscincia de seu gnio, com o orgulho exaltado pela adversidade, com uma audcia circunspecta de pensamento e ao. Ler atentamente o Discurso um pouco como conviver com o filsofo, e este no o menor atrativo de uma leitura como essa.

    Entretanto, qualquer que seja o interesse biogrfico e humano do texto, ele vale sobretudo pelo contedo filosfico. Por certo, uma doutrina s se expressa perfeitamente numa obra tcnica. Um escrito esotrico, contudo, pode revelar mais completamente seu esprito e seus motivos fundamentais. O Discurso d assim, da filosofia de Descartes, um apanhado eloqente, a despeito de sua conciso ou, pelo contrrio, em razo dela.

    xxx

  • Cronologia

    1589-1610. Reinado de Henrique IV

    1596. Nasce Ren Descartes em La Haye (hoje La Haye-Descartes), Frana. Seu pai, Joachim Descartes, conselheiro do Parlamento da Bretanha. Sua me Jeanne Brochard. Morre a me de Descartes e ele educado pela av materna e por uma governanta.

    1598. Tratado de Vervins.1606. Nascimento de Corneille.1606-1614. Descartes estuda no colgio de jesutas

    de La Flche, dirigido por um parente seu, Pe. Charlet.

    1609. Fundao da Academia de Lincei.Kepler, Astronomia nova.

    1610. Henrique IV assassinado por Ravaillac. Galileu inventa o telescpio.

    1610-1643. Reinado de Lus Xffl

    1613. Nascimento de La Rochefoucauld.

    XXXI

  • Discurso do Mtodo

    l6l6. Descartes recebe o bacharelado e a licenciatura em Direito pela Universidade de Poitiers. Morte de Shakespeare.Morte de Cervantes.

    1618. No incio do ano, Descartes vai para a Holanda, onde se alista como voluntrio no exrcito de Maurcio de Nassau, Prncipe de Orange. L torna-se amigo do sbio holands Isaac Beeck- man, com quem estuda e discute matemtica e msica...

    1618-1648. Guerra dos Trinta Anos.1619. Descartes parte para a Dinamarca e a Alema

    nha. Alista-se no exrcito catlico do duque da Baviera. No incio do inverno sua tropa estaciona perto de Ulm. a que Descartes encontra as condies necessrias meditao, no clebre pole, quarto aquecido por um aquecedor de porcelana, cujo conforto j fora exaltado por Montaigne.

    1620. possvel que Descartes tenha participado na batalha de Maison Blanche, perto de Praga, onde Frederico V, rei da Bomia, eleitor pala- tino e sustentculo dos protestantes, perde o trono. No se sabe, no entanto, se Descartes no ter abandonado antes o exrcito catlico, justamente para no ser obrigado a participar dessa batalha. Frederico V era pai da princesa Elisabeth, mais tarde a melhor amiga de Descartes.Bacon, Novum organum.

    XXXII

  • Cronologia

    1621. Nascimento de La Fontaine.1622. Richelieu nomeado cardeal.1623. Temporada na Frana, quando Descartes ven

    de parte de suas propriedades. Depois parte para a Itlia, onde possivelmente participa da peregrinao a N. S. de Loreto e assiste ao Jubileu de Urbano VIII.Nascimento de Pascal.

    1624. O Parlamento de Paris probe uma conferncia contra Aristteles.Morte de Jacob Boehme.

    1624-1642. Ministrio de Richelieu

    1625. Volta Frana, onde permanece ora na Bretanha, ora em Paris.Mersenne, A verdade das cincias contra os cpticos ou pirronianos.Grotins, Do direito da guerra e da paz.

    1626. Morte de Bacon.1627. Nascimento de Bossuet.1628. Descartes escreve, em latim, Regras p ara a

    direo do esprito (sua publicao, no entanto, s ocorrer em 1701). No outono parte para a Holanda, onde permanecer at 1649.

    1629. Nascimento de Huygens.1630. Descartes inicia a redao de O mundo ou tra

    tado da luz.1632. Rembrandt, A lio de anatom ia.

    Nascimento de Vermeer de Delft.

    XXXIII

  • Discurso cio Mtodo

    Nascimento de Spinoza.Nascimento de Locke.

    1633. Galileu abjura perante a Inquisio.Com a condenao de Galileu, Descartes desiste de publicar seu Tratado. S ser publicado em 1664, em francs, com o ttulo Tratado do homem,.

    1635. Nasce Francine, filha natural de Descartes com uma empregada, Hlne Jans.Fundao da Academia Francesa.

    1636. Fundao da Universidade de Harvard. Nascimento de Boileau.

    1637. publicado em francs, sem o nome do autor, o Discurso do Mtodo, e logo depois Diptri- ca, Meteoros e Geometria. S esses trs ensaios chamam a ateno dos eruditos.

    1639- Nascimento de Racine.1640. Morrem Francine, em setembro, e Joachim Des

    cartes, pai de Ren, em outubro.Os jesutas probem o ensino do cartesianismo nos seus colgios.

    1641. publicada em Paris, em latim, a obra M editaes sobre a filosofia prim eira na qual se demonstra a existncia de Deus e a im ortalidade da alm a.Em Utrecht, instala-se a polmica com Vot (Voetius), professor da Universidade, que depois de contestar Descartes durante muitos anos acusa-o de atesmo em dezembro de 1641.

    1642. A Universidade de Utrecht condena a nova filosofia, sem citar o nome do filsofo.

    XXXIV

  • Cronologia _

    Morte de Richelieu.Nascimento de Newton.Corneille, Polyeucte.Publicao em Paris do De Cive, de Hobbes.

    1643. Voetius publica um escrito intitulado A filosof ia cartesiana, onde a denuncia como pouco sria e mentirosa. A polmica s se abranda graas interveno do embaixador da Frana e de alguns amigos influentes de Descartes. Inicia-se a amizade entre Descartes e a princesa Elisabeth, filha do eleitor palatino refugiado em La Haye desde 1627. A correspondncia trocada entre eles at 1650 constitui um dos documentos fundamentais sobre o pensamento e a personalidade do filsofo.Morte de Lus XIII.

    1643-1661. Regncia de Ana da ustria

    1643. Molire funda o Ilustre Teatro.1644. Descartes viaja para a Frana em maio.

    Em julho publicada em Amsterdam, em latim, a obra Princpios de filosofia, dedicada princesa Elisabeth.Torricelli inventa o barmetro.

    1645-1646. Durante este inverno, Descartes escreve o tratado As paixes da alm a, respondendo a uma indagao da princesa Elisabeth.

    1646. Nascimento de Leibniz.Converso de Pascal ao jansenismo.

    XXXV

  • Discurso do Mtodo

    1647. Em Leyde, Descartes acusado de pelagianis- mo. Coloca-se contra ele um velho amigo e discpulo, Henri Le Roy (Regius). O embaixador da Frana intervm junto ao prncipe de Orange para que detenha a nova polmica que se inicia. A Universidade probe ento que se fale em Descartes.Segunda viagem de Descartes Frana. Reconcilia-se com Hobbes e Gassendi e encontra-se com Pascal.Em dezembro, reacende-se a polmica com Regius. A Universidade de Leyde acaba nomeando um cartesiano para ocupar uma ctedra vaga.

    1648. Terceira viagem de Descartes Frana.Morre o Pe. Marsenne, amigo de Descartes desde os tempos do colgio de La Flche e responsvel pela continuidade do contato de Descartes com o mundo erudito de Paris, atravs da volumosa correspondncia que ambos trocaram.Descartes termina Tratado do homem.Tratado da Vesteflia.Experincias de Pascal no Puy-de-Dme. Rembrandt, Os peregrinos de Emas.

    1649. Cristina, rainha da Sucia, convida Descartes a instalar-se em Estocolmo. Descartes hesita, mas em setembro deixa definitivamente a Holanda e em outubro chega a Estocolmo.Em Paris publicado o Tratado das paixes da alm a.

    XXXVI

  • Cronologia

    Fundao da seita dos quakers.Traduo francesa do De Cive, de Hobbes.

    1650. Descartes morre em Estocolmo, no dia 2 de fevereiro, sendo enterrado no cemitrio. A rainha oferece para os funerais o principal templo da cidade, mas Chanut, embaixador da Frana, recusa. Descartes enterrado num cemitrio reservado aos estrangeiros, rfos e pagos.Em 1667 seus restos so transferidos para a Frana. Desde 1819 encontram-se na igreja de Saint-Germain-des-Prs.

    XXXVII

  • Nota desta Edio

    A presente traduo foi feita a partir do texto da edio de Adam e Lannery, Oeuvres completes, 12 vols., in 4Q, 1897-1913. J. M. Fateaud preparou o aparelho crtico no qual se baseiam os textos do prefcio e as notas da presente edio, selecionados e traduzidos por M. Ermantina Galvo Gomes Pereira.

    O Editor

    XXXIX

  • DISCURSO DO MTODO

  • Para Bem Conduzir a Razo e Procurar a Verdade nas Cincias

    Se este discurso parecer muito longo p ara ser lido de uma s vez, poder-se- dividi-lo em seis partes. Na prim eira, sero encontradas diversas consideraes sobre as cincias. Na segunda, as principais regras do mtodo que o autor exam inou. Na terceira, algum as das regras da m oral que ele extraiu desse mtodo. Na quarta, as razes pelas quais p rova a existncia de Deus e da alm a hum ana, que so os fundam entos de sua m etafsica. Na quinta, a ordem das questes de fs ica que exam inou, particularm ente a explicao do movimento do corao e algum as outras dificuldades pertencentes m edicina, e tam bm a diferena que existe entre nossa alm a e a dos anim ais. E, na ltima, as coisas que ele julga necessrias p ara ir mais alm na investigao da natureza do que j se fo i, e as razes que o fizeram escrever.

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  • Primeira Parte

    O bom senso a coisa mais bem distribuda do mundo: pois cada um pensa estar to bem provido dele, que mesmo aqueles mais difceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa no costumam desejar mais bom senso do que tm. Assim, no verossmil que todos se enganem; mas, pelo contrrio, isso demonstra que o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que propriamente o que se denomina bom senso ou razo, por natureza igual em todos os homens; e portanto que a diversidade de nossas opinies no decorre de uns serem mais razoveis que os outros, mas somente de que conduzimos nossos pensamentos por diversas vias, e no consideramos as mesmas coisas. Pois no basta ter o esprito bom, mas o principal aplic-lo bem. As maiores almas so capazes dos maiores vcios, assim como das maiores virtudes; e aqueles que s caminham muito lentamente podem avanar muito mais, se sempre seguirem o caminho certo, do que aqueles que correm e dele se afastam.

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  • Discurso do Mtodo

    Quanto a mim, jamais presumi que meu esprito fosse em nada mais perfeito que o do comum dos homens; muitas vezes at desejei ter o pensamento to pronto ou a imaginao to ntida e distinta, ou a memria to ampla ou to presente como alguns outros. E no conheo outras qualidades, alm destas, que sirvam para a perfeio do esprito; pois, quanto razo ou senso, visto que a nica coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que est inteira em cada um, nisto seguindo a opinio comum dos filsofos, que dizem que s h mais e menos entre os acidentes, e no entre as form as ou naturezas dos indivduos de uma mesma espcie1.

    Mas no recearei dizer que penso ter tido muita sorte por me ter encontrado, desde a juventude, em certos caminhos que me conduziram a consideraes e mximas com as quais formei um mtodo que me parece fornecer um meio de aumentar gradualmente meu conhecimento e de elev-lo pouco a pouco ao ponto mais alto que a mediocridade de meu esprito e a curta durao de minha vida lhe permitiro alcanar. Pois dele j colhi frutos tais que, embora nos juzos que fao de mim mesmo sempre procure inclinar-me mais para o lado da desconfiana que para o da presuno, e embora considerando com olhos de filsofo as diversas aes e empreendimentos de todos os homens no haja quase nenhum que no me parea vo e intil, no deixo de sentir uma imensa satisfao pelo

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  • _______Primeira Parte

    progresso que penso j ter feito na procura da verdade, e de conceber tamanhas esperanas para o futuro que, se entre as ocupaes dos homens puramente homens2 h alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a crer que a que escolhi.

    Todavia, pode ser que me engane e talvez no passe de um pouco de cobre e de vidro o que tomo por ouro e diamantes. Sei o quanto estamos sujeitos a nos enganar naquilo que nos diz respeito, e tambm o quanto os pensamentos de nossos amigos nos devem ser suspeitos, quando so a nosso favor. Mas gostaria muito de mostrar, neste discurso, quais so os caminhos que segui, e de nele representar minha vida como num quadro, para que todos possam julg-la e para que, tomando conhecimento, pelo rumor comum, das opinies que se tero sobre ele, seja isso um novo meio de instruir- me, que acrescentarei queles de que me costumo servir.

    y Assim, meu propsito no ensinar aqui o mtodo que cada um deve seguir para bem conduzir sua razo, mas somente mostrar de que modo procurei conduzir a minha. Aqueles que se metem a dar preceitos devem achar-se mais hbeis do que aqueles a quem os do; e, se falham na menor coisa, so por isso censurveis. Mas, propondo este escrito apenas como uma histria, ou, se preferirdes, apenas como uma fbula, na qual, dentre alguns exemplos que podem ser imitados, talvez tambm se

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  • Discurso do Mtodo

    encontrem vrios outros que se ter razo em no seguir, espero que ele seja til a alguns sem ser nocivo a ningum, e que todos apreciem minha franqueza.

    Fui alimentado com as letras desde minha infncia, e, por me terem persuadido de que por meio delas podia-se adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que til vida, tinha um imenso desejo de aprend-las. Mas, assim que terminei todo esse ciclo de estudos, no termo do qual se costuma ser acolhido nas fileiras dos doutos, mudei inteiramente de opinio. Pois encontrava-me enredado em tantas dvidas e erros, que me parecia no ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, seno o de ter descoberto cada vez mais minha ignorncia. E, no entanto, estava numa das mais clebres escolas da Europa, onde pensava que devia haver homens sbios, se que os h em algum lugar da terra. Nela aprendera tudo o que os outros aprendiam; e mesmo, no me tendo contentado com as cincias que nos ensinavam, percorrera todos os livros que me caram nas mos, que tratavam daquelas consideradas mais curiosas e mais raras3. Com isso, conhecia os juzos que os outros faziam de mim; e no notava que me considerassem inferior a meus condiscpulos, embora j houvesse entre eles alguns destinados a assumirem o lugar de nossos mestres. E, enfim, nosso sculo pa- recia-me to florescente e to frtil em bons espritos como qualquer um dos precedentes. O que me

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  • ______Primeira Parte____ ..

    levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros, e de pensar que no havia doutrina4 alguma no mundo que fosse tal como antes me haviam feito esperar.

    No deixava, todavia, de apreciar os exerccios com os quais nos ocupamos nas escolas. Sabia que as lnguas que nelas aprendemos so necessrias para a inteligncia dos livros antigos; que a delicadeza das fbulas desperta o esprito, que os feitos memorveis das histrias o elevam, e que, sendo lidas com discernimento, ajudam a formar o juzo, que a leitura de todos os bons livros como uma conversa com as pessoas mais ilustres dos sculos passados, que foram seus autores, e mesmo uma conversa refletida na qual eles s nos revelam seus melhores pensamentos; que a eloqncia tem foras e belezas incomparveis; que a poesia tem delicadezas e douras encantadoras; que as matemticas tm invenes muito sutis e que muito podem servir, tanto para contentar os curiosos quanto para facilitar todas as artes5 e diminuir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contm vrios ensinamentos e vrias exortaes virtude que so muito teis; que a teologia ensina a ganhar o cu; que a filosofia6 proporciona meios de falar com verossimilhana de todas as coisas, e de se fazer admirar pelos menos sbios; que a jurisprudncia, a medicina e as outras cincias trazem honras e riquezas queles que as cultivam; e, enfim, que bom ter examinado todas elas, mesmo as

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  • Discurso do Mtodo

    mais supersticiosas e mais falsas, a fim de conhecer seu justo valor e evitar ser por elas enganado.

    Mas eu acreditava j ter dedicado bastante tempo s lnguas, e tambm leitura dos livros antigos, s suas histrias e s suas fbulas. Pois conversar com as pessoas dos outros sculos quase o mesmo que viajar. bom saber alguma coisa dos costumes de vrios povos para julgarmos os nossos mais salu- tarmente, e para no pensarmos que tudo o que contra nossos modos ridculo e contra a razo, como costumam fazer os que nada viram. Mas, quando empregamos muito tempo viajando, acabamos por nos tornar estrangeiros em nosso prprio pas; e, quando somos curiosos demais das coisas que se praticavam nos sculos passados, geralmente permanecemos muito ignorantes das que se praticam neste. Alm do mais, as fbulas nos fazem imaginar como possveis vrios acontecimentos que no o so, e mesmo as histrias mais fiis, se no mudam nem aumentam o valor das coisas para torn-las mais dignas de serem lidas, pelo menos omitem quase sempre as mais baixas e menos ilustres circunstncias: da resulta que o resto no parea tal como , e que aqueles que regulam seus costumes pelos exemplos que extraem delas estejam sujeitos a cair nas extravagncias dos Paladinos de nossos romances, e a conceber propsitos que ultrapassam suas foras.

    Apreciava muito a eloqncia, e era apaixonado pela poesia; mas pensava que ambas eram mais

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  • ________ Primeira Parte

    dons do esprito do que frutos do estudo. Os que tm o raciocnio mais forte e melhor digerem seus pensamentos, a fim de torn-los claros e inteligveis, sempre so os que melhor podem persuadir do que propem, ainda que s falem baixo breto e nunca tenham aprendido retrica. E os que tm as invenes mais agradveis, e sabem express-las com mais ornamento e doura, no deixariam de ser os melhores poetas, ainda que a arte potica lhes fosse desconhecida.

    Comprazia-me sobretudo com as matemticas, por causa da certeza e da evidncia de suas razes; mas no percebia ainda seu verdadeiro uso e, pensando que s serviam para as artes mecnicas, espanta va-me de que, sendo to firmes e slidos os seus fundamentos, nada de mais elevado se tivesse construdo sobre eles7. Assim como, ao contrrio, eu comparava os escritos dos antigos pagos, que tratam dos costumes, a palcios muito soberbos e magnficos, que eram construdos apenas sobre areia e lama. Eles enaltecem muito as virtudes, e as fazem parecer mais estimveis do que todas as coisas do mundo, mas no ensinam suficientemente a co- nhec-las, e amide o que chamam de to belo nome no passa de uma insensibilidade, ou de um orgulho, ou de um desespero, ou de um parricdio8.

    Eu revenerava nossa teologia, e pretendia, tanto quanto qualquer outro, ganhar o cu; mas, tendo aprendido, como coisa muito certa, que o caminho no menos aberto aos mais ignorantes do que aos

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  • Discurso do Mtodo

    mais doutos, e que as verdades reveladas, que a ele conduzem, esto acima de nossa inteligncia, no teria ousado submet-las fraqueza de meus raciocnios, e pensava que, para empreender examin- las e ser bem-sucedido, era necessrio ter alguma assistncia extraordinria do cu, e ser mais que um homem.

    Nada direi da filosofia, a no ser que, vendo que foi cultivada pelos mais excelentes espritos que viveram desde h vrios sculos, e que, no obstante, nela no se encontra coisa alguma sobre a qual no se discuta e, por conseguinte, que no seja duvidosa, eu no tinha tanta presuno para esperar me sair melhor do que os outros; e que, considerando quantas opinies diversas pode haver sobre uma mesma matria, todas sustentadas por pessoas doutas, sem que jamais possa haver mais de uma que seja verdadeira, eu reputava quase como falso tudo o que era apenas verossmil.

    Depois, quanto s outras cincias9, na medida em que tiram seus princpios da filosofia, eu julgava que nada de slido se podia ter construdo sobre fundamentos to pouco firmes. E nem a honra nem o ganho que elas prometem eram suficientes para levar-me a aprend-las; pois no me encontrava, graas a Deus, em condies que me obrigasse a fazer da cincia um ofcio para o alvio de minha fortuna; e, embora no fizesse profisso de desprezar a glria como um cnico, dava pouca importncia quela que s podia esperar adquirir a falso ttu

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  • Primeira Parte

    lo. E, finalmente, quanto s ms doutrinas, pensava j conhecer bem o que valiam, para no mais estar sujeito a ser enganado nem pelas promessas de um alquimista, nem pelas predies de um astrlogo, nem pelas imposturas de um mago, nem pelos artifcios ou pelas gabolices de um daqueles que fazem profisso de saber mais do que sabem.

    Por isso, assim que a idade me permitiu sair da sujeio de meus preceptores, deixei completamente o estudo das letras. E, resolvendo-me a no mais procurar outra cincia alm da que poderia encon- trar-se em mim mesmo, ou ento no grande livro do mundo, empreguei o resto da juventude em viajar, em ver cortes e exrcitos, em conviver com pessoas de diversos temperamentos e condies, em recolher vrias experincias, em experimentar-me a mim mesmo nos encontros que o acaso me propunha, e, por toda parte, em refletir sobre as coisas de um modo tal que pudesse tirar algum proveito. Pois parecia-me que poderia encontrar muito mais verdade nos raciocnios que cada qual faz sobre os assuntos que lhe dizem respeito, e cujo desfecho deve puni-lo logo depois, se julgou mal, do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especulaes que no produzem nenhum efeito, e que no tero outra conseqncia a no ser, talvez, a de que extrair delas tanto mais vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, pelo fato de ter tido de empregar tanto mais esprito e artifcio para torn-las verossmeis. E eu tinha sempre um

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  • Discurso do Mtodo

    imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro em minhas aes, e caminhar com segurana nesta vida.

    verdade que, enquanto me limitei a considerar os costumes dos outros homens, quase nada encontrei que me desse segurana, e notava quase tanta diversidade quanto antes observara entre as opinies dos filsofos. De forma que o maior proveito que disso tirava era que, vendo vrias coisas que, embora nos paream muito extravagantes e ridculas, no deixam de ser comumente aceitas e aprovadas por outros grandes povos, aprendia a no crer com muita firmeza em nada do que s me fora persuadido pelo exemplo e pelo costume; e assim desvencilhava-me pouco a pouco de muitos erros, que podem ofuscar nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razo. Mas, depois de ter empregado alguns anos estudando assim no livro do mundo e procurando adquirir alguma experincia, tomei um dia a resoluo de estudar tambm a mim mesmo e de empregar todas as foras de meu esprito escolhendo os caminhos que deveria seguir. O que me deu melhor resultado, ao que me parece, do que se nunca me tivesse afastado nem de meu pas, nem de meus livros.

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  • Segunda Parte

    Estava ento na Alemanha, para onde a ocorrncia das guerras, que l ainda no terminaram, havia- me chamado, e, quando estava voltando da coroao do imperador1 para o exrcito, o comeo do inverno reteve-me numa caserna onde, no encontrando nenhuma conversa que me distrasse, e no tendo, alis felizmente, nenhuma preocupao nem paixo que me perturbasse, ficava o dia inteiro sozinho fechado num quarto aquecido, onde tinha bastante tempo disponvel para entreter-me com meus pensamentos. Entre esses, um dos primeiros foi a considerao de que freqentemente no h tanta perfeio nas obras compostas de vrias peas, e feitas pelas mos de vrios mestres, como naquelas em que apenas um trabalhou. Assim, v-se que os edifcios iniciados e terminados por um nico arquiteto costumam ser mais belos e mais bem ordenados do que aqueles que muitos procuraram reformar, servindo-se de velhas muralhas que haviam sido construdas para outros fins. Assim, as antigas cidades, tendo sido no comeo apenas aldeias,

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  • Discurso do Mtodo

    e se transformando com o passar do tempo em grandes cidades, so comumente to mal proporcionadas em comparao com as praas regulares que um engenheiro traa sua vontade, numa plancie, que, embora considerando seus edifcios separadamente, neles encontremos amide tanta ou mais arte do que naqueles das outras; entretanto, ao vermos como esto dispostos, um grande aqui, um pequeno ali, e como tornam as ruas curvas e desiguais, diramos que mais o acaso do que a vontade de alguns homens, usando da razo, que assim os disps. E, se considerarmos que sempre houve, no entanto, alguns funcionrios encarregados de vigiarem os edifcios dos particulares para faz-los servir ao embelezamento pblico, reconheceremos como difcil, ao se trabalhar apenas sobre as obras dos outros, fazer coisas muito bem acabadas. Assim, imaginei que os povos que, tendo sido outrora semi-selvagens e tendo-se civilizado apenas pouco a pouco, foram fazendo suas leis somente medida que a incomodidade dos crimes e das querelas a isso os forou no poderiam ser to bem policiados como aqueles que, desde o momento em que se reuniram, observaram as constituies de algum prudente legislador. Como muito certo que o estado da verdadeira religio, cujos mandamentos Deus fez sozinho, deve ser incomparavelmente mais bem regulamentado que todos os outros. E, para falar das coisas humanas, acredito que, se Esparta foi outrora to florescente, no foi por causa da bondade

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  • Segunda Parte

    de cada uma de suas leis em particular, visto que muitas eram muito estranhas e at contrrias aos bons costumes; mas foi porque, tendo sido inventadas por um s indivduo2, todas tendiam ao mesmo fim. E assim pensei que as cincias dos livros, pelo menos aquelas cujas razes so apenas provveis, e que no tm nenhuma demonstrao3, sendo compostas e aumentadas pouco a pouco pelas opinies de muitas pessoas diferentes, no se aproximam tanto da verdade quanto os simples raciocnios que um homem de bom senso pode fazer naturalmente sobre as coisas que se lhe apresentam. E assim tambm pensei que, por todos ns termos sido crianas antes de sermos homens, e por termos precisado ser governados muito tempo por nossos apetites e por nossos preceptores, freqentemente contrrios uns aos outros, e porque uns e outros talvez nem sempre nos aconselhassem o melhor, quase impossvel que nossos juzos sejam to puros e to slidos como teriam sido se tivssemos tido inteiro uso de nossa razo desde a hora de nosso nascimento, e se tivssemos sido conduzidos sempre por ela.

    verdade que no vemos demolirem-se todas as casas de uma cidade s com o propsito de refaz- las de outra forma e de tornar as ruas mais belas, mas no incomum vermos muitos mandarem derrubar as suas para reconstru-las, e at, por vezes, a isso so obrigados quando elas correm o risco de cair por si mesmas e os alicerces no esto muito

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  • Discurso do Mtodo

    firmes. Com esse exemplo me persuadi de que no teria cabimento um particular propor-se a reformar um Estado mudando-lhe tudo desde os alicerces e derrubando-o para reergu-lo; nem mesmo, tambm, a reformar o corpo das cincias ou a ordem estabelecida nas escolas para as ensinar; mas, quanto s opinies que at ento eu aceitara, o melhor que podia fazer era suprimi-las de uma vez por todas, a fim de substitu-las depois, ou por outras melhores, ou ento pelas mesmas, quando eu as tivesse ajustado ao nvel da razo. E acreditei firmemente que, desta forma, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se apenas construsse sobre velhos alicerces e s me apoiasse nos princpios de que me deixara persuadir em minha juventude, sem nunca ter examinado se eram verdadeiros. Pois, embora observasse nisso diversas dificuldades, elas no eram, entretanto, irremediveis, nem comparveis s que se encontram na reforma das menores coisas referentes ao pblico4. Esses grandes corpos so muito difceis de reerguer quando derrubados, ou mesmo de manter quando abalados, e suas quedas s podem ser muito violentas. Ademais, quanto s suas imperfeies, se as tm, e a prpria diversidade que existe entre eles suficiente para garantir que vrios as tm, o uso por certo as amenizou muito e at evitou ou corrigiu pouco a pouco grande nmero delas que no se poderiam prover to bem pela prudncia; e, enfim, elas so quase sempre mais suportveis do que se

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  • Segunda Parte

    ria a sua mudana, da mesma maneira que os grandes caminhos que serpenteiam entre montanhas tor- nam-se pouco a pouco to uniformes e to cmodos, fora de serem freqentados, que muito melhor segui-los do que empreender um caminho mais reto, galgando por cima dos rochedos e descendo at o fundo dos precipcios.

    Por isso eu no poderia de modo algum aprovar esses temperamentos turbulentos e inquietos que, no sendo chamados nem pelo nascimento nem pela fortuna ao manejo dos negcios pblicos, no deixam de neles sempre fazer em pensamentos alguma nova reforma; e, se eu pensasse que houvesse a menor coisa neste escrito pela qual pudesse ser suspeito dessa loucura, ficaria contrariado por haver permitido sua publicao. Nunca meu propsito foi mais do que procurar reformar meus prprios pensamentos e construir um terreno que todo meu. E se, tendo minha obra me agradado bastante, mostro-vos aqui o seu modelo, isto no quer dizer que queria aconselhar algum a imit-la. Aqueles a quem Deus melhor dotou de suas graas tero, talvez, propsitos mais elevados; mas temo que este seja ousado demais para muitos. A mera resoluo de se desfazer de todas as opinies antes aceitas como verdadeiras no um exemplo que todos devam seguir. E o mundo compe-se de certo modo de apenas duas espcies de esprito aos quais ele no convm de modo algum, a saber, aqueles que, julgando-se mais hbeis do que so, no con

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  • Discurso do Mtodo

    seguem impedir-se de fazer juzos precipitados, nem ter bastante pacincia para conduzir ordenadamente todos os seus pensamentos; da resulta que, se tomassem alguma vez a liberdade de duvidar dos princpios que receberam e de se afastar do caminho comum, nunca poderiam manter-se no atalho que preciso tomar para caminhar mais reto, e ficariam perdidos por toda a vida5, e aqueles que, tendo bastante razo ou modstia para julgar que so menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros por quem podem ser instrudos, devem antes contentar-se em seguir as opinies desses outros do que procurar por si mesmos outras melhores6.

    E, quanto a mim, decerto faria parte do nmero destes ltimos se tivesse tido sempre apenas um mestre ou se desconhecesse as diferenas que sempre existiram entre os mais doutos; mas, tendo aprendido j no colgio que no se poderia imaginar nada de to estranho e de to pouco crvel que no tivesse sido dito por algum dos filsofos; e depois disso, ao viajar, tendo reconhecido que todos os que tm sentimentos muito contrrios aos nossos nem por isso so brbaros nem selvagens, mas que vrios usam tanto ou mais que ns a razo; e tendo considerado como um mesmo homem, com seu mesmo esprito, tendo sido criado desde a infncia entre franceses ou alemes, torna-se diferente do que seria se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais; e como, at nas modas de nossas roupas,

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  • Segunda Parte

    a mesma coisa que nos agradou h dez anos, e que talvez nos agrade tambm daqui a menos de dez anos, parece-nos agora extravagante e ridcula; de sorte que muito mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que algum conhecimento certo, e, no obstante, a pluralidade de opinies no uma prova que valha para as verdades um pouco difceis de descobrir, porque muito mais verossmil que um s homem as tenha encontrado do que um povo inteiro; eu no podia escolher ningum cujas opinies parecessem preferveis s dos outros, e achei-me como que forado a empreender conduzir-me a mim mesmo.

    Mas, como um homem que caminha sozinho e nas trevas, resolvi caminhar to lentamente e usar tanta circunspeco em todas as coisas que, embora s avanasse muito pouco, pelo menos evitaria cair. Nem quis comear a rejeitar totalmente nenhuma das opinies que outrora conseguiram insinuar- se em minha crena sem terem sido nela introduzidas pela razo, antes que tivesse empregado bastante tempo em projetar a obra que estava empreendendo, e em buscar o verdadeiro mtodo para chegar ao conhecimento de todas as coisas de que meu esprito seria capaz7.

    Estudara um pouco, quando jovem, entre as partes da filosofia, a lgica, e, entre as matemticas, a anlise dos gemetras e a lgebra, trs artes ou cincias que pareciam dever contribuir um tanto ao meu propsito. Mas, ao examin-las, atentei que,

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  • Discurso do Mtodo

    quanto lgica8, seus silogismos e a maior parte de suas outras instrues servem mais para explicar aos outros as coisas que se sabem, ou mesmo, como a arte de Llio9, para falar sem discernimento daquelas que se ignoram, do que para aprend-las; e, embora ela contenha efetivamente preceitos muito verdadeiros e muito bons, existem, misturados a eles, tantos outros que so nocivos ou suprfluos, que quase to difcil separ-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mrmore que ainda no est esboado. Depois, quanto anlise dos antigos10 e lgebra dos modernos, alm de s se estenderem a matrias muito abstratas, e que parecem de nenhuma utilidade, a primeira est sempre to restrita considerao das figuras que no pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginao; e na ltima ficamos to sujeitos a certas regras e a certos sinais11, que dela se fez uma arte confusa e obscura que embaraa o esprito, ao invs de uma cincia que o cultive. Foi isto que me levou a pensar que cumpria procurar algum outro mtodo que, compreendendo as vantagens desses trs, fosse isento de seus defeitos. E, como a multiplicidade de leis freqentemente fornece desculpas aos vcios, de modo que um Estado muito mais bem regrado quando, tendo pouqussimas leis, elas so rigorosamente observadas; assim, em vez desse grande nmero de preceitos de que a lgica composta, acreditei que me bastariam os quatro seguintes, contanto que tomasse a firme e constante resoluo de no deixar uma nica vez de observ-los.

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  • Segunda Parte_____

    O primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitao e a preveno, e no incluir em meus juzos nada alm daquilo que se apresentasse to clara e distintamente a meu esprito, que eu no tivesse nenhuma ocasio de p-lo em dvida.

    O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possvel e necessrio para melhor resolv-las.

    O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, comeando pelos objetos mais simples e mais fceis de conhecer12, para subir pouco a pouco, como por degraus, at o conhecimento dos mais compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles que no se precedem naturalmente uns aos outros.

    E, o ltimo, fazer em tudo enumeraes to completas, e revises to gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir.

    Essas longas cadeias de razes, to simples e fceis, de que os gemetras costumam servir-se para chegar s suas mais difceis demonstraes, levaram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira, e que, com a nica condio de nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que no o seja, e de observarmos sempre a ordem necessria para deduzi-las umas das outras, no pode haver nenhuma to afastada que no acabemos por

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  • Discurso do Mtodo

    chegar a ela e nem to escondida que no a descubramos. E no tive muita dificuldade em concluir por quais era necessrio comear, pois j sabia que era pelas mais simples e mais fceis de conhecer; e, considerando que entre todos aqueles que at agora procuraram a verdade nas cincias, s os matemticos puderam encontrar algumas demonstraes, isto , algumas razes certas e evidentes, no duvidei de que deveria comear pelas mesmas coisas que eles examinaram; embora delas no esperasse nenhuma outra utilidade a no ser a de acostumarem meu esprito a alimentar-se de verdades e a no se contentar com falsas razes. Mas com isso no tive a inteno de procurar aprender todas essas cincias particulares chamadas comumente matemticas13; e, vendo que embora seus objetos sejam diferentes todas coincidem em s considerarem as diversas relaes e propores que neles se encontram, pensei que era melhor examinar somente essas propores em geral, supondo-as apenas nas matrias que servissem para tornar-me seu conhecimento mais fcil; mesmo assim, sem as limitar de modo algum a essas matrias, a fim de poder melhor aplic-las depois a todas as outras s quais conviessem. Depois, tento atentado que, para conhec-las, eu precisaria s vezes considerar cada uma em particular, e outras vezes somente decor- las, ou compreender vrias ao mesmo tempo, pensei que, para melhor consider-las em particular, teria de sup-las como linhas, porque no encon

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  • - Segunda Parte

    trava nada mais simples nem que pudesse representar mais distintamente minha imaginao e aos meus sentidos; mas, para reter e compreender vrias ao mesmo tempo, eu precisava explic-las por alguns sinais, os mais curtos possveis, e que, deste modo, aproveitaria o melhor da anlise geomtrica e da lgebra e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra14.

    De fato, ouso dizer que a exata observao desses poucos preceitos que escolhera deu-me tamanha facilidade para destrinar todas as questes abrangidas por essas duas cincias que, nos dois ou trs meses que empreguei em examin-las, tendo comeado pelas mais simples e mais gerais, e sendo cada verdade que encontrava uma regra que me servia depois para encontrar outras, no s consegui resolver muitas que outrora julgara muito difceis, mas tambm pareceu-me, mais ao final, que podia determinar, mesmo naquelas que ignorava, por que meios e at onde era possvel resolv-las. Nisso talvez eu no vos parea muito vo se consi- derardes que, havendo apenas uma verdade de cada coisa, quem quer que a encontre sabe dela tudo o que se pode saber; e que, por exemplo, uma criana instruda em aritmtica, tendo feito uma adio de acordo com suas regras, pode estar segura de ter encontrado, sobre a soma que examinava, tudo o que o esprito humano poderia encontrar. Pois, enfim, o mtodo que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar exatamente todas as cir

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  • Discurso do Mtodo

    cunstncias do que se procura contm tudo o que d certeza s regras de aritmtica.

    Mas o que mais me contentava nesse mtodo era que por meio dele tinha a certeza de usar em tudo minha razo, se no perfeitamente, pelo menos da melhor forma em meu poder; ademais, sentia, ao pratic-lo, que meu esprito acostumava-se pouco a pouco a conceber mais ntida e distintamente seus objetos; e que, no o tendo sujeitado a nenhuma matria particular, prometia-me aplic-lo to utilmente s dificuldades das outras cincias15 como o fizera s da lgebra. No que, por isso, ousasse logo empreender o exame de todas as que se apresentassem, mesmo porque isto seria contrrio ordem que ele prescreve. Mas, tendo percebido que todos os seus princpios deviam ser extrados da filosofia, na qual eu ainda no encontrava nenhum princpio seguro, pensei que era preciso, antes de mais nada, empenhar-me em nela estabelec-los; e que, sendo isso a coisa mais importante do mundo, e em que a precipitao e a preveno eram o que mais se tinha a temer, eu no devia realizar essa empreitada antes de ter atingido uma idade bem mais madura que os vinte e trs anos que eu tinha ento; e antes de ter empregado muito tempo pre- parando-me para isso, tanto desenraizando de meu esprito todas as ms opinies que recebera at ento, quanto acumulando muitas experincias que seriam mais tarde a matria de meus raciocnios, e exercitando-me sempre no mtodo que me prescrevera a fim de nele firmar-me cada vez mais.

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  • Terceira Parte

    Por fim, como, antes de comear a reconstruir a casa onde moramos, no basta demoli-la, prover- nos de materiais e de arquitetos, ou ns mesmos exercermos a arquitetura, e alm disso ter-lhe traado cuidadosamente a planta, mas tambm preciso providenciar uma outra, onde nos possamos alojar comodamente enquanto durarem os trabalhos; assim, a fim de no permanecer irresoluto em minhas aes, enquanto a razo me obrigasse a s-lo em meus juzos, e de no deixar de viver desde ento do modo mais feliz que pudesse, formei para mim uma moral provisria1 que consistia em apenas trs ou quatro mximas que gostaria de vos expor.

    A primeira era obedecer s leis e aos costumes de meu pas, conservando com constncia a religio na qual Deus me deu a graa de ser instrudo desde minha infncia, e governando-me em qualquer outra coisa segundo as opinies mais moderadas e mais afastadas do excesso, que fossem comumente aceitas e praticadas pelas pessoas mais sensatas entre aquelas com quem teria de conviver. Pois, co

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  • Discurso do Mtodo

    meando desde ento a no levar em conta minhas prprias opinies, porque queria submeter todas a exame, estava certo de nada melhor poder fazer do que seguir as dos mais sensatos. E, embora talvez haja pessoas to sensatas entre os persas ou os chineses quanto entre ns, parecia-me que o mais til era seguir aquelas com quem teria de viver; e que, para saber quais eram verdadeiramente suas opinies, devia atentar mais ao que praticavam do que ao que diziam; no s porque, dada a corrupo de nossos costumes, h poucas pessoas que queiram dizer tudo o que crem, mas tambm porque muitas o ignoram, pois, como a ao do pensamento pela qual cremos uma coisa diferente daquela pela qual sabemos que cremos nela, amide uma no acompanha a outra2. E, entre as vrias opinies igualmente aceitas, s escolhia as mais moderadas; no s porque so sempre as mais cmodas para a prtica, e verossimilmente as melhores, pois todo excesso costuma ser mau, mas tambm a fim de me afastar menos do verdadeiro caminho, caso me enganasse, do que se, tendo escolhido um dos extremos, o outro devesse ser seguido. E, particularmente, inclua entre os excessos todas as promessas pelas quais subtramos algo da nossa liberdade. No que desaprovasse as leis que, para remediar a inconstncia dos espritos fracos, permitem, quando se tem um bom propsito, ou mesmo para a segurana do comrcio, algum propsito apenas indiferente, que se faam votos3 ou contratos que obri

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  • -------------------Terceira Parte

    guem a neles perseverar; mas como no via coisa alguma no mundo que permanecesse sempre no mesmo estado, e como, no que me dizia respeito, prometia-me aperfeioar cada vez mais meus juzos, e no os tornar piores, pensaria estar cometendo uma grande falta contra o bom senso se, por aprovar alguma coisa, achasse-me obrigado a ainda consider-la boa depois, quando talvez tivesse deixado de s-lo, ou eu tivesse deixado de consider- la como tal.

    Minha segunda mxima era ser o mais firme e resoluto que pudesse em minhas aes, e no seguir com menos constncia as opinies mais duvidosas, uma vez que por elas me tivesse determinado, do que as seguiria se fossem muito seguras4. Nisto imitando os viajantes que, achando-se perdidos em alguma floresta, no devem ficar perambulando de um lado para outro, e menos ainda ficar parados num lugar, mas andar sempre o mais reto que puderem na mesma direo, e no a modificar por razes insignificantes, mesmo que talvez, no incio, tenha sido apenas o acaso que lhes tenha determinado a escolha: pois, desse modo, se no vo exatamente onde desejam, ao menos acabaro chegando a algum lugar, onde verossimilmente estaro melhor do que no meio de uma floresta. E assim, como as aes da vida freqentemente no suportam nenhum adiamento, uma verdade muito certa que, quando no est em nosso poder discernir as opinies mais verdadeiras, devemos seguir as mais

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  • Discurso do Mtodo

    provveis; e, ainda que no notemos mais probabilidades numas que nas outras, mesmo assim devemos nos determinar por algumas, e consider-las depois, no mais como duvidosas, no que diz respeito prtica, mas como muito verdadeiras e muito certas, porque a razo que a isso nos determinou o . E isso conseguiu, desde ento, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos5 que costumam agitar as conscincias desses espritos fracos e indecisos, que inconstantemente se deixam levar a praticar como boas as coisas que depois julgam serem ms.

    Minha terceira mxima era sempre tentar antes vencer a mim mesmo do que fortuna6, e modificar antes meus desejos do que a ordem do mundo, e, geralmente, acostumar-me a crer que no h nada que esteja inteiramente em nosso poder, a no ser os nossos pensamentos7, de sorte que, depois de termos feito o que nos era possvel no tocante s coisas que nos so exteriores, tudo o que nos falta conseguir , em relao a ns, absolutamente impossvel. E s isso parecia-me suficiente para me impedir de desejar futuramente o que no pudesse adquirir, e, assim, para deixar-me contente. Pois, como nossa vontade propensa por natureza a s desejar as coisas que nosso entendimento lhe apresenta de algum modo como possveis, certo que, se considerarmos todos os bens que esto fora de ns como igualmente afastados de nosso poder, no lastimaremos mais a falta daqueles que pare

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  • Terceira Parte ___

    cem ser devidos a nosso nascimento, quando deles formos privados sem nossa culpa, do que lastimamos no possuir os reinos da China ou do Mxico; e que, fazendo, como se diz, da necessidade virtude, no desejaremos mais estar sos, estando doentes, ser livres, estando presos, do que desejamos agora ter corpos de uma matria to pouco corruptvel como os diamantes, ou asas para voar como os pssaros. Mas confesso que necessrio um longo exerccio e uma meditao muitas vezes reiterada para se acostumar a olhar desse ngulo todas as coisas; e creio que precisamente nisso que consistia o segredo daqueles filsofos que outrora conseguiram subtrair-se do imprio da fortuna e, apesar das dores e da pobreza, rivalizar em felicidade com seus deuses8. Pois, ocupando-se sem cessar em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, persuadiam-se to perfeitamente de que nada estava em seu poder alm de seus pensamentos, que s isso bastava para impedi-los de terem qualquer apego por outras coisas; e dispunham de seus pensamentos de modo to absoluto que isso lhes era uma razo para se considerarem mais ricos, mais poderosos, mais livres e mais felizes que qualquer dos outros homens que, no tendo essa filosofia, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, nunca dispem assim de tudo o que querem.

    Por fim, para concluso dessa moral, acudiu-me passar em revista as diversas ocupaes que os ho

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  • Discurso do Mtodo

    mens tm nesta vida para procurar escolher a melhor; e, sem nada querer dizer das dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era continuar naquela em que me encontrava, isto , empregar toda a vida em cultivar a minha razo, e progredir, o quanto pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o mtodo em que me havia prescrito. Experimentara contentamentos to extremos, desde que comeara a servir-me deste mtodo, que no acreditava que se pudessem receber nesta vida outros mais suaves nem mais inocentes; e, descobrindo todos os dias por seu intermdio algumas verdades, que me pareciam bastante importantes, e co- mumente ignoradas pelos outros homens, a satisfao que eu tinha preenchia tanto meu esprito que tudo o mais no me interessava. Ademais, as trs mximas precedentes s se justificavam pelo propsito que eu tinha de continuar a instruir-me; pois, tendo Deus concedido a cada um de ns alguma luz para discernir o verdadeiro do falso, acreditei no me dever contentar um s momento com as opinies dos outros, se no me tivesse proposto empregar meu prprio juzo em examin-las no devido momento; e no teria sabido isentar-me de escrpulos, seguindo-as, se no esperasse com isso no perder nenhuma ocasio de encontrar outras melhores, caso as houvesse. E enfim, no teria sabido limitar meus desejos, nem me contentar, se no tivesse seguido um caminho pelo qual, pensando estar seguro da aquisio de todos os conhecimen

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  • tos de que seria capaz, pensava est-lo tambm da aquisio de todos os verdadeiros bens que jamais estivessem ao meu alcance; tanto mais que, como nossa vontade no se inclina a seguir alguma coisa ou a fugir dela a no ser conforme nosso entendimento a apresente como boa ou m, basta bem julgar para bem proceder, e julgar o melhor possvel para proceder da melhor maneira, isto , para adquirir todas as virtudes, e junto todos os outros bens que se possam adquirir; e quando disso se tem certeza no se pode deixar de estar contente.

    Aps ter-me assim assegurado dessas mximas, e t-las posto parte9, com as verdades da f, que sempre foram as primeiras em minha crena, julguei que, quanto a todas as minhas outras opinies, podia livremente empenhar-me em me desfazer delas. E, como esperava obter melhor resultado convivendo com os homens do que permanecendo por mais tempo fechado no quarto aquecido onde tivera todos esses pensamentos, nem bem o inverno tinha terminado quando recomecei a viajar. E em todos os nove anos seguintes outra coisa no fiz seno rodar de c para l no mundo, procurando ser mais espectador do que ator em todas as comdias que nele se representam; e refletindo particularmente em cada matria, sobre o que a podia tornar suspeita e levar-nos a enganos, eu ia desenrai- zando de meu esprito todos os erros que antes pudessem ter-se insinuado nele. No que assim eu imitasse os cpticos10, que duvidam s por duvidar, e

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  • Discurso do Mtodo

    afetam ser sempre irresolutos; pois, ao contrrio, todo o meu propsito s tendia a me dar segurana e a afastar a terra movedia e a areia para encontrar a rocha ou a argila. Nisso era muito bem-sucedido, ao que me parece, tanto mais que, procurando descobrir a falsidade e a incerteza das proposies que examinava, no por fracas conjeturas, mas por raciocnios claros e seguros, no encontrava nenhuma to duvidosa que dela no tirasse sempre alguma concluso bastante certa, quando mais no fosse a prpria concluso de que ela nada continha de certo. E, como ao se derrubar uma velha casa conservam-se geralmente os materiais da demolio para us-los na construo de uma nova, do mesmo modo, ao destruir todas as minhas opinies que julgava mal fundamentadas eu fazia diversas observaes e adquiria muitas experincias, que me serviram depois para estabelecer outras mais certas. E, alm disso, continuava a me exercitar no mtodo que me prescrevera; pois, alm de ter o cuidado de conduzir geralmente todos os meus pensamentos de acordo com as regras, reservava de quando em quando algumas horas, que empregava especialmente em pratic-lo em dificuldades de matemtica, ou mesmo em outras" que podia tornar quase semelhantes s das matemticas, separando-as de todos os princpios das outras cincias que no julgasse bastante firmes, como vereis que fiz com muitas que so explicadas neste volume. Assim, sem viver, aparentemente, de um modo diferente daque

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  • Terceira Parte

    les que, tendo como nica ocupao passar uma vida suave e inocente, aplicam-se em separar os pra- zeres dos vcios, e que, para usufruir seu lazer sem aborrecimentos, usam de todas as distraes que so honestas, eu no deixava de perseverar em meu propsito e de progredir no conhecimento da verdade, talvez mais do que se me restringisse a ler livros ou a freqentar letrados.

    Todavia, esses nove anos se passaram antes que eu tivesse tomado algum partido acerca das dificuldades que costumam ser discutidas entre os doutos, ou comeado a procurar os fundamentos de alguma filosofia mais certa que a vulgar12. E o exemplo de muitos espritos excelentes13 que, tendo tido antes esse propsito, no me pareciam terem sido bem-sucedidos, fazia-me imaginar tantas dificuldades, que talvez no tivesse ousado empreend-lo ainda to cedo se no soubesse que alguns faziam circular o boato de que eu j o tinha terminado. No saberia dizer em que fundamentavam essa opinio; e, se em algo contribu para isso em meus discursos, deve ter sido mais por confessar o que ignorava mais ingenuamente do que costumam fazer os que estudaram um pouco, e talvez tambm por mostrar as razes que tinha para duvidar de muitas coisas que os outros consideram certas, do que por me vangloriar de alguma doutrina. Mas, sendo bastante altivo para no querer que me tomassem pelo que no era, pensei que devia procurar, por todos os meios, tornar-me digno da reputao que me

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  • Discurso do Mtodo

    atribuam; e faz justamente oito anos que esse desejo levou-me resoluo de afastar-me de todos os lugares onde pudesse ter conhecidos e retirar-me para aqui, um pas onde a longa durao da guerra14 fez estabelecer-se tal ordem que os exrcitos que nele se mantm parecem servir apenas para que se gozem os frutos da paz com muito mais segurana, e onde, entre a multido de um grande povo muito ativo e mais preocupado com seus prprios negcios do que curioso dos alheios, sem me faltar nenhuma das comodidades das cidades mais freqentadas, pude viver to solitrio e retirado como nos mais longnquos desertos.

  • Quarta Parte

    No sei se vos devo falar das primeiras meditaes que aqui fiz, pois elas so to metafsicas e to pouco comuns que talvez no sejam do agrado de todos. No entanto, a fim de que se possa julgar se os fundamentos que tomei so bastante firmes, acho-me, de certa forma, obrigado a falar delas. H muito tempo eu notara que, quanto aos costumes, por vezes necessrio seguir, como se fossem indu- bitveis, opinies que sabemos serem muito incertas, como j foi dito acima; mas, como ento desejava ocupar-me somente da procura da verdade, pensei que precisava fazer exatamente o contrrio, e rejeitar como absolutamente falso tudo em que pudesse imaginar a menor dvida, a fim de ver se depois disso no restaria em minha crena alguma coisa que fosse inteiramente indubitvel. Assim, porque os nossos sentidos s vezes nos enganam, quis supor que no havia coisa alguma que fosse tal como eles nos levam a imaginar. E porque h homens que se enganam ao raciocinar, mesmo sobre os mais simples temas de geometria, e neles come-

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  • Discurso do Mtodo

    tem paralogismos, julgando que eu era to sujeito ao erro quanto qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razes que antes tomara como demonstraes. E, finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos quando acordados tambm nos podem ocorrer quando dormimos, sem que nenhum seja ento verdadeiro, resolvi fingir1 que todas as coisas que haviam entrado em meu esprito no eram mais verdadei