Da Semente Da Maçã Ao Silêncio Da Estrela. O Percurso Do Narrar e Da Linguagem Na Obra de Clarice...
-
Upload
carlacarbatti -
Category
Documents
-
view
8 -
download
2
description
Transcript of Da Semente Da Maçã Ao Silêncio Da Estrela. O Percurso Do Narrar e Da Linguagem Na Obra de Clarice...
-
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARING
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
(MESTRADO E DOUTORADO)
DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA
DA SEMENTE DA MA AO SILNCIO DA ESTRELA:
O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE
CLARICE LISPECTOR
MARING
2013
-
2
DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA
DA SEMENTE DA MA AO SILNCIO DA ESTRELA:
O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE
CLARICE LISPECTOR
Dissertao apresentada ao programa de Ps-
Graduao em Letras (Mestrado e Doutorado),
da Universidade Estadual de Maring, como
requisito parcial para obteno do ttulo de
Mestre em Letras, rea de concentrao:
Estudos Literrios.
Orientadora: Prof. Dr. Marisa Corra Silva
MARING
2013
-
3
DIEGO LUIZ MIILLER FASCINA
DA SEMENTE DA MA AO SILNCIO DA ESTRELA:
O PERCURSO DO NARRAR E DA LINGUAGEM NA OBRA DE
CLARICE LISPECTOR
Dissertao apresentada ao programa de Ps-
Graduao em Letras da Universidade
Estadual de Maring, como requisito parcial
para a obteno do ttulo de Mestre em Letras,
rea de concentrao: Estudos Literrios.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________
Prof. Dr. Marisa Corra Silva
Universidade Estadual de Maring UEM - Presidente -
________________________________________________________________
Prof. Dr. Evely Vnia Libanori
Universidade Estadual de Maring UEM
________________________________________________________________
Prof. Dr. Maria de Lourdes Zizi Trevizan Perez
Universidade do Oeste Paulista UNOESTE/So Paulo - SP
-
4
Acho com alegria que ainda no chegou a hora de estrela de cinema de
Macaba morrer. Pelo menos ainda no consigo adivinhar se lhe acontece o
homem louro e estrangeiro. Rezem por ela e que todos interrompam o que
esto fazendo para soprar-lhe vida, pois Macaba est por enquanto solta no
acaso como a porta balanando ao vento no infinito. Eu poderia resolver pelo
caminho mais fcil, matar a menina-infante, mas quero o pior: a vida. Os que
me lerem, assim, levem um soco no estmago para ver se bom. A vida um
soco no estmago.
(Clarice Lispector in A hora da Estrela)
Dedico este trabalho a todos aqueles, que assim como eu,
levam socos no estmago ao ler Clarice Lispector.
-
5
MEUS SINCEROS AGRADECIMENTOS A VOCS:
Banca:
Prof. Dr. Marisa Corra Silva,
pela orientao segura, pela amizade sincera, por confiar em meu trabalho e por ter me
apresentado o materialismo lacaniano;
Prof. Dr. Evely Vnia Libanori,
pela amizade, pela fundamental colaborao para a realizao desta pesquisa e por me
guiar pacientemente pela fico de Clarice Lispector;
Prof. Dr. Lcia Helena,
pelas contribuies no exame de qualificao que enriqueceram esta dissertao;
Prof. Dr. Zizi Trevizan,
pela simpatia em aceitar prontamente nosso convite para compor a banca de defesa.
Aos professores do DLE/PLE UEM, que contriburam diretamente para minha formao.
Meus pais:
Jane Maria Miiller e Sidinei Fascina, as sementes da ma,
e a toda minha famlia, por todo amor, pacincia e dedicao.
Ariane Fabreti e Thays Pretti, colegas de orientao, e
Beatriz Godoy, Elerson Cestaro, Kellen Wiginescki,
e tambm a toda turma do Mestrado/Doutorado em Estudos Literrios de 2011,
pelos estudos, churrascos, cafs e pela amizade que perdurar;
Renata Taroco, Marcela Greco e Patrcia Bastos,
pelas frutferas discusses, esclarecimento de dvidas e emprstimo de livros;
Fabrcio de Aguiar, Hlio Moblio, Thiago Chab e Cristiane Santos, irmos que a graduao me trouxe;
Marcela Batalini, Sharlene Davantel Valarini, Thays Pretti e Wilma Coqueiro,
pela leitura crtica e pelos apontamentos;
Fernanda Cassim e Thays Pretti,
pela reviso ortogrfica e formatao;
Sem citar nomes, a todos os meus amigos,
que no se envolveram diretamente com este estudo,
mas que respeitaram meu sumio e torceram por mim;
e um agradecimento especial minha chefe:
Maria Angela Martins Molina Silvestre,
por ter assumido o papel de segunda me neste percurso, respeitando minha necessria
ausncia no trabalho e apoiando minha carreira acadmica.
-
6
No entanto, fui preparada para ser dada luz de um modo to bonito. Minha me j estava doente e, por uma superstio bastante espalhada, acreditava-se
que ter um filho curava uma mulher de uma doena. Ento fui
deliberadamente criada: com amor e esperana. S que no curei minha me.
E sinto at hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma misso
determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma
guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido
em vo e t-los trado na grande esperana. Mas eu, eu no me perdoo.
Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar
minha me. Ento, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha me. Eu nem
podia confiar a algum essa espcie de solido de no pertencer porque,
como desertor, eu tinha o segredo da fuga que, por vergonha, no podia ter
conhecido. A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para
me dar a medida do que eu perco no pertencendo. E ento eu soube:
pertencer viver. Experimentei-o com a sede de quem est no deserto e bebe
sfrego os ltimos goles de gua de um cantil. E depois a sede volta e no
deserto mesmo que caminho.
(Clarice Lispector in A descoberta do mundo)
Voc tem descortinado muito ultimamente, meu filho? - Tenho pai, disse contrafeito com a intruso de intimidade, toda vez que o
pai quisera compreend-lo, deixara-o constrangido. - Como vo suas relaes sexuais, meu filho?
- Muito bem, respondeu com vontade de mandar o pai para o inferno de onde
tirara.
(Clarice Lispector in A ma no escuro)
A palavra o meu domnio sobre o mundo
(Clarice Lispector in Perto do corao selvagem)
E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei no
posso dizer, s sei pintando ou pronunciando, slabas cegas de sentido. E se
tenho aqui que usar-te palavras, elas tm que fazer um sentido quase que s
corpreo, estou em luta com a vibrao ltima.
(Clarice Lispector in gua viva)
-
7
Era uma ma vermelha, de casca lisa e resistente. Pegou a ma com as duas mos: era fresca e pesada. Colocou-a de novo sobre a mesa para v-la
como antes. E era como se visse a fotografia de uma ma no espao vazio.
Depois de examin-la, de revir-la, de ver como nunca vira a sua redondez e
sua cor escarlate ento devagar, deu-lhe uma mordida. E, oh Deus, como se fosse a ma proibida do paraso, mas que ela agora j
conhecesse o bem, e no s o mal como antes. Ao contrrio de Eva, ao
morder a ma entrava no paraso.
S deu uma mordida e depositou a ma na mesa. Porque alguma coisa
desconhecida estava suavemente acontecendo. Era o comeo de um estado de graa.
S quem j tivesse estado em graa, poderia reconhecer o que ela sentia. No
se tratava de uma inspirao, que era uma graa especial que tantas vezes
acontecia aos que lidavam com arte.
O estado de graa em que estava no era usado para nada.
(Clarice Lispector in Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres)
-
8
RESUMO
A proposta desta dissertao lanar um olhar sobre a fico de Clarice Lispector aps
a publicao de seu quarto romance, A ma no escuro, de 1961. Utilizaremos as
contribuies do materialismo lacaniano, do qual um dos maiores representantes o
filsofo esloveno Slavoj iek, para apontar que a posio dos narradores clariceanos
parte do tom monocntrico descrito por Benedito Nunes (1995), para assumir, em A
ma no escuro, um tom crescentemente obsessivo que culminar em A hora da estrela.
Essa obsesso, que no se restringe apenas figura do narrador, verificada na estrutura
romanesca e na disposio da malha literria. Intencionamos, ainda, propor a
visualizao do amadurecimento da escritura da autora: a partir de A ma no escuro,
sua fico se aproxima gradativamente do Discurso da Histrica, uma das modalidades
dos Quatro Discursos lacanianos. Esse romance lana o piloto de uma linguagem que
atingir seu ponto culminante em A paixo segundo G.H., e que assumir tom radical
com a publicao de gua viva.
Palavras-chave: Clarice Lispector, crtica literria, materialismo lacaniano, Slavoj
iek.
-
9
ABSTRACT
The objective of this dissertation is to analyze Clarice Lispectors fiction published after
her fourth novel A ma no escuro (The apple in the dark) in 1961. According to
lacanian materialism, whose greatest name is Slovenian philosopher Slavoj iek, it
might be concluded that the position of Lispectorian narrators goes from the
monocentric tone, as described by Benedito Nunes (1995), to an increasingly obsessive
tone in A ma no escuro (The apple in the dark), a process that reaches its climax in A
hora da estrela (The hour of the star). This obsession, which is not restricted to the
narrator, can be found trough the novels structure and in the literary plot. ieks
theory is also used in order to analyze a development in the authors writing: starting in
A ma no escuro (The apple in the dark), Lispectorian fiction can be read through the
Discourse of the Hysteric, one of the Four Lacanian Discourses. This novel launches the
first model of a language which will achieve its most acclaimed level in A paixo
segundo G.H. (The passion according to G.H.) and its most radical aspect in gua Viva
(The stream of Life).
Keywords: Clarice Lispector, lacaniam materialism, Slavoj iek, literary criticism.
-
10
SUMRIO
CAPTULO PRIMEIRO: TEMPO DE CLARICE LISPECTOR
1.1. "................................................................................................................................ 12
1.2. Os modernistas de 1945 ........................................................................................... 17
1.3. No fcil ler A ma no escuro ............................................................................. 19
CAPTULO SEGUNDO: O MATERIALISMO LACANIANO DE SLAVOJ
IEK: A RENOVAO DO PENSAMENTO DA ESQUERDA
2.1. Traos biogrficos de iek .................................................................................... 25
2.2. O que materialismo lacaniano............................................................................... 27
2.3. Materialismo lacaniano e Literatura ........................................................................ 31
2.4. Conceitos bsicos de Jacques Lacan relidos por iek e as possibilidades de
aplicao na literatura de Clarice Lispector ...................................................... .............34
CAPTULO TERCEIRO : AS LACUNAS DA REALIDADE
3.1. A fuga do Real traumtico em A ma no escuro....................................................45
CAPTULO QUARTO: A OBSESSO AO NARRAR
4.1. O narrador no romance moderno ............................................................................. 59
4.2. Perto do corao selvagem e O lustre: As narrativas monocntricas.....................62
4.3. Uma exceo regra: O narrador de A Cidade Sitiada............................................68
4.4. A Ma no Escuro: Do narrador estrutura romanesca...........................................69
4.4.1. Um encontro: O homem dos ratos, de Freud e O mito individual do neurtico, de
Lacan...............................................................................................................................71
4.4.2. O narrar obsessivo e as marcas dessa obsesso.....................................................76
-
11
4.5. A estrutura compulsiva em A quinta histria e em O ovo e a galinha................... 88
4.6. As trs narrativas sufocando Macaba: A obsesso em A hora da estrela ............. 93
CAPTULO QUINTO: A HISTERICIZAO DA LINGUAGEM
5.1. Do risco ao rabisco: A escrita revolucionria de Clarice Lispector......................104
5.2. O Discurso da histrica..........................................................................................108
5.3. A Ma no escuro ou O grande pulo.....................................................................112
5.4. A paixo segundo G.H. : Cristalizaes de um discurso histrico........................119
5.5. gua viva: A escrita vertiginosa de um objeto gritante:.........................................128
CONSIDERAES FINAIS......................................................................................136
REFERNCIAS ......................................................................................................... 143
-
12
CAPTULO PRIMEIRO
TEMPO DE CLARICE LISPECTOR
1.1.
bom, agora eu morri. Vamos ver se eu renaso de novo. Por enquanto eu estou
morta. Estou falando do meu tmulo1, dizia Clarice Lispector no incio de 1977 ao
jornalista Alex Lerner. Na poca, a autora havia terminado de escrever A hora da
estrela e sua dificuldade em lidar com o perodo hiato que compreendia o findar de uma
obra e o nascimento de outra era uma preocupao constante e facilmente perceptvel
em suas falas. Dizia ficar oca, como se vegetasse, ansiosa para preencher as lacunas
causadas pela publicao de um texto, embora o esvaziamento das ideias fosse visto
como fundamental para que outras comeassem a se formar.
Na mesma oportunidade, o jornalista questiona se ela se considerava uma
escritora popular. A resposta no poderia ser mais sintomtica: U, me chamam at de
hermtica. Como que eu posso ser popular sendo hermtica? E complementa: Eu me
compreendo, de modo que eu no sou hermtica para mim 2.
Fumando sem parar e s vezes esboando um ar cansado que sugeria distncia,
ainda na mesma entrevista, a autora confunde os espectadores, reforando a imagem de
mistrio intocvel que ronda sua obra: em um lance afirma que no entendia o rtulo de
hermtica atribudo a ela, uma vez que julgava escrever muito simples e sem enfeites,
1 LISPECTOR, Clarice. Encontros. Organizao de Evelyn Rocha; [apresentao] Benjamin Moser. Rio
de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p.185.
2 Ibidem, p.178
-
13
ao passo que, momentos depois, dispara que um de seus contos, O ovo e a galinha, se
fazia incompreensvel para ela mesma.
De qualquer maneira, no se consegue classificar o inclassificvel. Yudith
Rosenbaum (2002, p.08) diz que a obra da autora vista at hoje como uma
experincia, no limite, indecifrvel, seja para seu pblico cativo, seja para os que dela se
aproximam pela primeira vez. Tentar mensurar sua importncia, no apenas como
escritora que, a seu modo, renovou as letras brasileiras, mas tambm como influncia de
parte significativa do que encontraramos mais tarde em nosso plano literrio intil.
Por mais estudos que sejam arrolados, sempre ficar muito por dizer; literatura
novidade que se mantm novidade, disse Ezra Pound (2006, p.33).
No caso de Lispector, a inovao operada ao organizar a estrutura de uma
narrativa descontnua, que obriga a uma reflexo sobre a linguagem literria e seus
mecanismos de representao da realidade, provoca em muitos uma reao pouco
positiva, tamanha a novidade que sua obra mantm.
Isso se d porque refletir a respeito deste tecido complexo, a densa corporeidade
da qual feita o seu discurso, tem seu ato de criao finalizado na leitura. Em outras
palavras, a escritura de quem afirma estou tentando escrever-te com o corpo todo
(LISPECTOR, 1994, p.11) s pode ser lida por aqueles que sabem que a aproximao
do que quer que seja se faz gradualmente e penosamente atravessando inclusive o
oposto daquilo que se vai encontrar (LISPECTOR, 1998, p.5).
A vontade da autora em renascer aps A hora da estrela no se concretizou.
Nessa mesma poca, estaria ela organizando Um sopro de vida, que viria a ser
publicado postumamente, tendo o fechamento organizado pela companheira Olga
Borelli, que disse as seguintes palavras na apresentao da obra: Iniciado em 1974 e
concludo em 1977, s vsperas de sua morte, este livro de criao difcil, foi, no dizer
-
14
de Clarice, escrito em agonia, pois nasceu de um impulso doloroso que ela no pode
deter (BORELLI, 1978, s/p). Clarice faleceu no final de 1977, de um cncer brutal que,
sem maiores alardes, impediu que ela conclusse sua ento derradeira obra.
A tarefa de renascer Clarice cabe, ento, a ns, seus leitores e estudiosos.
Mesmo aps 35 anos de seu passamento e depois dos muitos estudos j arrolados, os
rtulos insistem em perdurar, como se fosse possvel enquadr-la tranquilamente num
determinado estilo. Por outro lado, as pesquisas em torno de sua fico so incessantes e
plurissignificativas. Quando talo Calvino (2011, p.11) diz que um clssico um livro
que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer, ele ilustra a sensao de
eterna incompletude e refora a possibilidade recorrente de uma obra abalizada ser
revisitada e ser passvel de novas interpretaes.
Na tentativa de contribuir para um dos muitos renascimentos da autora,
adotamos como suporte terico para esta pesquisa o recente materialismo lacaniano de
Slavoj iek. Trata-se de uma corrente inicialmente atrelada filosofia poltica, mas
que j carrega em seu bojo algumas bem sucedidas relaes com o campo literrio.
Estaremos, pois, nesta dissertao, lanando um novo olhar que contemple globalmente
a obra da autora. De maneira panormica, nossa pretenso de contribuir para uma
viso coletiva de grande parte da produo romanesca de Lispector, usando tambm
alguns de seus contos.
Na tentativa de concretizar os objetivos propostos, dividimos este estudo em
cinco captulos. Este captulo, tempo de Clarice Lispector, o primeiro de nosso
trabalho, preocupa-se em comentar o espanto causado pela literatura de Lispector e o
motivo pelo qual os estudos a respeito da autora continuam de interesse para muitos. Na
sequncia deste primeiro subtpico, traremos breves consideraes a respeito do
momento literrio que a acolheu: trata-se do Modernismo de 45, poca de grandes
-
15
transformaes literrias, parte delas graas ao surgimento de Lispector. Na sequncia,
A ma no escuro, romance de maior ateno neste trabalho, receber uma leitura
tradicional, como a de Benedito Nunes (1995) e Olga de S (1979, 1993), tericos que
sero resgatados tambm nos captulos analticos.
Unem-se a essas leituras convencionais duas das leituras mais originais
encontradas a respeito do romance: a tese de doutorado de Erclia Bittencourt Dantas
(2006), a qual analisa este romance luz da Teoria Crtica, mais especificamente da
Dialtica do Esclarecimento de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer; e o estudo de
Fernanda Mara Colucci Fonoff (2004), que, por meio de uma leitura psicanaltica,
prope no romance a investigao de temas como individuao, formao de sujeito e a
importncia da funo paterna para a introjeo das leis sociais. importante esclarecer
que a leitura de Fonoff (2004) colabora para uma viso estritamente psicanaltica e no
aborda os mesmos conceitos lacanianos que lanaremos mo em nossa leitura iekiana.
O segundo captulo, de cunho terico, intitulado O materialismo lacaniano de
Slavoj iek: a renovao do pensamento da esquerda, constitui-se de uma
apresentao biogrfica do esloveno que lidera a corrente e, na sequncia, de uma
exposio de informaes a respeito do materialismo lacaniano, bem como os principais
paradigmas que iek utiliza em sua teoria. Em seguida, no subtpico Materialismo
lacaniano e Literatura, so apontadas as leituras realizadas por iek e tambm outras
realizadas, sobretudo aqui no Brasil. Os conceitos lacanianos de Real, Simblico,
Imaginrio e Grande Outro so relidos pelo prisma do esloveno e posteriormente
aplicados na literatura de Lispector. O conceito de paixo pelo Real, oriundo da
releitura de Alain Badiou, tambm receber um exemplo clariceano.
Finalmente, os captulos terceiro, quarto e quinto so analticos. No terceiro, As
lacunas da realidade, iniciamos a investigao luz de iek, utilizando a trade Real-
-
16
Simblico-Imaginrio dando nfase aos dois primeiros conceitos para esclarecer o
percurso do protagonista de A ma no escuro, apontando que a diviso romanesca,
pode se assemelhar ao percurso da humanidade visto pelo prisma do existencialismo. E
amparados pelos conceitos de neurose obsessiva e discurso da histrica, analisamos, sob
dois vrtices progressivos, parte da obra da autora.
No captulo quarto, cujo ttulo A obsesso ao narrar, nossa preocupao
centra-se em perceber uma linha progressiva que, a partir de iek, pode ser entendida
como obsessiva. Iniciamos o captulo com consideraes a respeito do narrador do
romance moderno, tal como prev Adorno (2003) e Rosenfeld (1996). Percebe-se que, a
princpio, a fico clariceana tem em Perto do corao selvagem e em O lustre
romances bem definidos quanto apregoao de monocntricos, viso proposta por
Nunes (1995). O mesmo no acontece com A ma no escuro e A hora da estrela,
romances a serem analisados. Tomando-se, como apoio o materialismo lacaniano,
verificar-se- que a progresso iniciada com o monocentrismo atingir grau menor (com
A ma no escuro) e maior (A hora da estrela) de um narrar obsessivo. Os contos A
quinta histria e O ovo e a galinha servem para esclarecer a viso obsessiva de algumas
caractersticas formais presentes especialmente em A ma no escuro. Apesar de no
contriburem diretamente para a anlise proposta, tais contos servem para entendermos
que o narrar obsessivo no justificado apenas com a produo romanesca.
O captulo quinto, intitulado A histericizao da escrita, preocupa-se tambm
em propor uma leitura progressiva da linguagem de Clarice Lispector. Iniciamos nossos
apontamentos levando em considerao a revoluo que a autora causou com a
linguagem proposta em sua fico. Explorando estudos de Slavoj iek, nota-se que A
ma no escuro transcende a revoluo moderna e delimita as fronteiras que separam
linguagem arrojada e linguagem, que passa a ser mais bem visualizada a partir do
-
17
Discurso da histrica de Lacan. Na sequncia, abordamos A paixo segundo G.H.,
romance que cristaliza as preocupaes com a linguagem geradas em A ma.
Elegemos, porm, gua viva como texto que radicaliza essa viso, por se comportar
como um romance que beira um delrio, possibilitando, a nosso ver, uma leitura do
corpo narrativo tal qual um corpo histrico e, tambm, um olhar sob sua linguagem que
acomoda tranquilamente tal discurso lacaniano.
Por fim, considera-se que o materialismo lacaniano prope uma viso inovadora,
induzindo para a construo de uma unidade no projeto literrio de Lispector, o que
pode ser deveras enriquecedor para sua fortuna crtica. Esperamos que, com estas
reflexes, nossa tentativa de renasc-la contribua para alargar o universo de seus
leitores, servindo tambm para confirmar que sempre tempo de Clarice Lispector,
escritora, por excelncia, do indeciso, do sugestivo, do espelho da mente e dos enigmas
da vida.
1.2. Os modernistas de 1945
No momento em que Clarice Lispector despontou, em meados de 1943, com
Perto do Corao Selvagem, nossa literatura se preparava gradativamente para uma
reviso crtica e para uma renovao no Modernismo. Anterior a essa necessidade de
mudana, havia o romance regionalista de 1930 que, segundo Antnio Soares Amora
(1969), formalizou as ideias lanadas na poca do Simbolismo, reforadas na dcada de
1920, de que o Brasil era mais que uma federao de Estados, um pas de regies
antropoculturais bem definidas e, portanto, inconfundveis entre si (AMORA, 1969,
p.158). Na esteira dessa concluso, s se poderia compreender de fato essas regies
quando fossem exploradas suas tradies e principais caractersticas.
-
18
Tal fico abordou os inmeros problemas de um Nordeste decadente desde que
os polos culturais e polticos do Brasil se transferiram para o Sul. A misria, as relaes
do homem do povo com o poder e com os poderosos, a hostilidade do meio estril e
ingrato, o descaso dos polticos com esse estado de coisas condicionaram novos estilos
ficcionais marcados pela rudeza, pela captao direta dos fatos, enfim por uma retomada
do naturalismo (BOSI, 2006, p.389). Dentre os autores reconhecidamente magistrais
na representao desses estilos, possvel citar Graciliano Ramos, Rachel de Queirz,
Jos Lins do Rgo, Jorge Amado e rico Verssimo, entre outros.
No entanto, nossa pesquisa se situa no momento em que o Modernismo se
preparava para esse novo ciclo de renovao, tanto na prosa quanto na poesia. A
chamada Gerao de 45 trouxe retrocessos formais e inovaes na poesia,
especialmente com Joo Cabral de Melo Neto. A prosa deu continuidade a tendncias
de 30, por meio da transfigurao do regionalismo e tambm de uma vertente urbana e
cosmopolita que havia surgido simultnea a essa, a do romance de denncia social.
Juntam-se a elas as propostas revolucionrias de Joo Guimares Rosa e a de Clarice
Lispector, sendo que esta ltima, segundo Silviano Santiago (2004, p.233), mesmo
acoplada a tal momento literrio, um rio que inaugura seu prprio curso.
No olhar de Amora (1969), essa gerao aperfeioou dois aspectos da gerao
passada: o regionalismo e o intimismo. Como precursores do intimismo de Clarice
Lispector, havia, dentre outros, Lcio Cardoso, Cyro dos Anjos e Cornlio Pena, os
quais registraram o incio dessa prosa qualificada como intimista, com uma forte
notao psicolgica. No entanto, so Rosa e Lispector que renovaram ou aperfeioaram
a literatura daquele decnio, preocupando-se no muito com os fatos a serem tratados,
mas com a maneira como so tratados esses assuntos. Em outras palavras, iniciava-se
um novo caminho a ser percorrido pela literatura brasileira que, gradativamente, se
-
19
desprendia das suas matrizes mais contingentes, como o regionalismo, a obsesso
imediata com os problemas sociais e pessoais, para entrar numa fase de conscincia
esttica generalizada (CANDIDO, 1970, p. 160).
Perto do corao selvagem, que, como observou Antonio Candido (1970),
representou uma bem-sucedida tentativa de levar nossa lngua a domnios pouco
explorados, e Sagarana, de Guimares Rosa, publicada em 1946, so a mxima do
empenho literrio que esses escritores tiveram para se espraiar dos moldes romanescos
de denncia social brasileira e tornar-se essencialmente obra de arte.
E obra de arte compreendida como produto do domnio da lngua, em todos
os seus aspectos [...], em todas as suas pocas [...], em todas as suas reas
dialetais brasileiras e em todos os seus nveis [...], compreendida tambm
como domnio de tcnicas construtivas das realidades da fico; e
compreendida, ainda, no apenas como o referido domnio dos materiais e tcnicas construtivas da obra de fico, mas tambm e sobretudo como criao original, ou melhor, como inveno do autor, no que respeita aos referidos processos expressivos e construtivos. E mais: com os ficcionistas
neomodernistas passamos a compreender que era preciso libertar nossa
literatura ficcional de suas limitaes locais, regionais, nacionais e
circunstanciais, e dar-lhe, em oposio, uma significao universal, o que foi
conseguido, em grande nmero de autores, pela depurao do assunto at sua
essncia mtica (AMORA, 1969, p.171)
Mediante o elevado nvel artstico que tais romances representaram, o pblico
leitor esboou as mais diversas reaes e, de uma maneira geral, esses livros ficaram
abandonados nas prateleiras e continuou-se a ser fiel literatura de 1930. De qualquer
modo, os ficcionistas no deixaram de se impor e criaram obras que, posteriormente,
foram consideradas as principais da dcada, como o caso de Grande serto: Veredas,
de Guimares Rosa, e A ma no escuro, de Clarice Lispector, que receber viso
crtica a seguir.
1.3. No fcil ler A ma no escuro,
obra de elaborao complexa em que a autora empregou toda a grande
quantidade de recursos de que dispe; muito mais difcil estimar o valor do
-
20
romance, principalmente situ-lo na atual conjuntura de nossa histria
literria (LUCAS, 1963, p.153)
notvel que a cada nova publicao, Clarice Lispector desnorteava no apenas
os leitores, mas tambm a crtica literria. O mesmo aconteceu com Perto do corao
selvagem e, aps A ma no escuro, insegurana parecida aconteceria, especialmente,
com a recepo de pelo menos mais dois romances: A paixo segundo G. H. e gua
viva.
De fato, esse romance teve gestao atpica. No final de 1950, Clarice parte com
o marido diplomata para a Inglaterra, em razo de compromissos com o Itamaraty.
Solitria e avessa vida social necessria para acompanhar o trabalho de Maury, o
marido, a autora comea a rascunhar as primeiras linhas de A ma no escuro, que ainda
no possua esse nome. Tempos depois, Clarice passa uma curta temporada no Brasil,
onde colabora, rapidamente, com o Jornal Comcio, escrevendo algumas crnicas na
pgina feminina. No final de 1952, parte novamente para a Inglaterra e Paulo, seu
segundo filho, nasce em meados de 1953. Entre viagens e interrupes para escrever os
contos de Laos de famlia, a autora concluiu o romance em maro de 1956.
Foi um livro fascinante de escrever, ela contou a Fernando Sabino em setembro. Aprendi muito com ele, me espantei com as surpresas que ele me deu mas foi tambm um grande sofrimento. Mas, se ela pensava que o sofrimento tinha terminado quando deu os ltimos retoques no dcimo
primeiro rascunho do livro, estava enganada. A Ma No Escuro teve o
destino de muitas obras aclamadas posteriormente como obras-primas: quase
no chegou a ser publicado (MOSER, 2009, p.335).
Com os manuscritos prontos, iniciou-se uma peregrinao at a publicao do
romance. A princpio, Clarice enviou cpias para seu amigo e compadre, rico
Verssimo, e para Fernando Sabino, que j havia sido seu agente literrio. Entre
desencontros, propostas no cumpridas por inmeras editoras, esperanas frustradas e
muita humilhao para a autora que j havia cogitado a hiptese de pagar para public-
lo, o romance finalmente saiu em 1961. Com A ma no escuro, encerra-se um hiato de
-
21
quase uma dcada sem lanamentos e marca-se, definitivamente, a consagrao da
escritora, que, em menos de um ano, havia produzido a coletnea Laos de famlia e o
novo romance. Em 1963, um jornalista escreveu:
Clarice Lispector deixou de ser um nome e se tornou um fenmeno em nossa
literatura. Um fenmeno com todas as caractersticas de um estado
emocional: os admiradores de Clarice entram em transe diante da mera
meno ao seu nome... E a grande autora de Perto do Corao Selvagem foi
transformada num monstro sagrado (MOSER, 2009, p. 359)
A crtica recebeu o novo romance de maneira muito calorosa. Antonio Olinto
(1966, p.214) afirmou que A ma no escuro seu melhor livro, um lanamento
importante na literatura deste sculo, obra da mais alta beleza como romance que narra
e como arcabouo de palavras; para Renard Perez (1971, p.76), o novo romance um
livro admirvel; e, para Temstocles Linhares (1987, p.414), este seu romance mais
caracterstico, a sua maior criao no gnero, como obra-prima de densidade
psicolgica e tambm de linguagem tensa e bela, encarada da forma mais completa. A
prpria autora, concordando com a opinio da crtica, afirmaria tempos depois: A ma
no escuro foi o livro mais bem estruturado que escrevi (LISPECTOR apud BORELLI,
1981, p.88).
As contribuies mais prolficas so de Benedito Nunes (1970, 1995) e de Olga
de S (1979,1993). O filsofo paraense escreveu dois estudos a respeito do romance. De
incio, quando entrou em contato com a literatura da autora, expressou seu
encantamento num ensaio intitulado O mundo imaginrio de Clarice Lispector,
publicado, originalmente, em 1966. Nesse ensaio, Nunes (1969) faz uso de conceitos
oriundos da filosofia da existncia para analisar os romances Perto do corao
selvagem, A paixo segundo G.H., A ma no escuro e o conto Amor, de Laos de
famlia. Em 1973, ao lanar Leitura de Clarice Lispector, o terico dissolve o primeiro
estudo, espraia e sistematiza sua anlise para elementos constituintes dos romances
-
22
publicados at Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, levando em considerao o
estilo de escritura da autora, a temtica existencial e, ainda, aborda demais contos das
coletneas Laos de famlia, A legio estrangeira e Felicidade clandestina.
Posteriormente, em 1985, Nunes (1995) revisa esses textos e inclui estudos a
respeito de gua viva, A hora da estrela e o pstumo Um sopro de vida. Utilizamos
nesta dissertao, para fins didticos, essa ltima obra, por englobar o mais longo
estudo que o crtico realizou a respeito da obra da autora e para evitarmos conflitos
entre as datas de publicao. Essa obra, intitulada O Drama da Linguagem: Uma leitura
de Clarice Lispector, tambm d nome ao captulo que se preocupa em analisar A ma
no escuro.
O filsofo chama a ateno para duas linhas de ao neste corpus, que se
amalgamam e vo do ato transgressor de Martim ao fracasso dessa rebeldia. A primeira,
nitidamente romntica, une-se ao itinerrio de tal ao e assume a forma de sbita
converso religiosa do protagonista, que parece ver no seu ato de violncia um ardil
irnico de Deus, em funo de insondveis desgnios (NUNES, 1995, p.41). E a
segunda, de carter mstico, une-se primeira e preocupa-se em estabelecer a imagem
de uma peregrinao simblica da alma (p.41), pois Martim realiza um percurso que
parte dele e volta a si mesmo.
Assim, A ma no escuro funcionaria como uma parbola da mxima
evanglica, segundo a qual aquele que perde sua vida h de ganh-la (p.45); no
entanto, esse aspecto no se sobressai ao romntico, quando aps a contemplao das
coisas e o relacionamento com Vitria e Ermelinda, o homem rompe uma parte do
silncio que lhe caracteriza, para iniciar a gestao de uma nova existncia.
Atrelada possibilidade de reconstruir um novo existir, est a necessidade de se
renovar a linguagem padro. Como linguagem de A ma no escuro recebe um
-
23
captulo, optamos por expor as contribuies de Nunes, especificamente, no momento
da anlise. Em linhas muito gerais, podemos adiantar que o protagonista est a servio e
a favor da linguagem e, no fechar do romance, percebe-se que esse drama da linguagem
explode internamente a narrativa, reduzindo-a ao problema do ser e do dizer (p.57).
Nas trilhas da leitura bblica, Olga de S (1979), aps a anlise cuidadosa dos
elementos narrativos que o constitui, prope em A escritura de Clarice Lispector, que A
ma no escuro uma nova escritura dessa velha tentao paradisaca em termos de
fico (1979, p.194). Martim funciona como uma espcie de Ado, que atravs da
peregrinao da linguagem, tentado por essa ma no escuro, que a palavra.
Na Bblia, no den, antes da queda, conhecer os seres j se identifica com o
domnio da linguagem. Ado deu nome a todos os animais dos campos e a
todos os pssaros do cu e todo o nome que o homem ps aos animais vivos, esse o seu verdadeiro nome (Gn 2, 19). Esse conhecimento era, portanto, um dom da inocncia primordial [...] Seu itinerrio inverte o itinerrio
bblico, porque ele parte da cidade para o den: o espao mtico da fazenda
isolada, onde vivem Vitria e Ermelinda. Ali, morando num depsito,
entregue aos trabalhos do campo (terra), ele tenta a aventura de agarrar uma
ma (terra/ar) na escurido (luz). A rvore existente na fazenda uma
rplica da velha rvore do conhecimento (S, 1979, p.194)
Assim como Ado, Martim cai do den, quando Vitria, temendo se envolver
de maneira mais ntima com o forasteiro, o denuncia polcia. Seu ato defensivo faz
com que o protagonista seja reabsorvido pelo sistema que ele havia negado como se
observa no incio do romance.
Em Clarice Lispector: A Travessia do Oposto, S (1993) se preocupa com a
maneira pela qual o livro recebido pelo leitor. Esse romance , segundo a autora, uma
floresta de signos, livro de ruminao, de digesto difcil, exige certa categoria do
leitor: aquele disposto a ruminar tambm, capaz de vislumbrar, de ler sussurros, leitor
que no se interesse somente por fatos e aes (S, 1993, p.75). O que S chama de
sussurros, de ao rarefeita, foram pontos importantes para o momento em que
analisamos a presena da obsesso no romance, pelo fato de que essas observaes
-
24
acusam caractersticas obsessivas que, longe de causarem prazer ao leitor, propem
desconforto e instabilidade.
Fernanda Fonoff (2004) se vale da psicanlise freudiana para lanar luzes sobre
A ma no escuro. Ao investigar a aventura do protagonista, a pesquisadora preocupa-se
em apontar que o percurso da individuao de Martim contra uma mesmice estabelecida
pode ser entendido como um ato contra a pulso de morte que quer criar a vida,
imitando o poder do demiurgo. Ao romper com a sociedade e perceber a vacuidade do
signo e de certa linguagem dialgica, ele inicia sua travessia pela e para a linguagem.
Fonoff se preocupa tambm com a figura paterna, que age e pune em nome da lei e que
surge no momento em que se instaura a priso de Martim, concretizando assim seu
retorno efetivo sociedade, s leis, cultura e ao julgamento de seu crime (FONOFF,
2004, p.80).
Apoiada na leitura de Olga de S (1979), Erclia Bittencourt Dantas (2006) usa a
Dialtica do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e afirma, em sua tese de
doutorado, que A ma no escuro revigora o mito de Ado e Eva, isto , a trajetria de
Martim refaz simbolicamente o gnesis do mundo e do homem num percurso dialtico
que vai da culpa expiao, da queda salvao para alcanar a individuao e o
esclarecimento. Nesse sentido, o romance ultrapassa as fronteiras do Bildungsroman
para tornar-se um moderno texto de iluminao.
O texto de Adorno e Horkheimer tambm foi utilizado em nossa anlise; todavia
em consonncia com o conceito de Real traumtico relido por iek. Isso se d com o
objetivo de ilustrarmos a necessidade de se retomar as coordenadas simblicas para que
a narrativa de A ma no escuro nos mostre o itinerrio de Martim, contado por um
narrar obsessivo e tecido por uma linguagem histrica.
-
25
CAPTULO SEGUNDO
O MATERIALISMO LACANIANO DE SLAVOJ IEK:
A RENOVAO DO PENSAMENTO DA ESQUERDA
2.1. Traos biogrficos de iek
No contexto dos chaves e da banalidade de uma cultura predominantemente
ps-moderna, iek representa o equivalente filosfico de uma peste
virulenta, ou talvez, atualizando a metfora, um vrus de computador cujo
objetivo romper com as aparncias cmodas do que se poderia chamar de
matriz do capitalismo liberal global. Dando continuidade a uma certa tradio
cartesiana, aquilo com que iek nos infecta uma dvida fundamental sobre
os prprios pressupostos de nossa realidade social (DALY, 2006, p.7)
O expoente mais aclamado do materialismo lacaniano, essa corrente que prope
uma reviso do posicionamento da esquerda , sem dvidas, o esloveno Slavoj iek.
Embora o incio de seu percurso pelos meandros da filosofia poltica e da psicanlise
date do incio dos anos 1970, apenas, recentemente, sua figura de terico crtico
despontou. Devido s novas abordagens sobre problemas globais, impasses polticos e
subjetividade ps-moderna, iek tornou-se um dos filsofos mais populares do nosso
tempo e, como bem afirmou Glyn Daly (2006, p.7), reinstalou a dvida em nosso modo
de entender realidade social. Dessa maneira, julgamos necessrio um breve percurso
biogrfico a ttulo de ilustrao.
Slavoj iek nasceu aos 21 de maro de 1949 em Ljubljana, na Eslovnia, na
poca em que a capital fazia parte da Iugoslvia comunista. Filho nico de pais ateus,
iek bacharelou-se em Letras e Filosofia, na Universidade de Ljubljana e, por no
aderir ortodoxia comunista, entrou em conflito com as autoridades, o que contribuiu,
significativamente, para sua formao no idealismo alemo, sobretudo de Hegel e
-
26
Schelling. Sua dissertao de mestrado, sobre Jacques Lacan, Jacques Derrida e outros
filsofos franceses, despertou a ateno da academia, mas suas qualidades
ideologicamente suspeitas lhe causaram problemas, sendo forado a incluir em seu
estudo um apndice em que destacava as divergncias de suas ideias da teoria marxista
aprovada.
Nos anos 1970, iek concluiu sua primeira tese de doutorado, abordando a
filosofia de Martim Heidegger, e tornou-se membro de um importante grupo de
estudiosos que trabalhava sob o prisma das teorias lacanianas. Em 1981, devido ao
grupo de estudos, iek partiu para Paris, onde estudou com Jacques-Alain Miller,
genro de Lacan. O encontro com Miller foi crucial para o desenvolvimento de sua
compreenso sobre os conceitos do psicanalista francs, que influenciaram
decisivamente seu pensamento terico. A psicanlise lacaniana foi tema de sua segunda
tese de doutorado, obtida tambm em 1981, na Universidade de Paris VIII.
Ao retornar Iugoslvia, iek encontrou dificuldades para situar-se no contexto
filosfico acadmico, refugiando-se, por longo tempo, nos estudos sociolgicos, como
ele mesmo conta:
Eu era jovem, tinha um filho, estava desempregado e, preciso reconhecer,
essas pessoas foram muito francas quanto situao. Disseram-me que, na
circunstncia poltica vigente, estava fora de cogitao eu me tornar
professor: seria problemtico demais e, em termos polticos, arriscado
demais. Assim, elas tentaram me arranjar um trabalho de pesquisa, como
medida temporria [...] Todo mundo sabe que sou realmente filsofo, que no
tenho coisa alguma a ver com a sociologia, mas tive de fingir. O que eu fazia
era o que sempre tinha feito filosofia - , e eles simplesmente toleravam
(IEK; GLYN, 2006, p.43)
A partir dos anos 1980, o esloveno participou ativamente da poltica de seu pas,
pois o governo comunista havia perdido o controle sobre a fora cultural do pas. Em
1990, concorreu Presidncia da Repblica da Eslovnia, no perodo em que seu pas
natal estava na eminncia de se tornar independente da Iugoslvia.
-
27
Atualmente, iek ocupa importantes cargos acadmicos na Ljublijana
University; no Birkbeck College; na University of London e no European Graduate
Centre, na Sua. No possui vnculo formal com nenhuma instituio, pelo fato de
preferir a liberdade de continuar suas pesquisas e obras e, tambm, porque essa
liberdade intelectual remete ao trauma provocado pelo sistema comunista, em que os
intelectuais eram apoiados, financeiramente, pelo Estado, se os considerasse teis.
Dessa forma, prefere ser professor visitante e distorce a ideia excntrica da
obrigatoriedade do trabalho pelo salrio.
Como pessoa pblica, o esloveno foi considerado o filsofo mais perigoso do
Ocidente, (KUL-WANT, 2012, p.3) pela revista New Republic e o messias superstar
da nova esquerda, (KUL-WANT, 2012, p.3) pelo jornal Observer. Polmico,
provocativo e sem reservas, iek tema de vrios documentrios, inclusive brasileiros,
possui uma agenda repleta de entrevistas e palestras e milhares de acessos no site You
Tube.
2.2. O que materialismo lacaniano
Essa aplicao de Lacan resgata o subjetivo, o psicanaltico e as presses do
Inconsciente para o campo da coletividade, do social. Ao faz-lo, eles se
propem a retornar as propostas da esquerda tradicional, ou seja, de buscar
um humanismo possvel, de defender os grupos sociais e a humanidade da
lgica do Capitalismo, que v no lucro a finalidade e o bem maior,
sacrificando a maioria dos seres humanos, os animais, o meio ambiente, entre
outros fatores, para cumprir suas propostas. Por isso, a nova corrente recebeu
o nome de materialismo lacaniano (SILVA, 2009, p.212)
Em oposio ao materialismo dialtico, que sistematiza a matria numa relao
dialtica com o psicolgico e o social, o materialismo lacaniano prope instaurar uma
forma diferente de funcionamento do poder, que ultrapasse os limites da democracia
representativa, uma vez que permanecer fiel ideia de comunismo no o bastante.
Destarte, iek, ao lado do francs de origem marroquina, Alain Badiou, iniciam a base
-
28
estrutural dessa teoria, localizando, na realidade histrica, os antagonismos que fazem
dessa ideia uma urgncia prtica.
A primeira transformao proposta gira em torno dos aparatos conceituais de
Karl Marx; No entanto, como afirma Marisa Corra Silva (2009, p.211), esses
pensadores no renegam o marxismo, mas, aceitando as contribuies do filsofo
alemo para a histria do pensamento, fazem a ressalva de que a economia e a luta de
classes apenas no so suficientes para dar conta de tudo o que acontece. Assim, iek
despontou como pensador capaz de renovar Marx, uma vez que a ortodoxia marxista
deixava brechas em determinadas anlises de dimenso social.
Como citamos, o esloveno travou contato com a psicanlise oriunda de Jacques
Lacan e com o idealismo alemo, ainda na poca em que sedimentava sua formao
filosfica. E fundamentalmente dessas reas que iek retira o substrato terico para a
anlise de nossa condio contempornea, ao mesmo tempo em que problematiza e
revigora as discusses a respeito dessa condio. Como Daly (2009) afirma,
o paradigma iekiano se que podemos falar nesses termos extrai sua vitalidade de duas grandes fontes filosficas: o idealismo alemo e a
psicanlise. Em ambos os casos, o interesse central de iek recai sobre certa falta/excesso na ordem do ser. No idealismo alemo, esse aspecto explicita-se
mais e mais atravs da referncia ao que se poderia chamar de uma loucura inexplicvel, que inerente e constitutiva do cgito e da subjetividade como
tal [...] Na psicanlise, esse aspecto temtico da subjetividade deslocada
mais desenvolvido com respeito ao conceito freudiano de pulso de morte. A
pulso de morte surge, precisamente como resultado dessa lacuna ou furo na
ordem do ser uma lacuna que aponta, ao mesmo tempo, para a autonomia radical do sujeito e algo que ameaa constantemente sabotar ou derrubar a estrutura simblica da subjetividade (DALY, 2009, p.9-10)
Faz-se importante apontar que iek fundamenta suas discusses especialmente
sob a doutrina psicanaltica de Lacan, embora no seja proposta do materialismo
lacaniano psicanalisar seu objeto de estudo, mas sim analisar os efeitos coletivos da
aplicao desses conceitos. O esloveno afirma que s hoje o tempo da psicanlise est
chegando (IEK, 2010, p.9) e que, atravs do retorno a Freud que Lacan prope,
arquitetando seu edifcio psicanaltico com base em conceitos que fogem da psicanlise
-
29
(a citar: a lingustica de Saussure, a antropologia de Lvi-Strauss, as filosofias de
Plato, Heidegger, Hegel, Kierkegaard, incluindo a teoria matemtica dos conjuntos
etc.), entendemos que esta no uma teoria clnica que busca compreender e tratar
distrbios psquicos, mas uma teoria e prtica que pe os indivduos diante da
dimenso mais radical da existncia humana. Ela no mostra a um indivduo como ele
pode se acomodar s exigncias da realidade social; em vez disso, explica de que modo,
antes de qualquer coisa, algo como realidade se constitui (IEK, 2010, p. 10).
Sandro Bazzanella (2009), ao analisar os diversos estilos filosficos de se
apresentar uma teoria, afirma que tais estilos no so gratuitos e que possuem
articulao direta com a viso de mundo de uma determinada poca. Assim, Plato
escreveu em forma de dilogos, Montaigne atravs de ensaios e Nietzsche basicamente
por aforismos. iek possui um estilo que articula, intimamente, a forma como a
dinmica social, poltica e econmica se coloca numa contemporaneidade ctica, em
relao aos projetos societrios de igualdade e marcada pela fragmentao nas vises de
mundo, por aes terroristas imprevisveis e por inimigos invisveis. Dessa forma, usa
um estilo que se comporta como uma guerrilha, na medida em que nos d a
impresso que procura no enfrentar o problema em campo de batalha aberto, mas lana
mo de intrincados caminhos e atalhos, o que exige de seu intrprete esforos
significativos para seguir seus rastros (BAZZANELLA, 2009, p.16).
Assim, iek transita entremeio psicanlise e poltica radical, fazendo uso
desse estilo, que, por vezes, denuncia as dificuldades e os desafios tericos da
contemporaneidade, ao mesmo tempo em que remete ao hermetismo advindo de Lacan,
que recusa as formas de pensamentos fechadas, calcadas na lgica de origem grega
(SILVA, 2009, p.212).
-
30
O esloveno realiza uma nova leitura que compreende desde a filosofia,
sociologia, alta literatura e poltica, passando pelo cinema hollywoodiano, espao
ciberntico, biogentica, fico popular, atentado terrorista contra as torres gmeas do
World Trace Center, subjetividade na ps-modernidade, at assuntos aparentemente
banais, como por exemplo, Big Brother, Kinder Ovo e os diferentes tipos de vasos
sanitrios; temas que recebem uma leitura, no mnimo, inquietante e que nos guia para
seu significado quase sempre implcito.
Bazzanella (2009) articula o pensamento de iek em trs linhas gerais:
inicialmente, o esloveno critica a hegemonia da democracia liberal do capitalismo, que
possui um discurso ideolgico truncado e contraditrio, pois, ao mesmo tempo em que
apregoa a liberdade como imperativo a ser alcanado, apresenta um feedback punitivo
para aqueles que se aventuram na busca dessa liberdade. Daly (2009) afirma que esse
tipo de crtica funciona
apenas como ponto de partida de um compromisso tico-poltico muito mais
amplo com um universalismo emancipatrio radical, capaz de se opor
natureza cada vez mais proibitiva do capitalismo contemporneo e suas
formas correspondentes de correo poltica e multiculturalismo (DALY, 2009, p.7-8)
Em um segundo momento, encontram-se crticas em relao ao posicionamento
das esquerdas, que ficam presas a certas ortodoxias marxistas e tentam sobreviver de
propostas equivocadas, que s endossam o discurso fundamentalista do capitalismo
global e sua democracia liberal. Em Bem-vindo ao deserto do Real!, iek (2003)
analisa os atentados ao World Trade Center e ao Pentgono no dia 11 de setembro de
2001. Com isso, tenta despertar a esquerda para uma atitude contundente, a fim de
recuperar o terreno perdido e colocar-se como alternativa ordem hegemnica
representada pelos Estados Unidos e consolidada aps a queda do Muro de Berlim e
s profecias sobre o fim da histria.
-
31
Com essa esquerda, quem precisa de direita? natural ento que diante de loucuras esquerdistas semelhantes, a facilidade com que a ideologia hegemnica se apropriou da tragdia de 11 de setembro e imps sua
mensagem bsica foi ainda maior do que se poderia esperar dado o controle
da direita e do centro liberal sobre os meios de comunicao de massa:
acabaram-se os jogos fceis, preciso escolher lados contra (o terrorismo) ou a favor. E como ningum se declara abertamente a favor, a simples
dvida, uma atitude questionadora, denunciada como apoio disfarado ao
terrorismo... precisamente essa tentao a que se deve resistir: exatamente
nesses momentos de aparente clareza de escolha que a mistificao total. A
escolha que nos proposta no a verdadeira escolha (IEK, 2003, p.71)
E finalmente, como terceira instncia da filosofia poltica de iek, Bazzanella
(2009, p.20) cita o desafio em se pensar o impensvel, arriscar o impossvel. Esse
tipo de posicionamento advm da estrutura terica de Lacan que, como j citamos,
resgatou conceitos de outras reas para sua teoria psicanaltica. Ou seja, o retorno a
Freud de Lacan partiu da lingustica e da antropologia e a releitura iekiana de
propostas polticas efetivas desvencilha-se da carga histrica, da veracidade e da
teleologia, para se ater urgncia contempornea, com conceitos revistos, todavia bem
cuidados.
Daly (2006, p.22) afirma que, para iek, o foco da discusso no est centrada no
fato da Sociedade ser (im)possvel ou no, mas no modo como a sociedade
impossvel e como se entende politicamente a impossibilidade. O perigo potencial est
em nos acostumarmos com uma poltica que se mantm num nvel de impossibilidade,
sem a tentativa de reverter ou possibilitar o impossvel.
2.3. Materialismo lacaniano e Literatura
Terry Eagleton (2001) afirma que podemos dividir a crtica literria psicanaltica
em quatro tipos, dependendo de seu objetivo: ela pode se voltar para o autor da obra,
para o contedo, para a construo formal ou para o leitor. Eagleton diz ainda que as
-
32
duas primeiras modalidades so as mais abordadas, por serem as mais limitadas e
problemticas. Assim, chegamos ao seguinte questionamento: seria o materialismo
lacaniano uma modalidade da crtica psicanaltica? Ora, de acordo com o terico
britnico a resposta afirmativa. No entanto, no nos interessa neste estudo classificar a
perspectiva de iek.
J havamos esclarecido que sua abordagem no pretende elucidar um problema
clnico ou lanar luzes sobre as motivaes inconscientes das personagens, eliminando,
dessa maneira, a psicanlise do autor e do contedo, propostas por Eagleton. Mesmo
que a leitura faa referncias diretas ao indivduo, o esloveno prope que atribuamos
novos olhares a questes que versam a respeito da estrutura literria e tambm dos
elementos tericos que compem a narrativa, da maneira como a linguagem e o estilo
so utilizados ou at do modo em que as personagens funcionam como representao ou
reflexo de uma coletividade. Pelo vis iekiano, propomos, nesta dissertao, uma
viso global da obra de Lispector, atingindo uma dimenso que ultrapassa as fronteiras
de uma nica obra, constituindo um novo olhar sob a fico clariceana.
Apesar de vasto, o materialismo lacaniano como crtica literria relativamente
recente. iek j havia relido, dentre outros textos, o conto Bobk de Dostoivski,
endossando a opinio de Lacan de que a verdadeira frmula do atesmo no de que
Deus est morto, mas que Deus inconsciente. O esloveno tambm nos informa que
Ricardo II a pea fundamental de Shakespeare a respeito da histericizao, enquanto
Hamlet sobre a obsesso. H ainda leituras iekianas de obras da fico popular, a
citar: Stephen King, Arthur Conan Doyle e Agatha Christie etc.
A primeira experincia estritamente literria a do britnico Phillip Rothwell.
Em A Canon of Empty Fathers, o pesquisador aponta que a histria da Literatura
Portuguesa recebe uma nova interpretao quando o conceito de imprio ultramarino
-
33
visto pela tica lacaniana, especificamente sobre a funo da figura paterna autoritria e
ameaadora na psiqu coletiva, apontando reflexos na representao literria.
No Brasil, a pioneira em aplicar uma perspectiva iekiana no campo literrio
Marisa Corra Silva, professora doutora de Literaturas de Lngua Portuguesa da
Universidade Estadual de Maring, Paran. Suas principais experincias com o
materialismo lacaniano, resultaram, at o presente momento, em um captulo no Manual
de Teoria Literria da Universidade Estadual de Maring, intitulado Materialismo
lacaniano, no qual a pesquisadora faz uma breve introduo corrente, aos conceitos
bsicos de Lacan e s possibilidades de aplicao na literatura; e tambm no livro O
percurso do outro ao mesmo: Sagrado e profano em Saramago e em Helder Macedo,
onde explora a teoria do psicanalista francs, de iek e Badiou, para confrontar os dois
escritores portugueses citados no ttulo, utilizando especialmente os conceitos de
sagrado e profano.
H ainda trs dissertaes de Mestrado j defendidas, realizadas pelo Programa
de Ps-Graduao em Letras da Universidade Estadual de Maring, sob a orientao da
professora. A primeira, de autoria de Giuliano Hartmann, focaliza a construo
identitria do sujeito lacaniano no romance A Cu Aberto, do gacho Joo Gilberto
Noll; a segunda de Lus Cludio Ferreira Silva, que, em uma leitura comparada,
aproxima os romances A Jangada de Pedra, do portugus Jos Saramago, e Volkswagen
Blues, do quebequense Jacques Poulin, por meio do conceito de identidade nacional; e a
terceira, cujo enfoque tambm recai sobre a prosa de Lispector, de Thays Pretti de
Sousa, que analisa o romance A paixo segundo G.H. utilizando a trade Real-
Simblico-Imaginrio.
Citamos, ainda, os bem intencionados trabalhos realizados pelos acadmicos de
graduao e ps-graduao, participantes do Grupo de Estudos de Materialismo
-
34
Lacaniano na Literatura, tambm sob a orientao da Prof. Silva, apresentados e
publicados em anais dos mais diversos eventos.
2.4. Conceitos bsicos de Jacques Lacan relidos por iek e as
possveis aplicaes na fico de Clarice Lispector
So muitos os conceitos lacanianos que receberam uma investidura iekiana.
Embora o contato com o psicanalista francs seja reconhecidamente difcil, o leitor
precisa ter em mente que, ao se apropriar e geralmente redigi-los, iek por vezes os
aproxima de Lacan e, em outros casos, atribui um significado que pouco se assemelha
ao sentido lacaniano. Porm, como afirma Silva (2009), apesar de sua complexidade, se
for aplicado com bastante rigor, capaz de lanar luzes sobre os mais diversificados
temas e, especialmente neste caso, sobre a composio literria.
Talvez o conceito lacaniano que possua maior aplicabilidade na releitura do
esloveno, seja o Real e suas inmeras possibilidades de visualizao. Por se tratar de um
termo bastante enigmtico, faz-se necessrio entendermos a trade que o sustenta e a
maneira pela qual o esloveno, normalmente, o aplica. Na psicanlise lacaniana, a trade
Real-Simblico-Imaginrio, conhecida tambm como borromeana3, constitui a realidade
do ser e, numa viso iekiana, uma realidade social e/ou coletiva.
Para o psicanalista francs, o que chamamos de realidade a articulao entre a
significao (Simblico) e as imagens (Imaginrio). Daly (2009, p.14) os diferencia,
3 (objeto matemtico advindo da topologia e utilizado por Lacan para mostrar a articulao dos trs
registros, Real, Simblico e Imaginrio. O n borromeano se caracteriza pelo enlaamento de trs anis
tal que a ruptura de um acarreta o desligamento dos trs. Tratava-se tambm da figura inscrita no braso
das famlias dos borromeanos que assim selava sua indissolvel amizade com outras grandes famlias
italianas)
-
35
afirmando que o Simblico aberto e o Imaginrio procura domesticar essa abertura
pela imposio de uma paisagem fantasstica peculiar a cada indivduo. Fazendo uso
de uma explicao mais clara, Silva (2009, p.213) afirma que o Simblico o estgio
no qual o indivduo estruturou uma srie de cdigos, leis e proibies que permitiro
sua socializao. Trata-se da internalizao do Nome-do-Pai4, o qual estabelece uma
castrao, um corte fundamental uma vez que estrutura e serve como base para o
processo de individuao do sujeito com o tempo idlico em comunho absoluta com
a me (SILVA, 2009, p.213). Importa notar que, para Lacan, pai e me no precisam
ser obrigatoriamente pais biolgicos, podendo ser identificados, inclusive, com
instituies sociais.
Uma vez que o Simblico a ordem do significante, o Imaginrio corresponde
ao significado, ao campo visual. Como se evidencia, o psicanalista francs baseou-se na
lingustica estruturalista de Ferdinand de Saussure para moldar esses conceitos: a
linguagem, portanto, tem relao tanto com o Simblico quanto com o Imaginrio
(SILVA, 2009, p.213).
O Real no pode ser incorporado nessa ordem. Embora inerente ao processo de
estruturao do indivduo, esse conceito persiste como uma dimenso eterna da falta,
isto , funciona de modo a impor limites de negao a qualquer ordem significante
(discursiva), mas pela prpria imposio desses limites serve, simultaneamente, para
constituir tal ordem (DALY, 2009, p.15). Trata-se de uma instncia traumtica,
indizvel, algo entre um vazio e um excesso, por sua caracterstica de estar para alm da
significao, ainda que possa ser aludido em certas situaes de excesso e horror.
4 (conceito originalmente francs, Nom-du-pre, com nom causando um duplo sentido entre nome e
no, de maneira que significa, concomitantemente, as normas e proibies impostas socialmente, bem
como a lei que impede o incesto edpico)
-
36
Nesses momentos de contato, a vida perde o sentido, por assim dizer, os laos
simblicos se desatam, deixando que mergulhemos no caos (SILVA, 2009, p.213).
Os exemplos citados por iek so inmeros, sendo alguns no mnimo bastante
inusitados. Citaremos quatro: em O amor impiedoso ou: sobre a crena (2012), o
terico afirma que os debates em torno do Sudrio de Turim acomodam tranquilamente
essa trade, de maneira que o Imaginrio questiona se a imagem discernvel ali a
verdadeira reproduo da face de Jesus Cristo, o Real encaixa-se nas inquietaes a
respeito de quando o material foi feito e se o teste que mostrou que o linho fora tecido
no sculo XIV conclusivo e, por fim, o Simblico narra o complicado percurso do
Sudrio atravs dos sculos. Em A viso em paralaxe (2008), o esloveno afirma que o
fundamentalismo encena um curto-circuito entre o Simblico e o Real, isto , algum
fragmento simblico (por exemplo, o texto sagrado, a Bblia no caso dos
fundamentalistas cristos) postulado em si mesmo como Real (para ser lido
literalmente, para no se brincar com ele, em resumo: dispensado de qualquer
dialtica de leitura). J na obra Em defesa das causas perdidas (2011), iek afirma que
determinados comportamentos na internet podem funcionar como a encenao Real de
fantasias sdicas, enquanto na vida pblica o Simblico-Imaginrio do indivduo bem
educado e cumpridor de regras.
Para conclurmos, em Como ler Lacan (2010), essa complexa trade vista de
uma maneira bastante simples, refletida em um jogo de xadrez:
As regras que temos de seguir para jogar so sua dimenso simblica: do
ponto de vista simblico puramente formal, cavalo definido apenas pelos
movimentos que essa figura pode fazer. Esse nvel claramente diferente do
imaginrio, a saber, o modo como as diferentes peas so moldadas e
caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e fcil imaginar um
jogo com as mesmas regras, mas com um imaginrio diferente, em que esta
figura seria chamada de mensageiro ou corredor, ou de qualquer outro
nome. Por fim, o real toda a srie complexa de circunstncias contingentes
que afetam o curso do jogo: a inteligncia dos jogadores, os acontecimentos
-
37
imprevisveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o
jogo (IEK, 2010, p.17)
Especificamente a respeito do dinmico conceito do Real, iek aponta, em Um
mapa da ideologia (1996), por meio do termo espectro, que o cerne pr-ideolgico
da ideologia consiste na apario espectral que preenche o buraco do Real. Dito de
outro modo, no existe realidade sem o espectro, pelo fato de que ao tentar delimitar
uma verdadeira realidade de uma iluso, deve ser levado em questo que para que
emerja (o que vivenciamos como) a realidade, algo tem que ser foracludo dela [...] e a
realidade, tal como a verdade, nunca , por definio toda (IEK, 1996, p.26). Dessa
forma, o Real, que a parte no simbolizada da realidade, aparece em forma de
espectrais, justamente nessa rachadura que separa a realidade do Real. O conceito
marxista de luta de classes ilustra de maneira inquietante uma apario do Real, pois se
configura como um empecilho simblico que nos esforamos para integrar, mas que, ao
mesmo tempo, condena esses esforos ao fracasso. Assim, impossvel objetiv-la, j
que ela mesma nos impede de conceber a sociedade como uma totalidade fechada.
Lacrimae rerum (2009) reflete uma das maiores paixes de iek, tema sobre o
qual ele escreveu extensivamente: o cinema. Em cinco ensaios, o esloveno deixa
transbordar sua preferncia por Alfred Hitchcock, mas passa por David Lynch,
Kieslwski e Tarkowsky, at chegar a alguns filmes atuais, de grande bilheteria, como
o caso de Matrix, que nos interessa aqui. O filme dos irmos Wachowski funciona
como a tela que nos separa da realidade, que torna tolervel o deserto do real (IEK,
2009, p.159). Nesse filme, o Real lacaniano no funciona apenas como algo que deve
ser reformado pela fantasia; tambm a prpria tela como o obstculo que j distorce
nossa viso de realidade l fora. Em outras palavras, a Matrix em si o Real que
desconexa nossa percepo de realidade. iek (2009) afirma ainda que o problema em
Matrix no est na ingenuidade cientfica de seus truques, pois a ideia de passar de um
-
38
mundo real para um virtual atravs de um telefone faz sentido, h apenas a necessidade
de um buraco, por onde se possa escapar. O problema se encontra numa inconsistncia
fantasmtica, que fica mais clara, quando Morpheus tenta explicar a Neo o que
Matrix, relacionando-a a uma falha na estrutura do universo. Com essa situao, o filme
prope que essa experincia do vazio confirma que a realidade que vivemos
simplesmente uma farsa.
Finalmente, mas sem esgotar as aplicaes, em Bem-vindo ao deserto do Real!
(2003), iek nos apresenta sua aplicao mais conhecida e, a nosso ver, a mais
impactante: trata-se do atentado terrorista contra as torres gmeas do World Trade
Center em 2001. Os norte-americanos viram no fatdico 11/09 um de seus maiores
smbolos cairem por terra. Desnorteada e impossibilitada de expor aquele trauma em
linguagem (Simblica), os Estados Unidos sofreu um contato chocante com o Real.
Como afirma iek,
antes do colapso do WTC, vivamos nossa realidade vendo os horrores do
Terceiro Mundo como algo que na verdade no fazia parte de nossa realidade
social, como algo que (para ns) s existia como um fantasma espectral na
tela do televisor - , o que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse
fantasma da TV entrou na nossa realidade. No foi a realidade que invadiu a
nossa imagem: foi a imagem que invadiu e destruiu nossa realidade (ou seja,
as coordenadas simblicas que determinam o que sentimos como realidade).
(IEK, 2003, p.31)
Christopher Kul-Want (2012) aponta que iek interpretou esse ataque da Al-
Qaeda como um momento histrico em que os EUA, em vez de se enxergarem apenas
como vtimas, refletiram a respeito de suas ambies imperialistas e suas consequncias
desastrosas que culminaram no 11 de setembro. Os Estados Unidos deveriam aceitar sua
prpria vulnerabilidade e fazer da punio aos responsveis uma triste tarefa e no uma
retaliao divertida (KUL-WANT, 2012, p.56).
-
39
Grande parte dos contos enfeixados em Laos de famlia, de Clarice Lispector,
serve como exemplos literrios para abordarmos o conceito do Real. Silva (2009) j
havia usado o conto Amor para ilustrar a possibilidade da aplicao, dessa maneira,
utilizamos A imitao da rosa, pelo fato de que a leitura possvel devido ao processo
epifnico desencadeado nessas personagens. Nesse conto, Laura se veste e reflete,
metodicamente, a respeito de seus afazeres domsticos, enquanto aguarda o marido para
jantarem com um casal de amigos, aps longo tempo de sua internao. No meio de
suas reflexes, a protagonista visualiza um jarro com rosas. Como lugar comum na
fico clariceana, um acontecimento banal toma enormes propores internas e Laura se
sente terrivelmente perturbada com a perfeio dessas flores:
Nunca vi rosas to bonitas, pensou com curiosidade. E como se no tivesse
acabado de pensar exatamente isso, vagamente consciente de que acabara de
pensar exatamente isso e rpida por cima do embarao em se reconhecer um
pouco cacete, pensou numa etapa mais nova de surpresa: sinceramente,
nunca vi rosas to bonitas. Olhou-as com ateno. Mas a ateno no podia
se manter muito tempo como simples ateno, transformava-se logo em
suave prazer, e ela no conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a
interromper-se com a mesma exclamao de curiosidade submissa: como so
lindas (LISPECTOR, 1998, p.43)
A viso das rosas pode ser lida, numa perspectiva iekiana, como um encontro
com o Real. A epifania descortina uma realidade que as criaturas de Lispector
recusam, de modo que se sentem aliviadas com o afastamento de tal situao, ao
retornarem normalidade. O trecho acima aponta para uma linguagem que destoa
daquela que antecipa a viso incmoda. Trata-se de uma tentativa textual de
ressimbolizar a experincia, arrastando-a, por meio da palavra, para o domnio
conhecido e seguro do Simblico (SILVA, 2009, p.215). O Real precisa ser
ressimbolizado; os Estados Unidos, por exemplo, encontraram a ncora que os apoia
novamente nas normativas simblicas revidando com mais violncia, assumindo o papel
de vtima e tambm criando filmes e documentrios que endossam essa viso. Situao
-
40
semelhante acontece na literatura, pois aps Laura se livrar das rosas e da viso
vertiginosa que elas causaram, voltando a se entreter com suas preocupaes cotidianas,
a estrutura textual retoma a mesma linearidade (segura) do incio.
Na esteira das frutferas discusses que o Real prope, iek se apossa de um
conceito de Alain Badiou cunhado de paixo pelo Real (passion du rel). Em poucas
palavras, trata-se do Real em sua violncia extrema como o preo a ser pago pela
retirada das camadas enganadoras da realidade (IEK, 2003, p.19), ou seja, a
necessidade de se (re)dominar a realidade. Dentre os vrios exemplos citados desde
a exposio de sites pornogrficos, que introduzem uma microcmera na vagina
transformando o objeto desejado num repugnante e Real encontro com a carne exposta,
ao terror fundamentalista atual que lana bombas nos supermercados, com o intuito de
acordar os cidados do Ocidente do entorpecimento ideolgico , que comprovam que
essa a principal caracterstica do sculo XX, iek (2003) tambm lana mo de um
exemplo claro: as pessoas que mutilam seus corpos com lminas, na tentativa de se
sentirem vivas. Ao verem o sangue correndo, essas pessoas se sentem enraizadas na
realidade, embora seja caracterstica de uma patologia que resulta em uma busca
desenfreada de retomar algum tipo de normalidade.
Sendo a epifania o estopim para o encontro traumtico com o Real, e observando
a recorrncia dessa tcnica na fico clariceana, podemos supor que o conceito de
paixo pelo Real pode ser facilmente aplicado na estrutura de seus contos e romances.
A literatura de Lispector, de um modo geral, necessita desse choque para se constituir.
A trajetria de grande parte de suas personagens est ligada necessidade de
experimentao de uma revelao/crise/nusea que as expulsam da tranquilidade
cotidiana. Esse conhecimento sbito da verdade, que cria um rito de passagem
perigoso e sublime, arrebata no apenas suas criaturas, mas tambm o leitor e a prpria
-
41
narradora. A viso do cego mascando chicletes ou das belas rosas no vaso, ou ainda de
um bfalo no jardim zoolgico, no assumiriam a carga introspectiva e existencial, e
numa perspectiva iekiana, no seriam lidos como o encontro com o Real, se a autora
no fizesse uso do processo epifnico em consonncia com o monlogo interior e fluxo
de conscincia tcnicas que servem para expor a linguagem denunciada pelo Real.
Para no ficarmos apenas na contstica, o romance A paixo segundo G.H.
colabora nessa leitura proposta, pois atravs do necessrio contato com a barata (e
tambm com o ncleo duro do Real), que G.H. realiza um percurso mstico incrustado
de tormento e muitos questionamentos existenciais. A diegese focalizar o longo
processo de ressimbolizao, isto , a narradora-protagonista estrutura, sob forma de
linguagem, a tentativa de recontar o acontecido e suturar as lacunas da realidade que
foram rompidas no momento em que o Real (encontro com o inseto) ofuscou seus
olhos, para retornar organizao anterior, como ela bem afirma. Vejamos:
- - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.
Tentando dar a algum o que vivi e no sei a quem, mas no quero ficar com
o que vivi. No sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganizao
profunda. No confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que
eu, pelo fato de no a saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria
chamar desorganizao, e teria a segurana de me aventurar, porque saberia
depois para onde voltar: para a organizao anterior. A isso prefiro chamar
desorganizao pois no quero me confirmar no que vivi na confirmao de
mim eu perderia o mundo como eu o tinha, e sei que no tenho capacidade
para outro (LISPECTOR, 1998, p.11)
Inserido na ordem Simblica est o Grande Outro (Big Other, em ingls),
conceito contemplado em inmeras anlises de iek. Pelo fato de todos os indivduos
serem construdos e dominados pela linguagem, eles operam em nveis simblicos
governados por um superego (freudiano) autoritrio, que Lacan chama de Big Other.
Segundo Silva (2009, p.214), trata-se de uma instncia onipresente, criada pelo
indivduo no processo de separar a si prprio do resto do mundo, ou seja, no processo
de individuao. Ele invisvel, mas est sempre em torno de ns.
-
42
O espao simblico funciona como um padro de comparao contra o qual
posso me medir. por isso que o grande Outro pode ser personificado ou
reificado como um agente nico: o Deus que vela por mim do alm, e
sobre todos os indivduos reais, ou a Causa que me envolve (Liberdade,
Comunismo, Nao) e pela qual estou pronto a dar minha vida. Enquanto
falo, nunca sou meramente um pequeno outro (indivduo) interagindo com
outros pequenos outros: o grande Outro deve estar sempre l (IEK,
2010, p.17)
iek (2010, p.18) lana mo de um exemplo cmico para nos apresentar este
conceito: trata-se da piada de um campons nufrago, que se depara ilhado com a atriz
Cindy Crawford. Depois do sexo, ele pede mais um favor, questionando se ela poderia
se vestir como seu melhor amigo, usar calas e pintar um bigode no rosto. O campons
afirma no ser um pervertido enrustido e, aps ela aceitar o pedido, ele se aproxima do
amigo e lhe informa o ocorrido. Esse terceiro que se eleva acima das interaes dos
indivduos e funciona como testemunha o Grande Outro e, como bem aponta a piada,
ele subjetivamente virtual, ou seja, s existe na medida em que sujeitos agem como
se ele existisse (IEK, 2010, p.18).
Os contos Feliz aniversrio e Os laos de famlia exemplificam duas maneiras
diferentes de visualizarmos o Grande Outro na obra de Clarice Lispector. No primeiro, a
matriarca da famlia, D. Anita, completa 89 anos. A famlia vai se juntando aos poucos
para comemorar a data. Inerte, e desde as duas horas, a aniversariante estava sentada
cabeceira da longa mesa vazia (LISPECTOR, 1998, p.54), sem demonstrar reao,
recebia cumprimentos e a festa ia acontecendo.
A festa descrita como uma tarefa mecnica, totalmente sem afeto, puro
pretexto para reunir a famlia num ato burocrtico e vazio: Vim para no deixar de vir
(p.54), afirma uma das noras. A decorao com guardanapos de papel colorido e copos
de papelo alusivos data (p.55) e ainda bales sungados polo teto em alguns dos
quais estava escrito Happy Birthday!, e em outros Feliz Aniversrio! (p.55),
infantilizam e ridicularizam o ambiente. As personagens parecem encenar papis, num
-
43
misto de disfarces e dissimulaes: Oitenta e nove anos!, ecoou Manoel que era
scio de Jos. um brotinho!, disse espirituoso e nervoso (p.56), Nada de
negcios, gritou Jos, hoje o dia da me! (p.57).
Em determinado momento, o narrador com sua postura divina, descarna o
pensamento da idosa e o leitor fica a par da insatisfao da matriarca, por ter dado luz
aqueles seres opacos, com braos moles e rostos ansiosos (p.60), pareciam ratos se
acotovelando, a sua famlia (p.61). Colrica e insatisfeita, a velha cospe no cho. Numa
leitura materialista lacaniana, o ato de cuspir pode ser lido como a maneira de informar
ao Grande Outro a falsa harmonia e as podrides escamoteadas pela famlia. Nesse
caso, essa instncia funciona como o decoro das relaes sociais, afetivas, que
normalmente so sufocadas pela fingida calma dos ambientes familiares, e aponta para
o fato de que os elos fraternais foram substitudos por relaes instrumentais. Apesar de
surpresa, a famlia constrangida prefere dissimular o acontecido, pois a velha no
passava agora de uma criana (p.61) e a festa continua com planos para o prximo ano.
J em Os Laos de Famlia, desde o princpio, o leitor conhece a relao
periclitante entre Catarina e sua me, Severina. Depois de uma visita filha, quando
enche o neto de mimos como uma av tradicional e tambm dissimula um bom
relacionamento com o genro, Severina embarca de volta para casa. No entanto, quando
est com a filha no txi, este d uma freada brusca e as lana uma contra a outra numa
intimidade de corpo h muito esquecida, do tempo em que se tem pai e me (p.96).
Cria-se uma situao visivelmente constrangedora pelo contato fsico evitado
desde a infncia. A descoberta desse distanciamento revelado ao leitor pelas frases
recorrentes que causam certo estranhamento: No esqueci de nada? Perguntava pela
terceira vez a me. No, no, no esqueceu de nada, respondia a filha (p.94).
-
44
O verbo esquecer no faz relao direta com o elemento bagagem, mas sim com
o elemento humano, com a ausncia de relaes afetivas entre me e filha: ... no
esqueci de nada? perguntou a me. Tambm a Catarina parecia que haviam esquecido
alguma coisa [...], se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais (p.97).
Aps o incidente, o narrador conduz as reflexes da filha, em que problemas
familiares, repleto de queixas e mgoas, recebem uma tnica. No entanto, o decoro
social fala mais alto e a filha no explode num ato repulsivo de violncia, como foi o
caso da anci do conto anterior. Prova disso que ela mortifica seus pensamentos e, ao
chegar estao, despede-se da me e espera o trem partir. Em outras palavras, esse
conto torna-se mais perturbador do que Feliz aniversrio, pelo fato de que naquele o
Grande Outro informado das ms relaes e, neste, apenas o leitor o , o qual funciona
como espectador e assiste incomodado relao mal resolvida entre ambas.
-
45
CAPTULO TERCEIRO
AS LACUNAS DA REALIDADE
3.1. O Simblico e a fuga do Real traumtico em A ma no
escuro
O preo da dominao no meramente a alienao dos homens com relao
aos objetos dominados; com a coisificao do esprito, as prprias relaes
dos homens foram enfeitiadas, inclusive as relaes de cada indivduo
consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reaes e funes
convencionais que se esperam dele como algo objetivo. O animismo havia
dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. O aparelho
econmico, antes mesmo do planejamento total, j prev espontaneamente as
mercadorias de valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A
partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercmbio,
perderam todas as suas qualidades econmicas salvo seu carter de fetiche,
este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos seus
aspectos. As inmeras agncias da produo em massa e da cultura por ela
criada servem para inculcar no indivduo os comportamentos normalizados
como os nicos naturais, decentes, racionais (ADORNO; HORKHEIMER,
1986, p.40)
Ainda que o foco da discusso seja o conceito de indstria cultural e o interesse
nos seres humanos enquanto consumidores ou empregados, reduzindo a humanidade,
em seu conjunto, assim como cada um de seus elementos, s condies que representam
seus interesses, o fragmento da Dialtica do esclarecimento, publicado originalmente
em 1947, utilizado aqui para ilustrar a falncia dos valores humanistas e a
metamorfose dos indivduos em seres genricos.
Semelhantes pelo isolamento na coletividade, eles funcionam como parte da
engrenagem de um sistema mercadolgico que refora a uniformidade em uma
sociedade de massa. Aliada ideologia capitalista, a indstria cultural contribui,
eficazmente, para falsificar a relao entre os indivduos, bem como sua relao com a
natureza, resultando numa espcie de anti-iluminismo.
-
46
Theodor Adorno e Max Horkheimer (1986) consideram que o Iluminismo tem
como finalidade libertar os seres humanos do medo, tornando-os senhores e liberando o
mundo da magia e do mito, instaurando o poder do humano sobre a cincia e sobre a
tcnica. Porm, o indivduo tornou-se vtima de novo engodo: o progresso da
dominao tcnica. Essa realidade alienada que mecaniza a relao entre os indivduos
e, por conseguinte, dele consigo prprio, impedindo-os de desfrutar de uma conscincia
autnoma, capaz de julgar e decidir conscientemente a abordada por Clarice Lispector
nas primeiras pginas de A ma no escuro. E justamente com essa realidade amorfa
que Martim rompe, desconhecendo o resultado final da tentativa de assassinar sua
esposa.
O homem se mexeu contente: imitei? Mas sim! Pois se, imitando o que seria
ganhar o primeiro lugar no concurso de estatstica, ele ganhara o primeiro
lugar no concurso de estatstica! Na verdade, concluiu ento muito
interessado, apenas imitara a inteligncia, com aquela falta essencial de
respeito que faz com que uma pessoa imite. E com ele, milhes de homens
que copiavam com enorme esforo a ideia que se fazia de um homem, ao
lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a ideia que se fazia de
mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforo sobre-
humano a prpria cara e a ideia de existir; sem falar na concentrao
angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade com uma cautela diria em no escorregar para um ato verdadeiro, e portanto
incomparvel, e portanto inimitvel e portanto desconcertante (LISPECTOR,
1972, p.28)
O pensamento de Georg Lukcs (2000), influncia decisiva para Adorno,
contribui, substancialmente, para esta reflexo, ao apresentar o conceito de heri
problemtico e sua errncia em um mundo de valores degradados e inautnticos. Para o
filsofo hngaro, a civilizao integrada, existente na epopeia, a qual formava uma
circunferncia perfeita entre o homem e a coletividade, diluda no romance, pelo fato
de que a busca do heri nunca alcanar seu objetivo, uma vez que, nas condies
sociais burguesas, no h possibilidade de reconciliao entre o eu e a sociedade, devido
desproporo que existe entre as aspiraes da alma e a objetividade da organizao
social. O heri do romance nasce desse alheamento em face ao mundo exterior, nesse
-
47
mundo cindido entre existncia e essncia, marcado pelo silncio dos deuses, quando a
interioridade e a aventura esto para sempre divorciadas uma da outra.
Ao se desligar da sociedade que enquadraria seu crime na linguagem do senso
comum e temendo as consequncias de seu ato, o protagonista foge fisicamente e o
crime se transforma num ato positivo de ruptura com a sociedade e a fuga, num
movimento de evaso interior (NUNES, 1995, p.40). Nessa fuga, Martim funciona
como prottipo do heri problemtico, pelo fato de se lanar numa jornada de
isolamento e autoconhecimento em um mundo incerto e por quebrar o automatismo de
sua rotina, ao se opor ao pensamento coletivo, uma vez que uma conscincia global
impediria seu desenvolvimento como ser humano.
Semelhante viagem ansiada por Joana, de Perto do corao selvagem, Martim
inicia um percurso avesso ao convvio social, pois a solido seria o elemento
indispensvel para a busca de sua autenticidade. Assim, ele se v seduzido pelo fascnio
de abrir as portas para o domnio da aventura, a um s tempo desejada e temida, da
descoberta do eu. Neg