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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DANIEL SOUZA SANTIAGO DA SILVA
A IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS NO
ÂMBITO TRIBUTÁRIO
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2011
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
DANIEL SOUZA SANTIAGO DA SILVA
A IRRETROATIVIDADE DAS ALTERAÇÕES JURISPRUDENCIAIS NO
ÂMBITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
2011
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de MESTRE em Direito, na área de concentração de Direito do Estado, subárea Direito Tributário, sob a orientação da professora Doutora Regina Helena Costa.
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Dedico o presente trabalho aos meus pais,
que me ensinaram a pensar de forma crítica,
transmitiram valores e firmaram os alicerces para que
eu pudesse traçar os caminhos que escolhesse.
À minha esposa, que me motiva a ir mais longe,
pelo apoio nas escolhas, pela dedicação e pelo amor.
Aos meus filhos, que chegaram durante essa caminhada e
me fizeram compreender o que é o amor incondicional e inesgotável.
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Banca Examinadora
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Agradeço à minha orientadora,
Professora Regina Helena Costa, pelo
apoio, seriedade e colaboração para
que esse trabalho se concretizasse.
A Flávio de Sá Munhoz, fundamental na
minha formação jurídico tributária, que
me apoiou de forma decisiva e
contribuiu imensamente com toda a sua
experiência e seus ensinamentos.
A Paulo Roberto Lyrio Pimenta, que fez
despertar o fascínio pelo Direito
Tributário.
Aos colegas e aos professores do
Mestrado, especialmente aos
Professores Paulo de Barros Carvalho,
Roque Carrazza, Beth Carrazza e
Marcelo Neves.
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RESUMO
A presente dissertação tem por objeto o estudo da irretroatividade das
modificações da jurisprudência consolidada no âmbito tributário, cuja relevância
evidencia-se diante das recentes reformas constitucionais e da legislação
processual, que dispensam grande importância aos precedentes, generalizando os
efeitos de decisões proferidas em processos individuais.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos. No primeiro, analisamos a
função do direito, a linguagem pela qual se manifesta e a forma de construção da
norma jurídica, que se distingue do texto legal, concluindo que o Poder Judiciário
não realiza mera operação de silogismo e dedução, mas verdadeira atividade de
criação do sentido e do alcance dos enunciados prescritivos, concretizando as
normas a partir dos conceitos generalizantes empregados pelo legislador.
No segundo capítulo, estudamos a questão da cristalização do precedente,
fixando critérios para a caracterização da jurisprudência consolidada, que, a
despeito de ser capaz de orientar as condutas de forma generalizada, poderá ser
sempre modificada, como forma de preservação da atualização, adequação e
aperfeiçoamento do ordenamento jurídico.
Na sequência, já no terceiro capítulo, verificamos o enquadramento da
irretroatividade como uma norma a ser aplicada para preservação do princípio da
segurança jurídica, de observância obrigatória nos casos em que restar
caracterizada uma alteração material da lei, ou seja, quando houver modificação
do sentido em que era aplicada, ainda que não haja alteração do texto legal.
Por fim, o quarto capítulo se destina à análise de situações de direito
tributário aplicado e da necessária modulação dos efeitos das decisões que
impliquem modificação das expectativas normativas judiciais.
Palavras-chave: Irretroatividade. Modulação de efeitos. Expectativas normativas
judiciais. Boa-fé objetiva. Confiança legítima. Segurança jurídica. Princípio e
regra.
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ABSTRACT
The aim of the present dissertation is the study of the non-retroactivity of
modifications of precedents set in the tax sphere, whose relevance is highlighted
in view of the recent constitutional reforms as well as procedural legislation,
which award great importance to precedents, generalizing the effects of decisions
uttered in individual lawsuits.
The work was divided in four chapters. In the first one, there is an analysis
of the function of Law, the language through which it is expressed and the way to
create the legal norm, which is differentiated from legal texts, concluding that the
Judiciary Branch does not perform a mere operation of syllogism and deduction,
but a true creation of sense and reach of prescriptive statements, concretizing
rules from generalizing concepts applied by legislators.
In the second chapter, there is a study of the issue of setting the precedent,
determining criteria for the characterization of consolidated precedents, which, in
spite of being able to orient the conducts in a generalized manner, will always be
subject to modifications, as a way to preserve modernization, adequacy and
improvement of the legal system.
Subsequently, in the third chapter, there is a verification of categorization
of the non-retroactivity as a rule to be applied in order to preserve the principle of
legal certainty, of mandatory compliance in cases of characterization of a
material alteration of law, that is, when there is a modification of the sense it was
applied, even if there is no alteration of the legal text.
Finally, the fourth chapter is intended to the analysis of situations of
applied tax law and the necessary modulation of the effects of decisions that
imply modification of the normative judicial expectations.
Key words: Non-retroactivity. Modulation of effects. Normative judicial expectations. Objective good faith. Legitimate trustfulness. Legal certainty. Principle and rule.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11
CAPÍTULO 1 – A DECISÃO JUDICIAL COMO ATO NORMATIVO
CRIATIVO
1.1 Função precípua do direito ................................................................................... 15
1.2 Linguagem jurídica: a imprecisão, os conceitos determinantes e o tipo como
ordenação do pensamento jurídico ............................................................................. 17
1.3 Estado Democrático de Direito ............................................................................ 25
1.3.1 Norma Jurídica ................................................................................................ 27
1.3.1.1 Conceito de norma jurídica ........................................................................ 27
1.3.1.2 Texto legal, enunciados prescritivos e norma jurídica .............................. 28
1.3.1.3 Classificação .............................................................................................. 32
1.3.1.4 Extensão e compreensão ............................................................................ 36
1.3.1.5 Princípios jurídicos .................................................................................... 38
1.3.2 O Poder Judiciário como Poder e não como mera autoridade ....................... 44
CAPÍTULO 2 – JURISPRUDÊNCIA E AS EXPECTATIVAS NORMATIVAS
2.1 Fontes do direito .................................................................................................. 47
2.2 Teoria Estruturante de Müller (interpretação e aplicação)................................... 50
2.3 Teoria Sistêmica de Luhmann .............................................................................. 53
2.4 Critérios para caracterização da jurisprudência consolidada ............................. 55
2.4.1 Decisões do Supremo Tribunal Federal relativas à fixação dos critérios para
aferição da consolidação da jurisprudência ............................................................. 66
2.5 Possibilidade de mudança de orientação jurisprudencial ...................................... 72
CAPÍTULO 3 – IRRETROATIVIDADE
3.1 Distinção entre regra e princípio .......................................................................... 79
3.1.1 Distinções na doutrina clássica ........................................................................ 81
3.1.2 Distinções na doutrina pós-positivista ............................................................. 82
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3.1.3 Análise crítica dos critérios apontados pela doutrina clássica e pela doutrina
pós-positivista ........................................................................................................... 84
3.1.4 Critérios distintivos baseados na natureza do comportamento prescrito, na
natureza da justificação exigida e da medida da contribuição para a decisão ..... 88
3.1.5 Princípios como valores e como limites objetivos .......................................... 91
3.1.6 O enquadramento da irretroatividade .............................................................. 93
3.2 Evolução histórica da irretroatividade .................................................................. 96
3.3 Princípios aglutinadores da igualdade e da segurança jurídica ........................... 99
3.3.2 Princípio da igualdade ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,............................................................... 100
3.3.2 Princípio da segurança jurídica ....................................................................... 104
3.3.2.1 Legalidade .................................................................................................. 105
3.3.2.2 Anterioridade .............................................................................................. 107
3.3.2.3 Irretroatividade ........................................................................................... 109
3.3.3.4 Proteção da boa-fé objetiva e da confiança legítima .................................. 116
3.4 Irretroatividade da lei ou irretroatividade da norma? ........................................... 121
CAPÍTULO 4 – A IRRETROATIVIDADE DAS DECISÕES JUDICIAIS QUE
MODIFIQUEM EXPECTATIVAS NORMATIVAS JUDICIAIS
4.1 Extensão máxima das decisões judiciais e as expectativas normativas judiciais
geradas pelos tribunais ................................................................................................ 135
4.2 Desnecessidade de lei para modulação de efeitos das decisões que impliquem
alteração de expectativas normativas judiciais ........................................................... 138
4.3 Análises de direito tributário aplicado .................................................................. 143
4.3.1 Análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à eficácia de
suas decisões ............................................................................................................. 144
4.3.1.1 A Súmula 276 do STJ e a decisão do STF quanto à isenção de Cofins
concedida às sociedade civis de profissão regulamentada ..................................... 146
4.3.1.2 O crédito de IPI na aquisição de insumos não tributados ou tributados à
alíquota zero ........................................................................................................... 149
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4.3.1.3 A autorização legislativa ao Poder Executivo para concessão de anistia e
remissão de tributos por meio de regulamento ....................................................... 154
4.3.1.4 A inconstitucionalidade dos artigos 45 e 46 da Lei nº 8.212/91 e a
modulação de efeitos em prejuízo do contribuinte ................................................. 158
4.3.2 “Revogação” da expectativa normativa judicial pela lei: análise da Lei
Complementar nº 118/2005 ...................................................................................... 161
4.3.3 Aplicação no âmbito administrativo de julgamento ........................................ 164
4.3.3.1 Inaplicabilidade de multa àqueles que tenham agido em conformidade
com decisão de última instância administrativa ..................................................... 164
4.3.3.2 Desqualificação de multa nos casos de alteração de jurisprudência
consolidada ............................................................................................................. 166
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 173
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INTRODUÇÃO
O Direito tem como função primordial permitir a relação intersubjetiva
entre os cidadãos, viabilizando o convívio em sociedade.1 Em um Estado
Democrático de Direito, como se pretende o Estado brasileiro, a igualdade é
princípio basilar a ser observado tanto no cumprimento quanto na própria
elaboração das normas jurídicas. Para alcançar a isonomia não basta que a lei
seja igual para todos, mas que a sua aplicação seja uniforme em relação a todos
os que se encontram na mesma situação jurídica.
O Direito se manifesta por meio de linguagem não formalizada, pelo que
os vocábulos que integram o texto legal não são unívocos. As leis comportam
interpretações que, por vezes, levam a conclusões distintas e até mesmo
contraditórias. No processo de concretização do Direito é que os conceitos legais
são especificados, e se dá efetivamente a delimitação do alcance e do sentido da
norma jurídica.
A constatação de que a norma jurídica tributária não se configura como
conceito fechado, diante da ambiguidade e vagueza da linguagem utilizada pelo
texto legal, leva à conclusão de que a preservação da igualdade não se encerra
com a edição de uma norma geral e abstrata, aplicável a todos. A sua realização
pressupõe a distribuição igualitária dos provimentos jurisdicionais, de modo a
estabilizar as relações jurídicas intersubjetivas.
Ainda que não haja alteração do texto legal, os julgadores podem
modificar a interpretação e proferir decisão em sentido contrário àquele que foi
adotado anteriormente. A possibilidade de alteração dos precedentes é
1 O Professor Paulo de Barros Carvalho destaca que “o direito existe para cumprir o fim específico de regrar os comportamentos humanos nas suas relações de interpessoalidade, implantando os valores que a sociedade almeja alcançar”. Segurança jurídica e modulação de efeitos. Direito Tributário em Questão, Revista da Fundação Escola Superior de Direito Tributário, Porto Alegre, n. 1, 2008.
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fundamental para a atualização, adequação e aperfeiçoamento do ordenamento
jurídico. Como bem destaca Karl Larenz,
[...] todo juiz que haja de julgar de novo a mesma questão
pode e deve, em princípio, decidir independentemente,
segundo a sua convicção formada em consciência, se a
interpretação expressa no precedente, a concretização da
norma ou o desenvolvimento judicial do Direito são
acertados e estão fundados no Direito vigente.2
Ou seja, mais importante que repetir o precedente, e manter a estabilidade
do sistema, é proferir a decisão mais adequada para o caso concreto.
Diante da possibilidade de alteração da jurisprudência consolidada pelos
tribunais, com a consequente modificação das expectativas normativas de
comportamento, qual a forma de prestigiar e observar os demais princípios
constitucionalmente consagrados, como a segurança jurídica, a igualdade, a
proteção à boa-fé objetiva e à confiança legítima? O presente trabalho aponta a
irretroatividade como instrumento adequado para a realização de tais princípios.
Sustentamos que o Poder Judiciário não é mero aplicador de um direito
que já está posto na lei. As decisões judiciais, na linha do que defende a teoria
estruturante de Friedrich Müller, é que fazem efetivamente surgir as normas
jurídicas, imprimindo-lhes conteúdo.
Assim, as decisões proferidas se projetam para o futuro e podem orientar
expectativas normativas de comportamento.
Ao escolher dentre as alternativas possíveis de construção3 de sentido, a
2 Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p. 612. 3 Humberto Ávila esclarece que “a atividade do intérprete – quer julgador, quer cientista – não consiste em meramente descrever o significado previamente existente dos dispositivos. Sua atividade consiste em constituir esses significados. Em razão disso, também não é plausível aceitar a ideia de que a aplicação do Direito envolve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo do processo de
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partir do texto legal, o juiz reduz complexidades e fecha o sistema para as demais
possibilidades disponíveis, como sustenta Misabel Derzi.4
A modificação da orientação interpretativa, pelo Poder Judiciário, implica
criação de nova norma jurídica e se equivale à alteração da lei, pelo que não pode
produzir efeitos pretéritos.
A irretroatividade é aplicável tanto nas circunstâncias em que tenha
havido alteração formal (do texto) quanto nos casos de alteração material (no
sentido) da lei.
Assim, a presente dissertação analisará quais os requisitos para
configuração de jurisprudência consolidada, e a consequente fixação de
expectativas normativas judiciais, para apontar quais as situações em que se pode
falar em alterações jurisprudenciais. Essa análise compreende a verificação dos
julgamentos do Supremo Tribunal Federal a respeito da modulação de efeitos de
suas decisões, buscando estabelecer os critérios para que se possa falar em
cristalização de um entendimento.
As recentes alterações legislativas, dentre as quais o artigo 557, § 1.º-A
(que outorga poder ao juiz para, monocraticamente, decidir sobre recurso
interposto que contrarie a jurisprudência consolidada), o artigo 558, § 1.º (que
estabelece que o juiz pode não receber apelação que contrarie súmula, não
vinculante, dos tribunais superiores), e o artigo 475, § 3.º (que dispensa o duplo
grau de jurisdição obrigatório, na hipótese de a sentença estar fundada em
jurisprudência do Plenário do STF), ampliaram os efeitos das decisões dos
tribunais (extensão máxima), o que reforça a necessidade de aplicação da
irretroatividade das decisões que modifiquem jurisprudência consolidada.
aplicação”. Em seguida, conclui que a atividade do intérprete consiste em reconstrução de sentido, posto que parte do sentido já construído na comunidade do discurso (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 24). 4 Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 227.
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A irretroatividade das decisões que impliquem alterações jurisprudenciais
no âmbito tributário, como pretendemos demonstrar no presente trabalho, é
medida indispensável para manter o equilíbrio do sistema jurídico e o respeito à
previsibilidade de suas regras.
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CAPÍTULO 1 – A DECISÃO JUDICIAL COMO ATO NORMATIVO
CRIATIVO
1.1 Função precípua do Direito
O Direito tem diversas funções que podem ser destacadas, mas a principal
delas é a manutenção do equilíbrio (igualdade) entre os sujeitos, na regulação das
condutas intersubjetivas.
A origem do vocábulo Direito, como destaca Tércio Sampaio Ferraz
Júnior,5 com base nos ensinamentos de Sebastião Cruz, tem vinculação direta
com a sua simbolização. O Direito há muito é simbolizado pela balança; quando
os dois pratos estiverem perfeitamente retos (rectum), a deusa Diké, para os
gregos, ou a deusa Iusticia, para os romanos, poderá dizer o direito.
A simbolização do Direito chama a atenção para a sua função primordial,
que é assegurar a igualdade entre os sujeitos.
A distribuição da igualdade e da justiça inicialmente ficou concentrada
nos monarcas, que, por vezes, em razão de dogmas religiosos, eram considerados
como aqueles que tinham o poder de estabelecer as condutas que deveriam ser
obedecidas, instituindo padrões de conduta e obrigações para os cidadãos.
Posteriormente, o modelo absolutista foi substituído pelo modelo liberal,
procurando-se assegurar a igualdade (a retidão da balança) por meio de leis
(normas gerais e abstratas) aprovadas pelos representantes do povo (não há mais
um indivíduo escolhido por uma divindade). Instituiu-se, então, o Estado de
Direito.6
5 Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6 Conforme sustentaremos adiante, a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, e não um simples Estado de Direito, que tem como princípio basilar assegurar direitos individuais, conforme disposto no artigo 1.º da Constituição.
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Também as normas gerais e abstratas, em uma sociedade complexa, em
que existem diversos interesses divergentes, e no qual um mesmo indivíduo ou
grupo de indivíduos têm interesses conflitantes, não se mostraram suficientes
para realizar a igualdade preconizada pelo Texto Constitucional.
Para assegurar a igualdade, não basta que a lei seja igual para todos; é
necessário que a lei seja aplicável de forma igualitária e acessível a todos. Assim,
ao aplicador da lei compete assegurar uma distribuição igualitária de decisões,
sem distinções não autorizadas7 pela Constituição.
O papel desempenhado pelo direito e pelos seus aplicadores deve ser,
primordialmente, o de estabilizar de forma congruente as relações jurídicas,
dando segurança aos indivíduos de quais as consequências de sua conduta.
A modificação da orientação jurisprudencial é assegurada pelo
ordenamento e deve ser vista de forma positiva, pois as relações sociais evoluem
e se modificam, os valores se transformam, pelo que o aplicador deve ter a
possibilidade de adequar tais alterações ao dizer o direito no caso concreto.
Assim, mesmo que não haja modificação do texto legislativo, deverá o
juiz construir o comando concreto considerando a realidade atual, aí
considerados os valores vigentes.
Com isso não queremos sustentar que não haja parâmetros e limites à
atividade judicante, que implica criação de norma, como veremos adiante. O
sistema oferece as balizas para a decisão judicial, mas resta ao aplicador uma
gama de possibilidades interpretativas, cabendo ao juiz escolher qual delas
adotar.
Como, então, visto que é permitida a alteração do sentido da norma,
7 O discrímen pode ser autorizado ou mesmo necessário para assegurar a igualdade material.
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preservar os princípios que informam o Estado Democrático de Direito? Diante
da constatação de que o órgão máximo do Poder Judiciário pode alterar a
interpretação dos preceitos legais e modificar as consequências decorrentes de
determinado ato, cabe à Dogmática Jurídica apontar outros caminhos para a
preservação dos ditames constitucionais da segurança, protegendo a boa-fé
objetiva e assegurando a confiança legítima.
1.2 Linguagem jurídica: a imprecisão, os conceitos determinantes e o tipo
como ordenação do pensamento jurídico
Inicialmente, é importante destacar que, nos tempos atuais, é indiscutível
que o Direito é linguagem e que somente por meio da linguagem se produz
conhecimento.
Como bem destaca o Professor Paulo de Barros Carvalho,8 a linguagem é
única e exclusiva forma de manifestação do Direito.9
Tratando-se de um conjunto de enunciados voltados para a regulação das
condutas intersubjetivas, que deve ser compreensível por todos os seus utentes, o
Direito se manifesta por meio de linguagem não formalizada, diferentemente do
que ocorre com as ciências exatas, manifestada por linguagem lógico-formal.
Vale observar que o texto de direito positivo, exatamente em razão de se
manifestar por meio de linguagem técnica, cujos vocábulos, em sua maioria, são
retirados da linguagem comum, é marcado pela imprecisão10 (ambiguidade e
vagueza). Os vocábulos utilizados pelo legislador não são precisos, posto que não
8 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário, linguagem e método, p. 162. 9 Tanto o Direito Positivo quanto a Ciência do Direito se manifestam por meio da linguagem. Advertimos que, no presente trabalho, quando utilizarmos o vocábulo Direito, estaremos nos referindo ao direito positivo. Quando nos referirmos à Ciência, empregaremos o vocábulo Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito. 10 O Professor Marcelo Neves (Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, p. 204) destaca que as características de ambiguidade e a vagueza da linguagem jurídica foram reconhecidas pelas mais diversas tendências da teoria do Direito, chegando-se às mais diversas e contraditórias consequências.
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são fruto de uma linguagem artificialmente criada, adotando expressões não
científicas, com sentidos muitas vezes imprecisos.
Nicola Abbagnano conceitua o vocábulo vago como aquela palavra cujo
[...] significado não é suficientemente determinado de tal
modo que haverá casos em que parecerá impossível decidir
se ela é aplicável ou não. Assim, a palavra “distante” é
vaga porque existem casos nos quais é impossível decidir
se é possível falar de distância ou não; entretanto não é
vaga a expressão “distante trinta quilômetros”.11
Ambiguidade, por sua vez, é conceituada como a situação que permite
interpretações diversas, inclusive excludentes. Ou seja, uma palavra tem mais de
um significado.
Com essas considerações iniciais, podemos concluir que não existe texto
de lei que dispense interpretação. A máxima “in claris cessat interpretatio” não se
verifica na realidade, pois inexiste texto legal claro a ponto de dispensar
interpretações, mostrando-se insuficiente o teor literal do texto normativo para a
construção da norma jurídica.
Como leciona Gomes Canotilho, citado pela Professora Regina Helena
Costa,
[...] as normas constitucionais necessitam de densificação,
processo que define como “preencher, complementar e
precisar espaço normativo de um preceito constitucional,
especialmente carecido de concretização, a fim de tornar
11 Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p. 988.
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possível a solução, por esse preceito, dos problemas
concretos”.12
Assim, pode-se afirmar que a linguagem jurídica é caracterizada por uma
tessitura aberta, conforme sustentado por Genaro Carrió, citado por Misabel
Derzi, que “apontou como característica da linguagem comum, na qual se
expressa a norma jurídica, a ambiguidade, o sentido vago e a textura aberta, o
que impossibilitaria a formação de conceitos unívocos”.13
Diante de tal assertiva, pode-se afirmar que existem conceitos fechados
no Direito? A adoção da premissa de que o Direito se manifesta por meio de
linguagem não criada artificialmente (não formalizada), que tem como
característica inafastável a imprecisão em potencial, é conciliável com o
princípio da tipicidade fechada, aplicável ao Direito Penal e também ao Direito
Tributário, que se revela, no âmbito tributário, pela necessidade de que
[...] na lei tributária há que se conter todos os elementos
necessários à chamada regra-matriz de incidência, isto é,
aquele mínimo irredutível, aquela unidade monádica que
caracteriza a percussão do tributo, vale dizer, a descrição
de um evento de possível ocorrência para a norma poder
operar, e a prescrição de uma relação jurídica que vai
nascer quando ocorrer esse acontecimento?14
A análise dos questionamentos pressupõe a verificação da distinção entre
o método de apreensão da realidade conceitual e o tipológico.
12 J.J. Gomes Canotilho, Direito constitucional, apud Regina Helena Costa, Praticabilidade e justiça tributária, p. 29 13 Genaro R. Carrió, Algunas palabras sobre las palabras de la ley, apud Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 151. 14 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário, linguagem e método, p. 284.
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Uma primeira advertência: tipo é um vocábulo ambíguo. Assim,
inicialmente deve ser esclarecida qual a acepção em que deve ser compreendido
no presente trabalho.
Em profundo estudo sobre o assunto,15 Misabel Derzi esclareceu que a
indevida tradução da expressão tatbestand como hipótese levou à equivocada
acepção do vocábulo “tipo” como um conceito fechado. Em sua mais recente
obra,16 a tributarista mineira revisita o tema, trazendo um histórico do
pensamento conceitual e tipológico. Esclarece que a forma de pensar conceitual,
que, inicialmente influenciada pelo jusnaturalismo, sustentava haver um sentido
único e essencial em cada palavra contida no texto, pelo que a sentença seria
mera subsunção à lei, evoluiu para uma forma de pensamento tipológica,
abandonando o modelo dos conceitos abstratos, fechados, determinados e
classificatórios.
Reconhecendo que “tipo é ainda um conceito”,17 sustenta que “tipo é o
nome que se dá à ordem que, comparativamente, ordena objetos, segundo
características nem rígidas, nem fixas, em sistema aberto, graduável, voltado à
realidade de valor e de sentido”.18
A respeito da distinção entre conceito e tipo, vale ainda transcrever os
ensinamentos da professora mineira de que: (i) tipo “é ainda um conceito, mas
não individual”;19 (ii) “o tipo é uma abstração, há de colher não o indivíduo
isolado, em sua ininteligível concretude, mas o que há de comum ou repetitivo
em um grupo, selecionando as características relevantes, segundo o ponto de
vista normativo”;20 (iii) “o tipo, ao ser valorado pelo Direito, seleciona e corta
também a realidade como o conceito, mas de modo muito mais determinado e
15 A respeito do assunto, Misabel Derzi editou uma das mais importantes obras do Direito Tributário brasileiro, intitulada Direito tributário, direito penal e tipo. 16 Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário. 17 Idem, ibidem, p. 120-121. 18 Idem, p. 121. 19 Idem, p. 121. 20 Idem, p. 121.
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especificado, de tal forma que a sua proximidade à realidade, abertura,
flexibilidade e graduação de notas características decorrem do sistema jurídico e
não diretamente da complexa e promíscua realidade social que o inspira (tipo
real/social)”;21 (iv) tipo “não se confunde com princípio indeterminado (pobre de
conteúdo e de proximidade à realidade); nem tampouco com cláusula geral (vaga
e fluida em notas características); nem com conceitos obscuros (também carentes
de conteúdo significativo)”;22 (v) “tipo distingue-se do conceito amplamente
determinado (que também é rico em notas características), não do ponto de vista
da proximidade à realidade, mas do ponto de vista de sua flexibilidade,
graduação e combinação variável de notas e características, enfim de sua abertura
à realidade”.23
Adotando-se a distinção entre o pensamento conceitual e tipológico,
podemos afirmar que, como decorrência da imprecisão dos vocábulos utilizados
pelo direito positivo, característica da linguagem técnica (comum ou não
formalizada) utilizada pelo legislador, não existem conceitos fechados capazes de
determinar um único sentido válido para a “aplicação” do enunciado prescritivo.
A conclusão acima é confirmada pelo fato de ser possível a alteração
jurisprudencial sem que tenha havido qualquer modificação dos enunciados
prescritivos; caso o texto legal contivesse conceitos rígidos (especificidade
conceitual)24 e não típicos, o juiz seria mero aplicador e jamais poderia haver
uma alteração da compreensão do texto legal.
Portanto, a despeito da grande influência na doutrina brasileira da obra
21 Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 121. 22 Idem, ibidem, p. 121. 23 Idem, p. 121. 24 A Professora Regina Helena Costa esclarece em sua obra Praticabilidade e justiça tributária que prefere a expressão “especificidade conceitual”, como abordada por Andrei Pitten Velloso, em artigo publicado na Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil 77/40, intitulado Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, à expressão “tipicidade tributária”.
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de Alberto Xavier,25 na qual sustenta a tipicidade fechada da norma jurídica
tributária, lastreada no positivismo formalista, que garante maior segurança
jurídica, a norma jurídica não é unívoca e não há um único sentido possível a ser
extraído do texto legal.
O mestre português sustenta que, no âmbito tributário, é vedada a
utilização de enunciados tributários vagos. A norma jurídica tributária deve fixar
de maneira rigorosa o critério e mesmo o conteúdo da norma de decisão do
“aplicador”. Como bem destaca Andrei Pitten Velloso, grande parte da doutrina
entende que o legislador deve empregar termos unívocos e precisos,
[...] de forma a viabilizar uma precisão objetiva da
existência e do teor da obrigação jurídico-tributária,
garantindo, assim, a certeza e a segurança jurídica. Imporia,
ademais, uma atividade completamente passiva por parte
dos aplicadores do Direito, limitada à dedução da norma
concreta a partir do claro teor da norma geral e abstrata.26
Referido autor reconhece que o artigo 146, inciso III, alínea a, da
Constituição Federal “exige por via reflexa a determinação mais específica dos
contornos dos fatos com conteúdo econômico que a Constituição selecionou para
discriminar as competências tributárias em relação aos impostos nominados”,27
mas não adere à posição de Alberto Xavier de que o mencionado dispositivo
25 O autor português sustenta que não basta que o tributo seja criado por lei, sendo necessária uma “lei qualificada”. São as suas palavras: “reserva ‘absoluta’ significa a exigência constitucional de que a lei deve conter não só o fundamento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de decisão do órgão de aplicação do direito no caso concreto, ao invés do que sucede com a ‘reserva relativa’, em que muito embora seja indispensável a lei como fundamento para as intervenções da Administração nas esferas da liberdade e de propriedade dos cidadãos, ela não tem que fornecer necessariamente o critério de decisão no caso concreto, que o legislador pode confiar à livre valoração do órgão de aplicação do direito, administrador ou juiz. A exigência de ‘reserva absoluta’ transforma a lei tributária em lex stricta (princípio da estrita legalidade), que fornece não apenas o fim, mas também o conteúdo da decisão do caso concreto, o qual se obtém por mera dedução da própria lei, limitando-se o órgão de aplicação a subsumir o fato na norma, independente de qualquer valoração pessoal” (Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 17-18). 26 Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 39. 27 Idem, ibidem, p. 43.
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23
consagra a “proibição constitucional da indeterminação conceitual”.28
Os adeptos da corrente que sustenta que as normas tributárias têm que
encerrar tipos fechados (adotando-se a acepção distorcida da tradução de
tatbestand) reconhecem a inexistência de conceitos rigorosamente determinados
e fundamentam a tipicidade na segurança jurídica, condenando a utilização de
conceitos indeterminados nos enunciados prescritivos tributários, mas aceitando
conceitos “aparentemente indeterminados” desde que “determináveis com
segurança e sem arbitrariedades”.29
Conforme leciona Alberto Xavier, “deve entender-se por conceito
determinado aquele conceito empregado na lei e no qual o órgão de aplicação do
direito deva descobrir imediata, direta e exclusivamente o conteúdo que, deste
modo, é lógica e conceitualmente unívoco”,30 sendo vedada a “indeterminação
conceitual que afastasse a suscetibilidade de previsão objetiva”.31
Portanto, diante das características da linguagem utilizada pelo Direito e
da impossibilidade de espancar toda e qualquer imprecisão dos vocábulos que
compõem os enunciados prescritivos, conforme reconhece a própria doutrina
adepta do conceitualismo, bastante influenciada pela obra de Karl Engish,32
cumpre analisar os problemas relativos à atribuição de sentido aos enunciados,
preservando-se os valores e princípios constitucionalmente consagrados, sem
permitir qualquer tipo de prevalência entre eles.
Como bem resume Ricardo Lobo Torres,
28 Alberto Xavier, Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p. 28, nota 14. 29 João Dácio Rolim, Normas antielisivas tributárias, p. 47-48 apud Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 54, nota 59. 30 Alberto Xavier, Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, p. 97 apud Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 54. 31 Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 54. 32 Karl Engish, em seu Introdução ao pensamento jurídico, dá os fundamentos teóricos principais para a construção da doutrina brasileira a respeito da tipicidade tributária.
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24
[...] do princípio da tipicidade não emana, como imagina o
positivismo ingênuo, a possibilidade do total fechamento
das normas tributárias e da adoção de enumerações
casuísticas e exaustivas dos fatos geradores. A norma do
Direito Tributário não pode deixar de conter alguma
indeterminação e imprecisão, posto que se utiliza também
de cláusulas gerais33 e dos tipos, que são abertos por
definição.34
No mesmo sentido, Marco Aurélio Greco adverte que
[...] as palavras não carregam nelas mesmas um
determinado conteúdo. A função de um signo não é
transmitir significado. A rigor, sua função é evocar no
interlocutor um conteúdo significativo que se espera seja
idêntico àquele que a palavra evoca no emissor.35
Diante da conclusão de que é possível atribuir novo sentido ao mesmo
texto de lei, alterando a orientação jurisprudencial e a expectativa normativa que
regula a conduta, como preservar o Estado Democrático de Direito, fundado na
igualdade e na segurança jurídica? Visto que a literalidade da lei não é suficiente
para assegurar a coerência das decisões e a distribuição igualitária de
provimentos jurisdicionais, capazes de estabilizar as relações intersubjetivas e
solucionar os conflitos, fazendo com que o Direito alcance os seus objetivos,
resta à Dogmática apontar novos caminhos para realizar os princípios
constitucionalmente expressos ou implícitos, que informam o Estado
Democrático de Direito.
No presente trabalho, como veremos adiante, pretende-se apontar a
33 A respeito de cláusulas gerais, ver o item 1.3.1.4, infra, relativo à extensão e compreensão da norma jurídica. 34 Ricardo Lobo Torres, Normas de interpretação e integração do direito tributário, apud Andrei Pitten Velloso, Princípio da especificidade conceitual, vagueza da linguagem e tributação, p. 58, nota 69. 35 Marco Aurélio Greco, Planejamento tributário, p. 77.
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25
irretroatividade, com a consequente limitação da eficácia temporal das decisões
que alterem a jurisprudência consolidada, como um meio adequado para
implementação do Estado Democrático de Direito, preservando-se a boa-fé
objetiva, a proteção da confiança, a segurança jurídica e a igualdade.
1.3 Estado Democrático de Direito
A Constituição brasileira estabelece em seu primeiro artigo que a
República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito.
Conforme observamos acima, ainda que não estejam vazados em
linguagem prescritiva, todos os enunciados, mesmo aqueles aparentemente
descritivos, devem compor a construção da norma jurídica. Assim, o preceito
disposto no artigo 1.º da Constituição Federal deve ser observado tanto na
elaboração de normas gerais e abstratas, pelo legislador, quanto na introdução de
normas individuais e concretas, primordialmente editadas pelo juiz.
Mas qual o conteúdo desse dispositivo legal? Qual a implicação concreta
de a República Federativa do Brasil constituir-se em Estado Democrático de
Direito?
Conforme veremos adiante, constituir-se Estado Democrático de Direito
implica submeter-se a diversos princípios que asseguram sobretudo a igualdade
entre os cidadãos e a preservação da segurança sobre as consequências de seus
atos. No âmbito estritamente tributário, significa, entre outras coisas, que o
contribuinte não poderá ser surpreendido com uma exigência que não estivesse
previamente prevista na lei, ou mesmo por uma nova interpretação de um
dispositivo legal.
Assim, por exemplo, restou consagrado no âmbito do Supremo Tribunal
Federal que a locação de bens móveis não se caracteriza como prestação de
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26
serviços, pelo que não pode sofrer a incidência do Imposto sobre Serviços de
Qualquer Natureza. Desse modo, havendo uma alteração jurisprudencial,
fixando-se novo conteúdo ao comando constitucional que atribui a competência
tributária aos municípios, para que seja preservada a segurança jurídica e o
Estado Democrático de Direito, deverá ser limitada a eficácia temporal da
decisão.
O Estado Democrático de Direito, portanto, é composto por uma gama
de princípios e de vetores que estabelecem limites à atuação dos poderes
constituídos e aos particulares. Dentre estes princípios podemos destacar a
segurança jurídica e a irretroatividade, como uma das técnicas para o seu alcance.
Importante salientar a distinção apontada por Marco Aurélio Greco36
entre Estado de Direito e Estado Democrático de Direito. O autor sustenta que
até a Constituição Federal de 1988 poder-se-ia defender a necessidade de o
Estado brasileiro atender aos ditames de um Estado de Direito, com enfoque
principal na garantia dos direitos individuais, como reação ao regime autoritário
vigente a partir do golpe militar de 1964. No entanto, a Constituição de 1988
acolheu tanto a ideologia social (Estado Democrático, intervencionista) quanto a
ideologia liberal (Estado de Direito). O fruto do momento histórico em que foi
elaborado o texto constitucional são dispositivos protetivos do indivíduo contra o
Estado e dispositivos voltados a atribuir poderes e mecanismos ao Estado para
modificar a realidade.
Diante de um cenário de complexidades, de diversas possibilidades de
decisão e de um texto constitucional híbrido, que adotou duas ideologias
supostamente opostas, carregado de dispositivos e princípios que parecem
encerrar uma contradição, cabe ao aplicador (juiz) escolher qual o sentido a ser
construído a partir do direito positivo, e dar um comando no caso concreto. A
Dogmática Jurídica deve ser instrumento para auxiliar o julgador a conciliar os
36 Planejamento tributário.
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27
diversos vetores (enunciados) e solucionar o caso concreto, dando fim ao litígio,
estabilizando as relações intersubjetivas.
1.3.1 Norma jurídica
Conforme observamos no item precedente, a linguagem por meio da qual
se manifesta o Direito é uma linguagem não formalizada, razão pela qual os
enunciados prescritivos não têm um único sentido. Firmada esta primeira
premissa, imprescindível analisar, ainda que de forma não exauriente, a teoria da
norma jurídica, para concluir-se a respeito da estabilização de expectativas por
meio de decisões judiciais.
1.3.1.1 Conceito de norma jurídica
Norma jurídica é a significação extraída dos textos normativos, portanto é
fruto da produção intelectual (interpretação) do operador do direito, que para
construí-la terá que atentar para os princípios e as regras superiores.
A norma é um juízo-hipotético-condicional (dado A deve ser B),
construída por meio de uma operação lógica de um intérprete.
Assim, um mesmo veículo introdutor pode conter diversas normas e um
único dispositivo legal pode não ser completo para instituir uma norma, a qual
deverá ser construída com a combinação de diversos deles.
Sob esta visão, pode-se afirmar que a norma é uma proposição, uma vez
que encerra um dever-ser.
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28
Outros juristas concebem a norma como uma prescrição, na qual existe
uma vontade impositiva. Por fim, como bem destaca Tércio Sampaio Ferraz Jr.,37
outros juristas entendem norma como fenômeno de comunicação.
Na conceituação do Professor Robson Maia Lins, “norma jurídica, tomada
na sua acepção sintática, é uma estrutura bimembre constituída de um
antecedente e um consequente, capaz, minimamente, de regular condutas”.38 E
continua: “um conjunto de enunciados prescritivos, desde que hábil a modalizar
deonticamente uma conduta naquela estrutura hipotético-condicional, compõe o
que chamamos de norma jurídica em sentido estrito”.39
Para o Professor Paulo de Barros Carvalho, a norma é o juízo
implicacional construído pelo intérprete a partir dos suportes comunicacionais,
composta de um complexo de “significações enunciativas [...] unificadas de
forma lógica”;40 são “entidades mínimas [...] de manifestação do deôntico, com
sentido completo”.41
1.3.1.2 Texto legal, enunciados prescritivos e norma jurídica
Conforme destacamos acima, a norma jurídica não se confunde com o
texto legal nem com os enunciados prescritivos.
O Professor Paulo de Barros Carvalho leciona que toda linguagem é
formada por um conjunto de signos, e se compõe de um suporte físico (texto),
uma dimensão ideal que se forma na mente do utente da linguagem (significação)
e uma dimensão dos objetos referidos pelo signo (significado).
37 Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 38 Robson Maia Lins, Controle de constitucionalidade da norma tributária, p. 51. 39 Idem. Ibidem. 40 Paulo de Barros Carvalho, O preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos. No prelo. 41 Idem, ibidem.
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29
A decodificação do sistema de signos tem como ponto de partida o texto,
que pode ser concebido em uma (i) acepção estrita (stricto sensu), em que o texto
é caracterizado apenas como suporte físico, e (ii) em uma acepção ampla, o texto
leva em consideração o contexto.
Assim, o texto pode ser analisado sob um ponto de vista interno, tendo
como foco a sua estrutura, e sob o ponto de vista externo, que leva em
consideração a circunstância histórica e sociológica em que foi produzido.
Os enunciados prescritivos do direito posto não são suficientes para que se
extraiam o conteúdo, o alcance e o sentido dos comandos jurídicos.
Aquele que pretende conhecer o direito precisa analisar as formulações
literais (texto), alcançando o plano das significações dos enunciados e das
normas, a partir da construção de sua estrutura de implicação, dentro de um
sistema hierarquizado e coordenado.
O suporte físico é o próprio texto legal, ou seja, são os signos linguísticos
emanados pela autoridade competente e dispostos em um determinado lugar.
Esse suporte físico está relacionado a algo que existe no mundo físico, que é o
seu significado. O significado, por sua vez, provoca no sujeito uma ideia, que é
chamada de significação.
Texto legal, portanto, é apenas a disposição de signos em um papel. Como
bem destaca Gabriel Ivo,
[...] norma jurídica não se confunde com textos normativos.
Estes são apenas suportes físicos. Antes do contato do
sujeito cognoscente não temos normas jurídicas, e sim
meros enunciados liguísticos esparramados pelo papel.
Enunciados postados em silêncio. Em estado de dicionário.
Aguardando que alguém lhes dê sentido. E enunciados,
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30
conforme a observação de Lênio Streck, plurívocos, pois
não há uma correspondência biunívoca entre a disposição
normativa (texto) e a norma jurídica (significação)”.42
O enunciado prescritivo, por seu turno, não é fruto de uma construção do
intérprete. Ele tem sentido, visto que decorre dos signos constantes do texto de
lei, mas não possuem significação deôntica. Ou seja, o enunciado ainda não é
capaz de modalizar o comportamento humano, sendo este um atributo da norma
jurídica, decorrente do juízo mental realizado pelo intérprete.
Isto posto, podemos definir (i) o texto de lei como signos dispostos de
forma ordenada sintaticamente, também chamado de suporte físico, (ii) o
enunciado, por seu turno, como uma espécie de “frase solta”,43 com pleno sentido
(significado), e (iii) a norma jurídica como o resultado da conjugação dos
enunciados.
O objeto de estudo da Ciência do Direito é o plexo de normas jurídicas,
que, por sua vez, são construídas a partir dos enunciados prescritivos, extraídos
dos textos legais.
A linguagem prescritiva de condutas, que caracteriza o direito positivo,
está voltada à emissão de ordens ou de condução do comportamento. Essa
linguagem se modaliza em uma lógica do dever-ser, aplicando-se a todas as
condutas possíveis, atribuindo-lhe o modal de permitida, proibida ou obrigatória.
O seu suporte físico são os próprios textos legais.
42 Gabriel Ivo, A incidência da norma jurídica: o cerco da linguagem, p. 191. 43 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 63.
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31
Sustentando a prescritividade do preâmbulo da Constituição Federal, o
professor Paulo de Barros Carvalho44 destaca que a linguagem do direito, ainda
que esteja manifestada de outra forma, está sempre voltada para a regulação da
conduta intersubjetiva. Portanto, é irrelevante que a linguagem esteja manifestada
de forma descritiva, visto que a função das normas jurídicas é prescritiva de
condutas.
Na construção da norma jurídica, o intérprete deve congregar os
enunciados, considerando-os na forma apresentada, convertendo-os,
posteriormente, em mensagens deônticas. Desse modo, o primeiro contato
(pesquisa) requer apenas a compreensão isolada dos enunciados.
Estabelecidas as premissas, o autor45 sustenta que o preâmbulo da
Constituição é composto de proposições introdutórias que têm caráter prescritivo,
a despeito do entendimento já manifestado pela Corte Suprema. O preâmbulo
tem forte carga axiológica, devendo ser observado e “repercutir com intensidade
controlada em todas as normas do ordenamento”, configurando-se como o
“contexto” da construção da norma.
Assim, refuta o argumento de que o preâmbulo é “meramente retórico”,
destacando que o aspecto pragmático é indissociável de qualquer linguagem, que
exige timbre retórico, cujo significado não pode se limitar a expediente
persuasivo. A lógica da linguagem persuasiva é a lógica da argumentação (da
interpretação ou lógica dialógica). Esta é a lógica a que se submete o processo de
decisão judicial ou administrativo (não é a lógica apofântica (verdadeiro/falso)
nem deôntica (válida/inválida), tampouco das perguntas (pertinentes/
impertinentes).
44 Idem, ibidem, p. 63. 45 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 63.
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32
O professor sustenta que preâmbulo, ementa e exposição de motivos
desempenham o mesmo papel de enunciação enunciada. O preâmbulo reflete o
momento histórico, fixando “coordenadas relevantíssimas para a interpretação do
Texto Constitucional”. Destaca a correlação do preâmbulo com o tema das
fontes, ressaltando que, depois de enunciado, ele passa a integrar o conjunto de
normas válidas, caracterizando-se como fonte do direito posto.
Por fim, conclui que o preâmbulo é prescrição sobre prescrição; é um
preceito de sobrenível que tem como finalidade resumir de forma imperativa os
dispositivos que compõem o Texto Constitucional.
Com isso, podemos concluir que a norma jurídica é construída pelo
intérprete a partir de todos os enunciados de direito positivo, aí incluídos aqueles
que aparentam não ter conteúdo prescritivo, como o preâmbulo. Conforme
veremos em tópico a seguir, a construção de sentido da norma jurídica, do
comando normativo, pelo aplicador do Direito terá que observar dispositivos
explícitos e implícitos, como se dá em relação a alguns princípios.
1.3.1.3 Classificação
Fixada a ideia de que a norma jurídica é construída pelo intérprete a
partir dos enunciados prescritivos, reforça-se a conclusão de que é possível a
atribuição de sentidos diversos ao texto legal, especialmente no ato de aplicação
do direito.
Para a conclusão do presente trabalho, em que será analisado um
princípio expresso no texto constitucional, indispensável se faz a classificação
das normas quanto a dois critérios: (i) a quem se destina a norma jurídica,
agrupando-as em normas gerais e normas individuais; e (ii) quanto ao efeito
imediato, se destinado diretamente à regulação do comportamento ou, ao
-
33
contrário, se voltada imediatamente para regular a edição ou revisão de outras
normas.
A verificação do destinatário da norma jurídica tem consequência no
presente estudo, tendo em vista que, conforme veremos adiante, as normas
individuais, em determinadas circunstâncias, podem produzir efeitos gerais. Na
conjuntura atual, marcada pela generalização de decisões adotadas pelo Poder
Judiciário em processos individuais,46 certas normas individuais acabam por
generalizar expectativas. O preenchimento do conteúdo da norma jurídica, por
meio do processo de concretização, na edição de uma norma individual, pode
ensejar a definição do sentido e do alcance geral da norma.
A classificação das normas em gerais e individuais, como bem destaca
Norberto Bobbio, interessa à Teoria Geral do Direito, por utilizar um critério que
ele denominou de critério formal, “que se relaciona exclusivamente à estrutura
lógica das proposições prescritivas”.47
O jurista italiano, com fundamento nos ensinamentos de lógica, destaca
que as proposições prescritivas e, como tal, a norma jurídica são compostas pelo
sujeito (“a quem a norma se dirige”)48 e pelo objeto da prescrição (“a ação
prescrita”).49 Assim, conclui que são quatro as hipóteses: (i) prescrições com
destinatário universal; (ii) prescrições com destinatário singular; (iii) prescrições
com ação universal; e (iv) prescrições com ação singular. Com efeito, são quatro
as espécies de normas jurídicas: (i) normas gerais e abstratas; (ii) normas gerais e
concretas; (iii) normas individuais e abstratas; e (iv) normas individuais e
concretas.
Bobbio critica a “velha doutrina” da generalidade e abstração das normas
46 Nesse sentido, podemos destacar os ritos dos processos repetitivos, a repercussão geral e as súmulas vinculantes. 47 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p. 178. 48 Idem, ibidem, p. 178. 49 Idem, p. 178.
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34
jurídicas, que é imprecisa “porque não esclarece com frequência se os dois
termos, ‘geral’ e ‘abstrato’, são usados como sinônimos (‘as normas gerais são
gerais ou abstratas’), ou então, como tendo significados diferentes (‘as normas
gerais são gerais e abstratas’)”.50 Por isso, propõe chamar de “gerais” as normas
que têm destinatário universal, à qual se contrapõem as normas “individuais”,
também denominadas de comandos, e de “abstratas” as normas universais quanto
à ação, em contraposição às normas concretas, também designadas de “ordens”.
Paulo de Barros Carvalho51 destaca característica distintiva importante
entre a norma geral e a norma individual, ainda no âmbito da análise da estrutura
da norma jurídica. Salienta o ilustre professor que as normas gerais têm no seu
suposto um fato futuro, que ele denomina de hipótese, enquanto na norma
individual o suposto é um fato passado, intitulado por ele de antecedente.
Importa ressaltar, ainda, uma observação do professor italiano, que terá
grande repercussão na análise do presente trabalho: para que se atenda aos
princípios da igualdade e da certeza, as normas devem ser gerais e abstratas.
A generalidade da norma quanto ao sujeito destinatário inibe a concessão
de privilégios, que são veiculados por meio de normas individuais, e não de
normas gerais. Assim, a norma geral é mais apropriada para a realização da
igualdade, princípio basilar do Estado Democrático de Direito.
A abstração da norma, por seu turno, permite a determinação dos efeitos
e consequências atribuídos pelo ordenamento àquele específico comportamento.
Como destaca Bobbio,
[...] esta exigência [segurança] é maximamente satisfeita
quando o legislador não abandona a regulamentação dos
comportamentos ao arbítrio do juiz, caso a caso, mas
50 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p. 180. Destaques no original. 51 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 37.
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35
estabelece com uma norma a regulamentação da ação-tipo,
de modo que ali adentrem todas as ações concretas inclusas
naquele tipo. Assim como a generalidade da norma é
garantia da igualdade, a abstração é garantia da certeza.52
Portanto, a segurança e a igualdade estão relacionadas à abstração e à
generalidade da norma jurídica. No entanto, conforme vimos no item supra, a
linguagem em que se manifesta a norma jurídica sempre implicará certa
indeterminação do conteúdo da prescrição, ainda que se trate de comando
abstrato. A norma geral e abstrata, editada pelo legislador, não é capaz de
determinar qual o sentido em que será aplicada em cada caso concreto. Esta a
razão de buscarmos alcançar a segurança (objetivo do Direito e princípio
constitucional aplicável ao Direito Tributário) por outros meios que não a
literalidade da norma geral e abstrata.
Além da classificação das normas quanto à generalidade e abstração,
destacamos como pertinente ao tema a classificação das normas jurídicas em
normas de estrutura e normas de comportamento.
As normas de estrutura são aquelas que não são voltadas diretamente para
a regulação da conduta intersubjetiva como um todo, mas apenas à conduta
daqueles que criam normas. Portanto, a norma de estrutura é aquela que regula a
enunciação, ou a forma de criação das normas, tanto no aspecto de competência
quanto do procedimento.
Pode-se afirmar que as regras de estrutura são aquelas voltadas para os
sujeitos que têm legitimidade para realizar a enunciação.
Normas de conduta, por sua vez, são aquelas voltadas diretamente para a
regulação da conduta intersubjetiva.
52 Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 4. ed., p. 182-183.
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36
A doutrina adota essa distinção advertindo para o fato de que toda norma
jurídica está voltada para o comportamento, mas identifica que parte das normas
está direcionada diretamente para o comportamento de criação ou revisão das
normas jurídicas no sistema. Assim, as normas de estrutura não deixam de estar
voltadas para um comportamento.
O Professor Robson Maia Lins53 destaca que as normas de estrutura se
dividem em duas classes: normas de estrutura voltadas para a produção
normativa e normas de estrutura voltadas para a revisão sistêmica. Adverte que
tanto a produção normativa quanto a revisão sistêmica são procedidas por meio
da aplicação de normas.
Tendo em conta que analisaremos um denominado “princípio” expresso
na Constituição Federal, a irretroatividade, mostra-se relevante a distinção entre
normas de estrutura e normas de comportamento para concluirmos que os
princípios são normas de estrutura, voltados para a regulação tanto da produção
normativa quanto da revisão sistêmica.
1.3.1.4 Extensão e compreensão
A norma geral e abstrata, cujo exemplo mais adequado é a lei em sentido
estrito, tem grande abrangência de aplicação, podendo englobar um número
indeterminado de sujeitos e de objetos. Na medida em que as normas vão se
concretizando, por meio do escalonamento da incidência, vão sendo atribuídos
sentidos ao texto legal, e a norma abrangente (geral e abstrata) vai se tornando
específica (individual e concreta), por meio do processo de subsunção ou de
incidência.
Como bem destaca o Professor Paulo de Barros Carvalho,54 a incidência
53 Robson Maia Lins, Controle de constitucionalidade da norma tributária, p. 58. 54 Direito tributário, linguagem e método, p. 152.
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37
é uma operação lógica realizada pelo intérprete que parte de conceitos
conotativos (norma geral e abstrata) para conceitos denotativos (norma individual
e concreta), aplicando àquele fato ocorrido efetivamente a consequência prevista
hipoteticamente.
Uma lei, por ser norma geral e abstrata, tem uma extensão máxima
(aplicação a todos), mas uma compreensão mínima (definição do sentido do
comando). À medida que descemos a pirâmide hierárquica das normas, reduz-se
a abrangência de sua aplicação (extensão) e aumenta-se a definição do comando
(compreensão). Assim, em um dos extremos da escala encontra-se a lei, com
extensão máxima e compreensão mínima; na outra extremidade da escala,
encontra-se a sentença, aplicável apenas entre as partes (extensão mínima) e com
comando plenamente determinado (compreensão máxima).55
Como destacamos anteriormente, com base nos ensinamentos de
Bobbio,56 para assegurar um dos princípios basilares do Estado Democrático de
Direito, consubstanciado nos princípios da igualdade e da segurança, devem
prevalecer normas gerais e abstratas e evitar atribuir ao juiz o poder de definir
caso a caso qual o sentido da lei.
Vimos que a norma jurídica se manifesta por meio de linguagem não
formalizada e está sujeita à imprecisão dos vocábulos, pelo que sempre caberá ao
intérprete e ao aplicador atribuir o sentido aos dispositivos legais.
Não é possível assegurar a aplicação igualitária dos comandos em cada
caso, partindo-se apenas das normas gerais (leis), posto que a aplicação da norma
ao fato se dá por meio de um processo de escalonamento da incidência. Assim, é
necessário estabelecer mecanismos que deem segurança aos indivíduos quanto ao
sentido da norma jurídica. Nos casos em que ocorra modificação no sentido da
55 Neste sentido, v. Misabel Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 50. 56 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica.
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38
norma jurídica (alteração de jurisprudência sedimentada), o aplicador deve
buscar preservar todos os princípios constitucionais expressos ou implícitos.
1.3.1.5 Princípios jurídicos
A análise do tema requer uma breve reflexão de alguns conceitos para que
se determine o sentido em que serão abordados no presente trabalho, o que é
fundamental para que as conclusões alcançadas guardem lógica com seus
pressupostos.
Portanto, cabe precipuamente o destaque do sistema de referências sob o
qual irá se firmar o presente trabalho, tornando-se indispensável a abordagem do
tema, ainda que breve, no campo da Teoria Geral do Direito.
Tendo em vista que o tema a ser tratado é decorrente de um princípio que
compõe o sistema tributário brasileiro, indispensável se torna a determinação do
significado do vocábulo princípio, ou, pelo menos, como será considerado ao
longo deste trabalho.
O vocábulo princípio quer dizer “início”, “origem”, começo. Este
vocábulo é plurissignificativo, pelo que se faz necessário fixar qual o seu
significado, alcance e sentido. No âmbito do discurso descritivo da Ciência do
Direito deve-se buscar espancar as imprecisões da linguagem técnica do direito
positivo, pelo que se mostra necessário estabelecer qual o seu significado para o
discurso científico.
A análise do tema será feita a partir do direito posto, verificando os
enunciados constitucionais e infraconstitucionais que integram o ordenamento
jurídico vigente.
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39
A primeira questão a ser enfrentada é se os princípios são normas
jurídicas, e, assim, se são de observância obrigatória (coercitividade).
Vale ressaltar que os princípios jurídicos não se enquadram no conceito de
norma jurídica como “significação organizada em uma estrutura lógica
hipotético-condicional (juízo implicacional), construída pelo intérprete a partir do
direito positivo, seu suporte físico, e dotada de bilateralidade e coercitividade”,
no conceito bem lançado de Maria Rita Ferragut,57 visto que eles são enunciados
que concorrem para a construção mental da norma jurídica.
Princípios são enunciados prescritivos que devem ser observados de forma
obrigatória.
Os princípios constitucionais são normas jurídicas fundantes, que servem
de marco inicial da hermenêutica jurídica, haja vista que são enunciados que se
encontram no topo do ordenamento jurídico. São imperativos e devem ser
respeitados sempre que se pretenda aplicar uma norma que componha o
ordenamento jurídico.
Com base nos ensinamentos de Eduardo Couture, Roque Antônio
Carrazza58 definiu princípio da seguinte forma:
Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou
explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição
de preeminência nos vastos quadrantes do Direito e, por
isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento
e a aplicação das normas jurídicas que com ele se
conectam.
57 Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p. 19. 58 Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p. 39.
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40
Celso Antônio Bandeira de Mello, citado por Roque Antônio Carrazza,
ensina que
Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um
sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental
que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o
espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão
e inteligência, exatamente por definir a lógica e a
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a
tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos
princípios que preside a intelecção das diferentes partes
componentes do todo unitário que há por nome sistema
jurídico positivo.59
Não se podem deixar de destacar aqui as lições de Paulo de Barros
Carvalho, que traz novos elementos para a conceituação, ressaltando que
[...] os princípios aparecem como linhas diretivas que
iluminam a compreensão de setores normativos,
imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de
fator de agregação num dado feixe de normas. Exercem
eles uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras
jurídicas que caem sob seu raio de influência e manifestam
a força de sua presença. Algumas vezes constam de
preceito expresso, logrando o legislador constitucional
enunciá-los com clareza e determinação. Noutras, porém,
ficam subjacentes à dicção do produto legislado, suscitando
um esforço de feitio indutivo para recebê-los e isolá-los.
São os princípios implícitos. Entre eles e os expressos não
se pode falar em supremacia, a não ser pelo conteúdo
intrínseco que representam para a ideologia do intérprete,
59 Idem, ibidem, p. 39.
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momento em que surge a oportunidade de cogitar-se de
princípios e de sobreprincípios.60
Assim, pode-se concluir que (i) os princípios são normas, e, como tal, têm
caráter imperativo, não se limitando a indicar, mas a determinar, o sentido da
interpretação normativa; (ii) considerando-se a existência de hierarquia entre as
normas, ainda que situadas em um mesmo patamar hierárquico, por exemplo, a
Constituição, podemos afirmar que existem sobreprincípios; (iii) a hierarquia
entre os princípios situados no mesmo patamar hierárquico será determinada pelo
seu grau de generalidade; (iv) princípios são normas jurídicas indispensáveis ao
funcionamento de um sistema jurídico, servindo-lhe como alicerce; (v) os
princípios podem ser implícitos ou explícitos; e (vi) princípio é uma norma muito
arraigada de valores, conferindo lógica, racionalidade e harmonia ao sistema.
Vale ressaltar, dada a sua importância, que os princípios podem revelar
tanto um caráter de norma quanto de valor, ou de limite objetivo, que informa o
trabalho tanto do intérprete quanto do legislador. Assim, conforme ensina Paulo
de Barros, os princípios podem ser vistos sob quatro acepções:
a) como norma jurídica de posição privilegiada e
prestadora de valor expressivo; b) como norma jurídica de
posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como
os valores insertos em regras jurídicas de posição
privilegiada, mas considerados independentemente das
estruturas normativas; e d) como o limite objetivo
estipulado em regra de forte hierarquia, tomado, porém,
sem levar em conta a estrutura da norma. Nos dois
primeiros, temos “princípio” como “norma”; enquanto os
dois últimos, “princípio” como “valor” ou como “critério
objetivo”.61
60 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 148. 61 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 145.
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A principal função dos princípios é dar unidade ao sistema, evitando a
presença de qualquer tipo de lacuna ou antinomia, que podem ser identificadas de
forma aparente.
Os princípios devem ser a fonte primordial do intérprete quando da
construção das normas jurídicas, orientando a atividade hermenêutica de forma a
conduzir a criação da regra concreta aplicável à espécie.
Conforme asseverado anteriormente, convém lembrar, não é somente a
atividade do intérprete da norma jurídica que terá que atentar para os princípios
dispostos no ordenamento, mas, principalmente, o legislador infraconstitucional
terá que atentar para os princípios quando da elaboração de novos enunciados,
que deverão estar sempre em consonância com os preceitos basilares do
ordenamento.
Corroborando o acima afirmado, Miguel Reale leciona que
[...] princípios gerais de direito são enunciações normativas
de valor genérico, que condicionam e orientam a
compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua
aplicação e integração, quer para a elaboração de novas
normas. Cobrem, desse modo, tanto o campo da pesquisa
pura do Direito quanto o de sua atualização prática.62
Outra função exercida pelos princípios no ordenamento é permitir que
haja coerência entre as normas jurídicas, haja vista que a aplicação de uma norma
contida no sistema é a aplicação de todo o sistema, conforme afirmado por
Kelsen.
62 Miguel Reale, Fundamentos do direito, p. 204.
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Em seu curso Sistema constitucional tributário brasileiro, Geraldo
Ataliba, citado por Roque Antônio Carrazza, fornece precisa definição para
sistema, afirmando que
[...] o caráter orgânico das realidades componentes do
mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento
humano conduzem o homem a abordar as realidades que
pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade
científica e conveniência pedagógica, em tentativa de
reconhecimento coerente e harmônico da composição de
diversos elementos em um todo unitário, integrado numa
realidade maior. A esta composição de elementos, sob
perspectiva unitária, se denomina sistema. Sistema, pois, é
a reunião ordenada de várias partes que formam um todo,
de tal sorte que eles se sustentam mutuamente e as últimas
explicam-se pelas primeiras. As que dão razão às outras
chamam-se princípios, e o sistema é tanto mais perfeito,
quanto em menor número existam.63
Lourival Vilanova, em sua festejada obra Estruturas lógicas e o sistema
no direito positivo, estabelece que “falamos de sistema onde se encontrem
elementos e relações e uma forma dentro de cujo âmbito, elementos e relações se
verifiquem”.64
Assim, tem-se que sistema pressupõe diversidade de partes e inter-relação
entre elas. Desse modo é que se tornará indispensável a existência de princípios
que consigam manter as características primordiais do sistema.
As normas que compõem o ordenamento jurídico estão dispostas de forma
organizada, sendo que o enunciado inferior tem como fundamento de validade o
63 Geraldo Ataliba, Sistema constitucional tributário brasileiro, 1. ed., São Paulo: RT, 1966, p. 4, apud Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p. 37. 64 Lourival Vilanova, Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, p. 168.
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enunciado superior, até atingir a Constituição Federal, que é o fundamento de
validade de todos eles. É por essa razão, ou seja, a disposição organizada das
normas com um mesmo fundamento de validade, que se pode afirmar que o
sistema jurídico é marcado pela unidade e pela coerência. Além disso, o sistema
jurídico é caracterizado pela plenitude, não permitindo a existência de lacunas,
sendo indistintamente aplicado a todos, valendo sobre todas as condutas.
As regras de Direito Tributário formam um subsistema dentro do
ordenamento jurídico, o “Sistema Tributário Brasileiro”. Esse é o subsistema que
interessará para o estudo do tema.
Somente se pode falar em existência de um subsistema quando houver
princípios próprios a regê-lo. Com efeito, no direito positivo existem princípios
especialmente aplicados à área tributária.
Alguns desses princípios65 serão objeto de estudo deste trabalho, sobre os
quais serão tecidos comentários e reflexões com a finalidade de alcançar a
melhor interpretação da irretroatividade.
1.3.2 O Poder Judiciário como Poder e não como mera autoridade
Partindo do pressuposto anteriormente fixado, de que a norma jurídica é
construída pelo operador do Direito, tem-se que verificar como se dá a sua
concretização.
O primeiro aspecto a ser esclarecido é que a concretização não se limita ao
texto normativo, tendo como dado de entrada também o caso a ser construído, a
partir dos fatos, que representam uma das dimensões do caso.
65 Em tópico adiante analisaremos criticamente o conceito de princípio, para concluirmos quais os critérios para enquadramento de uma determinada norma na classe dos princípios. Conforme sustentaremos em tópico desta dissertação, com base nos ensinamentos de Humberto Ávila, a irretroatividade não se caracteriza como princípio, mas, com outras regras, compõe o princípio da segurança jurídica.
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Como bem destaca Friedrich Müller,66 cuja teoria será melhor analisada
em tópico infra, a concretização vai além de mera aplicação ou de uma simples
subsunção do fato à norma (ou vice-versa, visto que se trata de uma operação
lógica). Para o referido filósofo alemão, enquanto não há concretização não há
sequer norma jurídica, sendo indispensável a sua aplicação nos casos concretos
para que ela seja efetivamente construída.
O Professor Paulo de Barros Carvalho67 leciona que
[...] as normas gerais e abstratas, principalmente as contidas
na Lei Fundamental, exercem um papel relevantíssimo,
pois são o fundamento de validade de todas as demais
indicam os rumos e os caminhos que as regras inferiores
haverão de seguir. Porém, é nas normas individuais e
concretas que o direito se efetiva, se concretiza, se mostra
como realidade normada, produto final do intenso e penoso
trabalho de positivação. É o preciso instante em que a
linguagem do direito toca o tecido social, ferindo a
possibilidade da conduta intersubjetiva.
.
A função primária do direito é resolver conflitos intersubjetivos e permitir
uma relação ordenada entre os sujeitos. Essa função é exercida por meio da
concretização da norma, aplicada pelo juiz.
Para os positivistas legalistas, o juiz é mero dedutor do comando expedido
pela lei; na sua atividade não haveria qualquer tipo de criação, de valoração ou de
discricionariedade. O agente responsável por decidir os casos concretos não
representaria um poder, mas uma mera autoridade. A lei seria, sob essa ingênua
concepção, a única fonte das decisões judiciais.
66 Friedrich Müller, Esboço de uma metódica do direito constitucional, p. 50-70. 67 Segurança jurídica e modulação de efeitos.
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A concepção tradicional dessa orientação positivista implica sobreposição
hierárquica do Poder Legislativo sobre os demais poderes. Para aqueles que
entendem que o juiz é mera autoridade, aplicando ao caso concreto a norma geral
e abstrata, sem qualquer possibilidade de escolha entre alternativas decisórias, o
Poder Judiciário não representa um verdadeiro poder, mas um executor dos
comandos legais preestabelecidos.
As modernas teorias que serão analisadas em tópico específico,
capitaneadas por Luhmann e por Müller, ultrapassam a clássica separação de
poderes e negam a hierarquia e a submissão do juiz à lei, reconhecendo atividade
criativa no ato jurisdicional.68 Isso decorre especialmente da constatação de que,
mesmo sem modificação do texto legal, a orientação jurisprudencial pode se
alterar.
Como bem destaca Misabel Derzi,
[...] a escolha de uma das alternativas de interpretação, a
solução de conflitos entre normas e a integração – se
compatíveis com os enunciados linguísticos postos pelo
legislador – não configuram nenhum excesso no exercício
das funções judicantes. São a própria natureza do Poder
Judiciário que é, de fato, um Poder e não uma singela
autoridade.69
Pelo exposto, não resta dúvida de que o Poder Judiciário pode atribuir
sentidos diversos ao texto legal, construindo normas diferentes ao analisar cada
caso. Para evitar a insegurança e a incongruência, cabe à Dogmática Jurídica
orientar quais mecanismos do sistema de direito positivo podem e devem ser
utilizados para preservação de princípios consagrados no sistema, especialmente
no âmbito tributário. 68 Humberto Ávila adverte que “importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto” (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 25-26). 69 Misabel Derzi, Modificações da jurisprudência no direito tributário, p. 49.
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CAPÍTULO 2 – JURISPRUDÊNCIA E AS EXPECTATIVAS
NORMATIVAS
2.1 Fontes do direito
O tema em apreço e as premissas até então firmadas impõem a
explicitação da concepção dada às decisões judiciais, que constroem a norma
jurídica ao lhe atribuírem o conteúdo, alcance e sentido. Tais decisões podem ser
consideradas como fonte do direito?
O estudo das chamadas fontes do direito sempre foi relegado a segundo
plano pela doutrina. Como bem ressalta o Professor Tárek Moysés Moussallem,70
destacando os ensinamentos de Alfredo Augusto Becker, os juristas reduziram o
estudo das fontes à lei, ao costume, à doutrina e à jurisprudência, criando
distinções “inúteis” em fontes primárias e fontes secundárias e fonte formal e
material.
Com fundamento na doutrina do Professor Paulo de Barros Carvalho,
Tárek Moussallem sustenta, em aprofundada obra, que é necessário distinguir os
planos do direito positivo e da Ciência do Direito, distinção esta fundamental
para evitar a confusão na acepção do termo fontes do direito. Destaca que Kelsen
emprega a locução fontes no sentido de fundamento de validade, pelo que a
norma superior é a fonte da norma inferior e a Constituição é a fonte primordial
do ordenamento jurídico. Ressalta, ainda, que Lourival Vilanova concebe fonte
como o modo de produção normativo estabelecido pelo próprio ordenamento
(autopoiese).
70 Fontes do direito tributário.