Da Episteme Grega a Biotecnociencia Contemporanea_190-646-1-Pb
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Acervo, Rio de Janeiro, v. 17, n 2, p. 71-84, jul/dez 2004 - pg.71
R V OR V O
H um consenso geral de que anossa contemporaneidade dominada por uma racionalidadeinstrumental que se caracteriza por um
positivismo tecnolgico como forma de cons-
cincia.1 Essa conscincia tecnificada confi-
gura-se como a principal forma do homem
atual em lidar com a sua realidade.
O pensamento da tradio grega por sua
vez concebia o homem por meio de duas
propriedades: como animal que pensa e
discorre (zon logikn) e como animal
po l t i co ( zoo po l i t ikn) . Pa ra o
aristotel ismo, o homem como zon
logikn se distingui dos outros seres da
natureza em virtude de ser possuidor de
Da Tchne e EpistmeGrega a Biotecnocincia
Contempornea
Rogrio Luis da Rocha SeixasRogrio Luis da Rocha SeixasRogrio Luis da Rocha SeixasRogrio Luis da Rocha SeixasRogrio Luis da Rocha SeixasMestre em Filosofia da Cincia pela UERJ.
Pesquisador do Centro de tica e Sociedade da UERJ.
Este artigo um estudo a respeito das
mudanas filosficas e histricas das
noes de tcnica e cincia, partindo da
tradio da tchne e epistme clssica
grega marcada pela atitude contemplativa de
conhecimento , e passando pelo advento da
cincia moderna que expressa o ideal de
interveno na natureza, muito presente at a
nossa atualidade, marcada pelo surgimento da
biotecnocincia.
Palavras-chaves: tchne, epistme,
biotecnocincia.
This paper is a study about the
philosophical and historic changes in
the notions of technique and science,
taking as starting point the tradition of
tchne and epistme classical Greek,
characterized by the contemplative attitude of
subjected, passing by the advent of modern
science which expresses the ideal of
intervention in nature, very present until our
actuality, marked by the appearance of
biotechnicscience.
Keywords: tchne, epistme, biotechnicscience.
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racionalidade, ou seja, um animal provi-
do da capacidade de lgos e, por este
motivo, capaz de reconhecer sua physis
atravs deste lgos, podendo desta for-
ma ultrapass-la, em parte, pelos costu-
mes que cria para sobreviver.2 Sob essa
condio, o homem pode adotar diferen-
tes posturas perante o mundo, ou me-
lhor, pode adotar duas formas importan-
tes de se relacionar cognoscitivamente
com a realidade, distinguindo-se dos ou-
tros animais. A contemplao (theora),
procurada em razo de si mesma e apre-
sentando como fim o conhecimento ver-
dade i ro das co isas , e a produo
(poiesis), da qual resultam objetos artifi-
ciais e cuja finalidade a pura utilidade
ou mero prazer. Essas posturas eram
representadas pela cincia (epistme) e
tambm pela fabricao (tchne). Estas
atividades expressam o finalismo racio-
nal humano ou, em outros termos, so
modos determinados de o homem ser.
Destacaremos as principais caractersti-
cas de cada uma dessas atividades.
A ATITUDE CONTEMPLATIVA E AEPISTME GREGA
Atheora ou contemplao, bus-cada em razo de si mesma,voltava-se para obter o conhe-cimento da verdade das coisas, melhor
dizendo, para aquilo que, nas coisas, era
imutvel, eterno, divino. Tanto o esprito
contemplador como a realidade contem-
plada emergem como realidades que tm
fim em si mesmo. De acordo com a natu-
reza das coisas contempladas, procedem
desta atividade trs cincias tericas ou
epistmicas: a fsica, a matemtica e a
filosofia primeira. A atividade terica se
constitui como a forma de saber que est
livre de qualquer fim que esteja fora de
si mesma, sendo realizada por este mo-
tivo, no mais alto grau, a liberdade hu-
mana, como a vida contemplativa que
tem um princpio e um fim em si mesma.
Ela no ordena qualquer tipo de ente a
relacionar-se com algo estranho ao seu
prprio ser, isto , no considera o ente
como meio para a fabricao de objetos
ou para realizao do prprio homem. A
theora permite que a realidade seja o
que ela e desta maneira possibilita a
sua manifestao no ser do homem que
a contempla. Essa forma de vida, funda-
da na pura contemplao, liberta-se in-
teiramente do julgar de alguma funcio-
na l idade e possu i uma f ina l idade
imanente a si.
Ana l i sando esse sent ido de v ida
contemplativa como realizadora da ple-
na realidade no ser, Manfredo de Oli-
veira afirma que a atitude terica, segun-
do Aristteles, a principal dimenso do
esprito subjetivo, na qual a verdade pos-
sui todas as condies para emergir.3
Devemos ressaltar que essa atitude te-
rica busca atingir uma realidade fora do
mbito da funcionalidade ou produtivida-
de, deixando-a ser da forma como ela se
apresenta, alm de manifest-la no seu
ser. Nesse sentido, pode-se afirmar que
a contemplao uma atitude de mani-
festao e revelao da verdade. A reve-
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lao da verdade, da realidade em seu
ser, a caracterstica que distingui o ho-
mem dos outros entes. Assim, a felicida-
de maior do homem, como ser racional,
no poderia ser encontrada em qualquer
outra coisa ou atitude que no fosse a
razo, necessitando ele cultivar a atitu-
de mais elevada: a contemplao.
A contemplao se configurava como a
tentativa de se compreender a totalida-
de, ao tematiz-la visando atingir uma
verdade no com o obje t ivo de
transform-la ou produzi-la, mas sim de
preserv-la em sua essncia. O homem
pode buscar a meta de atingir a plenitu-
de de seu prprio ser. Sendo assim, o
saber terico realmente possua um
status completamente diferente do que
hoje. A teoria estava voltada para as
coisas e para aquilo que nas coisas era a
prpria realidade em si, em ltima anli-
se, objetos cuja caracterstica fundamen-
tal a imutabilidade, que caracteriza a
prpria essncia do ser verdadeiro.
Outra importante caracterstica da teo-
ria para o pensamento grego era sua pre-
tenso de articular um saber apodctico
da ordem universal de todas as coisas;
estas coisas eram apresentadas ou co-
nhecidas em suas essncias, no se ca-
rac te r i zando como obje tos de
operacionalizao tcnica. Atravs des-
te saber, e somente por ele, o homem
poderia entrar em sintonia com a harmo-
nia do cosmos, assemelhando-se ao ser
divino, conseguindo atingir a reflexo por
meio da contemplao pura. Essa atitu-
de rene observao (theoro) e contem-
plao (theora), que se apresentam
como modos de desenvolver conhecimen-
to ou investigar o cosmos (o que significa
dizer a ordem, a harmonia, a consti-
tuio elementar da physis) mediante um
momento de sossego ou uma parada
(extasis) no exame intelectual e racional
dos fenmenos naturais. Determina-se a
base da construo da epistme grega,
em que agora o ponto de partida do filo-
sofar no se apia em critrios precisos,
mas na atitude terica.
Os primeiros filsofos no aceitaram
mais acriticamente as explicaes mticas
e religiosas, passando a contest-las e
iniciando, assim, o questionamento sobre
as causas naturais dos fenmenos. Com
essa atitude crtica e puramente racional,
comearam a estabelecer teses e teori-
as ousadas, que deram incio cincia
grega. Como a teoria uma forma de li-
dar com a realidade, exaltada como o
saber puro e superior, o homem enquan-
to dotado de lgos precisa demonstrar o
conhecimento que consegue apreender
atravs da contemplao, articulando
para esse fim um discurso racional.
Dessa forma, a epistme caracterizava-
se por ser logoterica, isto , ignorava
as matemticas e a experimentao, ou,
em outras palavras, no se preocupava
em desenvolver uma experincia ativa
com o intuito de isolar os fenmenos e
se relacionar com estes por meio de ins-
trumentos, interferindo ou modificando
suas essncias. A epistme logoteortica
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marcada por apresentar uma linguagem
natural, que corresponde especulao
e reflexo sobre o real e sobre a con-
dio do nosso ser inserido no mundo
por meio da linguagem. Para Plato a
epistme muito mais vlida do que a
opinio (doxa), porque as opinies de-
sertam da alma humana, de modo que
no tero grande valor enquanto no se
conseguir at-las com um raciocnio cau-
sal. Era expressa pelo lgos, que se ir-
radiava tanto no mbito do saber teri-
co (theora), que contempla a physis e
se eleva s realidades primeiras e divi-
nas, quanto no da sabedoria prtica
(phrnesis ) , que se const i tui como
theora prtica e rege o agir do homem
no mundo contingente da plis e do
ethos.4
Aristteles afirma que a epistme leva
ao conhec imento apenas da pura
factualidade de algo, ou seja, somente
o seu qu e no o porque. Desse
modo, este filsofo afirma o total des-
conhecimento da cincia em sua dimen-
so pragmtica. Para o estagirita a cin-
cia (epistme) se refere ao que no pode
ser diferente do que , ou seja, aos en-
tes necessrios e, portanto, qualificados
como eternos, isto , que nunca foram
gerados e no podero se corromper,
existindo por toda a eternidade.5 Esses
entes so o movente imvel e os corpos
celestes, compostos pelo ter, identifi-
cado como o elemento eterno por natu-
reza, ao contrrio dos corpos fsicos do
mundo material, constitudos pelos qua-
tro elementos corruptveis: ar, terra, fogo
e gua. O ente que pode ser demonstra-
do , o apode ik tn em te rmos
aristotlicos, o tema de ocupao da
cincia logoterica grega, em que o
silogismo que parte do universal em di-
reo ao particular e a induo que par-
te do particular em direo ao universal
so os procedimentos mais adequados
para o seu exerccio.6
preciso destacar a principal caracte-
r s t i ca des ta c inc ia f i l os f i ca
logoterica, em que se inseria uma pre-
ocupao extremamente terica no pla-
no cientfico. A sua viso cientfica cls-
sica de lidar com a realidade do mundo
e do prprio homem apresentava um
sentido no operativo, ou seja, a ima-
gem epistmica do existente no pode-
ria possibilitar qualquer tipo de interven-
o efetiva sobre o real que pudesse
alterar o equilbrio ou a ordem das coi-
sas. Para reforarmos essa afirmao,
podemos observar que a tchne ocupa-
va um espao importante, mas perifri-
co na plis grega, quando comparada
theora. Era um saber emprico, ligado
prtica de transformar ou modificar o
meio, no apresentando nada que pu-
desse ser oferecido ao saber logoterico
da epistme. A cincia terica se preo-
cupa em tratar dos objetos cuja carac-
terstica fundamental a imutabilidade
das coisas, configurando-se como a pro-
priedade que determina a essncia des-
sas coisas, o que caracteriza o ser ver-
dadeiro das coisas.
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A TCHNE GREGA
Ofilsofo e historiador da cin-cia Gilbert Hottois ressalta queo par teoria/tcnica umadas grandes construes do pensamento
ocidental. Como sempre acontece com
qualquer tipo de par filosfico (esprito/
matria, realidade/aparncia etc.), um
dos termos tradicionalmente mais va-
lorizado em desfavor do outro: inicial-
mente o primado pertenceu teoria, fato
totalmente diferente do que ocorre atu-
almente, em que esta relao se inver-
teu completamente.7
O pensamento grego priorizava a vida
contemplativa ou terica como a forma
mais pura e importante para o homem
alcanar o conhecimento. O conhecimen-
to prtico ou tcnico tambm tinha o seu
valor, porm muito mais insignificante e
mesmo desprezvel, segundo Hottois,
para a plena realizao humana no seio
da plis.8 A origem do termo tchne
advm do verbo tchton, que se refere
habilidade de produo manual, arte,
manipulao de metais. Em A teogonia,
de Hesodo, uma passagem destaca que
o deus Hefestos o sbio nas artes
(deins) entre todos os descendentes do
deus Uranos: Hera por raiva e por desa-
fio a seu esposo, no unida em amor,
gerou o nclito Hefestos nas artes, brilho
parte de toda a raa do cu.9
O trabalho da terra no estava relacio-
nado com a produo por meio da tchne,
mas se constitua na verdade como uma
forma de esforo humano relacionado ao
sagrado. Era por meio do esforo no tra-
balho fatigante da colheita que o homem
entrava em contato com as foras divi-
nas, as foras da terra e da colheita. Mas
Plato alerta, em Grgias, que aquele
que no consegue explicar o sentido ver-
dadeiro das coisas de que se ocupa e nem
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indicar a causa de cada uma, no faz
tchne.10 H, portanto, um fazer que
alagon prgma (fazer onde o lgos no
est adequadamente ordenado), que ig-
nora a razo das coisas e sua natureza
ltima, conhecendo apenas sua utilidade.
Aristteles define que no plano prtico a
tchne uma produo (poesis), isto ,
ela o trazer existncia por parte do
arteso algo que no existia na nature-
za.11 Desse modo uma atividade prti-
ca, intermediada pela razo, que busca
encontrar o porque das coisas. Ento
a tchne imita a physis, no no sentido
ingnuo de acharmos que esta possa ser
imitada, pois segundo os gregos este fato
seria totalmente desprovido de sentido,
pelo motivo de acreditarem que a physis
no era esttica, mas sim uma fora di-
nmica, criativa e produtiva presente tan-
to no ser do homem quanto no mundo.
Faz-se a referncia mmesis (imita-
o) que imita a physis ao produzir uma
unio entre uma forma (idos) e a ma-
tria (hle), na qual se manifesta an-
loga quela existente nos entes fsicos
que na verdade so compostos de for-
ma e matria.12 Este ponto muito im-
portante para diferenciarmos o conhe-
cimento contemplativo do produtivo. A
epistme refere-se ao que no pode ser
diferente do que , ou seja, aos entes
necessrios e, portanto, eternos, imu-
tveis, isto , aos entes que nunca fo-
ram gerados e que nunca se corrom-
pero, dado que exist iro por toda
eternidade. S podem ser conhecidos
atravs da atitude terica. A tchne,
por outro lado, se ocupa daquilo que
pode ser diferente do que , ou seja,
da contingncia, ocupando-se do que
pode ser produzido (poitetn). O prin-
cpio de movimento e mudana de algo
produzido no pode residir no prprio
ente produzido, como no caso dos en-
tes naturais, mas sim naquele que o
produziu. A tchne definida como dis-
posio (hxis) acompanhada de lgos
que dirige o produzir.13
Existia uma diferenciao hierrquica de
conhecimentos, onde todos se estabele-
cem como importantes para a formao
do homem grego. A tchne no se ocu-
pa do que necessrio e imutvel, mas
somente do que pode ser criado. Tam-
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bm no pode se ocupar do que gera
por si mesma e esta autogerao o que
caracteriza a fora criadora da nature-
za (physis) e a prpria essncia dos se-
res naturais.14 Talvez por essa razo se
apresentasse como um conhecimento
mais perifrico na cultura grega. Mas o
arteso para exercer sua arte segundo
o lgos pratica sua virtude ao contribuir
para o bem da plis e embora, hierar-
quicamente, no esteja no mesmo nvel
do conhecimento cientfico, sua praxis
no desprezvel ou inferior, contribu-
indo tambm para o conhecimento, at
onde sua especialidade produtiva permi-
ta alcanar.
O SABER OPERATIVO E AS BASES DACINCIA MODERNA
O historiador Pierre Vernant as-sinala o principal trao dedis t ino entre a razoargumentativa dos gregos e a razo que
emerge com o advento dos tempos mo-
dernos: enquanto a ltima se volta para a
explorao do meio fsico, utilizando qua-
dros interpretativos e bases experimen-
tais slidas, com o intuito de dominar e
intervir na natureza, a razo grega, como
foi demonstrado, tinha apenas o objetivo
do homem enquanto ser relacional com o
meio e com outros homens.15
Aristteles buscou demarcar bem o cam-
po da demonstrao cientfica rigorosa e
do clculo, situando-o em outro patamar
diverso da argumentao. No primeiro h
o emprego de raciocnios dialticos, fun-
dados sobre opinies comumente com-
partilhadas por muitos homens. O filso-
fo deve buscar um nvel de preciso com-
patvel com a natureza dos assuntos tra-
tados, pois insensato aceitar racioc-
nios apenas provveis da matemtica ou
querer de um orador demonstraes ri-
gorosas.16 Essa afirmao aristotlica
retrata muito bem uma outra caracters-
tica presente na epistme logoterica
grega: ignorar as matemticas e a expe-
r imentao, i s to , a exper inc ia
provocada que isola os fenmenos e se
relaciona com estes auxiliada por instru-
mentos.
O advento da cincia moderna, segundo
Hottois, foi acompanhado por mudanas
filosficas, culturais e propriamente cien-
tficas, quando ento se processa uma
alterao radical no paradigma do conhe-
cimento humano, causada pelo estabe-
lec imento da c inc ia exper imenta l
galileiana, a partir do sculo XV e em-
pregada no sculo XVII.17
O historiador da cincia Alan Chalmers
afirma que Galileu introduziu a tcnica
de testes para se certificar da validade
das leis cientficas sob condies artifici-
ais de uma experimentao controlada.18
Agora se podia justificar a ordem fsica
por trs do mundo catico da natureza,
atravs da experimentao e emprego de
tcnicas. A eventual fabricao e utiliza-
o do telescpio de Gali leu foram
cruciais para a abertura de um campo
novo de dados cientficos, tornando re-
dundante os dados obtidos pela mera
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especulao e contemplao.
Esta mudana de paradigma tambm foi
acompanhada por um novo projeto filo-
sfico que se contraps ao pensar filos-
fico pela argumentao demonstrativa. A
proposta filosfica moderna tinha a pre-
tenso de extrair concluses verdadeiras
de premissas verdadeiras em todos os
campos do conhecimento humano, recu-
sando a mera especulao.
O pensamento cartesiano faz uma pro-
funda crtica filosofia especulativa e, ao
mesmo tempo, valoriza o ideal de inter-
veno atravs da tcnica: Em vez des-
sa filosofia especulativa que se ensina
nas escolas, pode encontrar-se a uma
prtica, que conhecendo o poder e as
aes do fogo, da gua, do ar, dos as-
tros, dos cus e de todos os outros cor-
pos que nos cercam, to distintamente
como conhecemos os diversos misteres
de nossos artesos, os pudssemos utili-
zar igual forma em tudo aquilo para que
sirvam, tornando-nos senhores e possui-
dores da natureza.19 Descartes conside-
ra que o verdadeiro conhecimento tem
como suporte a clareza das relaes
matemticas, as quais constituem regi-
es de certezas tais que, mesmo sob o
sono, seria impossvel e inconcebvel
coloc-las em dvida.20 Assim como afir-
mava o filsofo em suas Meditaes, es-
tivesse ele dormindo, os nmeros 2 e 3
somariam sempre 5 e um quadrado nun-
ca poderia ser pensado enquanto figura
formada por mais de quatro lados. Com-
prometido, acima de tudo, com a busca
do verdadeiro conhecimento, isento de
dvidas, o cogito estabelece um mtodo
ou instrumento como uma das principais
caractersticas da cincia moderna: a
matematizao.
Francis Bacon, por sua vez, destaca
que a postura correta seria como fa-
zem as abelhas, que a recolher a ma-
tria-prima das flores e dos jardins do
campo, a transforma e digere, signifi-
cando dizer que: sem os dados da rea-
lidade observvel, o intelecto humano
nada pode produzir de mais efetivo em
relao ao saber. Deve-se propor, en-
to, um novo mtodo cientfico que pre-
cisa se libertar da esterilidade cientfi-
ca da escolstica medieval, ainda con-
taminada pelo p latonismo contem-
p l a t i vo e pe l o f o rma l i smo l g i co
aristotlico, que segundo o filsofo in-
gls tornaram-se obstculos para a
verdadeira destinao do conhecimen-
to cientfico: tornar-se til vida da
humanidade.21 Assim, sem a experin-
cia, a razo pouco pode avanar em sua
meta de conhecimento, de sorte que na
viso baconiana, o mtodo investigativo
mais adequado consiste em realizar
uma progresso contnua, passando dos
fatos particulares aos axiomas meno-
res, destes aos mtodos e por fim aos
de maior generalidade.
O caminho do verdadeiro conhecimento
aberto pela atividade experimental or-
denada, permitindo a construo de uma
srie de axiomas que originaro novos
experimentos. Dessa maneira, evidencia-
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se a outra caracterstica da cincia mo-
derna: a experimentao. Do ponto de
vista filosfico, esta aproximao entre
Bacon e Descartes, que se configura
como impossvel em muitos pontos, coin-
cide quanto avaliao da nova cincia,
em que a tcnica no apenas valoriza-
da como saber emprico, mas concede o
poder ao homem de intervir e dominar a
prpria natureza. Dessa forma, podemos
ressaltar o deslocamento do fazer tcni-
co para uma posio de saber que a
tchne grega no possua.
Bacon muito claro quanto nova ma-
neira de encarar a tcnica: a finalidade
da tcnica o domnio sobre as coisas,
cada vez mais acrescido. Mas preciso
agir com o objetivo de estender os limi-
tes do imprio do homem sobre a natu-
reza inteira e executar tudo que lhe
possvel.22 A pura contemplao da na-
tureza, valorizada pelos gregos, perde
espao para a capacidade operatria da
nova cincia. Esta comparao entre co-
nhecimento terico e tcnico, que redun-
da em vantagem para o tcnico, demons-
tra a inverso do lugar da tchne no pen-
samento cientfico da modernidade, em
comparao ao logoteorismo grego.
Desse modo, a cincia moderna, passou
a apresentar uma dimenso racional e
operacional, transformando no apenas
a concepo de teoria, mas tambm da
prtica e, conseqentemente, da relao
teoria/prtica. A cincia moderna nasce,
assim, do esgotamento da especulao
e da contemplao, que ainda se conser-
vava como herana da Antiguidade no
pensamento medieval.
DA TCHNE EMERGNCIA DABIOTECNOCINCIA
Como destacamos anteriormente,ocorreu um deslocamentoepistmico com o surgimento dacincia moderna, em que a tchne grega
deixa de se constituir como um saber
emprico limitado plis, ausente de ca-
pacidade transformadora e manipuladora
da natureza, passando a se posicionar no
eixo central traado pela linha que unifica
theora e cosmos, atravs da mediao do
discurso cientfico. Esse ponto do desloca-
mento vital para entendermos a nova
relao entre cincia e tcnica, porque o
lgos teortico, distinto da praxis e da
tchne, transformou-se em um lgos
justificador e ordenador do moderno sa-
ber tcnico. Esse deslocamento consagra
definitivamente uma ruptura irreparvel
entre o lgos contemplativo da cincia
antiga e o lgos tcnico da cincia mo-
derna. A posio central ocupada pela
tchne como dimenso estrutural do lgos
epistmico moderno alterou completa-
mente a inteligibilidade do homem em
relao ao real.
O mundo das essncias inteligveis em si,
a cuja ordem universal e eterna, o ho-
mem grego estava submetido, configuran-
do-se como objeto de contemplao, ce-
deu lugar ao inteligvel construdo pela
prpria cincia, sendo a sua verdade ago-
ra verificvel, segundo os procedimentos
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tcnicos e hipottico-dedutivos que cons-
tituem a estrutura emprico-formal da
nova cincia. O mais importante que a
teoria cientfica, agora em primeiro pla-
no, passa a se determinar como a condi-
o de possibilidade de interveno tc-
nica com eficincia. O mundo, unidade
de natureza e histria, se transforma no
mundo do homo faber, construdo por ele:
tudo produto de sua interveno, me-
diada pela racionalidade prpria da cin-
cia moderna. Essa mutao impulsiona a
construo do lado operativo do projeto
cientfico, arrancando-o do empreendi-
mento simplesmente logoterico da con-
templao e da linguagem natural, pro-
vocando uma ruptura do nosso prprio
entendimento enquanto seres-naturais-
no-mundo.
Hilton Japiassu destaca que nes-ta nova re lao o te rmotecnocincia usado para ex-primir a unidade profunda da cincia e
da tcnica ou para significar que a tc-
nica passa a se constituir como uma
manifestao visvel do fenmeno cien-
tfico.23 Significa dizer que a distino
clssica entre a tchne, definida como
um mero saber emprico, em detrimen-
to ao saber cientfico, visto como sa-
ber sistemtico, racional e geral, pra-
ticamente deixou de existir, pois nos
dias atuais os plos cientfico e tcni-
co so indissoluvelmente emaranha-
dos. Com o advento das sociedades in-
dustrializadas, a inverso entre a rela-
o tcnica e cincia vai culminar na
concepo do homem como ser para
tcnica. A grande mudana causada
pela ruptura tecnocientfica o seu tipo
de mediao, que no se caracteriza
mais por ser somente simblica, mas
por ter se tornado, sim, extremamen-
te operatria, visto que este mundo se
t o r n o u u m c a m p o d e o p e r a o
tecnocientfico. Ento, a capacidade do
homem moderno em conhecer a natu-
reza no ma is se f i xa ao s imp les
theoreo, pois agora o conhecimento
um modo de permitir a interveno na
natureza para transform-la.
No somente a cincia, mas todas as
formas simblicas da cultura passam a
serem concebidas como f i lhas da
tecnocincia. Sua atividade no se res-
tringe mais ao mundo dos objetos ma-
teriais, se estendendo tambm s ativi-
dades dos indivduos, aos fins e mode-
los da sociedade e da cultura. A pr-
pria noo de trabalho, por exemplo,
sofre uma nova interpretao devido ao
advento da tecnocincia. Na dialtica do
senhor e do escravo, Hegel demonstra
que o mestre termina por nada mais
saber e por converter-se no escravo de
seu escravo; enquanto o escravo desen-
volveu modos de sobreviver na nature-
za, trabalhando de forma dolorosa.
Dessa forma o escravo descobre em seu
trabalho, sua liberdade e se converte em
mestre, pois ele conhece os mtodos
tcnicos de transformar a natureza para
tentar vencer a sua misria. Essa noo
de trabalho, segundo Japiassu, equivale
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noo atual de tecnocincia.24
O advento da tecnocincia radicaliza a
mutao do projeto ocidental do saber e
agir que est na origem da cincia mo-
derna. Sua ruptura com a c incia
logoterica antiga caracterizou o primado
do operatrio matemtico e experimen-
tal sobre o conhecimento especulativo e
contemplativo. Ento, pode-se afirmar que
a tchne antiga era, essencialmente, um
conjunto de saber-fazer de ordem prti-
ca, que possua um carter altamente ra-
cional, porm desprovido de uma verda-
deira justificao terica. O correlato do
fazer tecnocientfico a plasticidade do
objeto: o possvel a priori (terico) ilimi-
tado se ope ao correlato logoterico da
cincia ontolgica que era a essncia e o
sentido do objeto dado.
Distintamente dos gregos, a racionalidade
tecnocientfica, presente no agir humano
moderno, significar a eficincia na con-
secuo dos meios necessrios satis-
fao dos dese jos ; produz i r ou
reestruturar, artificializar ou recriar
tornam-se aes possveis de realizao
por meio da competncia tecnocientfica.
A felicidade, que agora consiste na satis-
fao dos desejos, denota uma condio
de posse da natureza, tornando-se as-
s im cond io necessr ia para hu -
manizao do homem.
Afirma-se uma profunda mutao no co-
nhecimento humano. Primeiro, a concep-
o de uma teoria contemplativa do eter-
no e do imutvel cedeu lugar teoria
legitimadora da possibilidade do domnio
sobre a natureza e as condies de
reestrutur-la de acordo com o novo pro-
jeto da ao humana. Em segundo lugar,
a nossa era tecnocientfica assistiu a
uma mutao qualitativa da natureza da
ao humana.
A d i f e rena en t re a na tu reza da
tecnocincia moderna em comparao
tchne grega pode ser assim resumida:
a poca da tchne grega era determina-
da pela imutabilidade da ordem csmi-
ca que surge como pano de fundo origi-
nrio da ao humana, a qual se quedava
no interior dos muros da plis e pressu-
punha uma correspondente permanncia
e inalterabilidade da natureza. Isto ,
no se justificava para o homem grego
a tentativa de modificar acentuadamen-
te a ordem da physis. O mais importan-
te era a autoconstruo e realizao do
homem atravs do exerccio da praxis
tica no seio da plis. Por meio da sua
capacidade de interveno, alterou pro-
fundamente a ao humana, tecno-cien-
tif icamente potencializada, podendo
acarretar danos natureza e ao prprio
ser humano.
Esta nova situao reflete uma idia que
Heidegger debatera na sua concepo da
Gestell, que funcionaria como uma esp-
cie de dispositivo envolvente da ao
humana, desfazendo a antiga oposio
entre sujeito ativo e objeto no-humano
passivo e completamente submisso
ao instrumental, de tal forma que am-
bos acabam por se indiferenciar, imersos
que se encontram numa igual disponibili-
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pg.82, jul/dez 2004
A C E
dade.25 Essa anlise heideggeriana, apa-
rentemente, qualifica o homem como um
mero instrumento da tecnocincia, como
se esta possusse uma vontade prpria
que fosse exercida sobre ns. Contudo,
discordando dessa afirmao, no pode-
mos esquecer que como seres racionais
e tambm dotados de vontade s nos
tornamos passveis de instrumentalizao
se assim for de nosso desejo, ao aten-
dermos uma necessidade ou se formos
alienados de nossa capacidade de exer-
cer a liberdade.
A tchne grega t ransformou-se em
tecnocincia como meio do prprio agir
humano. Entre o natural e o artificial no
existe mais diferena: o natural ab-
sorvido pela esfera do artificial. A as-
sim denominada natureza e seus entes
no humanos transformam-se em obje-
tos de manipulao e interveno. Mas
o novo projeto da praxis humana no se
limitou ao extra-humano. O homem de-
seja controlar o caminhar de sua pr-
pria evoluo no s para preservar a
integridade da espcie, mas tambm
para modi f ic - la , com o intu i to de
aperfeio-la. A tecnocincia ultrapassou
o domnio do no-humano e alcanou a
condio de ser do humano. Agora so
os prprios mecanismos do fenmeno
vital que precisam ser conhecidos, para
se tornarem passveis de interveno.
Nos ltimos tempos, certos progressos
em biologia molecular e engenharia ge-
ntica estabeleceram uma relao mais
ntima com a praxis tecnocientfica. Des-
sa l i gao mais n t ima emerg iu a
biotecnocincia, como um novo saber-
fazer que se constitui pela aliana entre
o saber logoter ico e o saber
biotcnico.26
O bilogo Jean Bernard destaca que, na
p r ime i r a me tade do scu lo XX ,
deflagrou-se um rigoroso e acelerado
dinamismo no campo da biologia. A
biotecnocincia surgiu como uma nova
forma especfica de saber-fazer huma-
no constituda pelo estudo e a transfor-
mao programada dos seres vivos, com
o objetivo de satisfazer necessidades,
projetos e anseios do homo faber. Essa
nova competncia, nascida no perodo
do desenvolvimento tecnocientfico da
biologia, foi proporcionada pela alian-
a entre a revoluo biolgica (cientfi-
ca) e a teraputica (tcnica).
A revoluo teraputica possuiu um ca-
rter puramente tcnico e permitiu in-
tervir nos processos de adoecimento,
tornando a medicina curativa e no
mais pal iat iva. Essa t ransformao
acarretou a passagem da fase pr-ci-
entfica dos cuidados ou da arte mdi-
ca que tinha uma capacidade escassa
de salvar e prolongar a vida. Desse
modo, se constitui em uma nova efic-
cia curativa que contribuiu para alte-
r a r s u b s t a n c i a l m e n t e o p e r f i l
epidemiolgico da populao humana,
diminuindo a mortalidade infantil, au-
mentando a esperana de vida e a ca-
pacidade de enfrentar os processos
mrbidos, subtraindo, assim, parcial-
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Acervo, Rio de Janeiro, v. 17, n 2, p. 71-84, jul/dez 2004 - pg.83
R V OR V O
N O T A S
1. Manfredo de Oliveira, A filosofia na crise da modernidade, So Paulo, Abril Cultural,1995, p. 74-75.
2 . Aristteles, tica a Nicmaco, Livro X, 1.179 a 35, (Os pensadores), So Paulo, AbrilCultural, 1995, livro II, 1.103b, p. 26-28.
3 . Manfredo de Oliveira, A tica na racionalidade moderna, So Paulo, Edies Loyola,1993, p. 96-98.
4 . Aristteles, tica a Nicmaco, livro I, 3, 1.095 a 5-6, (Os pensadores), So Paulo, AbrilCultural, 1995, livro I, 1.095a, p. 5-6.
5 . Plato, A Repblica, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1998, A64.
6 . Aristteles, tica a Nicmaco, (Os pensadores), So Paulo, Abril Cultural, 1995, 1.139b,p. 27-31.
7 . Aristteles, Metafsica, So Paulo, Edies Loyola, 2001.
8 . Gilbert Hottois, O paradigma biotico, Lisboa, Salamandra, 1990, p. 11-12.
9 . Hesodo, A teogonia, Niteri, EDUFF, 1996, p. 50-51.
10. Gilbert Hottois, op. cit., p. 13.
11. Plato, Grgias, Rio de Janeiro, Globo, 1955, p. 511c.
12. Aristteles, Fsica, s.l., s.ed., s.d., p. 22-21.
13. Aristteles, Metafsica, op. cit.
14. Aristteles, tica a Nicmaco, op. cit.
mente o ser humano ao acaso da mera
seleo natural.27
A revoluo biolgica, posterior tera-
putica, foi de carter essencialmente
cientfico. Ela ocorreu devido descober-
ta da estrutura do cdigo gentico, isto
, a informao que governa os proces-
sos vitais.28 Os seres vivos, inclusive o
homem, se transformaram em objeto de
conhecimento, quando o desejo de conhe-
cer os mecanismos do programa vital se
tornou possvel.
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A C E
15. Pierre Vernant, Mito e pensamento entre os gregos, So Paulo, Companhia das Letras,1996, p. 290.
16. Aristteles, tica a Nicmaco, op. cit.
17. Gilbert Hottois, op. cit., p. 5-6.
18. Alan Chalmers, A fabricao da cincia, So Paulo, UNESP, 1994, p. 50-54.
19. Ren Descartes, Discurso do mtodo, So Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 67-68.
20. Ren Descartes, Meditaes, (Os pensadores), So Paulo, Abril Cultural.
21. Francis Bacon, Nova Atlntida, So Paulo, Nova Cultura, 1988.
22. Francis Bacon, Novum Organum, So Paulo, Nova Cultura, 1988.
23. Hilton Japiassu, Racionalidade tecnocientfica e cultura, Revista Kriterion, Belo Horizon-te, UFMG, v. 28, n. 77, jul.-dez. 1986, p. 77-105.
24. ibidem, p. 100-105.
25. Martim Heidegger, Ensaios e conferncias, a questo da tcnica, Petrpolis, Vozes, 2001,p. 11-39.
26. Fermim R. Schramm, A terceira margem da sade, Braslia, UNB, 1996.
27. Jean Bernard, Biotica, Lisboa, Publicaes EuropaAmrica, 1994, p. 11-33.
28. ibidem, p. 34-45.