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Intervenção Terapêutica Breve: Jogo do rabisco
Marisa Bortoletto
Resumo: O trabalho introduz a discussão sobre a consulta terapêutica e o jogo do rabisco (jogo do rabisco como importante instrumento ludodiagnóstico), e discorre sobre a atividade do brincar como base dos fenômenos curativos, da confiança e esperança da comunicação emocional. Apresenta o material clínico de dois meninos entre seis e sete anos.
As intervenções terapêuticas breves são consideradas uma tendência nos
procedimentos diagnósticos e psicoterápicos da atualidade. Como sabemos, vivemos a
era da rapidez tecnológica, que é calcada nas ideias imediatistas e nas soluções mágicas
das demandas psíquicas. Tal situação conduz a uma pressão, por parte dos pais e talvez,
até, da própria criança, em retirá-la do mal-estar emocional em que se encontra o mais
breve possível.
Winnicott, na década de 1950, parece que enfrentava algo semelhante quando se
dedicava aos atendimentos pediátricos e psiquiátricos. Em sua obra e em especial no
livro O Brincar e a Realidade (1975), é possível encontrar inúmeros exemplos sobre o
brincar como uma notável possibilidade autocurativa. A consulta diagnóstica, por meio
do brincar infantil, incluía a função holding e seu caráter terapêutico. Essa contribuição
do psicanalista inglês tem se mostrado útil e atual devido à pouca disponibilidade da
população para a realização das psicoterapias tradicionais, pois se torna procedimento
técnico necessário às demandas psíquicas pela brevidade das consultas. Evidentemente,
um procedimento não exclui o outro, todavia neste trabalho a ênfase estará centrada nas
intervenções breves, como o jogo do rabisco, mas que contêm em si o valor terapêutico.
Como sabemos, a consulta terapêutica, contribuição fundamental na obra de
Winnicott (1965), está baseada na ideia de que esta entrevista tem tanto objetivo
diagnóstico como terapêutico. O autor considera que o paciente sentir-se compreendido
era mais importante do que a interpretação propriamente dita. Winnicott (1975) nos
conta ter em sua sala de atendimento brinquedos a que as crianças tinham livre acesso.
Em algumas ocasiões, dividia sua atenção entre a mãe e a criança e, dessa forma,
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construía um ambiente propício à observação e à interação por meio dos jogos e do
brincar. Inclusive, as crianças costumavam surpreender-se com a própria criatividade.
Consulta terapêutica e jogo do rabisco
Nos anos 1960, encontramos na obra de D. Winnicott as primeiras publicações
sobre o jogo do rabisco e a consulta terapêutica. A princípio, a consulta terapêutica
consistia no jogo do rabisco propriamente dito; posteriormente, em O Valor da Consulta
Terapêutica (1965), vemos que as consultas incluíam os desenhos ou não. A vasta
experiência psiquiátrica ofereceu ao autor subsídios para descrever esta vivência clínica
como um instrumento valioso na interação paciente-terapeuta.
O psicanalista observa: “o jogo do rabisco é simplesmente um meio de se
conseguir entrar em contato com a criança” (pg. 11, 1984). E, a partir dessa integração,
o autor acredita que o pequeno paciente estabelece uma relação de confiança e de
esperança de ser amparado. O que está implícito seria a igualdade entre a dupla, onde
ambos se ocupam dos desenhos e assim a produção final traz uma comunicação
emocional. “Na minha prática psiquiátrica infantil descobri que um lugar especial tem
de ser concedido à primeira entrevista, e gradualmente desenvolvi uma técnica para
explorar por completo o material dessa entrevista” (pg. 230, 1989).
Todavia, Winnicott ressalta não ter a pretensão de que o jogo do rabisco virasse
um teste. Pelo contrário, temos de considerar, na atualidade, tal qual seu idealizador: um
jogo sem regras, e o que mais importa é o que podemos colher em termos diagnósticos e
terapêuticos. Este procedimento é realizado de forma breve, não ultrapassando três
sessões. E seu objetivo está baseado na psicoterapia, “onde ocorre uma sobreposição
parcial da área do brinquedo da criança e da área do brinquedo do adulto ou terapeuta.
O jogo do rabisco é um dos exemplos pelos quais uma interação desse tipo pode ser
facilitada” (pg. 243, 1989).
Técnica simples: utiliza papéis e lápis, os quais devem estar dispostos numa
mesa. Winnicott recomenda pedir para a criança pegar o lápis apenas, e o primeiro
rabisco é feito pelo terapeuta. Depois é pedido para que a criança continue e transforme
o rabisco em algo e assim por diante repetidamente. Vale lembrar que a experiência
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mostra que nem sempre conseguimos ser tão produtivos como Winnicott, o qual
chegava a ter trinta desenhos no final da consulta.
Os exemplos contidos nesse trabalho são mais modestos em relação à produção,
contudo dão mostra de seu valor como comunicação psíquica. Trata-se de dois meninos
na faixa de idade entre seis e sete anos, ambos com queixas escolares. A apresentação
de algumas peculiaridades desse período da infância se torna oportuna, nesse momento.
Crianças de seis e sete anos
As crianças dessas idades, em geral, já atingiram um equilíbrio entre a própria
dependência e independência. São capazes de realizar tarefas cotidianas, já têm domínio
dos cuidados pessoais, como, por exemplo, vestir-se, tomar banho. Nessa época, a
comunicação verbal é fluente e algumas crianças delineiam, com relativa facilidade,
argumentos para conquistar o que almejam. As decisões fundamentais são tomadas
pelos pais, ainda que os pequenos queiram impor suas vontades. É o momento em que
as crianças estão sendo apresentadas ao mundo exterior, por meio da alfabetização, da
entrada no ensino fundamental e do domínio da aprendizagem.
Elas começam a sentir maior rivalidade e competição com os colegas e irmãos.
E as brigas costumam ser uma manifestação da busca por autoconfiança e respeito.
Algumas crianças, como os exemplos abaixo, encontram obstáculos emocionais
na adaptação à nova escola. E isso ocorre porque cada criança atinge a maturidade
esperada num determinado ritmo.
O que se observa, com frequência, é o aparecimento de medos e fobias por
causa da dependência dos pais; por vezes, distanciar-se significa a possibilidade de
perdas ou o temor de que algo de mal ocorrerá, em especial com a mãe. A escola
direciona a criança para interesses no mundo exterior, para outras crianças e para o
aprendizado, enquanto a criança pode, ainda, estar ligada aos pais, de tal forma a não
usufruir das conquistas do crescimento (Clínica Tavistock de Londres, 1975). Todavia,
como bem sabemos, atingir a maturidade, a cada período do desenvolvimento humano,
é tarefa que está longe de ser fácil.
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Fabio, seis anos
A mãe do pequeno Fabio chega à sessão preocupada com o comportamento
agressivo do filho na escola. A criança, quando contrariada pelos colegas, reagia com
xingamentos, batendo e brigando. A professora procurava acalmá-lo, mas nem sempre
alcançava êxito. Além disso, a escola considerava Fabio um tanto aquém das outras
crianças em termos pedagógicos. Tudo indicava que ele estava começando a despertar
para o que seria próprio para sua idade, todavia, como ainda em processo de
amadurecimento, considerava a escola uma grande brincadeira. Comunicativo e
extrovertido, logo estabelecia amizade com os demais, porém nem sempre conseguia
encontrar o limite de suas brincadeiras que, por vezes, tornavam-se exageradas.
Na família, logo aprendeu a chamar a atenção pelos comportamentos negativos,
como se essa fosse a única forma de obter afeto. Fabio, como filho caçula de quatro
irmãos, foi poupado de algumas atividades, como por exemplo: não precisava falar, pois
sempre havia alguém para traduzir o que queria; sendo assim, o pequeno menino não
aprendeu a se defender através da compreensão dos conteúdos, e sim pela descarga
motora.
Fabio, no jogo do rabisco fez apenas dois desenhos:
1. Rodamoinho
2. Carros caindo num precipício
Logo mostrou a angústia que sentia frente ao não-entendimento daquilo que era
pedido. Respondia rápido às perguntas, mas era possível observar a tendência a fugir da
situação. A hipótese diagnóstica levantada na ocasião foi a de que ele não tinha ideia de
sua posição na família. O rodamoinho poderia representar o quanto estava perdido, e o
sentimento de medo diante das circunstâncias estava camuflado pela agressividade.
Provavelmente, a escola poderia estar sendo sentida como um lugar onde estaria
desprotegido e sem o apoio dos pais e irmãos. Os carros caindo representariam o
desamparo da criança, e a alfabetização exigida pela escola simbolizava uma aquisição
mais fóbica do que lúdica.
A criança tinha a possibilidade de comparecer apenas a poucas sessões, pois logo
voltaria das férias e, pela distância da clínica até sua casa, não daria continuidade ao
atendimento. Frente à angústia desperta com o jogo do rabisco, foi proposto o “jogo do
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Fabio”, onde montamos, como nos jogos de tabuleiro, um caminho que contasse a
história do menino, desde o nascimento até o momento presente. A solicitação teve
franca aceitação da criança, o que permitiu que a história de Fabio fosse contada como
uma brincadeira saudável.
Este jogo trouxe a rápida ideia de sua localização na família. Evidentemente, ele não
estava conformado de ser o quarto filho e com fato de isso significar ele ser o menor.
Todavia, o jogo funcionou como a possibilidade dessa expressão emocional, o que o
deixou mais calmo e alegre. Seus pais comentaram que Fabio é, entre os quatro filhos, o
mais extrovertido e engraçado. Uma criança diferente dos próprios pais quando
pequenos, o que exigiu deles uma nova forma de lidar com o caçula da casa. A partir
dessas sessões, a volta às aulas teve uma nova motivação para o pequeno menino.
Marcelo, 7 anos
Marcelo mudou de escola após o ingresso na primeira série (segundo ano). Na
pré-escola era conhecido de todos que lá trabalhavam, e costumava encantar e “mandar”
nas professoras. Ao chegar à nova escola, apresenta excessiva necessidade de
autoafirmação ao comentar sobre seus videogames, cachorros, brinquedos importados,
etc., além de agitação na sala de aula.
A mãe nos conta a respeito do temperamento forte e da dificuldade do menino
em aceitar o que não o agrada. Questionador, seus argumentos surpreendem os adultos,
bem como suas falas “espirituosas”. Em outros momentos, Marcelo é carinhoso e
afetivo.
No jogo do rabisco realizou cinco desenhos:
1. Monte de letras
2. Monte de figuras geométricas
3. Homem de quinze anos
4. Prédio e as antenas
5. Jogo de videogame
Seguem abaixo as figuras ilustrativas:
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Figura 1:
O rabisco inicial foi transformado “num monte de letras”, o que parecia combinar com aquele menino falante e cheio de argumentos.
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Figura 2:
Ao dar continuidade ao triângulo desenhado, faz “um monte de figuras geométricas”. Reforça a idéia de defesa por meio do pensamento racional.
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Figura 3:
A partir da cabeça humana a criança completa o desenho dizendo: “um homem de quinze anos”. Desenha de forma rápida e logo passa para o próximo desenho.
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Figura 4:
Desenha em seguida o prédio com uma antena parabólica e outra antena receptora ou transmissora de sinais. Tem um pequeno rosto sorrindo na janela do prédio. Nesse momento, começa a aparecer sua necessidade de ser compreendido em seus afetos.
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Figura 5:
Esta última figura ele desenha espontaneamente, e explica que se trata de um videogame, onde as “carinhas” são pinguins a serem alimentados.
O jogo do rabisco possibilitou a compreensão de que Marcelo apresenta forte identificação com o masculino na posição de provedor e protetor. Aparentemente, a ausência real da figura masculina poderia justificar a ansiedade exacerbada.
Nesse momento final, fala dos pinguins como se de fato fossem seus filhos. E aparece um menino amoroso, menos defendido e um tanto necessitado de ajuda terapêutica.
Considerações finais
Jogos, brincadeiras, enfim o brincar é uma experiência universal. Uma expressão de saúde mental e crescimento. A psicanálise, segundo Winnicott (1975), é uma forma de brincar altamente especializada. Cabe ao psicoterapeuta dirigir seus esforços no sentido de recuperar o brincar no paciente enfermo.
O que observamos no jogo do rabisco é a viva manifestação de conteúdos conscientes e inconscientes da criança; revela também qualidades e habilidades, por vezes não percebidas pelos pais. Por meio dos desenhos, o pequeno paciente se
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aproxima do terapeuta e isso pode colocar em movimento o processo de desenvolvimento.
Sabemos que essa técnica requer o devido cuidado ao ser inserida, pois nem sempre terá o sucesso esperado. A volta ao ambiente suficientemente bom, a confiança na compreensão dos pais proporciona um prognóstico favorável. Todavia, os conflitos familiares não facilitam a continuidade do que ocorreu na consulta terapêutica. Entretanto, o jogo do rabisco oferece a alguns pacientes a oportunidade de se aproximarem das faltas e falhas ambientais. Desta forma, são colocados em marcha os fenômenos curativos, e assim pode-se restaurar o brincar infantil e o viver criativo.
Trata-se de uma intervenção terapêutica breve, cujos efeitos auxiliam no diagnóstico e no início das terapias. Vale lembrar: o jogo do rabisco, aparentemente fácil de ser aplicado, é sem dúvida uma técnica calcada na capacidade de manejo clínico do terapeuta. Winnicott (1984) compara a aplicação do jogo com o violoncelista, que primeiro necessita estudar muito a técnica para que um dia possa tocar a música com confiança e empatia.
Referências
Abram, J. A Linguagem de Winnicott. RJ: Revinter, 2000.
Bortoletto, M. Convênios Psicológicos e Psicoterapia Psicanalítica. SP: Escuta, 2009.
Dare, C. colaboradores. Clínica Tavistock de Londres. Orientação Psicológica para os Pais: seu filho de sete anos. RJ: Imago, 1975.
Winnicott (1964, 1968). “O jogo do rabisco”. In: Winnicott, C. et al. (Org.). Explorações Psicanalíticas, D. W. Winnnicott. Porto Alegre: Artmed, 1994, cap. 40.
__________ (1965) “O valor da consulta terapêutica”. In: Winnicott, C. et al. (Org.) Explorações Psicanalíticas, D. W. Winnnicott. Porto Alegre: Artmed, 1994, cap. 41.
__________ O Brincar e a Realidade. RJ: Imago, 1989.
__________ Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. RJ: Imago, 1984.
__________ Da Pediatria à Psicanálise. Obras escolhidas. RJ: Francisco Alves, 2000.
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