DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE 2009 · Os percursos gerativos de sentido podem ser figurativos ou...
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O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Versão Online ISBN 978-85-8015-054-4Cadernos PDE
VOLU
ME I
¹ Docente da Rede estadual de Educação do Paraná. Participante do Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE 2009, vinculado a Universidade Estadual de Londrina - UEL.
² Docente do Departamento de Letras Vernáculas e clássicas da UEL - Universidade Estadual de Londrina.
O UNIVERSO FEMININO NOS CONTOS: A cartomante e Uns braços
Autora: Luzia Irene Plaça de Farias¹
Orientador: Luiz C. Migliozzi Ferreira de Mello²
Resumo: Os contos objeto desse estudo são A cartomante e Uns braços, publicados em 1884 e 1885 respectivamente. Neles procuramos delinear como as personagens femininas estão ali caracterizadas. Nos perfis femininos de Machado de Assis, as mulheres não são vistas como mães amorosas ou a maternidade é relegada, o que não condiz com a sociedade patriarcal do século XIX. Sem a ingenuidade das donzelas românticas, elas são antes de tudo avançadas para sua época, donas de si, protótipos das mulheres modernas. Para fundamentar as análises usaremos como aporte os conceitos da Semiótica greimasiana procurando conciliar as análises tanto internas quanto externas dos textos, mais precisamente do percurso gerativo do sentido. Esses aportes teóricos encontram-se resumidos na primeira seção deste artigo. Na última, descrevemos uma experiência didática de leitura tendo como objeto os referidos contos.
Palavras-chave: conto; Machado de Assis; semiótica; leitura.
Abstract: The stories object of this study are A cartomante and Uns braços published in 1884 and 1885 respectively. We delineate how the female characters are in them characterized. In female profiles of Machado de Assis, women are not seen as loving mothers or motherhood is relegated, which is not consistent with a patriarchal society of the nineteenth century. Without the romantic naivety of the ladies, they are primarily advanced for their time, masters of themselves, prototypes of modern women. To support the analysis we will use as input the concepts of semiotics greimasian seeking to reconcile both internal and external analysis of texts, specifically the generative trajectory of meaning. These theoretical studies are summarized in the first section of this article. At last, we describe our experience of teaching reading as an object such tales.
Key–words: short story; Machado de Assis; semiotics; reading. _____________________
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1 Introdução
Ao ingressarmos no Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE)
da Secretaria da Educação de Educação do Paraná (SEED-PR), motivou-nos a linha
de pesquisa da Semiótica greimasiana sob a orientação do Professor Dr. Luiz C.
MIgliozzi Ferreira de Mello do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da
Universidade Estadual de Londrina (UEL). Após um ano de estudos teóricos, nos
dois primeiros períodos de 2009, o terceiro período previa a aplicação de uma
proposta de Intervenção Pedagógica. Tínhamos, então, como instrumento de
trabalho os contos de Machado de Assis com enfoque na análise das personagens
femininas. Nosso desafio, como despertar nos alunos o interesse por obras
clássicas do século XIX? Sabendo das dificuldades e da resistência à leitura que os
jovens apresentam, nosso trabalho caminhou no sentido de demonstrar que os
temas presentes, na maioria dessas obras, são atuais e, principalmente, que as
narrativas ficcionais tornam-se realidade todos os dias nas páginas dos jornais e
revistas, porém assumindo outra linguagem.
1.1 Pressupostos teóricos
A teoria semiótica na visão de Barros (1988, p.7) define o texto como
―objeto de significação e objeto de comunicação‖. Nesse sentido, tem caminhado na
direção de conciliar as análises tanto internas quanto externas do texto, para
analisar ―o que o texto diz‖, ‖como o diz‖ e ―para que o faz‖. Ela trata do exame dos
procedimentos de produção e organização dos textos, bem como, da forma que o
texto é recebido pelo leitor.
A análise interna do texto permite perceber que as escolhas feitas pelo
sujeito da enunciação não são ao acaso, mas opções feitas no sentido de manipular
convencer e de imprimir ideologias, isto se dá pela análise das muitas pistas
deixadas ao longo do texto. Já a análise externa vê o texto de fora para dentro, por
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meio das relações contextuais na mediação entre discurso e contexto sócio-
histórico. (BARROS, 1988, p.83).
Para compreender os sentidos inscritos nos textos, é necessário
conhecer a organização dos mesmos, a partir de um percurso gerativo. O percurso
gerativo do sentido é indispensável para a teoria semiótica. Ela estabelece três
etapas distintas para a análise do texto, porém é só na relação entre os níveis que
se constroem os sentidos nele impresso pelo enunciador. Para Barros o percurso
gerativo está assim organizado:
a) a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, recebe o nome de nível fundamental ou das estruturas fundamentais e nele surge a significação como uma oposição semântica mínima; b) no segundo patamar, denominado nível narrativo ou das estruturas narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito; c) o terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação. (BARROS, 1988, p.9)
A teoria semiótica insere-se, assim, ao lado das teorias da enunciação
como uma das teorias que se ocupa da análise do texto como processo de interação
entre enunciador e o enunciatário e entre o texto produzido e o sujeito da
enunciação (BARROS, 1988, p.6). Para a semiótica, o texto é um ―tecido‖, ou seja,
entendido como um todo revestido de significação e não na fragmentação do
mesmo.
Os percursos gerativos de sentido podem ser figurativos ou temáticos.
Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um discurso não figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativos com temas, concretizá-los ainda mais, revestindo-os com figuras. Assim, tematização e figurativização são dois níveis de concretização do sentido. (FIORIN, 2005, p.90)
Para fundamentar as análises dos contos já mencionados, serão
retomados os conceitos aqui expostos, procurando fazer uma abordagem do
percurso narrativo das personagens femininas.
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2 Análises dos contos
2.1 Análise do conto: A Cartomante
O conto inicia-se fazendo uma intertextualidade com a obra Hamlet
(ato I, cena 5 de Shakespeare), citação retomada por mais duas vezes pelo narrador
na tentativa de explicar o inexplicável. Afinal, o que seriam essas coisas que
existem entre o céu e a terra que nem nossa filosofia consegue explicar? A resposta
pode estar no desfecho trágico, mas previsível da narrativa.
O narrador apresenta-nos um adultério em curso, num triângulo
amoroso formado por Rita, o esposo Vilela e o amante Camilo. As ações no conto
desenvolvem-se num encadeamento gradativo que vai aprofundando a tensão. Essa
estrutura permite que tudo seja perceptível ao enunciatário. O foco narrativo é em
terceira pessoa (narrador onisciente), com a predominância dos verbos no pretérito
perfeito (pegou, olhou, repreendeu), ou seja, uma ação acabada, concluída. O
discurso direto é uma opção do enunciador, com exceção da personagem Vilela,
silenciada até o fim. Silenciamento proposital que vai intensificar a dramaticidade. O
tempo é apresentado de forma clara: ‖No princípio de 1869‖, é possível identificar
ruas e bairros que apontam a cidade do Rio de Janeiro como cenário do conto: ―na
direção de Botafogo‖.
A narrativa desenvolve-se na perspectiva da personagem Camilo. Ele
que tivera a princípio a mãe para conduzir e orientar sua vida, agora, se deixa
enredar pela sedutora Rita, apesar de seus escrúpulos morais. O enunciador
descreve todo medo e tensão que Camilo vivencia após a aparição das cartas
anônimas.
Na figura de Rita, temos um operador de performance, o que nos leva
a concluir que ela é sedutora e astuciosa. Esse papel evidencia-se pelas figuras com
as quais o enunciador caracteriza seu corpo ―como uma serpente‖, ―Odor di
femmina‖, seus olhos ―teimosos‖. Rita exerce sua manipulação sobre os
personagens Camilo e Vilela que, de alguma forma, submetem-se a ela.
A personagem cartomante, que dá título ao conto, é apresentada de
forma enigmática e dúbia, não tem o seu nome revelado, tão pouco, o preço da
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consulta é fornecido. Ela, justamente por esse caráter dúbio, pode ser analisada
como uma charlatã ou, por outro lado, com o dom da vidência e, de fato, viu o
―indiferente Destino‖ e nada poderia ser feito a esse respeito. O lexema ―destino‖,
escrito com letra maiúscula, é uma referência as três divindades gregas Moiras ou
Fatalidades (Cloto, Láquesis e Átropos). Segundo a mitologia, elas fiavam o destino
humano determinando a vida e a morte.
No ponto clímax da narrativa, o enunciador interrompe a cena final, que
não precisa de maiores explicações, cabendo ao enunciatário preencher as lacunas
deixadas. Seriam lágrimas tristes ou sorriso de satisfação no rosto de Vilela?
No conto, é possível observar que as personagens femininas são dotadas
de certo saber ou do poder de manipular. O papel de destinador manipulado cabe a
Camilo. A primeira manipulação ocorre por meio da mãe que lhe transmite o
conhecimento intuitivo, místico: ―teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe
incutiu‖ e no direcionamento profissional: ―Camilo preferiu não ser nada, até que a
mãe lhe arranjou um emprego público‖. Depois, Rita tem que persuadi-lo a querer
permanecer com o romance, portanto o faz saber o que a cartomante previu e o
convence de que tudo é lícito. Temos, então, um caso de manipulação por
provocação: ―Os homens são assim; não acreditam em nada‖ e ―disse-lhe que havia
muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava paciência‖.
Quando Rita recorre á cartomante é apenas para legitimar suas próprias
crenças, a manipulação aqui se opera pela sedução das palavras da cartomante: ―A
senhora gosta de uma pessoa‖ e, por último, Camilo é manipulado pela personagem
título do texto: ―O senhor tem um grande susto‖, com essas palavras Camilo está
convencido de que de fato a cartomante pode prever o futuro, e mais adiante: ―As
cartas dizem-me‖, aqui, ele está seduzido pelas palavras dela, o que o leva a crer.
Instala-se nesse momento o ponto central da narrativa: a performance, o
sujeito Camilo imbuído de tal crença vai confiante ao encontro da morte. Um pouco
antes cogita em ir armado para defender-se caso fosse necessário, mas agora,
crente de que o amigo Vilela desconhece a traição, está isento da culpa e da
possível punição. A crença na cartomante é o que leva os dois amantes à morte.
Justamente, por crer que o marido desconhece a traição é que ambos sentem-se
livres da culpa e então são mortos.
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É muito presente no conto, também, a manipulação pela tentação que Rita
exerce sobre Camilo para levá-lo a querer o romance. Aqui há uma intertextualidade
bíblica, no livro do Gênesis a mulher é seduzida e tentada pela serpente, no conto
ela é a própria serpente: ―Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-
o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca‖. É
como se ele não pudesse fazer nada, está totalmente envolvido e indefeso. Nessa
analogia, Rita é a serpente que tenta Camilo, e a cartomante representa o fruto
proibido que foi comido pelos dois amantes, ou seja, os dois ―provam‖ das palavras
da cartomante e, como no texto original, serão punidos por isso.
No percurso narrativo de Vilela, podemos identificar uma sanção
cognitiva, quando planeja secretamente o assassinato, mostra-se amigável, manda
o bilhete pedindo que Camilo venha até sua casa e, por fim, mata os traidores.
Embora a descoberta da traição não fique evidente, ela pode ser recuperada ao
longo da narrativa a partir das relações pressupostas: ―Vilela começou a mostrar-se
sombrio, falando pouco‖ e os bilhetes secretos poderiam ter sido enviados pelo
próprio Vilela para colocar um fim ao romance. A emoção, no percurso narrativo de
Vilela, sobrepõe à razão.
Sobre Rita recai toda a culpa pelo adultério, enquanto Camilo é
apresentado como vítima indefesa: ―Camilo quis sinceramente fugir, mas já não
pôde‖. À mulher cabia o papel de zelar pela moral familiar, ao homem sempre foi
permitido trair como forma de legitimar o comportamento masculino, o que obrigava
à mulher a arte da dissimulação. Sob essa ótica, Vilela devia lavar sua honra de
homem traído. O código penal de 1830 atenuava os crimes passionais cometidos
pelos homens.
Nos perfis femininos de Machado de Assis, as mulheres não são vistas
como mães amorosas ou a maternidade é relegada, o que não condiz com uma
sociedade patriarcal do século XIX. Sem a ingenuidade das donzelas românticas,
elas são antes de tudo avançadas para sua época, donas de si, protótipos das
mulheres modernas que vão, pela força da sedução, ditar como deve ser o
pensamento e os procedimentos masculinos.
Nas discursivizações que caracterizam as personagens, é possível
identificar os temas que as compõem. Nelas, está o poder persuasivo do enunciador
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para imprimir marcas de veridicção ao texto. É relevante observar que os recortes
aqui utilizados possuem significação se considerarmos o texto como um todo.
Discursivizações que Temas
caracterizam as personagens sugeridos
Rita
Camilo
Vilela
Cartomante
Tabela 1 - Figuras e temas Fonte: Da autora, 2011.
Podemos observar nas discursivizações que descrevem os lugares o jogo
de convencimento do enunciador. Primeiro a casa da cartomante é apresentada
como sombria e misteriosa, depois a rua ruidosa, atravancada, que se transforma
em seguida, e, por fim, as discursivizações que descrevem a casa de Vilela como
silenciosa, num clima de abafamento de vozes, de vingança ocultada e de palavras
não ditas.
odor di femmina, era mulher sexualidade
olhos teimosos, mãos frias, atitudes insólitas traição, adultério
como uma serpente, viva nos gestos, formosa sedução
quase uma irmã, tratou do coração,mais velha maturidade
arrancar-lhe as ilusões, ir a cartomante credulidade,ocultismo
graciosa, viva nos gestos, bonita sensualidade
olhar com ternura, grandes amigos amizade
em criança, levantar os ombros, negação total incredulidade,ceticismo
óculos de cristal, ingênuo, nem experiência imaturidade
sapato se acomodasse, braços dados envolvimento
emergiam algumas sombras,contorções do drama medo
paz de espírito, arsenal de crendices, fé nova credulidade
estalar de ossos, veneno na boca, subjugado sedução
imoral, pérfido, vexame, remorsos imoralidade
rarear visitas, aleivosia do ato, a catástrofe viria traição, adultério
cartas anônimas, sombrio,notou-lhe as ausências desconfiança
amigos de infância, ternura, confiança, estima lealdade, bondade
sufrágios e inventário, rica bengala, ternura amizade
feições descompostas, esperando para matá-lo vingança
passas, dez mil reais interesse
olhos sonsos e agudos, indiferente Destino vidência,ocultismo
cartas enxovalhadas, unhas descuradas desmazelo
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Discursivizações Temas
dos lugares sugeridos
Casa
da
cartomante
Rua
Casa
do Vilela Tabela 2 - Figuras e temas
Fonte: Da autora
Todo o percurso da narrativa é construído a partir da oposição de termos
antagônicos que vão ditar as atitudes das personagens. Os mais significativos são:
razão versus emoção e lealdade versus traição. Vamos analisar como esses termos
determinam as ações da personagem Rita.
O primeiro acordo que ela estabelece é pelo casamento com Vilela. Pelo
uso da razão, ela deve ser leal ao amor do esposo. Da mesma forma, no primeiro
acordo, o esposo tem a exclusividade do amor.
Figura 1 – Temas Fonte: Da autora
janelas fechadas, a luz era pouca, pouca luz mistério
ao sótão, mais escura, mal iluminada, medo
degraus comidos dos pés, corrimão pegajoso desleixo, desmazelo
obstáculo,carroça que caíra,véu opaco repressão
removido o obstáculo,estava livre,céu límpido liberdade,otimismo
porta de ferro do jardim, saleta interior, mistério
silenciosa, ao fundo ensanguentada. medo
RAZÂO X EMOÇÃO
Rita ser leal ao esposo
LEALDADE X TRAIÇÃO
Rita o esposo tem a
exclusividade do amor
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Rompendo o primeiro acordo, ela estabelece um segundo acordo, agora
com o amante Camilo. Pelo uso da emoção ela escolhe ser leal ao amor do amante
e ser infiel ao amor do esposo, também pelo segundo acordo, o amante é quem
possui a exclusividade do amor de Rita.
EMOÇÃO X RAZÃO
Rita ser leal ao
amante
Rita TRAIÇÃO X LEALDADE
o amante tem
exclusividade
Figura 2 - Temas Fonte: Da autora
Observa-se que essas oposições podem ser percebidas no decorrer da
narrativa, em especial nos trechos abaixo, onde o percurso narrativo apresenta a
afinidade dos amantes:
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido.... (MACHADO DE ASSIS, 1962, p.477)
Ou ainda:
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A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p.477)
Segundo a mitologia, Apolo (deus do sol) foi um deus de inúmeros
amores, mas que nunca se realizava afetivamente, por vingança do deus Eros (deus
do amor). Todos os dias, ele conduzia a carruagem que trazia sua irmã Eos (a
aurora).
A quebra do 1º acordo coloca Rita e Camilo em conjunção com o objeto
de valor amor. Por outro lado, com o rompimento do acordo, Vilela perde o objeto de
valor e torna-se punitivo e vingador.
Objeto de valor
VILELA RITA
AMOR
RITA CAMILO
Figura 3 – Objeto de valor Fonte: Da autora
O percurso da narrativa na perspectiva dos sujeitos Camilo e Vilela é de
privação, pois os coloca em um estado inicial de conjunção com objeto de valor
amor de Rita e finaliza a narrativa num estado de disjunção, o primeiro e privado do
amor pela morte, enquanto o segundo, por não ser mais correspondido, escolhe a
vingança privando-se, assim do objeto de valor.
A conjunção e a disjunção do sujeito Camilo com o objeto de valor amor,
pode ser representada pelas discursivizações abaixo:
a) Enunciado de estado conjuntivo: S ∩ O
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Camilo ∩ ―chegaram ao amor‖, ―passar horas ao lado dela‖, ―passeios‖,
―desejos‖
b) Enunciado de estado disjuntivo: S U O
Camilo U ―as visitas cessaram‖, ―valia acautelarem-se‖, ―separaram-se com
lágrimas‖
Os termos razão versus emoção e lealdade versus traição vão, no
decorrer do percurso narrativo, estabelecer discursos polêmicos numa relação de
negação mútua. Se Rita agisse pela razão poderíamos identificar aí outro tema: a
hipocrisia, já que ela projeta sua felicidade em Camilo. A razão pode ser observada,
em alguns momentos, como característica do sujeito Camilo quando adverte Rita
sobre suas suspeitas: ―Vilela podia sabê-lo, e depois‖, ‖Mais valia acautelarem-se,
sacrificando-se por algumas semanas‖.
No percurso narrativo, há o predomínio da emoção, porém, a razão está
de certa forma, nas atitudes do sujeito Rita como aspecto indissociável, já que ela
racionaliza atitudes na tentativa de verificar se as cartas anônimas são dirigidas
também ao marido ou de planejamento para os encontros. Embora as evidências
apontem para a comprovação de que o marido sabe da traição, ela não consegue
deixar a paixão, ou seja, a emoção e, mesmo com risco de ser descoberta, não
mede esforços para ter os encontros furtivos com Camilo: ‖mas via-a estremecer e
arriscar-se por ele‖, ‖tive muita cautela‖.
A emoção, porém, é levada ao extremo pelo sujeito Vilela contrariando,
de certa forma, sua condição de advogado equilibrado e responsável traçada pelo
enunciador desde o início do percurso narrativo e, portanto, racional: ―Vilela pegou-o
pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão‖.
Evidenciam-se outras oposições, não menos relevantes como:
sinceridade versus hipocrisia. No entanto, essas são desdobramentos dos
elementos semânticos anteriores, como pólos do mesmo eixo semântico.
O sincretismo e o ocultismo são temáticas que permeiam toda a narrativa.
O ocultismo, no conto, é personificado pelo sujeito cartomante, numa referência às
pitonisas que, na mitologia grega, eram sempre incorporadas pela figura feminina.
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Elas, pela própria condição feminina, tinham o dom da profecia. É determinante
também para a escolha do título, o que já sugere uma atmosfera de mistério.
Sincretismo e ocultismo vão também marcar as ações dos sujeitos Rita e
Camilo. Rita acredita piamente nas palavras da cartomante e utiliza-se desses
argumentos para convencer Camilo: ―disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e
verdadeira neste mundo‖. Quando Camilo recorre à cartomante colocam-se em
evidência todas as suas dúvidas e incertezas. Os recursos narrativos usados
contribuem para demonstrar todo o conflito interior vivido pelo personagem Camilo.
A cada leitura que ele faz do bilhete, atribui uma interpretação diferente, o que faz
com que se afaste do pensamento lógico, científico (razão) e busque uma
explicação mística (emotiva). Ele quer acreditar na cartomante e a crença transforma
seu medo em alívio, isso pode ser evidenciado nos exemplos que se seguem: ―ela
declarou-lhe que não tivesse medo de nada‖, ―Camilo estava deslumbrado‖, ―Em
verdade, ela adivinhara‖.
A razão é o elemento semântico que, no texto, é considerado disfórico,
enquanto a emoção é vista como eufórica, ou seja, o primeiro tem valor negativo,
enquanto o segundo possui um valor positivo.
Quando Rita e Camilo agem pela emoção negam a razão, ou seja,
buscam o objeto de valor amor mesmo sabendo que deveriam agir pela razão. Ela
honrar o compromisso de amor eterno ao marido. Ele ser leal ao amigo, condição
principal da amizade. Vilela usando da razão não mataria, pois isso implicaria nas
penalidades da lei, no entanto, a emoção leva-o a matar, negando a razão ditada
pela lei.
Os elementos de superfície do conto poderiam ser divididos em quatro
blocos:
a) O amor dos amantes Rita e Camilo – arriscam-se, encontros furtivos, felicidade:
‖Separam-se contentes‖.
b) Refreamento da paixão – suspeitas da traição, cartas anônimas, medo: ―inquieto e
nervoso‖.
c) Confirmação do amor - Camilo vai à Cartomante, conflito interior, paz de espírito:
‖ia alegre‖.
d) Término do romance - a morte dos amantes: ―gritos de terror‖.
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O texto, construído a partir da oposição razão versus emoção, possui a
seguinte organização semântica: afirmação da emoção, negação da emoção, afirmação
da emoção, afirmação da emoção.
A afirmação da emoção, na última organização semântica, pode ser verificada
nos três sujeitos da enunciação. A emoção que leva dois amantes á morte, e a emoção
que leva a matar.
2.2 Análise do conto: Uns braços
De forma sutil e delicada, o enunciador pinta-nos um quadro de quase
adultério (comprovação do adultério), apesar da sordidez do fato, a cena do beijo
nos é apresentada com a delicadeza própria de Machado de Assis:
―Aqui o sonho coincide com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor....‖ (MACHADO DE ASSIS,1985, p.152)
O narrador instala aqui uma ambiguidade, não permitindo ao enunciatário
um posicionamento claro. A forma com que vai descrevendo os momentos
anteriores ao beijo, numa atmosfera onde o silêncio é quebrado de vez em quando,
como a trazer D. Severina à realidade: os passos do solicitador que sai, o bater do
coração dela, os ruídos do gato, a tigela que cai e em seguida o beijo, numa
explosão emocional. Segue-se a isso, o silenciamento da personagem até o final do
percurso. Realidade e sonho fundem-se uma única vez num domingo ‖universal‖ que
jamais será esquecido por Inácio. A força da adjetivação usada para caracterizar o
domingo explica-se no final da narrativa para identificar aquele momento fugaz como
eterno: ―E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos,
nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo‖.
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O lexema sonho é usado no seu sentido denotativo, como imagens do
inconsciente durante o sono: ―-- E foi um sonho! um simples sonho!‖ e no sentido
figurativo, como fantasias, devaneios: ‖Que não possamos ver os sonhos uns dos
outros.‖ Aparece ainda, com as duas significações ao mesmo tempo: ―Aqui o sonho
coincide com a realidade‖, na perspectiva do sujeito Inácio sentido é real, já que ele
dormia; para o sujeito D. Severina o sentido é figurado, manifestação das fantasias
amorosas. O sonho aparece nessa tangência com a realidade, onde tudo ocorre no
âmbito das ideias, dos sentidos visual, auditivo e gustativo. O enunciador vale-se do
lexema sonho por várias vezes de forma a aguçar os sentidos do leitor, na tentativa
de materialização do sonho: ‖Levava consigo o sabor do sonho‖.
O percurso narrativo desenvolve-se na perspectiva do sujeito Inácio, que
nos é apresentado pelo enunciador como jovem ingênuo de apenas quinze anos,
apesar da tenra idade, apaixona-se platonicamente por D. Severina. Essa paixão,
para Inácio, torna-se significativa por ser a sua primeira experiência amorosa. Ele dá
atenção especial aos braços, pois não era hábito que as mulheres mostrassem essa
parte do corpo e também pela sua educação que não permitia que ele a olhasse nos
olhos. É importante ressaltar que o fato dela ser casada ou a discrepância de idade
não são empecilhos para ele, pois o sentimento é incontrolável, ao lado da
ingenuidade. A caracterização da adolescência é descrita pelo uso de uma metáfora
bastante significativa, que reforça a primeira experiência afetiva como momento
único, de significado duradouro: ‖alguma coisa que deve sentir a planta, quando
abotoa a primeira flor‖. Ele convive com o casal com a finalidade de aprender o
ofício de solicitador. O casal não possui filhos. Essa é uma particularidade nas obras
do autor, a ausência do amor materno ou famílias pouco numerosas, diferente dos
padrões da época: ―família que se compunha apenas de D. Severina‖. Ressalta-se
aqui, que as mulheres não são idealizadas como mulher-mãe, mas sim, como
mulheres dissimuladas, fascinantes e dominadoras. Os casamentos são
apresentados de forma pessimista, insatisfatórios e infelizes, observe que no conto o
casamento nem se quer é oficializado: ‖senhora com vivia maritalmente‖. Sob o
ponto de vista jurídico da época, a traição implicava em adultério para as mulheres,
enquanto os relacionamentos extraconjugais masculinos eram previstos como
concubinato, essa distinção expõe o machismo a que as mulheres eram submetidas.
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É inevitável a comparação com o conto Missa do Galo (publicado
originalmente em 1893, portanto, oito anos depois de Uns braços), que apresenta a
mesma temática. A personagem Conceição é uma mulher madura que fascina um
jovem de dezessete anos. Ela, valendo-se da técnica da dissimulação, seduz
Nogueira que vê os braços parcialmente descobertos o que, para ele, é um encanto
a mais. O efeito narrativo nos dois contos reforça-se pelo fato de os jovens serem
ingênuos e possuírem compreensão parcial do fato. Essa obsessão visual quase
táctil na descrição dos ―braços‖ aparece também em Dom Casmurro, onde o autor
dispensa um capítulo inteiro só para descrevê-los. Em todos os textos, há o
fetichismo masculino por eles, que estão nus, nudez parcial que representa todo o
corpo.
O narrador vale-se da voz onisciente para acentuar a dramaticidade e o
conflito interior das personagens. A passagem posterior ao beijo é bastante
marcante o conflito e o medo de D. Severina pelo ato cometido. Ela arrepende-se de
tê-lo beijado e depois fica aliviado ao constatar que ele dormia. Com esse recurso,
situa o enunciatário no desenrolar da narrativa. Vale-se, também, do não dito e da
economia dos recursos empregados: ―Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e
Inácio esticava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente,
recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfia alguma coisa‖. A
aproximação do narrador se faz de forma evidente, quando ele se inclui na narrativa:
―Não digo que ficou em paz com os meninos, porque nosso Inácio‖ e ―Aceso o
charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil coisas que
não interessavam nada ao nosso Inácio‖.
As formas de tratamento usadas pelo enunciador para distinguir os
sujeitos Inácio e D. Severina deixam evidente o grau de formalidade dirigido a um e
a outro. Ela ―Dona‖, ou seja, senhora e ele ―moço‖, ―mocinho‖, ―criança‖. Essas
formas de tratamento deixam clara a diferença de idade entre ambos.
É possível dividir os elementos de superfície do conto em quatro blocos:
a) Paixão de Inácio por D. Severina – olhares furtivos, distrações, ar
sonhador: ―Via só os braços‖, ―andava com eles impressos na
memória‖.
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b) Constatação da paixão por D. Severina – complicações morais,
observação das atitudes de Inácio: ―recordou então os modos dele, os
esquecimentos‖, ―Tudo parecia dizer a dama que era verdade‖.
c) Envolvimento dela por Inácio – atenção especial a ele, cuidados:
―tratava-o desde alguns dias com benignidade‖, ―conselhos,
lembranças, cuidados de amiga e mãe‖.
d) Separação - dúvidas, medo de tê-la ofendido, satisfação interior: ―Não
entendia a despedida‖, ―levava consigo o sabor do sonho‖.
A veridicção impressa na narrativa é marcada pelas discursivizações que
vão determinar temas. Observe, no quadro abaixo, algumas discursivizações usadas
para caracterizar as personagens principais. Os recortes feitos aqui constroem sua
significação se considerarmos a totalidade do percurso narrativo.
Discursivizações que caracterizam Temas
as personagens sugeridos
Inácio
D. Severina
Borges
Tabela 3 – Figuras e temas Fonte: Da autora
quinze anos, rascunho de buço, uma criança juventude
beatitude, quase pueril ingenuidade
não levantar os olhos, calado, silêncio Obediência,submissão
afastar os olhos,vexado,encarou-os pouco a pouco timidez
mirar-lhe o busto, agitação ia crescendo, alvoroço sexualidade
sentimento vago, confuso, inquieto adolescência
longe da mãe, recolhia-se ao quarto, silêncio solidão
trabalho sem gosto, a vida era sempre a mesma Infelicidade,monotonia
mirando e amando,sentimento confuso,que lhe doía paixão
estremeceu, gritos medo
sono pesado, vara de marmelo, pau de vassoura preguiça
nenhum adorno, próprio penteado,orelhas nada simplicidade
vinte e sete anos, sólidos e florido, conselhos maturidade
complicação moral, mal consigo, vexada, confusa moralidade
amor adolescente e virgem,boca graciosa,alvoroço paixão
tentação diabólica, turvação de sentidos, maluca sexualidade
braços à mostra, maciez, belos, maneios,vistosa sensualidade
terrível, bradou, descompôs severidade
tom zangado, fuzilava ameaças, tirar o sono grosseria
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Para reforçar o efeito de veridicção, o enunciador situa o percurso num
tempo e lugar determinados: ―Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870‖. Na
narrativa é possível recuperar marcas que apontem para a indicação da cidade do Rio
de Janeiro como local da narrativa: ―a uma das janelas que davam para o mar‖. Um
detalhe chama a atenção para indicar que a narrativa transcorre no século XIX: ―ela
ouviu o tlic do lampião do gás da rua‖. Também o tempo de duração da narrativa é
claro, compreendendo a duração da paixão do jovem Inácio: ―cinco semanas‖ e mais
a semana seguinte após o beijo: ―na segunda-feira, na terça-feira, também, e até
sábado‖.
O tempo psicológico é bastante presente no percurso, transcorrendo
independente do cronológico. Os personagens Inácio e Severina são envoltos numa
atmosfera de quase hipnose, onde tudo acontece de forma subjetiva.
Na narrativa, o sujeito Severina aparece como operador de performance.
Ela é o sujeito do fazer, que vai determinar as ações dos sujeitos Inácio e Borges, o
primeiro seduzido pelos braços: ―Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina
que se não se esquecesse de si e de tudo‖. Já o segundo, apesar de sua rispidez e
comportamento autoritário, aceitava a opinião dela, como num dos trechos em que
Borges aparece chamando a atenção do jovem Inácio por ele estar distraído e
cometendo erros no trabalho: ‖D. Severina tocou-lhe o pé, como pedindo que
acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e
os homens‖.
D. Severina não é, de forma alguma, exemplo de beleza, antes apresenta
traços de pouca vaidade e até desleixo: ―era antes grossa que fina‖, ―Não se pode
dizer que era bonita; mas também não era feia‖, ―o próprio penteado consta de mui
pouco‖, ―nas orelhas nada‖. No entanto, essa descrição de dona de casa comum e
de pouca sensualidade desfaz-se ao longo da narrativa, pois na visão de Inácio
esses aspectos apontados, não são percebidos por ele. Ela é apresentada (bem ao
gosto do autor) com status de independência, dona de seus desejos e de seus atos,
numa reviravolta no papel destinado a mulher como mãe zelosa e esposa fiel. Nos
percursos machadianos, elas vão crescendo e evoluindo contrariando o conceito de
fragilidade e dominação machista do século XIX: ―De pé, era muito vistosa; andando,
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tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além
dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto‖.
No conto em questão, é descrita a partir dos braços desnudos. Ela se
permite desejar e ser desejada, demonstrando, em alguns momentos,
comportamento ambíguo: ‖Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou
falava áspero, quase tanto como Borges. De outras vezes, é verdade que o tom de
voz saía brando e até meigo‖. Esse comportamento contraditório deve-se ao foto de
que ela tem consciência da impossibilidade do relacionamento por três motivos: ser
casada, ser mais velha e pelos valores sociais rígidos da época.
Também sobre ela recai a culpa de tudo. A culpa pela sedução: ―Também
a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus‖ (o trecho refere-se aos
braços dela) e a culpa pela maturidade, como adulta deveria dissuadi-lo de seus
desejos por ela: ―Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos‖.
A manipulação dá-se também pelo sujeito D. Severina que estimula a
sexualidade do jovem Inácio. Manipulação essa que se dá de forma involuntária,
pois ele apaixona-se por ela, especialmente pelos braços, sem que ela o provoque
diretamente: ―mas é justo explicar que ela não os trazia assim por faceirice, senão
porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas‖ e ―sentiu-se agarrado e
acorrentado pelos braços de D. Severina‖. Já em outra passagem, o enunciador
apresenta a paixão gradativa de Inácio, com o uso de uma sequência de verbos, no
gerúndio, que reforçam a ideia do fato expresso no tempo presente e pela repetição
advérbio pouco: ‖Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras
mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando‖.
Inácio também é alvo de manipulação por intimidação operada pelo
sujeito Borges. Isso é observado já no primeiro parágrafo: ‖Hei de contar tudo a seu
pai‖ e ―amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!‖. Há no texto, uma passagem
que evidencia o comportamento sonhador de D. Severina, percebido por Borges que
assim ameaça: ―Deixem estar, que eu sei um bom remédio para tirar o sono aos
dorminhocos‖.
No ápice da narrativa, a performance é realizada pelo personagem
feminino. Ela, em cena antológica, quase cinematográfica, aproximasse dele
enquanto ele dormia e rouba-lhe um beijo. Comprovação do adultério? Talvez. O
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fato é que o percurso narrativo caminha para o desfecho. E, aqui, o enunciador
deixa alguns vazios que devem ser preenchidos pelo enunciatário, como por
exemplo: Teria ela pedido ao marido para dispensá-lo? Teria contado ao marido o
interesse amoroso do rapaz? O fato é que o jovem deixa a casa sem ao menos
despedir-se da sua amada. D. Severina é, portanto, o sujeito que opera a passagem
do estado de conjunção para a disjunção com o objeto de valor paixão privando,
assim, que Inácio o possua, já que ele deve afastar-se dela. O xale que cobre os
braços de D. Severina, nas cenas finais do conto, possui significado simbólico de
ocultar, esconder o fato ocorrido, além de impedir que Inácio possa vê-los. A
sequência dos dias da semana indica que a atitude tomada por ela é definitiva: ―na
segunda-feira, na terça-feira, também, e até sábado‖.
É notória a oposição que estabelece entre os termos juventude versus
maturidade e fantasia versus realidade. Analisemos essas oposições na perspectiva
do jovem Inácio.
Figura 4 – temas Fonte: Da autora
A imaturidade é uma condição da juventude de Inácio que permite a
possibilidade de cometer erros, permitindo também o pensamento fantasioso. Há no
conto, uma referência bíblica a esse respeito, quanto Inácio está tomando café e
começa a devanear. Ele olha para a parede e vê a imagem de dois santos: São
Pedro e São João. Aqui se opõe a juventude de um e a maturidade do outro: ―Vá
JUVENTUDE X MATURIDADE
Inácio é aceitável errar
FANTASIA X REALIDADE
Inácio é admissível
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que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegre as imaginações católicas;
mas com o austero S. Pedro era demais‖. Outro momento significativo em que se
evidencia o comportamento fantasioso de Inácio é o que antecede ao beijo. Ele
gostava de ler histórias de folhetim e, na imaginação dele, as heroínas eram
idênticas a sua amada: ―Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas
dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina‖.
Já na perspectiva do sujeito D. Severina, essas oposições evidenciam-
se de maneira inversa. Vejamos:
Figura 5 – Temas Fonte: Da autora
Para D. Severina, a condição adulta não permite que ela cometa o erro
de apaixonar-se por um jovem, nem tão pouco admite o pensamento que não
esteja ligado à realidade, portanto ela deve negar os pensamentos fantasiosos.
Observe um trecho que evidencia a oposição juventude versus maturidade:
D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou de alguma coisa. Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais
MATURIDADE X JUVENTUDE
D. Severina não é aceitável errar
REALIDADE X FANTASIA
D. Severina não admite
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que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro... (MACHADO DE ASSIS,1985, p.150)
No trecho acima, D. Severina constata, pela primeira vez, o interesse do
rapaz e não refuta o pensamento, mas sente-se lisonjeada. Essa constatação
reforça o conceito que possui de si, da sua beleza e do seu poder de sedução. É
interessante observar que a diferença de idade não é motivo de preocupação,
apenas o fato dele ser ―criança‖. Uns braços apresenta, portanto, a juventude com
valor eufórico em oposição a maturidade com valor disfórico.
Fantasia versus realidade está de forma acentuada no percurso, ora se
opondo, ora se fundindo, a exemplo do que acontece na cena que Inácio dorme e é
beijado por Severina: ―Aqui o sonho coincide com a realidade‖. A fantasia é
observada como característica fundamental do sujeito Inácio, pela própria condição
da juventude, porém essa característica irá marcar as ações de D. Severina de
forma acentuada a partir do momento que percebe o interesse amoroso do jovem
por ela.
Essa oposição manifesta-se de formas diversas no texto:
a) No percurso de Inácio: ‖ele podia devanear à larga‖, ―pôs os olhos na parede donde
viu sair a dama de seus cuidados‖ (fantasia); ‖Agüentava toda a trabalheira‖, ‖alguma
distração que a ofendera‖ (realidade).
A oposição possui a sequência abaixo:
fantasia fantasia realidade
(quando a conhece) (apaixona-se pelos braços dela) (é despedido, afasta-
se dela)
b) No percurso de D. Severina: ―Sonhara de noite com ele‖, ―turvação dos sentidos‖
(fantasia); ‖complicação moral‖, ‖fugiu até à porta, vexada‖ (realidade).
A oposição possui a seguinte sequência:
realidade fantasia realidade
(ela o vê como criança) (apaixona-se, beija ele) (ele vai embora, separação)
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Outra oposição semântica destacada no percurso é a inocência versus
malícia que aparece como complemento da oposição anterior, já que a inocência é
comumente relacionada como característica da juventude, enquanto a maturidade
permite o pensamento astucioso, a malícia. No conto, a inocência possui um valor
positivo, portanto eufórico, enquanto malícia possui um valor negativo, ou seja,
disfórico.
Podemos, assim, representar os estados de conjunção e disjunção do
sujeito Inácio com o objeto de valor paixão.
a) Enunciados de estado conjuntivo: S ∩ O
Inácio ∩ ―braços à mostra‖, ‖mirar-lhe o busto‖, ‖voz meiga‖, ―desvelo‖,
―carinho‖.
b) Enunciados de estado disjuntivo: S U O
Inácio U ―xale nos braços‖, ―falava áspero‖, ―calada‖, ―cara fechada‖,
―severa‖.
A relação dos personagens com objeto de valor pode ser assim
esquematizada:
Figura 6 – Objeto de valor Fonte: Da autora
Os sujeitos D. Severina e Inácio empreendem forças na busca do
objeto de valor paixão. O programa narrativo é de privação, uma vez que, os sujeitos
não obtêm o objeto de valor, já que o romance não se efetiva de fato, ficando
apenas como imaginação fantasiosa, ficção.
Objeto de valor
D. Severina Inácio
PAIXÃO
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3 A experiência didática com a utilização do gênero conto
A experiência didática foi desenvolvida no Colégio José de Anchieta -
Ensino Médio de Borrazópolis. Participaram do estudo trinta e cinco alunos do 1º
ano, turma ―A‖. Os alunos possuem de dezesseis a dezessete anos, de classe
média e baixa. A turma tem como características principais o empenho na realização
das atividades, o coleguismo e, na sua maioria, possuem um bom desempenho
escolar.
A opção pelos contos machadianos deve-se ao fato de que estes
possuem formato enxuto, sem, contudo, perder a densidade dos romances. A
metodologia incluiu embasamento teórico dentro das teorias enunciativas, da
linguística textual e da semiótica argumentativa.
A estratégia utilizada foi a aplicação de uma Unidade didática que
contemplou a habilidade de leitura dos contos: A cartomante e Uns braços de
Machado de Assis e atividades que possibilitassem a reflexão sobre a construção
dos personagens femininos e o posicionamento crítico, bem como, as escolhas
feitas pelo sujeito da enunciação para manipular, convencer e imprimir ideologias.
3.1 Resultados alcançados
Inicialmente houve a apresentação da Proposta com ações
motivacionais e de esclarecimentos quanto aos objetivos esperados.
As atividades foram desenvolvidas por meio do material fornecido ao
aluno, permitindo que pudessem trabalhar com as questões individualmente ou em
equipes. O contexto sócio-histórico pode ser bem explorado, pois as marcas
linguísticas (obra do século X I X) são muito evidentes, bem como, as relações de
intertextualidade.
Durante as pesquisas e a apresentação das equipes foi possível
avaliar o desempenho dos alunos quanto à capacidade de trabalhar em equipe, de
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construção coletiva do conhecimento por meio de sínteses e da seleção de
argumentos. Na produção dos slides os alunos puderam explorar os recursos visuais
e midiáticos. As interações entre os membros do grupo promoveram a troca
experiências para o crescimento de todos.
Algumas atividades inicialmente colocadas no material didático
sofreram algumas alterações para dar mais agilidade na Implementação da Proposta
e desenvolver outras atividades já previstas pela escola como a Gincana cultural e
Esportiva e o cumprimento do Plano de Trabalho Docente.
Cabe ressaltar, que o maior entrave encontrado foi a pouca ou
nenhuma experiência que os alunos possuíam com a leitura dos autores clássicos.
Eles apresentaram limitações para atribuir significação ao que liam, de fazer uma
análise crítica, além de desconhecimento do vocabulário e das relações de
intertextualidade, o que não permitia que pudessem apreender o texto como uma
unidade de sentido. Conhecendo de antemão tais dificuldades, as leituras foram
solicitadas extraclasse e retomadas em sala, onde os alunos puderam sanar
dúvidas, questionar e fazer anotações. Observamos que em torno de vinte por cento
dos alunos não realizaram a leitura inicialmente proposta, alegando vários motivos.
Durante a aplicação das atividades da Unidade Didática observamos que, embora o
texto já tivesse sido explorado, alguns alunos ainda apresentavam dúvidas, sendo
necessário o auxílio do professor. Apesar do exposto, nossa apreciação é positiva,
pois consideramos que as atividades de leitura permitem a aquisição e o domínio da
linguagem num processo gradativo e que, para tanto, é necessário oferecer aos
alunos textos desafiadores.
Foi possível observar, também, que a resistência à leitura presente
em vários alunos, foi aos poucos cedendo lugar ao envolvimento com os textos, na
medida em que se pôde demonstrar que as obras literárias clássicas ―dialogam‖ com
outras obras ou com outras formas de linguagens, no caso a cinematográfica.
Acreditamos também, que o domínio do conhecimento leva a uma mudança de
postura. Neste sentido, constatamos que muitos alunos questionaram sobre outras
obras e outros autores o que aponta para um resultado positivo, pois os alunos
sentiram-se motivados a buscar novas leituras. No entanto, sabemos que a
literatura, assim como outras manifestações artísticas, não desperta o mesmo
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interesse em todas as pessoas, por outro lado, a escola não pode omitir-se de
oferecer ao aluno o contato com o texto literário.
4. Considerações finais
A leitura dos clássicos recomendada aos alunos do Ensino Médio
parece, num primeiro momento, uma tarefa muito difícil ou até impossível levando-se
em conta a linguagem e o momento histórico da sua produção. Dessa forma, o
trabalho com a leitura torna-se árduo quando o professor não consegue motivar o
aluno a ―provar‖ da leitura.
Porém, com base na experiência aqui desenvolvida podemos afirmar
que autores clássicos, entre eles Machado de Assis, devem ocupar lugar em nossas
aulas de leitura. Tais obras, não se perderam no tempo porque abordam temas que
são eternos conflitos humanos, sendo, portanto, atemporais.
Outro aspecto relevante é relacionar as obras com a vivência do
aluno, mostrando que as narrativas ficcionais tornam-se realidade todos os dias nas
páginas dos jornais e das revistas, porém com outra linguagem. Dessa forma, a
leitura ficcional torna-se verossímil contribuindo para despertar o interesse para
outras leituras. A sociedade pode discutir, simbolicamente, por meio da literatura, os
impasses, os desejos e os conflitos, pois ela configurando-se num território livre
onde tudo é permitido.
Se os estudos do texto buscam, em geral, os objetivos comuns de
conhecimento do texto e do homem, tencionamos, também, ter contribuído para
demonstrar que os fundamentos teóricos da Semiótica podem somar-se a outros
que caminham na mesma direção.
Por fim, queremos ressalta que a educação democrática, deve trazer
em si o domínio da leitura como fundamental para todos, mesmo para aqueles que
estão na periferia da sociedade, pois é justamente essa carência que os torna, na
maioria das vezes, marginalizados.
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Referências
BARROS, Diana Luz Pessoa & Fiorin, José Luiz (org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo, Edusp, 1994.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo, Ática,
1988.
BRAYNER, Sônia (org.). O Conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1981, 12. DIRETRIZES Curriculares da Rede Pública Básica do Estado do Paraná. SEED,
2008.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto.
1989.
LAJOLO, Marisa. Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo. São Paulo, Ática, 2004. BRAYNER, Sônia (org.). O Conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981, p. 8.
MACHADO de ASSIS./ Contos / Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/machadodeassis/machado.html> Acesso em: 15 outubro 2009. PIETRANI, Amélia Montechiari. O Enigma Mulher no Universo Masculino Machadiano. Rio de Janeiro, EdUFF, 2000.