DA ABERTURA DA SUCESSÃO A PARTIR DA MORTE ENCEFÁLICA
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DA ABERTURA DA SUCESSÃO A PARTIR DA MORTE ENCEFÁLICA
Celina Kazuko Fujioka Mologni*
Ana Pieroli Dias**
RESUMO
O artigo 6º do Código Civil estabelece que a personalidade da pessoa natural termina com a morte. A partir daí, os efeitos da extinção da personalidade se operam, dentre eles, a abertura da sucessão. O droit de saisine determina que no exato momento da morte do autor da herança a posse e a propriedade do seu patrimônio transmitem-se aos seus herdeiros. Hoje, a medicina moderna estabelece um novo conceito de morte, o da morte encefálica, em que ocorre a ausência de atividade do cérebro e do tronco cerebral, este responsável pela coordenação das funções vitais, tais como, a respiração e a circulação que, apesar da morte encefálica, podem ser mantidas devido ao uso de aparelhos e medicamentos. O Direito se omitiu acerca da possibilidade de o princípio de saisine surtir efeitos a partir da morte encefálica. No entanto, considerou como morto o indivíduo que teve a morte encefálica constatada ao permitir, a partir da comprovação da parada de atividade cerebral, a disposição de seus órgãos para transplantação na Lei nº. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Assim, visando estabelecer apenas um critério legal para caracterização da morte para efeitos sucessórios, cujo pressuposto é a parada cárdio-respiratória, faz-se mister que a morte cerebral também possa permitir a abertura da sucessão de seus bens, pois é considerada morte em caso de Lei de Transplantes.
Palavras-chave: Fim da personalidade. Morte encefálica. Sucessão. Transplantes.
ABSTRACT
Art. 6º of the Civil Code establishes that the personality of the natural person ends with death. From this moment, the effects of the extinction of the personality operate, among which is the opening of succession. The droit de saisine determines that in the exact moment of the death of the ascendant, the possession and the dominium of their assets belong to their heirs. Nowadays, the modern medicine established a new concept of death, the brain death, which happens with the lack of activity in the brain and in the brain trunk which is responsible for the coordination of the most important vital functions such as breathing and circulation which, besides that, may be maintained with the use of appliances and medications. The law is omissive in the possibility of the saisine principle have effects after the brain death. However, it considered dead the person who had the brain death acknowledged when allowing, from the verification of the lack of brain activity, the permission for transplant in Law nº 9434/97. This way, it is essential to allow the person who had brain death detected to open succession of their assets, applying by analogy, the Transplant Law understanding.
Key words: Personality. Succession. Brain death. Transplant.
* Docente do curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]. ** Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Email: [email protected].
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1 INTRODUÇÃO
O Código Civil estabelece em seu artigo 6º que a personalidade da pessoa natural
extingue-se pela morte. Assim, aberta a sucessão, os herdeiros receberão, imediatamente, a
posse e a propriedade da herança (DINIZ, 2002, p. 199), cujo fenômeno jurídico é conhecido
como droit de saisine, que determina que o momento da transmissão da herança é o exato
momento da morte real.
No entanto, verifica-se a ausência de previsão expressa no Direito quanto ao exato
momento da morte para que o droit de saisine surta seus efeitos, se quando da morte
encefálica ou somente quando da parada cárdio-respiratória.
Nos tempos modernos, com os avanços da medicina, a pessoa que possui morte
cerebral constatada e não pode mais prover sua respiração e batimentos cardíacos
autonomamente, pode “sobreviver” através do uso de aparelhos que substituem, de forma
artificial, as principais funções vitais do organismo. Entretanto, a medicina considera que esta
pessoa está morta.
O Direito considera a morte na Lei de Transplantes, ao autorizar a retirada de órgãos
de pessoas com a morte cerebral constatada para fins de transplantação. No entanto, não
determinou se a posse e a propriedade do patrimônio de tal indivíduo, que esteja neste estado
de falecimento das atividades do cérebro, são transferidas a seus herdeiros.
A importância de se definir a possibilidade ou não da abertura da sucessão com a
morte cerebral reside no caso em que uma pessoa tem a morte cerebral constatada, mas
mesmo assim, continua no hospital às custas de aparelhos. Neste meio tempo, seu cônjuge
falece por parada cárdio-respiratória irreversível. Assim resta a dúvida: quem faleceu
primeiro? A resposta de tal questionamento constitui o principal objetivo deste trabalho que
foi desenvolvido de modo a se demonstrar como o aplicador do Direito poderá agir diante de
um caso como este.
Para tanto, abordam-se, inicialmente, o começo e o fim da personalidade jurídica da
pessoa natural. Posteriormente, é realizado estudo acerca da sucessão e seus requisitos, do
princípio de saisine e da ordem da vocação hereditária, levando-se em consideração a
sucessão do cônjuge sobrevivente .
Após este estudo jurídico, faz-se o estudo médico da morte encefálica: como surgiu e
seu conceito.
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Dentro deste conceito, apresentam-se posicionamentos contrários em relação a este
tipo de morte, além do posicionamento do Direito, tendo em vista a Lei de Transplantes e a
Lei de Registros Públicos.
Por fim, apresenta-se o caso que evidencia a necessidade do estudo realizado diante
da lacuna existente no Direito, além de ser demonstrada, na conclusão, a solução para tal caso.
2 PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA NATURAL
2.1 Início da Personalidade
Personalidade, de acordo com os ensinamentos de Beviláqua (Apud RODRIGUES,
2004, p. 35) é a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e
contrair obrigações.
O artigo 1º do Código Civil de 2002 estabelece que toda pessoa é capaz de direitos e
deveres na ordem civil, e isso é chamado de personalidade.
A personalidade da pessoa natural tem início quando do seu nascimento com vida,
isto é, após o desligamento do cordão umbilical, de acordo com o enunciado no artigo 2º
do Código Civil de 2002 que, também, põem a salvo os direitos do nascituro (já concebido,
portanto, ainda no ventre materno).
A aplicabilidade prática deste dispositivo se dá nos casos em que um indivíduo falece
e deixa esposa grávida. Se a criança não nascer com vida, os bens do de cujus passarão para
seus herdeiros, seus pais por exemplo; se a criança nascer com vida e morrer logo após
(dúvida esta dirimida através da docimasia hidrostática de Galeno), os bens do de cujus
passarão para a criança no momento em que esta nasceu com vida e, no momento de sua
morte, os mesmo passarão para sua herdeira, a mãe.
Assim verifica-se que, a partir do nascimento, a pessoa humana se torna titular de
direitos e obrigações, adquire a capacidade de direito, que, de acordo com Maria Helena Diniz
é “[...] aptidão, oriunda da personalidade, para adquirir direitos e contrair obrigações na vida
civil [...]” (DINIZ, 2002, p. 139).
Tal capacidade, denominada de direito, é inerente ao ser humano, não podendo ser
dele retirada. No entanto, o seu exercício, denominado de capacidade de fato, sofre algumas
restrições legais ligadas à maturidade e ao discernimento dos atos da vida civil. A maioridade,
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desenvolvimento e saúde mental pressupõem a plena capacidade, tanto que os menores e os
deficientes mentais devem ser representados na prática dos atos da vida civil. A partir do
momento em que tais restrições desaparecem, pode-se afirmar que o indivíduo adquiriu a
capacidade de fato, podendo realizar, por si só, as ações que, antes, dependiam de
representação e ou assistência.
2.2 Extinção da Personalidade
O Código Civil de 2002, na primeira parte de seu artigo 6º, estabelece o momento em
que se dá a extinção da personalidade, e este momento é a morte da pessoa natural: “Artigo 6º
A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta quanto aos ausentes, nos
casos em que a lei autoriza a abertura da sucessão definitiva”.
A partir daí, os direitos e as obrigações adquiridos no nascimento são,
automaticamente, encerrados.
A morte de que trata o referido artigo é a morte real, comprovada com a existência
do cadáver, e com a expedição do atestado de óbito, de conformidade com o disposto no
artigo 77 da Lei de Registros Públicos, Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973, que assim
estabelece a respeito:
Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou, em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte (BRASIL, 1973).
Quando não há possibilidade de prova da morte real, através do cadáver, o
ordenamento jurídico brasileiro admite casos de morte presumida. É o caso do ausente, que
vem previsto na segunda parte do art. 6º do Código Civil.
A respeito, afirma Monteiro (2003, p. 79):
Por outras palavras, admite-se a presunção se já decorridos dez anos depois de passada em julgado a sentença que concedeu a abertura da sucessão provisória. Da mesma forma, não pode ela ser recusada quando o ausente conta oitenta anos de nascido e de mais de cinco datam as últimas notícias suas. Em ambos os casos, podem os interessados requerer a sucessão definitiva (arts. 37 e 38).
Além disso, o artigo 7º de referido diploma legal dispõe outras possibilidades de
morte presumida, sem decretação de ausência e feita através de ação declaratória:
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Art. 7º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até 2 (dois) anos após o término da guerra.Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.
O artigo 88 da citada Lei de Registros Públicos também prevê a justificação de óbito,
quando houver certeza da morte em alguma catástrofe, e não sendo possível encontrar o corpo
do falecido:Art. 88 Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame.Parágrafo único. Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campanha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do artigo 85 e os fatos que convençam da ocorrência do óbito.
O Código Civil Brasileiro, e, em especial, o artigo 6º, deixou de prever o exato
momento da morte real, se quando da morte encefálica, se quando da parada cárdio-
respiratória.
Para a abertura da sucessão, tal diferenciação faz-se imprescindível, por força do
disposto no artigo 1784 do Código Civil, o qual prevê a transmissão automática da posse e
propriedade, droit de saisine, isto é, a herança do de cujus passa para os seus sucessores,
independentemente de qualquer outro ato ou providência, sendo este o principal objeto de
estudo deste trabalho, em especial entre cônjuges.
3 SUCESSÃO
3.1 Fundamentos
A palavra sucessão indica uma substituição. Para o Direito, indica exclusivamente a
substituição do titular de um patrimônio e de direitos e obrigações, devido à sua morte real ou
presumida, ao fim de sua personalidade natural.
A sucessão reveste-se, exclusivamente, de cunho patrimonial e um de seus
fundamentos é a idéia de direito de propriedade, pois segundo Monteiro (2003, p. 8) não
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existe propriedade que termine com a morte do titular e não se transmita a um sucessor. A
família deve ter o direito de arrecadar os bens deixados por um de seus membros para que
sejam conservadas as unidades econômicas e a coletividade nuclear, como célula do Estado.
Outro fundamento reside no interesse do próprio Estado em não arcar com mais um
gravame decorrente de um patrimônio carente de titular, além disso, membros de família
deixariam de acumular bens, de produzir, se soubessem que, após sua morte, seus bens
passariam para a esfera de propriedade do Estado (que poderia fazer mau uso destes bens) e
sua prole ficaria desprovida de recursos para seu conforto e bem-estar (VENOSA, 2004, p.
18).
Assim, considera-se que a sucessão é um combustível do trabalho humano, no
sentido de estimular a acumulação de bens para que os mesmos possam ser transferidos aos
herdeiros do de cujus.
3.2 Requisitos para Abertura da Sucessão e Transmissão dos Bens do De Cujus
O Direito proíbe herança de pessoa viva (viventis nulla hereditas) (PEREIRA, 2005,
p. 17). Assim, o requisito essencial para a abertura da sucessão é a ocorrência de um fato
jurídico determinante: a morte natural do autor da herança.
Como não se pode idealizar um direito subjetivo despojado de titular, tal direito é
transmitido aos herdeiros legítimos e testamentários do de cujus no instante de sua morte
(RODRIGUES, 2004, p. 11).
O exato momento da morte deve ser apurado biologicamente pela Medicina Legal e
juridicamente pela certidão de óbito confeccionada pelo Oficial do Registro Civil (PEREIRA,
2005, p. 17), o qual deve seguir o regulamento da Lei dos Registros Públicos (Lei nº
6.015/73).
Entretanto, faz-se impossível a determinação de um exato momento de morte,
levando-se em consideração que a mesma consiste numa cadeia seqüencial de processos. Nos
dizeres de França: “[...] o momento da morte não pode ser objeto de diagnóstico porque ele
não é evidente nem avaliado. Mas pode-se determinar a morte desde que se possa confirmar a
ausência de sinais de vida organizada” (FRANÇA, 2001, p. 311). Os casos de morte
encefálica serão estudados mais detalhadamente adiante.
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Após a realização de todos os exames necessários para a constatação da morte
cerebral, de acordo com a Resolução nº 1.480/97 do Conselho Federal de Medicina, os dois
profissionais que efetivaram tais exames devem lavrar o Termo de Declaração de Morte
Encefálica (Art. 2º. da referida Resolução).
O lugar da abertura da sucessão também deve ser verificado, pois, de acordo com o
que determina o art. 1.785 do Código Civil de 2002, “a sucessão abre-se no lugar do último
domicílio do falecido”.
Existe a exceção da transmissão dos bens do ausente, desaparecido sem a morte
natural comprovada, devido ao inconveniente de um patrimônio carente de titular, mas esta
não é considerada sucessão mortis causa. Neste caso ocorre, primeiramente, a abertura da
sucessão provisória para, só assim, ocorrer a abertura da sucessão definitiva. É o caso da
ausência anteriormente tratada.
Outro requisito decorrente da abertura da sucessão e transmissão dos bens do de
cujus é que sobreviva o herdeiro do mesmo, ainda que por um instante após sua morte, para
adquirir o direito hereditário (MONTEIRO, 2003, p. 15).
3.3 Droit de Saisine
No exato momento da morte do titular do patrimônio, que compreende tanto o ativo
como o passivo, é transmitido aos herdeiros legítimos e testamentários, mesmo que estes
desconheçam o fato do falecimento do de cujus.
É o que determina o droit de saisine, expressão derivada da sentença: “Le mort saisit
lê vif” (o morto prende o vivo), e que teve sua origem no século XIII no Direito germânico,
mas que foi consagrada pelo Direito francês, mais precisamente no art. 724 do Código de
Napoleão. Tal princípio surgiu na Idade Média, devido ao fato de os senhores feudais, diante
da morte de seu servo, tomarem posse dos bens do mesmo e exigirem dos herdeiros um
pagamento para que estes pudessem tomar posse de sua herança. Assim, a jurisprudência do
Direito francês passou a determinar a transferência imediata dos bens do servo falecido, a
partir de sua morte, para seus herdeiros (PEREIRA, 2005, p. 19).
O princípio de saisine está previsto no art. 1.784 do Código Civil de 2002 que dispõe
que: “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários”, ou seja, para que se consolidem a propriedade e a posse da herança por parte
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dos herdeiros, estes não têm que aguardar a sentença do processo de inventário, nem a sua
instauração.
Entretanto, apesar de a posse ser transmitida aos sucessores no exato momento de
falecimento do autor da herança, antes da partilha o que existe é uma massa indivisa de bens
chamada de espólio. A determinação da qualidade e quantidade dos bens que caberão a cada
herdeiro, ocorrerá somente com o inventário e partilha. Cabe aos herdeiros procederem ao
requerimento do inventário, nos termos do art. 987 e seguintes do Código de Processo Civil e,
para tanto, deve ser apresentada a certidão de óbito do autor de herança, ou seja, prova da
morte do mesmo (art. 987, parágrafo único do Código de Processo Civil).
3.4 Ordem da Vocação Hereditária
No caso em que o de cujus venha a falecer sem deixar testamento (ab intestato) ou se
este caducou, a lei cuidará do destino de seus bens, convocando pessoas de sua família de
acordo com uma ordem de sucessão, designada de ordem da vocação hereditária. Tal
sucessão, processada por força de lei, é a sucessão legítima, esta, diferente da sucessão
testamentária em que se opera de acordo com a última vontade do falecido que tenha deixado
testamento válido.
É importante ressaltar que o de cujus não pode dispor da totalidade de seus bens no
testamento, podendo fazê-lo somente com a metade do patrimônio, sendo a outra metade
reservada à legítima, em havendo herdeiros necessários, que são os descendentes, ascendentes
e cônjuges.
A ordem da vocação hereditária vem disposta no art. 1.829 do Código Civil de 2002
da seguinte forma:
Art. 1.829 A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:I – aos descendentes , em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;III – ao cônjuge sobrevivente;V – aos colaterais.
Pelo princípio da ordem de chamamento, esgotam-se todos os graus de parentesco de
cada classe, segundo a regra de que o mais próximo exclui o mais remoto, sendo que entre os
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descendentes e os ascendentes esta contagem é feita ad infinitum e entre os colaterais limita-
se até o 4º grau.
A sucessão do cônjuge sobrevivente será estudada em seguida para maior
compreensão do caso apresentado no capítulo 4, e consistente no seguinte:
Duas pessoas, casadas pelo regime da comunhão universal de bens que não possuam ascendentes nem descendentes. O marido tem a morte cerebral detectada, mas continua vivendo à custa de aparelhos. Neste ínterim, a esposa falece. Se entendermos que o momento da morte cerebral é o que determina a extinção da personalidade e, portanto, da pessoa, a esposa sobreviveu ao marido, herdou os seus bens no momento da sua morte transmitiu-os aos seus colaterais. Se se entender, entretanto, que a pessoa só morre quando todo o organismo pára, como o marido era mantido através de aparelhos, ele sobreviveu à sua mulher, herdou os bens dela e os transmitirá aos seus colaterais quando o organismo parar por completo (NAVARRO, 2004, p. 51).
3.5 Da Sucessão do Cônjuge Sobrevivente
O Cônjuge sobrevivente ocupa o terceiro lugar na ordem da vocação hereditária
estabelecida pelo art. 1.829, inciso III, do Código Civil de 2002, além de concorrer com
descendentes (em alguns casos) e ascendentes, conforme se verificam pelos incisos I e II de
referido artigo.
Além disso, o Código Civil de 2002 beneficiou o cônjuge sobrevivente conferindo-
lhe a qualidade de herdeiro necessário (art. 1.845), isto é, herdeiro que tem garantida a metade
do patrimônio do de cujus, mesmo que haja testamento dispondo da totalidade dos bens em
favor de outro herdeiro que não seja necessário).
Na ausência de ascendentes ou descendentes, o cônjuge sobrevivente receberá o todo
da herança (art. 1.838), qualquer que seja o regime de bens do casamento, desde que não
possua as restrições contidas no art. 1.830, que dispõe que:
Art. 1.830 – Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de 2 (dois) anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.
Trata-se, no caso, de cônjuge herdeiro, na terceira classe da ordem de vocação
hereditária.
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4 MOMENTO DA MORTE PARA ABERTURA DA SUCESSÃO: MORTE
ENCEFÁLICA
Com os avanços da Medicina, foi instituída a morte encefálica. Ocorre que o
legislador manteve-se omisso a esta novidade, não estabelecendo se o momento da morte para
que ocorra a abertura da sucessão é a morte encefálica ou a cardio-respiratória. Tal distinção
faz-se imprescindível na seguinte hipótese prática, trazida à baila por Navarro (2004, p. 51):
Duas pessoas, casadas pelo regime da comunhão universal de bens que não possuam ascendentes nem descendentes. O marido tem a morte cerebral detectada, mas continua vivendo à custa de aparelhos. Neste ínterim, a esposa falece. Se entendermos que o momento da morte cerebral é o que determina a extinção da personalidade e, portanto, da pessoa, a esposa sobreviveu ao marido, herdou os seus bens no momento da sua morte transmitiu-os aos seus colaterais. Se se entender, entretanto, que a pessoa só morre quando todo o organismo pára, como o marido era mantido através de aparelhos, ele sobreviveu à sua mulher, herdou os bens dela e os transmitirá aos seus colaterais quando o organismo parar por completo.
Há muitas divergências a respeito da instituição da morte encefálica. Assim, para que
se entenda melhor o objeto de estudo deste trabalho, passa-se à explicação do mesmo sob o
prisma da Tanatologia (ciência que estuda a morte e suas conseqüências jurídicas) e da
Medicina (CROCE, 2004, p. 347).
4.1 Histórico da Morte Encefálica
Até o final da década de 60 vigia o conceito tradicional de morte, ou seja, a cessação
irreversível da circulação sangüínea e da respiração. Era inadmissível considerar morto um
indivíduo cujo coração ainda batesse.
No entanto, este conceito de morte passou a ser alterado quando, no ano de 1967, um
médico, Dr. Christian Barnard, em Capetown, África do Sul, retirou o coração que ainda batia
de um paciente e passou para outro paciente necessitado da transplantação do órgão, pois,
para isso, faz-se necessária a retirada do órgão o mais rápido possível, logo que se constitua o
estado de inconsciência no possível doador. Para que este médico não fosse considerado um
homicida, tinha-se que considerar que o doador do órgão já estava morto, apesar de seu
coração ainda bater (GOMES, 2004, p. 72).
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A partir disso, a morte encefálica começou a ser aceita: “[...] o conceito de morte foi
deslocado da parada irreversível da respiração e da circulação para o de morte cerebral”
(GOMES, 2004, p. 72).
Em 1968, o Comitê Ad Hoc da Faculdade de Medicina de Harvard, em publicação
no Journal of American Medical Association, identificou o conceito de morte cerebral com o
conceito de coma irreversível, e fundamentou argumentando que a carga que se impõe à
família de pacientes com morte cerebral detectada, aos hospitais e a outros pacientes que
precisam dos leitos hospitalares, é grave. Além disso, para que vidas sejam salvas através da
transplantação de órgãos, faz-se necessário que a morte cerebral possa ser considerada
efetivamente como morte.
Em 1976 e 1979, médicos na “Conference of Royal Colleges” receitaram que, para
se declarar morto o paciente, teria que haver:
[...] coma profundo irreversível de causa diagnosticada, parada respiratória resistente a altas tensões de gás carbônico no sangue arterial (acima de 50mmHg), bem como ausência de reflexos com sede no tronco cerebral, ausência de reação a estímulos dolorosos no território de inervação dos nervos cranianos, e temperatura corporal igual ou acima de 35ºC. Além disso, a causa não poderia ser intoxicação por depressores do sistema nervoso central, ou por curarizantes, diabetes ou insuficiência da tireóide. Prescindia de EEG, angiografia ou cintilografia cerebrais (GOMES, 2004, p. 73).
No ano de 1980, uma comissão propôs o “Ato de Determinação Uniforme da Morte”
que dizia que:
Um indivíduo que tenha sofrido parada irreversível das funções circulatórias e respiratórias ou parada irreversível de todas as funções do cérebro, incluindo o tronco cerebral, está morto. Um certificado deve ser feito de acordo com os padrões médicos aceitos (JAMA apud GOMES, 2004, p. 73-74).
Hoje, no Brasil, para efeitos de transplantes de órgãos, o momento da morte está sendo
identificado como o momento da morte encefálica e os critérios para caracterização da mesma
estão estabelecidos na Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.780 de 1997, que
vem estudada no item a seguir.
4.2 Conceito de Morte Encefálica
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Conforme já visto, antes da criação da transplantação de órgãos, a morte era
conceituada como o momento da cessação total da circulação e da respiração do indivíduo.
Hoje, sinônimo de morte no mundo todo, com exceção do Japão, já pode ser a morte
cerebral, em que ocorre a cessação da atividade elétrica do cérebro, tanto na cortiça quanto
nas estruturas mais profundas, pela persistência de um traçado isoelétrico, plano ou nulo
(CROCE, 2004, p. 348). Neste caso, o tronco cerebral, composto pelo mesencéfalo,
protuberância e bulbo (este responsável pelas atividades cardíacas, vasoconstritoras e
respiratórias), morre e deixa de coordenar tais atividades que continuam a funcionar graças a
aparelhos de alta tecnologia. Além disso, o indivíduo deixa de ter relação com o mundo
exterior e com as pessoas a sua volta.
O Conselho Federal de Medicina determinou, na Resolução nº 1.480 de 1997,
especificamente, os critérios para constatação da morte encefálica.
Em seu art. 4º dispõe: “Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para
constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora
supra-espinal e apnéia”. Ou seja, perda da percepção do mundo exterior, ausência de resposta
a estímulos nocivos na localidade entre a coluna e o crânio (GRIESBACH) e ausência de
respiração.
Ademais, em seu art. 6º, a referida resolução determina a realização de exames
complementares que evidenciem, incontestavelmente, a ausência de atividade elétrica
cerebral, ou ausência de atividade metabólica cerebral ou ausência de perfusão (circulação)
sangüínea cerebral.
Desta forma, conclui-se que a morte encefálica não pode ser determinada, tão
somente, como o estado de coma profundo do paciente que, apesar de inconsciente, pode
manter, por si próprio, suas funções vitais básicas, tais como, a respiração e a circulação
sangüínea, e sim, deve ser determinada diante da parada irreversível e indubitável de todo o
tronco cerebral, pois, de acordo com França (2001, p. 329):
[...] determinação (de morte) também não pode estar na morte de um órgão, mesmo sendo ele indispensável, senão na evidência de sinais claros que indique a privação da atividade vital como um todo e, se possível, registrados em instrumentos confiáveis.
Por fim, após todas as verificações e exames acima aduzidos, dois médicos deverão
preencher e assinar o Termo de Declaração de Morte Encefálica, documento este que conterá
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todos os resultados colhidos no paciente e que valerá como uma prova da morte cerebral, e
arquivá-la no prontuário do mesmo, conforme disposto no art. 8º da Resolução CFM nº
1.487/97. Ademais, uma vez constatada a morte encefálica, cópia do termo de declaração
deverá ser enviada, pelo estabelecimento de saúde às centrais de notificação, captação e
distribuição de órgãos, tudo de acordo com o art. 13 da Lei de Transplantes.
5 POSICIONAMENTO DO DIREITO QUANTO À FIXAÇÃO DA MORTE
ENCEFÁLICA – UM PARADOXO EXISTENTE
A reportagem “O difícil diagnóstico da morte cerebral” publicada na revista Veja
afirmou que, no Brasil, a legislação considera que o momento em que uma pessoa morre é
momento em que o cérebro (e não o coração) pára de funcionar (VEJA, 2006, p. 78).
No entanto, verifica-se que, na realidade, o sistema jurídico brasileiro ainda não se
decidiu quanto ao momento da morte de um indivíduo, em casos de morte encefálica.
Assim, após apresentação do conceito de morte encefálica que, reprisa-se, é
considerada como o falecimento irreversível do cérebro e de todo o tronco cerebral, este
responsável pelas atividades vitais do corpo humano (respiração e circulação), e após a
exposição do posicionamento da Medicina e da Tanatologia, que consideram que o indivíduo
que possui tal morte verificada está morto, passa-se a apresentar o posicionamento do sistema
jurídico brasileiro e a se demonstrar a existência de paradoxos e contradições.
5.1 Considerações Gerais Acerca da Lei de Transplantes
Apesar de haver uma lacuna na lei e não ter o legislador definido o momento da
morte para a abertura da sucessão do patrimônio do de cujus, se somente diante da morte
cárdio-respiratória ou diante da morte encefálica, o Direito brasileiro instituiu a morte
encefálica como sendo o momento do fim da vida na Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de 1997,
que dispõe sobre o transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano.
Dispõe o art. 3º, caput, da referida lei:
Art. 3º. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte-encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de
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remoção e transplante, mediante utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
Como se sabe, para que um doador possa doar seus órgãos vitais para um receptor,
como o coração, por exemplo, faz-se mister que aquele tenha somente a morte cerebral
detectada (não podendo haver resquícios de dúvida acerca da mesma), e não a parada cárdio-
respiratória, pois, diante disso, o órgão perde a qualidade necessária para que possa ser
transplantado. Informação esta prestada pelo médico cardiologista Dr. José Eduardo de
Siqueira, CRM nº 2.732, em entrevista realizada na data de 18 de abril de 2006, na clínica
Centro do Coração, situada nesta cidade de Londrina.
Há, também, outros requisitos, além da constatação da morte encefálica do doador,
para que o transplante possa se efetivar. Todos vêm determinados na Lei nº 9.434 de 1997.
São eles: os transplantes somente poderão ocorrer em estabelecimentos de saúde, públicos ou
privados, e realizados por equipe médico-cirúrgica devidamente autorizada pelo órgão de
gestão nacional do Sistema Único de Saúde (Art. 2º, caput); deverão ser efetuados no doador
todos os testes exigidos pelo Ministério da Saúde que detectem infecção e infestação (art. 2º,
parágrafo único); a morte encefálica deverá ser constatada de acordo com o que determina a
Resolução CFM nº 1.480/97 e registrada por dois médicos que não participem da equipe de
remoção e transplante (art. 3º, caput); a transplantação dependerá de autorização escrita da
família do doador (Art. 4º e art. 5º) e do consentimento expresso do receptor (Art. 10, caput);
e, por fim, nas mortes de causa mal definida e sem assistência médica, a remoção de órgão,
tecidos ou partes do corpo humano somente ocorrerá após autorização do patologista do
Serviço de Verificação de Óbito (art. 7º, parágrafo único).
A implantação da morte cerebral no Direito brasileiro através da Lei de Transplantes
se deu numa tentativa de se estimular a doação post mortem, evitando-se, desta forma, a
doação de órgãos entre vivos, devido ao fato de tal prática configurar mutilação ao corpo do
doador, que pode vir a ter sérios problemas de saúde (GRIESBACH). Mesmo assim, a
referida lei autoriza a transplantação entre vivos, desde que atendidos os requisitos
estabelecidos na própria lei.
Desta forma, verifica-se que o sistema jurídico brasileiro já considera a morte-
encefálica como morte propriamente dita. Caso contrário, ao autorizar a retirada de órgãos do
paciente com morte encefálica detectada estaria também autorizando a prática de homicídios e
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lesões corporais, tendo em vista que aquele seria considerado vivo. E a própria redação da lei
já diz: a retirada é post mortem, ou seja, após a morte.
5.2 Posição do Direito Quanto à Morte Encefálica Tendo em Vista a Lavratura da Certidão de Óbito
A Lei de Registros Públicos nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973 estabelece em seu
art. 77 que a prova da morte, isto é, a certidão do oficial de registro do lugar do falecimento é
necessária para que o falecido possa ser inumado, e somente pode ser confeccionada após o
assento de óbito (hoje chamado de Declaração de Óbito) que tem por base o atestado médico.
O atestado médico acima referido tem por objetivo a confirmação da morte e o
estabelecimento da causa da mesma, se natural ou violenta, a fim de se satisfazer o interesse
médico-sanitário e de não restarem dúvidas para a sociedade de que a existência humana e a
personalidade civil do morto não existem mais e, sendo assim, podendo este ser devidamente
sepultado (FRANÇA, 2001, p. 329).
Não se pode confundir a Declaração de Óbito com a Certidão de Óbito, sendo esta
conseqüência da primeira e lavrada por oficial de registro civil.
Se o indivíduo vier a falecer com assistência médica, o profissional que tenha
prestado tal assistência, mesmo que fora do estabelecimento hospitalar, e que tenha verificado
o óbito pessoalmente é que deverá atestá-lo, a não ser que a morte tenha sido violenta
(homicídio, suicídio ou acidente) ou que tenha causa suspeita (falecimento inesperado sem
causa evidente), casos em que o médico legalmente autorizado, membro dos Institutos
Médicos Legais, é que deverá preencher e assinar o atestado de óbito. Além disso, é proibida
a cobrança de remuneração para o fornecimento do atestado de óbito. Tudo isso vem
determinado na Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.290/89.
O óbito dos falecidos sem assistência médica será atestado pelos Serviços de
Verificação de Óbito e, na falta destes, o farão os médicos da Secretaria de Saúde e, ainda, na
ausência destes, por outro profissional presente na localidade.
Nos lugares onde não houver médicos, o óbito pode ser declarado por duas
testemunhas idôneas que tenham presenciado alguém morto. É por isso que o Ministério da
Saúde instituiu novo modelo de atestado chamado de “Declaração de Óbito”, que pode ser
utilizada e preenchida por leigos que tenham testemunhado alguma morte num município
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onde não há médicos (FRANÇA, 2001, p. 332). Há também nesta declaração, a parte do
atestado propriamente dito destinada ao preenchimento por médicos apenas, sejam eles os que
prestaram assistência ao morto, os membros dos Serviços de Verificações de Óbitos ou ainda
os legistas.
Com todos estes esclarecimentos acerca da certidão de óbito lavrada por oficial do
registro civil e que constitui prova da morte no âmbito jurídico, para que se possa, inclusive,
instaurar o processo de inventário do espólio do de cujus, pergunta-se: poderia o oficial do
registro civil lavrar a certidão de óbito diante do Termo de Declaração de Morte Encefálica?
A resposta é não. A Lei de Registros Públicos trata da extração da Certidão de Óbito
após a lavratura do assento de óbito baseado em atestado médico, ou seja, na Declaração de
Óbito que somente é lavrada após parada completa e irreversível de todos os órgãos do corpo
humano.
Além disso, foi realizada pesquisa na data de 19 de abril de 2006, junto ao
Tabelionato Julião, 2º Ofício de Registro Civil, situado nesta cidade de Londrina, Estado do
Paraná, em que o oficial de registro civil, Sr. Márcio Lobato, prestou informações acerca do
procedimento necessário para lavratura da certidão de óbito. Assim, esclareceu-se que a
mesma não é, em hipótese alguma, lavrada diante do Termo de Declaração de Morte
Encefálica, e sim, somente diante da Declaração de Óbito, e que, aliás, só é entregue ao
cartório após remoção do cadáver pela Administração de Cemitérios e Serviços Funerários de
Londrina (ACESF).
Aí está a contradição existente no Direito: para efeito de transplante o Direito
considera como pessoa morta aquela que incorre em morte encefálica e, em contrapartida, a
Lei de Registros Públicos considera que morte se prova com a certidão de óbito, lavrada
dentro do procedimento legal previsto, a qual só é possível de ser confeccionada com a parada
cárdio-respiratória irreversível ou parada total de todas as funções vitais. Mesmo que o
indivíduo só tenha a respiração e a circulação funcionando devido à atuação de aparelhos, isto
é, mesmo que haja uma simulação de vida, a certidão de óbito não pode ser confeccionada.
Verifica-se, assim, que o sistema jurídico brasileiro não se decidiu acerca do
momento em que se pode considerar uma pessoa morta, ou seja, que a personalidade natural
desta pessoa que era titular de direitos e obrigações se encerra.
Por outro lado, para se instaurar o processo de inventário dos bens deixados por de
cujus deverá, obrigatoriamente, ser instruído com a prova da morte do autor da herança, que
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consiste na sua certidão de óbito lavrada pelo oficial do registro civil e detalhadamente
estudada no item anterior.
Dispõe o art. 987 do Código de Processo Civil: “A quem estiver na posse e
administração do espólio incumbe, no prazo estabelecido no art. 983, requerer o inventário e a
partilha”. Em seguida, estatui seu parágrafo único: “O requerimento será instruído com a
certidão de óbito do autor da herança”.
Ou seja, para que se concretizem os efeitos da sucessão iniciados automaticamente
com a morte do autor da herança e por força do princípio de saisine, faz-se necessária a
cessação irreversível da circulação sanguínea e da respiração, pois, só assim, a certidão de
óbito será confeccionada.
Destarte, resta uma dúvida não esclarecida pelo Direito ante a omissão do legislador:
o fenômeno de saisine se opera diante da morte encefálica do autor da herança? Deve-se levar
em conta o momento da morte para fins de transplante de órgãos ou o momento da morte para
fins de abertura do inventário?
Já se sabe que o inventário e a partilha, sendo estes a concretização dos efeitos da
sucessão, não se perfazem diante da morte encefálica, somente diante da parada irreversível
da circulação e da respiração. Resta agora saber se o princípio do droit de saisine se aplica ao
indivíduo com morte encefálica.
Assim, passa-se a análise de diferentes posições quanto à possibilidade de abertura
da sucessão diante da constatação de morte encefálica.
5.3 Posicionamentos Contra o Momento da Morte Encefálica
Autores há, no campo jurídico, que não concordam com a instituição da morte
encefálica como sendo o momento da morte.
Um dos argumentos baseia-se em casos de gestantes que possuem a morte cerebral
detectada e, com a ajuda de aparelhos, conseguem prosseguir na gestação do feto até que este
tenha condições de nascer. A título ilustrativo, um desses casos ocorreu no ano de 1992, numa
clínica universitária de Erlanger, na Alemanha, que proveu a alimentação intravenosa e a
respiração de uma mulher grávida de quatro meses com a morte cerebral constatada, com o
objetivo de se possibilitar a continuação da gestação. Outro caso parecido se deu nos Estados
Unidos, em que a mãe, com morte cerebral constatada devido a um derrame, foi mantida viva
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por meios artificiais pelo tempo de três meses, até que a criança pudesse nascer (TERRA,
2005). Assim, os defensores deste argumento consideram viva a mulher que tinha a morte
cerebral detectada, pois gerou e deu à luz, e pessoas mortas não têm condições de fazê-lo. No
entanto, esquecem que isso somente aconteceu devido à alta tecnologia existente na medicina
de hoje, ou seja, a vida da gestante consistia numa simulação artificial, destinada a gerar outra
vida.
Outro argumento rebate aquilo que os defensores da morte cerebral afirmam: que
pessoas neste estado são consideradas mortas pois deixam de ter percepção e de se relacionar
com o mundo exterior, dizendo que os deficientes mentais, da mesma forma, não possuem
discernimento da realidade e não são considerados mortos, devendo, assim, os indivíduos em
estado de morte cerebral serem considerados vivos (NAVARRO, 2004). Os deficientes
mentais têm relação com o mundo exterior, dentro dos limites da doença, mas não se pode
dizer que se igualam às pessoas com morte cerebral. Veja as principais características da
deficiência mental determinadas pelo Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
(DSM.IV):
A característica essencial do Retardo Mental é um funcionamento intelectual significativamente inferior à média (Critério A), acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação, autocuidados, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, auto-suficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança (Critério B). (DSM, 2006)
Note-se que a pessoa que possui deficiência mental pode ter o comprometimento de
apenas duas das áreas de habilidades apresentadas acima. Portanto, se essas forem, por
exemplo, autocuidados e lazer, verifica-se que o deficiente não terá dificuldade em outras
áreas como a comunicação e o uso de recursos comunitários. Assim, verifica-se que os
portadores de deficiência mental têm sim relação com o meio e percepção do mundo exterior.
De tal modo, conclui-se que este argumento também não procede.
Além disso, existem os contra-argumentos de ordem ética, como o problema citado
por Navarro (2004, p. 51), em que os médicos terão o direito de disposição sobre o paciente
com morte cerebral detectada, ou sobre os seus órgãos com o escopo de se curar terceiros.
“Estaria se deixando ao arbítrio de terceiros a manutenção da vida alheia por meio de
aparelhos quando essa possibilidade se realizar plausível”. Tal argumento não se justifica,
tendo em vista que, para fins de transplante, o próprio Direito já autorizou a determinação da
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morte encefálica na já aludida Lei de Transplantes. Afirma ainda Navarro (2004, p. 51) que o
momento da morte deve ser determinado quando o organismo pára por completo, ou seja, em
que há parada irreversível da respiração e da circulação (morte cárdio-respiratória), e não
quando há possibilidade de “sobrevivência” por aparelhos, e somente a partir disto é que a
personalidade terminaria e o Direito se incumbiria de cuidar dos efeitos decorrentes da morte,
como a sucessão, por exemplo.
Outros médicos há, que afirmam haver um dilema de consciência, estando, de um
lado, os avanços da ciência e, de outro lado, sua formação geral e religiosa. Mas, em resposta,
a revista Veja apresentou motivos suficientemente éticos ou religiosos para que um médico
assine a Declaração de Morte Encefálica. Primeiramente, porque o paciente morto cerebral
que continua a ser tratado como qualquer outro ocupa o leito de um vivo na UTI, e sabe-se
que no Brasil leitos são escassos. Além disso, é fato que hoje a fila de transplantes tem 65.000
pessoas e, destas, vinte por cento morrem na espera por um novo órgão. Prejuízo este que
seria minimizado se todas as mortes cerebrais fossem notificadas (VEJA, 2006, p. 78).
Assim sendo, após demonstração de algumas opiniões contrárias ao conceito
moderno de morte, passa-se a análise do caso apresentado no capítulo 4, cujo estudo interessa
a este trabalho: a importância de se determinar o momento da morte, se cerebral ou cárdio-
respiratória, para que se opere o droit de saisine.
6 A IMPORTÂNCIA DA DISTINÇÃO ENTRE MORTE ENCEFÁLICA E MORTE
CÁRDIO-RESPIRATÓRIA PARA FINS DE SUCESSÃO
Todos os conhecimentos e discussões apresentados até agora têm o escopo de dirimir
a dúvida existente no caso exposto no capítulo 4, para se determinar quem sobreviveu a quem.
Recorda-se o caso:
Duas pessoas, casadas pelo regime da comunhão universal de bens que não possuam ascendentes nem descendentes. O marido tem a morte cerebral detectada, mas continua vivendo à custa de aparelhos. Neste ínterim, a esposa falece. Se entendermos que o momento da morte cerebral é o que determina a extinção da personalidade e, portanto, da pessoa, a esposa sobreviveu ao marido, herdou os seus bens no momento da sua morte transmitiu-os aos seus colaterais. Se se entender, entretanto, que a pessoa só morre quando todo o organismo pára, como o marido era mantido através de aparelhos, ele sobreviveu à sua mulher, herdou os bens dela e os transmitirá aos seus colaterais quando o organismo parar por completo (NAVARRO, 2004, p. 51).
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Note-se que haverá discrepância acerca do momento em que se dará a sucessão,
restando uma das duas famílias prejudicadas.
6.1 Da Abertura da Sucessão a Partir da Parada Cárdio-Respiratória
No caso apontado, a esposa não possui descendentes nem ascendentes, os quais
ocupam, respectivamente, o primeiro e o segundo lugar na ordem de vocação hereditária
determinada pelo artigo 1.829 e seus incisos I e II do Código Civil de 2002. Assim, os
próximos candidatos a receberem seu patrimônio quando de sua morte são o cônjuge
sobrevivente que, neste caso, não concorre com ninguém e, logo após, na ausência de cônjuge
sobrevivente, os colaterais (irmãos, sobrinhos, tios, sobrinhos-netos, tios-avôs e primos), isso
por força dos incisos III e IV do já aludido artigo 1.829 do Código Civil de 2002.
Desta forma, vislumbra-se que, no caso em pauta, apesar de o marido ter tido
constatada a sua morte encefálica antes da parada completa de todos os órgãos de sua esposa,
ou seja, de seu falecimento, para os defensores do conceito antigo de morte (morte = parada
cárdio-respiratória irreversível) a esposa faleceu primeiro que o marido, que continuou no
hospital com a respiração e a circulação funcionando às custas de aparelhos, verificando-se,
assim, o fim da personalidade da mesma.
Assim, pelo droit de saisine, no momento da morte da esposa, que teve parada
irreversível de todas suas funções vitais, a propriedade e posse de seus bens passaram,
imediatamente para seu esposo. Quando os aparelhos do mesmo foram desligados, todo seu
patrimônio, agora majorado já que compreende o que recebeu a título de herança da esposa
falecida, foi para a sua família de parentes colaterais, pois se sabe que o marido também não
possuía ascendentes, descendentes e cônjuge sobrevivente.
Conclui-se, destarte, que a família do marido obteve vantagem restando proprietária
de todo o patrimônio do casal, cujo regime era de comunhão universal de bens.
6.2 Da Abertura da Sucessão a Partir da Morte Encefálica
No caso apresentado acima, o marido teve sua morte encefálica detectada antes do
falecimento de sua esposa a qual nunca esteve nesta situação de morte cerebral.
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Pode-se entender que a pessoa com morte encefálica está morta se ao aplicar o
entendimento da Lei de Transplantes, por analogia, a qual “[...] serve-se dos elementos de um
dispositivo e com seu auxílio formula preceito novo, quase nada diverso do existente, para
resolver hipótese não prevista de modo explícito, nem implícito, em norma alguma”
(MAXIMILIANO, 2001, p. 175).
Assim, se ficar entendido que a morte cerebral determina o fim da personalidade
natural, o momento em que se operam os efeitos estudados no capítulo 2 deste trabalho,
dentre eles, a abertura da sucessão, verifica-se que o marido foi dado por morto antes de sua
esposa. Neste momento, em que ficou comprovada indubitavelmente a morte cerebral, a
esposa, mesmo que tenha falecido um segundo depois da constatação da morte cerebral de seu
marido, recebeu os bens do mesmo a título de herança. Isso porque, o marido também não
possui descendentes nem ascendentes, sendo a esposa a próxima na ordem da vocação
hereditária (art. 1.829, inciso III, Código Civil de 2002). A partir daí, diante do falecimento da
esposa, seus colaterais receberam todo o seu patrimônio.
Diante desta hipótese, de se considerar o marido morto quando da constatação de sua
morte encefálica, verifica-se que a família da esposa obteve vantagem em detrimento da
família do marido que não recebeu nada a título de herança.
Assim, uma das famílias prejudicadas poderá ingressar em juízo requerendo a posse e
propriedade do patrimônio de seu ente, cabendo, desta forma, ao Magistrado, decidir se o fim
da personalidade natural, no caso em pauta, se dá com a morte encefálica ou com a parada
cárdio-respiratória, ou seja, se a esposa ou o marido faleceu primeiro.
7 CONCLUSÃO
No presente trabalho foram apresentados estudos acerca dos efeitos da extinção da
personalidade, do direito das sucessões e do droit de saisine, do conceito moderno de morte
para a Medicina e do conceito de morte para o Direito. Tudo isso com o fim de se dirimir a
dúvida existente sobre a qual o Direito não se pronuncia: qual o momento da morte, se parada
cárdio-respiratória ou morte encefálica, para a abertura da sucessão?
A importância de se determinar exatamente o momento da morte para fins de sucessão
reside no caso estudado no capítulo anterior em que as famílias dos autores da herança (casal
sem descendentes e nem ascendentes), conhecedoras do conceito moderno de morte para a
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Medicina, qual seja, morte encefálica, poderiam questionar quem seriam os verdadeiros
herdeiros, se os colaterais da esposa ou se os colaterais do marido.
A Medicina Legal, no uso de suas atribuições em favor do Direito, é pacífica em
determinar que a pessoa que possui morte encefálica constatada é considerada morta.
O Direito, por sua vez, considera morta a pessoa que possui morte encefálica ao
autorizar a retirada de seus órgãos para transplantação na Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de
1997. Em contrapartida, através da Lei de Registros Públicos nº 6.015 de 31 de dezembro de
1973, determina que a prova da morte (certidão de óbito) somente pode ser lavrada diante da
Declaração de Óbito, que é preenchida por médicos quando houve parada completa e
irreversível de todos os órgãos do corpo humano, e não da Declaração de Morte Encefálica.
Assim, verifica-se a existência de dois posicionamentos contraditórios no Direito.
O objetivo deste trabalho é demonstrar que o droit de saisine pode sim se operar no
momento em que ocorre a morte encefálica do indivíduo, pois, como já visto, mesmo que este
continue no hospital tendo sua respiração e sua circulação providas devido ao uso de
aparelhos, sua personalidade já se extinguiu, sua vivência enquanto pessoa terminou, e aquela
“vida” que ali existe é um simulacro de vida que se mantém pelo uso da medicina .
Contudo, há muitos argumentos no sentido de não se dar por morta a pessoa que possui
a morte encefálica detectada.
O legislador se omitiu quanto ao momento da morte para que ocorra o fim da pessoa
natural e, como conseqüência, se abra a sucessão da mesma, tendo se referido apenas à morte,
sem levar em conta que hoje existe o conceito de morte encefálica e o conceito de parada
cárdio-respiratória. Desta forma, para que se preencha esta lacuna existente, poder-se-ia
aplicar, por analogia, o entendimento da Lei de Transplantes, qual seja, que a morte do
indivíduo se dá no momento em que se comprova sua morte encefálica.
O dispositivo que “emprestará” seus elementos para preenchimento da lacuna quanto ao
momento da morte para fins de sucessão é a Lei de Transplantes que trata de forma expressa
do momento da morte para fins de transplantação (morte encefálica), tendo em vista que os
requisitos para aplicação da analogia estão presentes: há uma hipótese não prevista (momento
da morte para fins de sucessão) e há relação fundamental entre o que determina a referida lei e
entre o que se pretende determinar.
Assim, conclui-se que, devido à aplicação por analogia do conceito de morte advindo da
Lei de Transplantes, o fim da existência da pessoa natural se dá nos casos em que esta tem
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constatada a morte encefálica, operando-se, a partir daí, os efeitos da extinção da
personalidade, dentre eles, a abertura da sucessão.
Por fim, constata-se que a solução para o caso prático apresentado é aquela demonstrada
no item 6.2 deste trabalho, em que se conclui que o marido, devido à morte cerebral, faleceu
primeiro que a esposa, a qual, no momento de comprovação da morte encefálica daquele,
recebeu o patrimônio do mesmo na condição de herdeira e, após, quando sobreveio seu
falecimento, passou todos os seus bens, que compreendem seu patrimônio somado ao que
recebeu a título de herança do marido, para seus parentes colaterais, tendo em vista que não
possuía nem ascendentes nem descendentes.
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