CUIDADOS E TRABALHO DOMÉSTICO-FAMILIAR NO … · Gênero e a divisão de cuidados e trabalho...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
CUIDADOS E TRABALHO DOMÉSTICO-FAMILIAR NO SERVIÇO DE
PROTEÇÃO E ATENDIMENTO INTEGRAL À FAMÍLIA (PAIF) DA
POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (PNAS)
Vanessa Sarmento Travincas de Castro1
Amana Rocha Mattos2
Resumo: O presente trabalho, fruto da pesquisa de mestrado em andamento da primeira autora,
propõe-se a debater contribuições do PAIF na promoção de equidade intrafamiliar de gênero,
partindo da concepção do Serviço sobre a categoria mulher à luz do feminismo interseccional –
articulando, em especial, gênero, raça e classe. As normativas PAIF apresentam-se com foco na
desmistificação de pressupostos que fixam uma condição de subalternidade das mulheres em
relação ao homens, tendo especial relevância a divisão das tarefas domésticas e de cuidados entre os
responsáveis pela família. Embora possua ações com finalidade de “cuidar de quem cuida”,
oferecendo espaços de trocas de experiências, reconhecimento de potencialidades, formação de
redes de apoio e realização de oficinas entre os membros familiares para discussão da sobrecarga
doméstica, sua configuração de funcionamento tende a (re)produzir a noção de mulheres como
únicas responsáveis por esses encargos, apontando a inviabilidade de fazê-los satisfatoriamente
junto a outras tarefas remuneradas. Se, por um lado, podemos interpretar que o PAIF é baseado na
presença e permanência de mulheres naturalizadas enquanto mães e do lar, por outro, a PNAS
afirma sua capacidade de empoderamento feminino, apontando que o foco preferencialmente na
mulher é fundamental na realidade brasileira onde encontramos um número significativo de famílias
monoparentais femininas e uma situação de desvantagem social das mulheres em relação aos
homens.
Palavras-chave: Política Pública. Assistência Social. Gênero. Equidade Intrafamiliar.
Introdução
O PAIF3 é realizado por meio do Trabalho Social com Famílias4, que afirma compreendê-
las “em seu contexto sociocultural e em sua integralidade”, ou seja, pretende enfocar “todos os seus
membros e suas demandas, reconhecer suas próprias dinâmicas e as repercussões da realidade
social, econômica e cultural em suas vidas” (BRASIL, 2012a, p. 104). Nessa perspectiva, o Serviço
1 Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social (PPGPS/UERJ) da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ), Brasil.Atua como psicóloga na Proteção Social Básica da Política Nacional de Assistência Social em
São Luís - MA desde 2008. 2 Orientadora da pesquisa de mestrado da primeira autora, professora adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ e
professora permanente do PPGPS/UERJ. 3Advém da experiência obtida do Núcleo de Apoio à Família – NAF (2001), desdobrando-se no Plano Nacional de
Atendimento a Família – PAIF (2003) e consolidando-se como Programa de Atenção Integral à Família – PAIF (2004).
A atual nomenclatura (que mantém a mesma sigla da anterior) tem por finalidade garantir uma melhor compreensão de
seus objetivos, bem como assinala a transformação do Programa em Serviço, indicando o caráter ininterrupto de suas
atividades (BRASIL, 2012a). 4Consiste em um “conjunto de procedimentos efetuados a partir de pressupostos éticos, conhecimento teórico-
metodológico e técnico-operativo, com a finalidade de contribuir para a convivência, reconhecimento de direitos e
possibilidades de intervenção na vida social” das famílias usuárias (BRASIL, 2012b, p. 11).
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propõe-se a contribuir com a construção de relações intrafamiliares mais equânimes, o que abrange
a questão da divisão de cuidados e o trabalho doméstico-familiar (BRASIL, 2012a).
De maneira geral, nas entrelinhas dos cadernos de orientação técnica do PAIF, lê-se uma
essencialização das mulheres pobres (e negras) usuárias dos serviços sociais, com estimativas de
que elas se fixem no espaço doméstico, enquanto seus companheiros(quando presentes)
garantamseu papel de provedores do lar, com uma renda complementada por benefícios de
transferência de renda.
A prevalência de um olhar baseado num padrão branco, burguês e cisheteronormativo, sem
um diálogo genuíno que abarque as expectativas e preferências das mulheres usuárias do PAIF
produz, de um lado, discursosque não problematizame articulam marcadores sociais que
constituem-se emprivilégios e opressõesintragênero, mantendo o status quoe, de outro, uma atuação
abalizada pelo paternalismo e condescendência queinstitui um lugar “do diferente e inferior” para
mulheres negras e pobres.
Também é preciso considerar que “...estamos lidando com mulheres que por sua condição
de gênero e classe articulado a raça/etnia tem uma percepção de si muito marcada pela
subalternidade, e sem espaços de fala”(CARLOTO, MARIANO, 2008, p. 163).Nesse sentido, é
bastante valorosaa estrutura de execução do PAIF, onde são proporcionados ambientes de fala,
escuta e convivência, contudo, como afirma Carloto e Mariano (2008), somente isso não pode ser
considerado um fator decisivo de mudanças na vida das usuárias.
Assim, a partir desses elementos, este trabalho propõe-se a discutir comoa equidade
intrafamiliar é desenvolvida nos principais materiais que norteiam o PAIF, especialmente, no que
diz respeito aos cuidados familiares.
A concepção de família na Assistência Social
A definição de família no PAIF envolve três aspectos principais: sua identificação
(conceito e formatos), sua funcionalidade e as estruturas que regem as relações entre seus
membros.Quanto ao primeiro, a família é descrita na PNAS como “um conjunto de pessoas que se
acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade” (BRASIL, 2005, p. 41). Ou
seja, não existiria uma delimitação de espaço (residência em comum5) e nem de parentalidade
biológica; o vínculo socioafetivo seria a característica mais expressiva da família. Esse conceito
5 Na prática isso não se aplica, visto que no cadastro do CRAS inclui-se somente os residentes na mesma casa do titular,
o que pode prejudicar a visualização da dinâmica cotidiana familiar, principalmente no que diz respeito às redes de
parentesco.
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apontaria uma tentativa da PNAS de trazer fidedignidade as atuais mudanças sociais que afetam o
grupo familiar, “uma vez que as três dimensões clássicas de sua definição (sexualidade, procriação
e convivência) já não têm o mesmo grau de imbricamento que se acreditava outrora” (BRASIL,
2005, p. 41).
Contudo, vale observar que a Constituição brasileira reconhece a família exclusivamente
como instituição formada por homem e mulher (ligados pelo casamento ou união estável; com
filhos ou não) (Art. 226, § 3º) ou por um dos genitores com sua prole (Art. 226, § 4º). Mesmo com a
aprovação da resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça, que garante o casamento ou união
estável de pessoas do mesmo sexo, é possível afirmar que ainda é uma questão frágil legalmente,
tanto que temos em tramitação uma proposta de um Estatuto da Família que reafirma a
heterossexualidade como única possibilidade para instituição familiar (PL-6583/2013), enquanto a
proposta de lei (PL 5120/2013) que visa a alteração da Constituição em consonância com a
resolução citada não foi aprovada até o presente momento.
Ainda a respeito da identificação familiar, encontramos cinco formatos de famílias
diretamente mencionados nos documentos que norteiam o PAIF, são eles: nuclear, monoparental,
unipessoal, reconstituída e extensa. Somente o conceito de família unipessoal é explicado, sendo
entendido como a composição em que uma pessoa reside sozinha (BRASIL, 2005). Os demais
tipos, por não terem sido elucidados, podem ser considerados em suas categorizações tradicionais, a
saber: nuclear – constituída por pais e filhos; monoparental – formada por apenas um dos genitores
e filhos (recebe bastante destaque na PNAS, em especial as monoparentais chefiadas por mulheres);
reconstituída – composta por um dos pais, seu novo(a) companheiro(a) e os filhos advindos de
relacionamentos anteriores de ambos; e extensa – formada por um ou os dois genitores, seus filhos,
outros parentes e agregados (CANIÇO, BAIRRADA, RODRÍGUEZ, CARVALHO, 2010).
Quanto à função da família, a PNAS define que ela deve: “...prover a proteção e a
socialização dos seus membros; constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e
sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras
instituições sociais e com o Estado”. Ressaltando que a família também é vista como espaço
contraditório, podendo não desempenhar essas “funções básicas”, circunstância que dependerá
principalmente das suas possibilidades de acesso aos direitos de cidadania (BRASIL, 2005, p. 35).
Quanto às relações entre os entes familiares, são avaliadas a partir das estruturas
geracionais e de gênero presentes que, de acordo com o PAIF, podem gerar desigualdades e
conflitos intrafamiliares consequentes “...da diferenciada distribuição de poder e responsabilidade
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entre seus membros” (BRASIL, 2009b, p. 12). As questões de gênero serão melhor aprofundadas na
seção a seguir.
Por ora, vale dizer, que os Cadernos de Orientações Técnicasdo Ministério do
Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) referem-se inúmeras vezes a uma “figura materna” e
uma “figura paterna” sendo estimuladas a compartilhar essas responsabilidades, nesse sentido,
infere-se que, implicitamente, o PAIF não está considerando casais sem filhos (ainda que esse
formato caiba em seu conceito de família) e também que embasa suas atividades numa matriz
heterossexual, condição que ao mesmo tempo que naturaliza a heterossexualidade, produz abjeção e
invisibilidade de outras vivências. Nesse enquadre tão voltado para a finalidade reprodutiva da
sexualidade, associa-se indistintamente sexo-gênero-prática e desejo sexual, o que nos leva a outra
naturalização, a da cisnormatividade, ocultando existências, identidades e identificações de gênero
divergentes desse modelo (MATTOS, CIDADE, 2016).
Diante do que foi apresentado, depreende-se que embora seja afirmada a consideração à
multiplicidade dos arranjos familiares e a não discriminação das pessoas (com base em critérios de
gênero, orientação sexual, identidade, etc.), o que se vê na proposta de trabalho social é uma
organização adaptada para famílias nucleares ou monoparentais, melhor dizendo, dois modelos de
famílias são inteligíveis no PAIF: a cisheterossexual e monogâmica6, ou ainda, a monoparental
chefiada por mulher.É com base nesses formatos que o Serviço planeja suas ações de
desenvolvimento de equidade intrafamiliar.Ressaltando que a família nuclear é um ideal advindo do
modelo burguês onde encontramos papéis estáticos e bem definidos para homens e mulheres.
Gênero e a divisão de cuidados e trabalho doméstico-familiar no PAIF
Os Cadernos de Orientações Técnicas CRAS (2009b) e PAIF (2012ab) não trazem o
conceito de gênero explicitamente. Contudo, é possível presumir algumas delimitações a partir do
uso que é feito do termo ao longo desses materiais. Nesse sentido, vejamos a seguinte orientação
que destacamos em uma das referidas publicações:
... reconhecer e respeitar as especificidades e particularidades de cada um dos seus
componentes, em especial: aquelas em decorrência do ciclo de vida, orientação sexual,
questão de gênero, da incidência de algum tipo de deficiência, doença mental, dependência
6Engels (2006) afirma que a monogamia foi adotada como padrão a partir do surgimento da propriedade privada,
assegurando a dominação masculina sobre a família, o que daria a garantia ao homem de que os filhos gerados por sua
companheira eram seus herdeiros legítimos. Ressaltando-se que, inicialmente, ainda que a família recebesse o título de
monogâmica, a mulher tinha o dever de tolerar relacionamentos extraconjugais do marido, mantendo sua castidade e
fidelidade rigorosamente em respeito ao provedor do lar (ENGELS, 2006).
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química, entre outras peculiaridades inerentes à diversidade humana (BRASIL, 2012a, p.
48, grifos nossos).
Nesse caso, é possível notar que “gênero” está sendo usado como característica
identitária, ou seja, como a pessoa se percebe e se apresenta em relação as categorias homem e
mulher. Na prática, como estamos falando de um Serviço voltado para a família, isso estará
intimamente relacionado com a construção da identificação de mãe/pai, marido/esposa e suas
“consequentes” atribuições.
Vale dizer, que não existem menções nessas obras sobre pessoas transgêneros e
travestis, o que é bastante questionável, já que estamos falando de uma política que visa justiça
social em um país que registra a maior quantidade de assassinatos de transgêneros e travestis no
mundo7. Nesse caso, o que parece, é que o foco das cartilhas está nas possíveis opressões sofridas
pelas mulheres cisgêneras.
Em outro trecho do Caderno de Orientação Técnicas CRAS(2009b) é possível ampliar o
conceito de gênero que estamos buscando:
A compreensão da família ainda é determinada pelas estruturas geracionais e de gênero
presentes: os conflitos e desigualdades vivenciadas no âmbito familiar devem ser
analisados e trabalhados a partir da diferenciada distribuição de poder e
responsabilidade entre seus membros (BRASIL, 2009b, p. 12, grifos nossos).
Ou seja, para o Serviço, gênero implica a atribuição/introjeção de um lugar social
(identidade de gênero – conforme a primeira citação selecionada anteriormente) que estará
diretamente ligado ao acesso de cada um a diferentes oportunidades da vivência em sociedade, logo,
é estruturante da vida social8.
Baseada na conceitualização de gênero trazida acima e objetivando a superação de
vulnerabilidades e riscos sociais dela decorrentes, a promoção da equidade intrafamiliar no PAIF é
planejada com foco na desmistificação de pressupostos (concepções, valores e posturas) que
“estabeleçam a condição de subalternidade das mulheres” em relação ao homens, tendo especial
7 Nos anos em que a primeira autora trablahou em CRAS de diferentes cidades do Maranhão (2008-2015), não registrou
nenhum atendimento à pessoas transgêneros ou travestis. Certamente, isso não se justifica pela ausência das mesmas
nos territórios. 8Como exemplo disso, podemos citar a experiência da primeira autora no Maranhão, especialmente nos interiores, em
que uma prática relativamente comum entre famílias extremamente pobres é a “doação” de filhas mulheres em razão
delas não servirem para a economia familiar. Além de apontar um desprestígio da mulher, também registra a
invisibilidade das atividades de trabalho doméstico, já que essas seriam as atribuições que geralmente elas ocupariam
em seus lares.
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relevância a questão da divisão das tarefas domésticas9e de cuidados entre os responsáveis pela
família (BRASIL, 2012b, p. 106).
Assim, avaliando as aquisições sociais que o Serviço deve afiançar, consideramos que a
segurança social de “desenvolvimento de autonomia” contribui bastante nesse sentido, visto que,
entre outros resultados, ela deve promover a autoestima, a autocompreensão e o empoderamento de
suas(eus) usuárias(os). No âmbito do Serviço, “empoderamento” denota além de uma emancipação
individual, uma consciência coletiva da dependência social e da dominação política (equivalente a
imposição de ideologias dominantes). Portanto, esse conceito relaciona-se com a ideia de
“autocompreensão”, entendida como a habilidade de compreender esses contextos/sistemas nos
quais os sujeitos estão inseridos como influentes da maneira como as pessoas se percebem e agem
(BRASIL, 2012b).
De tal modo, a escolha e promoção de objetivos, crenças e práticas conscientes nas
diversas esferas da vida caracterizam o que o PAIF denomina protagonismo e autonomia.
Condições fundamentais para o alcance da “autoestima positiva”, que aqui aparece como uma
capacidade de valorização de si mesmo como sujeito de direitos, sendo necessário para tanto, uma
desnaturalização da diferença traduzida como desigualdade, bem como a adoção de uma postura de
respeito e valorização da pluralidade (BRASIL, 2012b).
Esses conceitos indicam uma tentativa de promover não apenas uma mudança pratica
automática e imposta, mas que leve a uma transformação ideológica em que as(os) próprias(os)
usuárias(os) possam fazer suas escolhas. Portanto, baseado na segurança social de desenvolvimento
de autonomia, relacionadas direta ou indiretamente com reflexões sobre divisão de tarefas
familiares, destacam-se as seguintes temáticas sugeridas para oficinas10 no PAIF: desigualdades de
gênero, sobrecarga das mulheres nos cuidados com a família, direitos das mulheres, isolamento
social das mulheres e sua superação, feminização da pobreza11, direitos da família (debate sobre
9Mioto e Prá (2015, p. 150) preferem utilizar o termo “trabalho familiar” visto que “doméstico” ligaria essa atividade ao
ambiento interno do domicílio. Quando na verdade seu conceito vai além, a saber: “conjunto de atividades relacionadas
às tarefas domésticas; ao cuidado de seus membros, especialmente os dependentes; e também os investimentos que as
famílias têm de fazer no campo das relações com outras instituições que lhe exigem tempo, energia e habilidades”. 10 Consistem em encontros previamente preparados com a finalidade de “suscitar reflexão sobre um tema de interesse
das famílias, sobre vulnerabilidades e riscos, ou potencialidades identificados”, propiciando “a problematização e
reflexão crítica das situações vividas em seu território, além de questões muitas vezes cristalizadas, naturalizadas e
individualizadas” (BRASIL, 2012b, p. 24). 11Trata-se da constatação de que mulheres vem se tornando mais pobres do que os homens nos últimos anos, sendo
relacionado com o aumento da quantidade de famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Macedo (2008) sugere a
substituição do termo por “pauperização das mulheres” a fim de não fazer uma associação indevida da pobreza como
uma condição feminina.
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papéis desempenhados e democratização do ambiente familiar) e adolescência e juventude
(destaque para questão da paternidade e maternidade responsável) (BRASIL, 2012b).
Esses conteúdos devem ser discutidos tanto com os homens quanto com as mulheres das
famílias que utilizam o PAIF. Contudo, a presença de apenas um responsável de cada família nas
atividades já é considerada suficiente, deste modo, vejamos como a escolha do responsável familiar
é planejada noServiço.
Como o PAIF tem prioridade de atendimento às famílias beneficiárias do Bolsa Família
(PBF) – e é geralmente por demandas desse programa que as usuárias do PAIF acessam esse
Serviço – é comum que as famílias optem por indicar no cadastro do CRAS o mesmo responsável
familiar identificado como titular do cartão do PBF. Embora não seja uma obrigatoriedade, uma vez
que, enquanto o PBF tem a recomendação de que seu responsável seja preferencialmente a mulher,
o PAIF define como responsável:
Membro adulto da família que responde pelo cuidado cotidiano dos demais membros. Pode
ser a mulher que não aufere renda, mas é responsável por atividades diárias em relação ao
domicilio e à família ou, ainda a avó que cuida das crianças e/ou adolescentes enquanto a
mãe desempenha o papel de provedora. O responsável familiar é a pessoa assim
considerada pelos demais membros, em função do reconhecimento de sua responsabilidade
de proteção e autoridade no âmbito familiar. As famílias podem ter mais de um responsável
e, quando isso ocorrer, é importante que o PAIF trabalhe com ambos no que tange o
desempenho desse papel, de modo a não sobrecarregar somente um dos membros(BRASIL,
2012b, p. 23, grifos nossos).
Nessa descrição, destaca-se a escolha de exemplos que envolvem mulheres-mães no
espaço doméstico (mãe e avó), o que por um lado pode ser lido como um reforço a esse estereótipo,
e de outro, como um reflexo da vivência social, já que a política de Assistência Social é pautada em
diagnóstico socioterritorial que, entre outras coisas, indica a dificuldade e precariedade do acesso
das mulheres ao mercado de trabalho e a presença significativa de famílias monoparentais chefiadas
por mulheres, logo, a possibilidade de se encontrar mulheres exercendo esse papel é grande.
Em todo caso, não justificaria um Serviço baseado na expectativa da permanência dessas
mulheres no espaço doméstico, o que parece sugerido quando na citação acima notamos as ideias
excludentes de que: ou a pessoa é a responsável ou é aquela que aufere renda. Isso também é
reforçado quando avaliamos os horários de funcionamento do PAIF, uma vez que as atividades
devem ser realizadas em horário comercial e somente ações complementares podem,
ocasionalmente, acontecer no período noturno, em feriados e finais de semana (BRASIL, 2012a).
Logo, a usuária terá dificuldade para participar do Serviço caso possua um emprego diurno, já que,
provavelmente, coincidirá com seu turno de trabalho. Contexto ainda mais complexoquando
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consideramos que estamos falando de mulheres pobres, em sua maioria negras que, como afirma
Shucman(2014), encontram-se na mais baixa posição hierárquica em relação ao acesso de bens
materiais e valores simbólicos em nossa sociedade.
A responsabilidade da mulher sobre a família e filhos é igualmente subentendida
quando o auxílio de natalidade da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) afirma que dará
apoio a mãe em caso de natimorto ou morte do recém-nascido e só em caso da morte da mãe é que
o apoio é dado a família (BRASIL, 1993, art. 3º). Nesse caso, pode-se notar que o cuidado familiar
na Assistência Social, coincide com cuidado materno, mais do que isso, exercido por uma mãe “do
lar”, estereótipo intimamente ligado com a imagem de mulheres negras de classes empobrecidas,
também associadas a profissões no campo doscuidados,tais como os serviços domésticos (cozinhar,
arrumar, etc.) e de proximidade (cuidadoras de pessoas idosas, crianças, pessoas com deficiências,
etc.), (GAMA, 2014).
Assim, apesar das normativas do PAIF determinarem que não reforçam a fixação de papéis
sociais tradicionais, indiretamente, naturalizam mulheres pobres enquanto responsáveis pelas
tarefas de cuidado e domésticas sob o título de equidade intrafamiliar. Isso é comprovado na
prática, como podemos verificar na pesquisa de Meyer; Klein; Fernandes (2012) que identificam
profissionais no PAIF adotando posturas de “desresponsabilização” e afirmação da inabilidade dos
homens-pais quanto a esses encargos, sendo que nas famílias nucleares isso vem acompanhado de
uma ênfase em suas funções de provedores; e nas famílias monoparentais chefiadas por mulheres na
substituição desses pais pelo Estado. Logo, as autoras afirmam que a matricialidade familiar
proposta pela Assistência Social brasileira na verdade é matrifocalidade.
Eger (2013) já acrescenta um outro ponto de vista, nesse caso é possível compreender
como as usuárias dos CRAS, incorporando também esse modelo idealizado de mulheres dos
programas sociais (em especial o Bolsa Família), encontram estratégias para se mostrarem mães
cuidadosas e que assumem com exclusividade os cuidados domésticos e familiares, incluindo nessa
associação a percepção “das vantagens” de se identificarem como solteiras (mesmo que não sejam).
O mesmo é percebido porStack (2012) que, embora relate sua pesquisa nos serviços
assistenciais disponíveis em uma comunidade negra dos Estados Unidos, mostra uma realidade
semelhante à brasileira, em que destacamos o fato de como estes serviços acabam por induzir as
mulheres a assumir essas funções por perceberem que é mais seguro ficarem solteiras e usufruir da
proteção do Estado e da chamada rede de parentesco (basicamente formada por núcleos de
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mulheres) do que contarem com a participação de maridos, já que ficam melhor ajustadas nos perfis
dos programas de amparo social quando compondo famílias monoparentais.
Em contrapartida, é preciso considerar que a mulher solteira e sem filhos poderá acessar
o PAIF de duas formas: sendo integrante de um grupo familiar o qual não é responsável, já que as
atividades, apesar de serem voltadas prioritariamente ao representante familiar, são abertas para
qualquer membro interessado (inclusive, essa participação deve ser estimulada) (BRASIL, 2012b);
ou ainda como integrante da chamada “família unipessoal”. Até mesmo o benefício do PBF pode
ser acessado por pessoas sozinhas, desde que atendam ao critério de renda (que é de até R$170,00
per capta). Decerto, nas normativas do Serviço não aparecem indicativos de que as atividades foram
delineadas também para pessoas nesses perfis.
Outro ponto a ser observado, é queas ações preventivas de planejamento familiar
também acabam recaindo sobre as mulheres adultas, enquanto as ações protetivas constituem-se em
benefícios voltados para crianças, adolescentes ou pessoas idosas e deficientes, não para as
cuidadoras – embora bastante reconhecida a dificuldade em conciliar tarefas domésticas e trabalho
remunerado(CARLOTO, 2015).Ainda que garantam uma renda fixa por mês, potencialmente
atuando como melhoradores da qualidade de vida, podem ser agentes da reprodução do ciclo de
pobreza das mulheres, já que um aumento da renda familiar por exercício profissional, pode
acarretar o cancelamento dos benefícios. Então, na instabilidade/precariedade do mercado de
trabalho, as usuárias optam por se manter nos programas sociais e permanecer/introduzir-se em
empregos informais que não são detectados pelos sistemas do governo.
Em razão disso, muitos autores (como, por exemplo: ZOLA, 2015; CARLOTO, 2015)
vão tensionar o fato de nossa Política de Assistência Social ser voltada para as famílias, posto que
transfere obrigações protetivas do estado para esses grupos (o que chamamos de familismo),
responsabilizando-os e sobrecarregando mulheres, diferentemente de políticas de orientação social-
democrata que têm foco no desenvolvimento dos indivíduos, garantindo-lhes os serviços
necessários para sua reprodução.
Considerações Finais
A ocupação com tarefas intrafamiliares não compartilhadas, dificulta de forma
significativa o acesso de mulheres pobres ao mercado de trabalho, e acaba por demandar atividades
com horários mais flexíveis/em regime parcial ou ocupações menos valoradas(implicando em
salários mais baixos)(GAMA, 2014).Tendo sido útil para a sociedade capitalista e patriarcal manter
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as mulheres no espaço doméstico, foi necessário que o movimento feminista, entre outras
reinvindicações, questionasse essa distribuição de papéis familiares, buscando relações mais justas e
equilibradas, desnaturalizando concepções e comportamentos, uma vez que a “fixação de papéis
sexuais, a exemplo do aprisionamento das mulheres as tarefas reprodutivas, contribuiria para o
reforço da lógica binária de classificação e para (re)produção da subordinação feminina”
(CARLOTO, MARIANO, 2008, p. 158).
Assim, diante do que foi exposto, percebe-se que a maioria das mulheres acessa o PAIF
por serem mães, gerando o que Carloto e Mariano (2008) chamam de cidadania fragilizada, ou seja,
elas se reconhecem como cidadãs por uma associação com as funções materna e de cuidado
doméstico, visando atender “mais as necessidades do arranjo familiar do que a das mulheres
enquanto sujeitos” (CARLOTO, MARIANO, 2008, p. 163).
Portanto, é possível afirmar que o PAIF possui uma base normativa relativamente capaz
de trabalhar de forma proveitosa com as questões de equidade de gênero intrafamiliares. Como
vimos, seus materiais não situam gênero como algo natural e pontuam a necessidade de questionar
papéis sociais tradicionais de homens e mulheres. Contudo, a própria configuração de
funcionamento do Serviço, pode naturalizar a sobrecarga das mulheres pobres nos cuidados
domésticos e familiares, dada a participação exclusiva de responsáveis mulheres.
Igualmente, é preciso ter em vista que mesmo que o trabalho com os referenciais
simbólicos de gênero e com a divisão de tarefas domésticas fosse suficiente, o PAIF só conseguirá
realmente promover a equidade de gênero no espaço familiar caso seja complementado por serviços
públicos satisfatórios no campo dos cuidados, pois na ausência deles, as mulheres ainda assumem
sozinhas essas funções, aumentando seus tempos de trabalho não remunerado e diminuindo suas
chances de serem inseridas no mercado de trabalho, contexto ainda mais desfavorável para famílias
pobres, como é o caso das que utilizam a Assistência Social (CASTILHO, CARLOTO, 2011).
O aperfeiçoamento do PAIF deve acontecer não somente por meio de reflexões sobre os
materiais normativos da Assistência Social, mas também pela realização e divulgação de pesquisas
praticas nos CRAS, bem como pelo questionamento das(os) próprias(os) profissionais
envolvidas(os) – que são na maioria mulheres brancas e de classe média – sobre os fundamentos de
suas profissõese suas próprias posições de sujeito, descontruindo visões universalistas e
excludentes.
REFERÊNCIAS
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
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PAIF: Trabalho Social com Famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Famílias –
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PROVISION OF FAMILY CARE AND HOUSE HOLD DUTIES ACCORDING TO
SERVIÇO DE PROTENÇÃO E ATENDIMENTO À FAMÍLIA (PAIF), PART OF
POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (PNAS)
Abstract: The present paper, which is the result of the ongoing master's research of the first author,
proposes to discuss PAIF contributions towards the promotion of intrafamily gender equality,
starting from the conception of the Serviço on the category of women in the light of intersectional
feminism - articulating, in particular, gender, race and class. The PAIF normative is focused on the
demystification of assumptions that establishes a subordinate condition of women in relation to
men, especially concerning the division of household duties and provision of care for the members
of the family. Although PAIF normative has actions aimed at "caring for those who cares", offering
spaces for exchanging experiences, recognizing potentialities, forming support networks and
holding workshops among family members to discuss household duties overload, its working
configuration tends to (re)produce the notion of women as the sole responsible for these charges,
pointing out the impossibility of doing them satisfactorily with other paid tasks.If, on the one hand,
we can interpret the PAIF as being based on the presence and permanence of naturalized women as
mothers and home maids, on the other hand, PNAS affirms its capacity for female empowerment,
pointing out that the focus is preferentially on women in the Brazilian reality, where we find a
significant number of single-parent families headed by women, and a situation of social
disadvantage for women in relation to men.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13thWomen’s Worlds Congress(Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
Keywords: public policy, welfare assistance, gender, intrafamily equity