CRONICAS 2
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FUGA – FERNANDO SABINO
Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a
empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho
infernal.
- Pára com esse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.
Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das
grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho,
estava só empurrando uma cadeira.
- Pois então pára de empurrar a cadeira.
- Eu vou embora – foi a resposta.
Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às
palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas,
enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um
caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de
biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da
dispensa? – a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma
tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande
aventura, um botão amarrado num barbante.
A calma que baixou então na sala era vagamente
inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o
menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:
- Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário
que descansava diante da obra do outro lado da rua, sentado
no meio-fio.
- Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou ele.
Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe,
caminhando cabisbaixo ao longo do muro. A trouxa,
arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus
pertences: o botão, o pedaço de biscoito e – saíra de casa
prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Camou-o, mas ele
apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida,
como disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia a
distância.
- Meu filho, cuidado!
O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a
esquerda, os pneus cantaram no asfalto. O menino,
assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o
arrebanhou com o braço como a um animalzinho:
- Que susto que você me passou meu filho – a apertava-o
contra o peito, comovido.
- Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.
Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar
umas palmadas:
- Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.
- Me larga. Eu quero ir embora.
Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala – tendo
antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave,
como ele fizera com a da dispensa.
- Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.
- Fico, mas vou empurrar esta cadeira.
E o barulho recomeçou.
O MÉDICO E O MONSTRO – PAULO MENDES CAMPOS
Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo,
grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha
um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe
passa.
O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a
bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua
irmã, a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos
cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo nome de
Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma
caixinha de brinquedos.
Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto
trabalham, a enfermeira presta informações:
- Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem
de vitamina, mas a irmãzinha dela adora.
O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca
de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá.
Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico
apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz, rabisca uma
receita, enquanto a enfermeira continua:
- O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de
qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai
ficar muito magrinha que até o vento carrega.
O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno
do pescoço da boneca, diagnosticando:
- Mordida de leão.
- Mordida de leão? - pergunta, desapontada, a
enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do
outro faz-de-conta. - Eu já disse tanto, meu Deus, para essa
garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho
Vermelho...
Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de
acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve,
um cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de
vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha e até
mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira.
De repente, o médico diz que está com sede e corre para
a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se
aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de
filho e também para preparar-lhe um copázio de vitaminas:
tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O
famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável
droga.
- Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você
mesmo, doutor.
Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo
é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada
com uma careta. Em seguida, propõe um trato:
- Só se você depois me der um sorvete.
A terrível mistura é sorvida com dificuldade e
repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo
devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora.
A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e
aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com
a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não
podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico
em monstro.
Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são
atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo
médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e
espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce enfermeira
continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o
consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa,
termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se
derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de horror e
começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante,
espeta-lhe a espada na barriga e brada:
- Eu sou o Demônio do Deserto!
Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura
do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou
paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando
terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é o divã
massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no
ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se
despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce
derramado, a torneira inundando o banheiro, a revista nova
dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum
apartamento carioca.
Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante,
senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que
conte uma história ou lhe compre um carneirinho de
verdade.
E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar
ameaçado pelas forças do mal.
QUEM SABE DEUS ESTÁ OUVINDO – RUBEM BRAGA
Outro dia eu estava distraído chupando um caju na
varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde
botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a
castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem
sequer me dar conta do que fazia.
Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção:
a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saída terra,
em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e
vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar
um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez
com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas.
Notei que a empregada regava com especial carinho a planta,
e caçoei dela:
- Você vai criar um cajueiro aí?
Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a
mudinha, naturalmente; mas estava com pena.
- Mas é melhor arrancar logo, não é?
Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio
criminoso - mas confesso que havia nele um certo remorso.
Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um
cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse mais
alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora culpado,
com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isso a
empregada não sabe; ela pensa que tudo foi obra do acaso.
Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria
capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o
fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que
o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e
sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas
igualmente ignaros: eu, o deus da Vida, ela, o da Morte.
Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa -
"seu Rubem, o cajueirinho..." - mas o telefone tocou, fui
atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou
da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou
para ele a mudinha.
Veio me mostrar:
- Eu comprei um vaso...
- Ahn...
Depois de um silêncio eu disse:
- Cajueiro sente muito a mudança, morre à-toa...
Ela olhou a plantinha e disse com convicção:
- Esse aqui não vai morrer, não senhor.
Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo,
daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve
para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde
plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse
pela compra do vaso, e ficara aliviada com minha
indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse,
sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:
- Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!
Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a
varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com
certa gravidade:
- É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está
ouvindo o que o senhor está dizendo...
Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar
muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros
assuntos maiores.
HORÓSCOPO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
- Telefonaram do escritório, bem. Seu chefe mandou
perguntar por que você não foi trabalhar.
- E você deu o motivo?
- Não.
- Podia ter dado.
- Ora, Alfredinho, isso é motivo que se dê?
- Por que não? Se há motivo, está justificado. Sem motivo é
que não cola.
- Então eu ia dizer ao seu chefe que você não trabalha hoje
porque o seu horóscopo aconselha: "Fique em casa
descansando"?
- E daí, amor? Se meu signo é Touro, e se Touro acha
conveniente que eu não faça nada, como é que eu vou
desobedecer a ele?
- É, mas com certeza seu chefe não é Touro, e não vai achar
graça nisso.
- Ele é Áries, está ouvindo? E o dia não está para relações
entre Áries e Touro. Pega aí o jornal. Faz favor de ler com
esses belos olhos cor de pervinca: "Áries - Evite
rigorosamente discussões com subordinados".
- Mas se ele evitar, não tem perigo para você.
- Ele pode evitar, sim, deve evitar. E para colaborar com ele,
eu fico em casa.
- Mas se você não comparece, ele pode vir ao telefone e pegar
numa discussão danada com você, dessas de sair fogo.
- Não atendo telefone durante o dia. Não posso atender. Não
vê que estou descansando, que o horóscopo me mandou
descansar? É favor não fazer rebuliço nesta casa. Amor e
paz, para o descanso do guerreiro.
- Pra mim você está é com preguiça, e das bravas.
- Posso estar com preguiça, e daí? Preguiça é relaxante,
restaura as energias, predispõe para o trabalho no dia
seguinte. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se
eu não faço nada hoje, não é porque estou com preguiça. É
em atenção a um mandamento superior, à mensagem que
vem dos astros, você não percebe?
- Percebo, sim, mas não concordo.
- Pode se saber por que a excelentíssima não concorda com
aquilo que percebe e que está devidamente explicado?
- Pode.
- Então explica, vamos.
- Gozado, Alfredinho, até parece que para você só existem
dois signos no zodíaco: Touro e Áries, você e o patrão.
- Espera lá, você queria que eu não prestasse atenção em
Touro? Áries eu li hoje por acaso, porque está ao lado de
Touro, em coluna paralela.
- Coincidência: você saber que seu chefe é Áries, e...
- É sim.
- E por que você guardou na cabeça que ele é Áries?
- Ora por quê! Ele fez anos no mês passado, amorzinho. Até
contei a você que oferecemos a ele uma batedeira. Soubemos
que a mulher dele precisava de batedeira, fizemos uma
vaquinha e pronto. Mas por que você diz que para mim só
existem dois signos?
- Pelo menos Sagitário você ignora.
- Como que eu ia ignorar Sagitário, se é o signo de você,
minha orquídea de novembro 25?
- É, mas esqueceu de ler que o dia é propício para reuniões
sociais de Sagitário, e saiba que esta sua orquídea de
novembro 25 vai reunir hoje as amigas aqui em casa. Trate
de se mandar, querido.
- Sem essa! Touro me manda descansar em casa, e você me
enche a casa com mulheres?
- É, Sagitário não ia fazer isso comigo! Eu já tinha
harmonizado Touro com Áries!
- Pode continuar harmonizando, se for descansar em casa do
Tostes, que é Virgem, eu sei, ele é nosso padrinho de
casamento. O horóscopo do Tostes recomenda prestar
serviço a um amigo. Assim, Touro, Virgem, Áries e Sagitário
ficam inteiramente harmonizados, cada um na sua, um por
todos, todos por um. Ande, vá se vestir rapidinho, rapidinho,
e rua, seu vagabundo!
CASO DE RECENSEAMENTO - CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE
O agente do recenseamento vai bater numa casa de subúrbio
longínqüo, aonde nunca chegam as notícias.
- Não quero comprar nada.
- Eu não vim vender, minha senhora. Estou fazendo o censo
da população e lhe peço o favor de me ajudar.
- Ah moço, não estou em condições de ajudar ninguém.
Tomara eu que Deus me ajude. Com licença, sim?
E fecha-lhe a porta.
Ele bate de novo.
- O senhor outra vez?! Não lhe disse que não adianta me
pedir auxílio?
- A senhora ano me entendeu bem, desculpe. Desejo que me
auxilie mas é a encher esta papel. Não vai pagar nada, não
vou lhe tomar nada. Basta responder a umas perguntinhas.
- Não vou responder a perguntinha nenhuma, estou muito
ocupada, até logo!
A porta é fechada de novo, de novo o agente obstinado tenta
reestabelecer o diálago.
- Sabe de uma coisa? Dê o fora depressa e antes que eu
chame meu marido!
- Chame sim, minha senhora, eu me explico com ele. ( Só
Deus sabe o que irá acontecer. Mas o rapaz tem uma idéia
na cabeça: é preciso preencher o questionário, é preciso
preencher o questionário, é preciso preencher o
questionário).
- Que é que há? - resmunga o marido, sonolento, descalço e
sem camisa, puxado pela mulher.
- É esse camelô aí que ano quer deixar a gente sossegada!
- Não sou camelô, meu amigo, sou agente do censo...
- Agente coisa nenhuma, eles inventam uma besteira
qualquer, depois empurram a mercadoria!
A gente não pode comprar mais nada este mês, Ediraldo!
O marido faz-lhe um gesto para calar-se, enquanto ele
estuda o rapaz, suas intenções. O agente explica-lhe tudo
com calma, convence-o de que não é nem camelô, nem
policial, nem cobrador de impostos, nem enviado de Tenório
Cavalcanti.
A idéia de recenseamento, pouco a pouco, vai-se instalando
naquela casa, penetrando naquele espírito. Não custa
atender o rapaz, que é bonzinho e respeitoso. E como não há
despesa, nem ameaça de despesa ou incômodo de qualquer
ordem, começa a informar, obscuramente orgulhoso de ser
objeto - pela primeira vez na vida - da curiosidade do
governo.
- O senhor tem filhos, seu Ediraldo?
- Tenho três, sim senhor.
- Pode me dizer a graça deles, por obséquio? Com a idade de
cada um?
- Pois não. Tenho Jorge Independente, de 14 anos; o Miguel
Urubatã, de 10; e a Pipoca, de 4.
- Muito bem, me deixe tomar nota. Jorge... Urubatã... E a
Pipoca, como é mesmo o nome dela?
- Nós chamamos ela de Pipoca porque é doida por pipoca.
- Se pudesse me dizer como é que ela foi registrada...
- Isso eu não sei, não me lembro.
E voltando-se para a cozinha:
- Mulher, sabes o nome de Pipoca?
A mulher aparece, confusa.
- Assim de cabeça eu não guardei. Procura o papel na gaveta.
Reviraram a gaveta, não acham a certidão de registro civil.
- Só perguntando à madrinha dela, que foi quem inventou o
nome. Pra nós ela é Pipoca, tá bom?
- Pois então fica se chamando Pipoca, decide o agente. Muito
obrigado, seu Ediraldo, muito obrigado minha senhora,
disponham!
FLOR DE MAIO - RUBEM BRAGA
Entre tantas notícias do jornal - o crime do Sacopã, o disco
voador em Bagé, a nova droga antituberculosa, o andaime
que caiu, o homem que matou outro com machado e com
foice, o possível aumento do pão, a angústia dos Barnabés -
há uma pequenina nota de três linhas, que nem todos os
jornais publicaram.
Não vem do gabinete do prefeito para explicar a falta dágua,
nem do Ministério da Guerra para insinuar que o país está
em paz. Não conta incidentes de fronteira nem desastre de
avião. É assinada pelo senhor diretor do Jardim Botânico, e
nos informa gravemente que a partir do dia 27 vale a pena
visitar o Jardim, porque a planta chamada "flor-de-maio"
está, efetivamente, em flor.
Meu primeiro movimento, ao ler esse delicado convite, foi
deixar a mesa da redação e me dirigir ao Jardim Botânico,
contemplar a flor e cumprimentar a administração do horto
pelo feliz evento. Mas havia ainda muita coisa para ler e
escrever, telefonema a dar, providências a tomar. Agora já
desce a
noite, e as plantas em flor devem ser vistas pela manhã ou à
tarde, quando há sol - ou mesmo quando a chuva as
despenca e elas soluçam no vento, e choram gotas e flores no
chão.
Suspiro e digo comigo mesmo - que amanhã acordarei cedo e
irei. Digo, mas não acredito, ou pelo menos desconfio que
esse impulso que tive ao ler a notícia ficará no que foi - um
impulso de fazer uma coisa boa e simples, que se perde no
meio da pressa e da inquietação dos minutos que voam.
Qualquer uma destas tardes é possível que me dê vontade
real, imperiosa, de ir ao Jardim Botânico, mas então será
tarde, não haverá mais "flor-de-maio", e então pensarei que é
preciso esperar a vinda de outro outono, e no outro outono
posso estar em outra cidade em que não haja outono em
maio, e sem outono em maio não sei se em alguma cidade
haverá essa "flor-de-maio".
No fundo, a minha secreta esperança é de que estas linhas
sejam lidas por alguém - uma pessoa melhor do que eu,
alguma criatura correta e simples que tire desta crônica a
sua única substância, a informação precisa e preciosa: do
dia 27 em diante as "flores-de-maio" do Jardim Botânico
estão
gloriosamente em flor. E que utilize essa informação saindo
de casa e indo diretamente ao Jardim Botânico ver a "flor-de-
maio" - talvez com a mulher e as crianças, talvez com a
namorada, talvez só.
Ir só, no fim da tarde, ver a "flor-de-maio"; aproveitar a única
notícia boa de um dia inteiro de jornal, fazer a coisa mais
bela e emocionante de um dia inteiro da cdade imensa. Se
entre vós houver essa criatura, e ela souber por mim a
notícia, e for, então eu vos direi que nem tudo está perdido, e
que vale a pena viver entre tantos sacopãs de paixões
desgraçadas e tantas COFAPs de preços irritantes; que a
humanidade possivelmente ainda poderá ser
salva, e que às vezes ainda vale a pena escrever uma crônica.
Chatear e Encher – PAULO MENDES CAMPOS
Um amigo meu me ensina a diferença entre ―chatear‖ e
―encher‖.
Chatear é assim:
Você telefona para um escritório qualquer na cidade.
- Alô! Quer me chamar por favor o Valdemar?
- Aqui não tem nenhum Valdemar.
Daí a alguns minutos você liga de novo:
- O Valdemar, por obséquio.
- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.
- Mas não é do número tal?
- É, mas aqui não trabalha nenhum Valdemar.
Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:
- Por favor, o Valdemar já chegou?
- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo
desse Valdemar nunca trabalhou aqui?
- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.
- Não chateia.
Daí a dez minutos, liga de novo.
- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um
recado?
O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz
coisas impublicáveis.
Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez
minutos, faça nova ligação:
- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém
telefonou para mim?
TURCO - FERNANDO SABINO
Assim que chegou a Paris, foi cortar o cabelo, coisa que não
tivera tempo de fazer ao sair do Rio. O barbeiro, como os de
toda parte, procurou logo puxar conversa:
— Eu tenho aqui uma dúvida, que o senhor podia me
esclarecer.
— Pois não.
— Eu estava pensando... A Turquia tomou parte na última
guerra?
— Parte ativa, propriamente, não. Mas de certa maneira
esteve envolvida, como os outros países. Por quê?
— Por nada, eu estava pensando. A situação política lá é
meio complicada, não?
Seu forte não era a Turquia. Em todo caso respondeu:
— Bem, a Turquia, devido a sua situação geográfica...
Posição estratégica, não é isso mesmo? O senhor sabe, o
Oriente Médio...
O barbeiro pareceu satisfeito e calou-se, ficou pensando.
Alguns dias depois ele voltou para cortar novamente o
cabelo. Ainda não se havia instalado na cadeira, o barbeiro
começou:
— Os ingleses devem ter muito interesse na Turquia, não?
Que diabo, esse sujeito vive com a Turquia na cabeça —
pensou. Mas não custava ser amável, além do mais, ia
praticando o seu francês:
— Devem ter. Mas têm interesse mesmo é no Egito. O canal
de Suez.
— E o clima lá?
— Onde? No Egito?
— Na Turquia.
Antes de voltar pela terceira vez, por via das dúvidas
procurou informar se com um conterrâneo seu, diplomata
em Paris e que já servira na Turquia.
— Desta vez eu entupo o homem com Turquia decidiu-se.
Não esperou muito para que o barbeiro abordasse seu
assunto predileto:
— Diga-me uma coisa, e me perdoe a ignorância: a capital da
Turquia é Constantinopla ou Sófia?
— Nem Constantinopla nem Sófia. É Ancara.
E despejou no barbeiro tudo que aprendera com seu amigo
sobre a Turquia. Nem assim o homem se deu por satisfeito,
pois na vez seguinte foi começando por perguntar:
— O senhor conhece muitos turcos aqui em Paris?
Era demais:
— Não, não conheço nenhum. Mas agora chegou a minha vez
de perguntar: por que diabo o senhor tem tanto interesse na
Turquia?
— Estou apenas sendo amável — tornou o barbeiro,
melindrado: — Mesmo porque conheço outros turcos além do
senhor.
— Além de mim? Quem lhe disse que sou turco? Sou
brasileiro, essa é boa.
— Brasileiro? — e o barbeiro o olhou, desconsolado:
— Quem diria! Eu seria capaz de jurar que o senhor era
turco. . .
Mas não perdeu tempo:
— O Brasil fica é na América do Sul, não é isso mesmo?
NEIDE - RUBEM BRAGA
O céu está limpo, não há nenhuma nuvem acima de nós. O
avião, entretanto, começa a dar saltos, e temos de pôr os
cintos para evitar uma cabeçada na poltrona da frente. Olho
pela janela: é que estamos sobrevoando de perto um grande
tumulto de montanhas. As montanhas são belas, cobertas de
florestas; no verde escuro há manchas de ferrugem de
palmeiras, algum ouro de ipê, alguma prata de embaúba, e
de súbito uma cidade linda e um rio estreito. Dizem me que é
Petrópolis.
É fácil explicar que o vento nas montanhas faz corrente para
baixo e para cima, como também o ar é mais frio debaixo da
leve nuvem. A um passageiro assustado o comissário diz que
"isso é natural". Mas o avião, com o tranqüilo conforto imóvel
com que nos faz vencer milhas em segundos, havia nos
tirado o sentimento do natural. Somos hóspedes da
máquina. Os motores foram revistos, estão perfeitos,
funcionam bem, e temos nossas passagens no bolso; tudo
está em ordem. Os solavancos nos lembram de que a
natureza insiste em existir, e ainda nos precipita além dela,
para os reinos azuis da Metafísica. Pode o avião vencer a
montanha e desprezar as passagens antigas que a
humanidade sempre trilhou. Mas sua vitória não pode ser
saboreada de perto: mesmo debaixo, a montanha ainda fez
sentir que existe e à menor imprudência da máquina o
gigante vencido a sorverá de um hausto, e a destruirá. Assim
a humilde lagoa, assim a pequena nuvem: a tudo isso somos
sensíveis dentro de nosso monstro de metal.
A menina disse que era mentira, que não se via anjo nenhum
nas nuvens. O homem, porém, explicou que sim, e pediu que
eu confirmasse. Eu disse:
— Tem anjo sim. Mas tem muito pouco. Até agora desde que
saímos eu só vi um, e assim mesmo de longe. Hoje em dia há
muito poucos anjos no céu. Parece que eles se assustam com
os aviões. Nessas nuvens maiores nunca se encontra
nenhum. Você deve procurar nas nuvenzinhas pequenas,
que ficam separadas umas das outras; é nelas que os anjos
gostam de brincar. Eles voam de uma para outra.
A menina queria saber de que cor eram as asas dos anjos e
de que tamanho eles eram. O homem explicou que os anjos
tinham as asas da mesma cor daquele vestidinho da menina;
e eram de seu tamanho. Ela começou a duvidar novamente,
mas chamamos o comissário de bordo. Ele confirmou a
existência dos anjos com a autoridade de seu ofício; era
impossível duvidar da palavra do comissário de bordo, que
usa uniforme e voa todo dia para um lado e outro, e além
disso ele tinha um argumento impressionante: "Então você
não sabia que tem anjos no céu?" E perguntou se ela tinha
vontade de ser anjo.
— Não.
— Que é que você quer ser?
— Aeromoça!
E começou a nos servir biscoitos; dois passageiros que
estavam cochilando acordaram assustados porque ela
apertou o botão que faz descer as costas das poltronas; mas
depois riram e aceitaram os biscoitos.
— A Baía de Guanabara!
Começamos a descer. E quando o avião tocava o solo,
naquele instante de leve tensão nervosa, ela se libertou do
cinto e gritou alegremente:
— Agora tudo vai explodir.
E disse que queria sair primeiro porque estava com muita
pressa, para ver as horas na torre do edifício ali perto: pois já
sabia ver as horas.
Não deviam ter lhe ensinado isso. Ela já sabe tanta coisa! As
horas se juntam, fazem os dias, fazem os anos, e tudo vai
passando, e os anjos depois não existem mais, nem no céu,
nem na terra.
A ABOBRINHA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Quando a senhora foi descer do lotação, o motorista
coçou a cabeça:
- Mil cruzeiros! Como é que a senhora quer que eu
troque mil cruzeiros?
- Desculpe, me esqueci completamente de trazer trocado.
- Não posso não. Madame não leu o aviso - olha ele ali -
que o troco máximo é de 200 cruzeiros?
- Eu sei, mas que é que hei de fazer agora? O senhor
nunca esqueceu nada na vida?
- Quem sabe se procurando de novo na bolsa...
- Já procurei.
Procura outra vez.
Ela vasculhava, remexia, nada. Nenhum cavalheiro
(como se dizia no tempo de meu pai) se moveu para salvar a
situação, oferecendo troco ou se prontificando a pagar a
passagem. Àquela hora não havia cavalheiros, pelo menos no
lotação.
- Então o senhor me dá licença de saltar e ficar devendo.
- Pera aí. Vou ver se posso trocar.
Podia. Tirou do bolso de trás um bolo respeitável, foi
botando as cédulas sobre o joelho, meticulosamente.
- Tá aqui o seu troco. De outra vez a madame já sabe,
hein?
Ela desceu, o carro já havia começado a chispar, como é
destino dos lotações, quando de repente o motorista freou e
botou as mãos à cabeça:
- A abobrinha! Ela ficou com a abobrinha!
Voltando-se para os passageiros:
- Os senhores acreditam que em vez de guardar a nota
de mil, eu de burro devolvi com o troco?
Botou a cabeça fora do carro, à procura da senhora, que
atravessava a rua, lá atrás:
- Dona! Ó dona! A nota de mil cruzeiros!
Ela não escutava. Ele fazia sinais, pedia aos transeuntes
que a chamassem, o trânsito entupigaitava-se, buzinas
soavam.
- Toca! Toca!
Os passageiros não pareciam interessados no prejuízo,
como antes não se condoeram do vexame da senhora.
- Como é que eu posso tocar se perdi mil cruzeiros,
gente? Quem vai me pagar esses mil cruzeiros?
Encostou o veículo e, num gesto solene:
- Vou buscar meu cabral. A partir deste momento confio
este carro, com todos os seus pertences, à distinção dos
senhores passageiros.
- Deixa que eu vou - disse um deles, garoto. E
precipitou-se para fora, antes do motorista.
- Será que esse tiquinho de gente consegue?
Via-se o garoto correndo para alcançar a senhora,
tocando-a pelo braço, os dois confabulando. Ela abria de
novo a bolsa, tirava objetos, o pequeno ajudava. Enquanto
isso, o motorista carpia:
- Esta linha é de morte. Primeiro querem que a gente
troque um conto de réis, como se o papai fosse o Tesouro
Nacional ou o Banco do Brasil. Depois carregam o troco e o
dinheiro trocado, que nem juro. Essa não! E esse garoto que
não acaba com a conversa mole? Sei lá até se ele volta.
Os passageiros impacientavam-se com a demora da
expedição. O guarda veio estranhar o estacionamento e
recebeu a explicação de força-maior:
- Quem é que me paga meus mil cruzeiros? O Serviço de
Trânsito?
Voltou o garoto, sem a nota. A senhora tinha apenas 987
cruzeiros, ele vira e jurava por ela.
- Toca! Toca!
- Tão vendo? Um prejuízo desses antes do almoço é de
tirar a fome e a vontade de comer.
Disse isso em tom frio, sem revolta, como simples
remate. E tocou. Perto do colégio, o garoto desceu, repetindo,
encabulado:
- Pode acreditar, ela não tinha mesmo o dinheiro não.
O motorista respondeu-lhe baixinho:
- Eu sei. Já vi que está ali debaixo da caixa de fósforos.
Mas se eu disser isso, esse povo me mata.
Confusão com São Pedro – FERNANDO SABINO
Você vai neste avião, eu vou no próximo-
decidiu
de súbito, no último instante, quando o alto-falante já
invocava os
passageiros: queiram apresentar suas despedidas e boa
viagem.
Ele deu um suspiro desalentado. Já fora um custo
convencer a
mulher de viajarem de avião. Ela dizia que tinha medo, por
que não vamos
de trem? E passara a noite toda naquela conversa, olha, meu
bem, tenho um pressentimento ruim.
Quando já estavam praticamente embarcados, vinha com
novidade.
- Que bobagem é essa?
- Eu vou no outro- insistiu ela, aflita: - Tem outro
avião
daqui a meia hora.
- Mas por que isso assim de repente?
Ela o olhava nos olhos como se se despedisse dele para
sempre:
- Não podemos correr tanto risco juntos, meu bem, seja
razoável.
Temos nossos filhos, imagine se acontece alguma coisa.
- Não vai acontecer nada, mulher.
- Eu sei que não tem perigo, que é o transporte mais
seguro do
mundo, e as estatísticas, e essa coisa toda, você já me
explicou. Mas
pense um pouco nos nossos filhos, pelo amor de Deus! Eu
indo num e você
noutro, sempre é uma chance de pelo menos um de nós dois
escapar.
- Olha aí, já estão chamando de novo. Vamos embora,
mulher.
Ela fincara pé, irredutível. Sem mais tempo para
argumentar,
ele acabou cedendo:
- Está bem, seja como você quiser! Mas então vai nesse,
eu vou
no outro. Se eu deixar você aqui, você acaba não indo.
Despediu-se dela, aborrecido, e foi tratar da
transferência de
sua passagem.
A mulher entrou no avião como num túmulo, o coração
aos pulos.
A porta se fechou, desligando-a para sempre do mundo. A
seu lado, viajava um padre, alheio a tudo, mergulhado no
breviário.
De súbito o avião, já em pleno vôo, começou a jogar.
Eu não
disse? eu não disse? Entraram numa nuvem escura e nunca
mais que saíam
dela.
Em pânico, chamou o comissário: não é nada, minha
senhora, uma
pequena tempestade, estamos fazendo vôo cego.
Vôo cego! Sentindo-se perdida, voltou-se para o padre:
- Estou com tanto medo, seu padre.
O padre a olhou, desconfiado:
- Reza, que é melhor.
E voltou ao seu breviário. Rezar? Não, ela não sabia
rezar.
Lembrou-se de São Pedro, que era quem devia manobrar
chuvas e
tempestades - juntou as mãos e pediu-lhe auxilio:
- São Pedro, piedade de mim. Tenho meus filhos para
criar. Fui
criada sem mãe, o senhor não imagina a falta que uma mãe
faz. Todos na
minha família ficaram assim feito eu, só porque não tiveram
mãe. Que
será dos meus filhos sem mãe, São Pedro, mãe faz muito
mais falta que
pai, por favor me protege, se for preciso transfere essa
tempestade para
o avião dele, mas me salva desta que noutra eu nunca mais
hei de me
meter.
A falta de mãe não lhe abalara o prestígio junto a São
Pedro-
tanto assim que em pouco o avião deixava para trás a
tempestade e saía
para um céu azul, e logo descia no aeroporto sem mais
novidades. Estava
salva!
Comprou uma revista, sentou-se num canto e pôs-se a
esperar o
avião do marido. Esperou meia hora. Como ele nunca mais
chegasse, correu, já aflita, a informar-se no balcão.
Soube que não havia nada de especial: as más condições do
tempo às vezes
ocasionavam algum atraso.
- Más condições do tempo?
Não tinha dúvida, era a tempestade que mandara para
ele. Roída
de remorsos, juntou as mãos ali mesmo, em frente ao
funcionário
assombrado:
- São Pedro, essa não! não faça isso comigo. Era
mentira, o
senhor não vai me levar a sério. O pai faz muito mais falta
que a mãe,
quem é que foi meter uma bobagem dessa na minha
cabeça? Ele trabalha
para sustentar a familha, eu não faço nada que preste. E
logo ele, tão
bom que ele é, tão carinhoso, por favor, São Pedro, não faça
isso com
ele, joga essa tempestade para cima de outro que não tenha
filhos, para
cima dele não!
Em pouco São Pedro voltava a atendê-la, fazendo o
marido
desembarcar no aeroporto, são e salvo:
- Que cara é essa? Você está parecendo um fantasma!
Aconteceu
alguma coisa?
Ela se abraçou a ele, ansiosa:
- Você está bem? Você me perdoa?
- Eh, que novidade você vai inventar agora? Perdoar
o quê,
mulher?
- Tudo por minha culpachoramingou ela.- Mas graças a
Deus você
está salvo. Fiz uma confusão enorme com São Pedro, você
nem imagina. Da
próxima vez, quer saber de uma coisa? vou com você,
morreremos juntos,
nossos filhos que se danem.
Ele a olhou, francamente apreensivo."Acho que essa
minha mulher
está ficando maluca", pensou.
CORAÇÃO MATERNO – PAULO MENDES CAMPOS
Duas horas da tarde. Ali no início do Morro da Viúva
fizeram
sinal: duas senhoras, ambas de cabelos brancos,
preparavam-se para
entrar no lotação, quando o motorista gritou:"Um lugar só".
A velhinha
mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa
dificuldade,
conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade
ainda maior, sob
os protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia:
- Vai, mamãe, vai a senhora, eu vou em outro.
A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade,
sorria:
Na condução - 51
- Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha.
- Vai, mamãe.
- Não, minha filha.
- Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.
- Mas.., minha filha?!
Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência
de quem tem
ou já teve mãe. O motorista fez força (e o conseguiu,
parabéns) para
refrear a sua fúria de Averno.
- Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar
dois
lugares.
- Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca!
Diante do impasse, levantou-se, resoluto um senhor
sentado no
banco da frente, oferecendo-se para ir em pé, as duas
senhoras iriam
sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era
contra o
regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o
regulamento do
tráfego e os demais regulamentos: eram desumanos. Ao pé
da calçada, o
torneio sentimental de mãe e filha continuava:
- Vai, vai, mãe.
- Não posso ir sem você, minha filha.
Quem viu a necessidade eventual de perder docemente
a paciência
foi a filha. Usando de energia adequada ao momento,
segurou o braço da
velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a
com o mínimo
de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa:
- Vai, mãe.
E a velha mais moça se afastou em passadas
compridas, impedindo
a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite
extremo de sua
timidez, e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do
motorista,
entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os
passageiros. Ajeitou-se no banco,
esperou o barulho do motor e comentou para a vizinha
(que a olhava,
compreendendo tudo, as velhas, as mães, o cosmos):
- Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí,
só, tão
longe!
Longe de onde? Das entranhas que criaram uma
menina. Longe. Só.
A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades,
todos
voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episódio.
A mãe, no
entanto, furtiva (certa de que já causara bastante
transtornos naquele
dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o
nosso, aflita em
sua quietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só quando
o lotação
entrou na Avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a
velha mais
moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As
duas se sorriram
como depois de uma longa e apreensiva travessia. A
velhinha chegou a
fazer graça:
- Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes
de mim.
- Eu não disse, mãe, que não tinha perigo?
A filha desceu na esquina, chegou até perto da janela
do nosso
lotação, segurou a mão de sua mãe:
- Agora vai direitinha, viu?
- Você pode ir descansada, minha filha.
O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a
harmonia voltou
ao rosto da nossa velhinha, que tranqüilizou também a
vizinha de banco:
- Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa,
moro no Rio
Comprido.
NA ESCOLA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Democrata é Dona Amarílis, professora na escola
pública de uma
rua que não vou contar, e mesmo o nome de Dona Amarílis é
inventado, mas
o caso aconteceu.
Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou
assim:
- Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito
importante.
Pode ser?
- Pode - a garotada respondeu em coro.
- Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A
palavra é
complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião,
a gente soma
as opiniões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião,
não falem
todos de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu
saber o que é
que cada um pensa. Está bem?
- Está - respondeu o coro, interessadíssimo.
- Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um
movimento para as
professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O
governo disse que
deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero
dicidir por mim.
O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os
alunos. Para
todos ficarem satisfeitos e um não dizer que não gostou.
Assim não tem
problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato
Carlos, você acha
que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na
escola?
- Acho que não deve - respondeu, baixando os olhos.
- Por quê?
- Porque é melhor não usar.
- E por que é melhor não usar?
- Porque minissaia é muito mais bacana.
- Perfeito. Um voto contra. Marilena, me faz um favor,
anote aí
no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por
obséquio, anote os
votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.
- Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por
que vai
deixar de usar aqui dentro?
- Mas aqui dentro é outro lugar.
- É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal
que eu vi
outro dia na rua, aquela é bárbara.
- Um a favor. E você, Aparecida?
- Posso ser sincera, professora?
- Pode, não. Deve.
- Eu, se fosse a senhora, não usava.
- Por quê?
- O quadril, sabe? Fica meio saliente...
- Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena?
Agora você,
Edmundo.
- Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A
senhora
deve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é
certinho.
- Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça,
sim. Você é
contra ou a favor da calça?
- A favor 100%.
- Você, Peter?
- Pra mim tanto faz.
- Não tem preferência?
- Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.
- Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de
tomar nota dos
votos iguais ao de Peter: nem contra nem a favor, antes pelo
contrário.
Assim iam todos votando, como se escolhessem o
Presidente da
República, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam
chamados a desempenhar. Com a maior circunspeção. A
vez
de Rinalda:
- Ah, cada um na sua.
- Na sua, como?
- Eu na minha, a senhora na sua, cada um na dele,
entende?
- Explique melhor.
- Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona,
venha.
Eu quero vir de midi, de máxi, de hort, venho. Uniforme é
papo furado.
- Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?
- Evidente. Cada um curtindo à vontade.
- Legal!exclamou Jorgito.- Uniforme esta superado,
professora.
A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de
qualquer jeito.
- Não pode - refutou Gilberto.- Vira bagunça. Lá em
casa ninguém
anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de
respeitar o
uniforme.
Respeita, não respeita, a discussão esquentou, Dona
Amarílis
pedia ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos
se haviam
extremado, falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se
fazia ouvir, pelo
que, com quatro votos a favor de calça comprida, dois
contra, e um
tanto-faz, e antes que fosse decretada por maioria absoluta
a abolição
do uniforme escolar, a professora achou prudente declarar
encerrado o
plebiscito, e passou à lição de História do Brasil.
REUNIÃO DE MÃES - FERNANDO SABINO
Na reunião de pais só havia mães. Eu me sentiria
constrangido em
meio a tanta mulher, por mais simpáticas me parecessem, e
acabaria nem
entrando - se não pudesse logo distinguir, espalhadas no
auditório, duas
ou três presenças masculinas que partilhariam de meu
ressabiado zelo
paterno.
Sentei-me numa das últimas filas, para não causar
espécie à
seleta assembléia de progenitoras. Uma delas fazia tricô, e
várias
conversavam, já confraternizadas de outras reuniões. O
Padre-Diretor
tomou assento à mesa, cercado de professoras, e deu início à
sessão.
Eu viera buscar Pedro Domingos para levá-lo ao
médico, mas
desta vez cabia-me também participar antes da reunião.
Afinal de contas
andava mesmo precisando de verificar pessoalmente a
quantas o menino
andava.
O Padre-Diretor fazia considerações gerais sobre o
uniforme de
gala a ser adotado. A gravatinha é azul?perguntou uma das
mães. Meia
três-quartos?perguntou outra. E o emblema no
bolsinho?perguntou uma
terceira. Outra ainda, à minha frente, quis saber se tinha
pesponto-
mas sua pergunta não chegou a ser ouvida.
Invejei-lhes a desenvoltura. Tive vontade de perguntar
também
alguma coisa, para tornar mais efetivo meu interesse de pai
- mas temi
aquelas mães todas voltando a cabeça, curiosas e
surpreendidas, ante uma
destoante voz de homem, meio gaguejante talvez de
insegurança. Poderia
também não ser ouvido - e se isso me acontecesse eu sumiria
na cadeira.
Além do mais, não me ocorria nada de mais prático para
perguntar senão o
que vinha a ser pesponto.
Acabei concluindo que tanta perguntação quebrava
um pouco a
solene compostura que devíamos manter, como responsáveis
pelo destino de
nossos filhos. E dispensei-me de intervir, passando a ouvir a
explanação
do Padre-Diretor:
- Chegamos agora ao ponto que interessa: o quinto ano.
Depois de
cuidadosa seleção, foi dividido em três turmas - a turma 14,
dos mais
adiantados; a turma 13, dos regulares; e a turma 12, dos
atrasados,
relapsos, irrequietos, indisciplinados. Os da 13 já não são lá
essas coisas, mas os da
12 posso assegurar que dificilmente irão para a frente, não
querem nada
com estudo.
Fiquei atento: em qual delas estaria o menino? Pensei
que o
Diretor ia ler a lista de cada turma - o meu certamente na
14. Não leu,
talvez por consideração para com as mães que tinham
filhos na 12.
Várias, que já sabiam disso, puseram-se a falar ao mesmo
tempo: não era
culpa delas; levavam muito dever para casa, não se
habituavam com o
semi-internato. Uma - a do tricô, se não me engano - chegou
mesmo a se
queixar do ensino dirigido, que a seu ver não estava dando
resultado.
Outra disse que tinha três filhos, faziam provas no mesmo
dia, como
prepará-los de uma só vez? O Padre-Diretor sacudiu a
cabeça, sorrindo
com simpatia - não posso nem ao menos lastimar que a
senhora tenha tanto
filho. E voltou a falar nos relapsos, um caso muito sério. Não
vai esse
Padre dizer que meu filho está entre eles, pensei.
Irrequieto,
indisciplinado. Ah, mas ele havia de ver comigo: entre os
piores!
E por que não? Quietinho, muito bem mandado,
filhinho do papai,
maria-vai-com-as-outras ele não era mesmo não. Desafiei o
auditório,
acendendo um cigarro: ninguém tinha nada com isso.
Criança ainda, na
idade mesmo de brincar e não levar as coisas tão a sério. O
curioso é
que não me parecesse assim tão vadio - jogava futebol na
rua, assistia à
televisão, brincava de bandido, mas na hora de estudar o
rapazinho
estudava, então eu não via? Quem sabe se procurasse
ajudá-lo, dar uma
mãozinha... Mas essas coisas que ele andava estudando eu
já não sabia
de cor, tinha de aprender tudo de novo. Outro dia, por
exemplo, me
embatucou perguntando se eu sabia como se chamam os
que nascem na Nova
Guiné. Ninguém sabe isso, meu filho, respondi gravemente.
Ah, não sabe?
Pois ele sabia: guinéu! Não acreditei, fui olhar no dicionário
para ver se era mesmo. Era. Talvez estivesse na turma 13,
bem que
sabia lá uma coisa ou outra, o danadinho.
Agora o Diretor falava na comida que serviam ao
almoço. Da
melhor qualidade, mas havia um problema - os meninos se
recusavam a comer
verdura, ele fazia questão que comessem, para manter dieta
adequada. No
entanto, algumas mães não colaboravam. Mandavam
bilhetinhos pedindo que
não dessem verdura aos filhos.
Eis algo que eu jamais soube explicar: por que menino
não gosta
de verdura? Quando menino eu também não gostava.
- Pedem às mães que mandem bilhetinhos e não é só
isso: usam
qualquer recurso para não comer verdura. Hoje mesmo me
apareceu um com
um bilhete da mãe dizendo: não obrigar meu filho a comer
verdura. Só que
estava escrito com a letra do próprio menino.
Chegava era a hora de levá-lo ao médico - uma
professora amiga
foi buscá-lo para mim.
- Meu filho - perguntei, ansioso, assim que saímos: -
Em que
turma você está? Na 12 ou na 13?
- Na 14ele respondeu, distraído. Respirei com alívio: e
nem
podia ser de outra maneira, não era isso mesmo?
- Fico satisfeito de saber - comentei apenas.
Ele não perdeu tempo:
- Então eu queria te pedir um favor - aproveitou-se
logo:- Que
você mandasse ao Padre-Diretor um bilhete dizendo que eu
não posso comer
verdura.
O risadinha (1)- PAULO MENDES CAMPOS
Seria melhor dizer que ele não teve infância. Mas não é
verdade.
Eu o conheci menino, trepando às árvores, armando
alçapão para
canários-da-terra, bodoqueando as rolinhas, rolando pneu
velho pelas
ruas, pegando traseira de bonde, chamando o Professor
Asdrúbal de
Jaburu. Foi este último um dos mais divertidos e perigosos
brinquedos da
nossa infância: o velho corria atrás da gente brandindo a
bengala, seus
bastos bigodes amarelos fremindo sob as ventas vulcânicas.
Nestor, em suma, teve a meninice normal de um
filho de
funcionário público em nosso tempo, tempo incerto, pois os
recursos da
Fazenda na província eram magros, e os pagamentos se
atrasavam,
enervando a população.
Seus companheiros talvez nem soubessem que se
chamasse Nestor;
era para todos o Risadinha. Falava pouco e ria muito, um
riso de fato
diminutivo, nascido de reservados solilóquios, quase sempre
extemporâneo.
Certa feita, na aula de
francês, quando entoávamos em coro o presente do
subjuntivo do verbo
sôen aller, Risadinha pespegou uma bólide de papel bem na
ponta do nariz
do professor, que era muito branco, pedante a capricho e
tinha o nome de
Demóstenes. O rosto do mestre passou do pálido ao
rubro das suas
tremendas cóleras. Um dos seus prazeres, sendo-lhe vetado
por lei
castigar-nos com o bastão, era desfiar em cima do culpado
uma série de
insultos preciosos, que ele ia escandindo um por um, sem
pressa e com
ódio.
- Levante-se, seu Nestor! Sa-cri-pan-ta! Ne-gli-gen-
te!
Si-co-fan-ta! Tu-nan-te! Man-dri-ão! Ca-la-cei-ro! Pan-di-lha!
Bil-tre!
Tram-po-li-nei-ro! Bar-gan-te! Es-trói-na! Val-de-vi-
nos!
Va-ga-bun-do!...
Pegando a deixa da única palavra inteligível, Risadinha
erguia
o dedo no ar e protestava, com ar ofendido:
- Vagabundo, não, professor.
Era um artista do cinismo, e sua momice de inocência
era de
tal arte que até mesmo seu Demóstenes não conseguia
conter o riso.
Como também somente ele já arrancara uma gargalhada do
padre-prefeito,
um alemão da altura da catedral de Colônia, num dia em
que vinha
caminhando lento e distraído, fora da forma.
- Por que o senhorr não está na forma?perguntou-lhe
rosnando
o padre, como se estivesse de promotor da Inquisição,
diante de um
herege horripilante.
- E porque estou com meu pezinho machucado,
respondeu com doçura
o Risadinha.
- E por que senhorr não está mancando?
Risadinha olhou com espanto para os seus próprios
pes, começando
a mancar vistosamente:
- Desculpe, seu padre, é porque eu tinha esquecido.
Aula de inglês – RUBEM BRAGA
- Is this an elephant?
Minha tendência imediata foi responder que não; mas a
gente não
deve se deixar levar pelo primeiro impulso. Um rápido olhar
que lancei à
professora bastou para ver que ela falava com seriedade, e
tinha o ar de
quem propõe um grave problema. Em vista disso, examinei
com a maior
atenção o objeto que ela me apresentava.
Não tinha nenhuma tromba visível, de onde uma pessoa
leviana
poderia concluir às pressas que não se tratava de um
elefante. Mas se
tirarmos a tromba a um elefante, nem por isso deixa ele
de ser um
elefante; e mesmo que morra em conseqüência da brutal
operação, continua
a ser um elefante; continua, pois um elefante morto é, em
princípio, tão
elefante como qualquer outro. Refletindo nisso, lembrei-
me de
averiguar se aquilo tinha quatro patas, quatro grossas
patas, como
costumam ter os elefantes. Não tinha. Tampouco consegui
descobrir o
pequeno rabo que caracteriza õ grande animal e que, às
vezes, como já
notei em um circo, ele costuma abanar com uma graça
infantil.
Terminadas as minhas observações, voltei-me para a
professora e
disse convictamente:
- No, it's not!
Ela soltou um pequeno suspiro, satisfeita: a demora
de minha
resposta a havia deixado apreensiva. Imediatamente me
perguntou:
- Is it a book?
Sorri da pergunta: tenho vivido uma parte de minha
vida no meio
de livros, conheço livros, lido com livros, sou capaz de
distinguir um
livro à primeira vista no meio de quaisquer outros objetos,
sejam eles
garrafas, tijolos ou cerejas maduras - sejam quais forem.
Aquilo não era um livro, e mesmo
supondo que houvesse livros encadernados em louça, aquilo
não seria um
deles: não parecia de modo algum um livro. Minha resposta
demorou no
máximo dois segundos:
- No, it's not!
Tive o prazer de vê-la novamente satisfeita - mas so por
alguns
segundos. Aquela mulher era um desses espíritos
insaciáveis que estão
sempre a se propor questões, e se debruçam com uma
curiosidade aflita
sobre a natureza das coisas.
- Is it a handkerchief?
Fiquei muito perturbado com essa pergunta. Para dizer
a verdade,
não sabia o que poderia ser um handkerchief; talvez fosse
hipoteca...
Não, hipoteca não. Por que haveria de ser hipoteca?
Handkerchief! Era
uma palavra sem a menor sombra de dúvida antipática;
talvez fosse chefe
de serviço ou relógio de pulso ou ainda, e muito
provavelmente,
enxaqueca. Fosse como fosse, respondi impávido:
- No, it's not!
Minhas palavras soaram alto, com certa violência,
pois me
repugnava admitir que aquilo ou qualquer outra coisa nos
meus arredores
pudesse ser um handkerchief.
Ela então voltou a fazer uma pergunta. Desta vez,
porém, a
pergunta foi precedida de um certo olhar em que havia
uma luz de
malícia, uma espécie de insinuação, um longínquo toque de
desafio. Sua
voz era mais lenta que das outras vezes; nao sou
completamente ignorante
em psicologia feminina, e antes dela abrir a boca eu já tinha
a certeza
de que se tratava de uma pergunta decisiva.
- Is it an ash-tray?
Uma grande alegria me inundou a alma. Em primeiro
lugar porque
eu sei o que é um ash-tray: um ash-tray é um cinzeiro. Em
segundo lugar
porque, fitando o objeto que ela me apresentava, notei
uma
extraordinária semelhança entre ele e um ash-tray. Sim. Era
um objeto de
louça de forma oval, com
cerca de treze centímetros de comprimento. As bordas
eram da altura
aproximada de um centímetro, e nelas havia reentrâncias
curvas - duas ou
trêsna parte superior. Na depressão central, uma espécie
de bacia
delimitada por essas bordas, havia um pequeno pedaço de
cigarro fumado
(uma bagana) e, aqui e ali, cinzas esparsas, além de um
palito de
fósforos já riscado. Respondi:
- Yes!
O que sucedeu então foi indescritível. A boa senhora
teve o
rosto completamente iluminado por uma onda de
alegria; os olhos
brilhavam - vitória! vitória!e um largo sorriso desabrochou
rapidamente
nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e
inquieta.
Ergueu-se um pouco da cadeira e não se pôde impedir de
estender o braço
e me bater no ombro, ao mesmo tempo que exclamava, muito
excitada:
- Very well! Very well!
Sou um homem de natural tímido, e ainda mais no
lidar com
mulheres. A efusão com que ela festejava minha vitória me
perturbou;
tive um susto, senti vergonha e muito orgulho.
Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira
aula; andei
na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja,
alguns belos
cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar
um. Certamente
teria entabulado uma longa conversação com o embaixador
britânico, se o
encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da
boca e lhe
diria:
- It's not an ash-tray!
E ele na certa ficaria muito satisfeito por ver que eu
sabia
falar inglês, pois deve ser sempre agradável a um embaixador
ver que sua
língua natal começa a ser versada pelas pessoas de boa-fé do
país junto
a cujo governo é acreditado.
OUSADIA – FERNANDO SABINO
A moça ia no ônibus muito contente desta vida, mas, ao
saltar, a
contrariedade se anunciou:
- A sua passagem já está paga - disse o motorista.
- Paga por quem?
- Esse cavalheiro aí.
E apontou um mulato bem vestido que acabara de
deixar o ônibus,
e aguardava com um sorriso junto à calçada.
- É algum engano, não conheço esse homem. Faça o
favor de
receber.
- Mas já está paga...
- Faça o favor de receber!insistiu ela, estendendo o
dinheiro e falando bem alto para que o homem ouvisse:- Já
disse que não
conheço! Sujeito atrevido, ainda fica ali me esperando, o
senhor não
está vendo? Vamos, faço questão que o senhor receba minha
passagem.
O motorista ergueu os ombros e acabou recebendo:
melhor para ele, ganhava duas vezes.
A moça saltou do ônibus e passou fuzilando de
indignação pelo
homem.
Foi seguindo pela rua, sem olhar para ele.
Se olhasse, veria que ele a seguia, meio ressabiado, a
alguns
passos.
Somente quando dobrou à direita para entrar no
edifício onde
morava, arriscou uma espiada: lá vinha ele! Correu para o
apartamento,
que era no térreo, pôs-se a bater, aflita:
- Abre! Abre aí!
A empregada veio abrir e ela irrompeu pela sala,
contando aos
pais atônitos, em termos confusos, a sua aventura:
- Descarado, como é que tem coragem? Me seguiu até
aqui!
De súbito, ao voltar-se, viu pela porta aberta que o
homem ainda
estava lá fora, no saguão. Protegida pela presença dos
pais, ousou
enfrentá-lo:
- Olha ele ali! É ele, venham ver! Ainda está ali,
o
sem-vergonha. Mas que ousadia!
Todos se precipitaram para a porta. A empregada levou
as mãos à
cabeça:
- Mas a senhora, como é que pode! É o Marcelo.
- Marcelo? Que Marcelo?a moça se voltou,
surpreendida.
- Marcelo, o meu noivo. A senhora conhece ele, foi quem
pintou o
apartamento.
A moça só faltou morrer de vergonha:
- É mesmo, é o Marcelo! Como é que eu não reconheci!
Você me
desculpe, Marcelo, por favor.
No saguão, Marcelo torcia as mãos, encabulado:
- A senhora é que me desculpe, foi muita ousadia...
Mendigo – PAULO MENDES CAMPOS
Eu estava diante duma banca de jornais na Avenida,
quando a mão
do mendigo se estendeu. Dei-lhe uma nota tão suja e tão
amassada quanto
ele. Guardou-a no bolso, agradeceu com um seco obrigado e
começou a ler
as manchetes dos vespertinos. Depois me disse:
Na rua - 71
- Não acredito um pingo em jornalistas. São muito
mentirosos.
Mas tá certo: mentem para ganhar a vida. O importante é o
homem ganhar a
vida, o resto é besteira.
Calou-se e continuou a ler notícias eleitorais:
- O Brasil ainda não teve um governo que prestasse.
Nem rei, nem
presidente. Tudo uma cambada só.
Reconheceu algumas qualidades nessa ou naquela
figura (aliás,
com invulgar pertinência para um mendigo), mas isso, a
seu ver, não
queria dizer nada:
- O problema é o fundo da coisa: o caso é que o
homem não
presta. Ora, se o homem não presta, todos os futuros
presidentes também
serão ruínas. A natureza humana é que é de barro ordinário.
Meu pai,
por exemplo, foi um homem bastante bom. Mas não deu
certo ser bom
durante muito tempo: então ele virou ruim.
Suspeitando de que eu não estivesse convencido da
sua teoria,
passou a demonstrar para mim que também ele era um
sujeito ordinário
como os outros:
- O senhor não vê? Estou aqui pedindo esmola,
quando poderia
estar trabalhando. Eu não tenho defeito físico nenhum e
até que não
posso me queixar da saúde.
Tirei do bolso uma nota de cinqüenta e lhe ofereci
pela sua
franqueza.
- Muito obrigado, moço, mas não vá pensar que eu vou
tirar o
senhor da minha teoria. Vai me desculpar, mas o senhor
também no fundo é
igualzinho aos outros. Aliás, quer saber de uma coisa? Houve
um homem de
fato bom, cem por cento bom. Chamava-se Jesus Cristo. Mas
o senhor viu o
que fizeram com ele?!
DIPLOMA – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
- Olha o diploma da mamãe! Quem tem sua mamãe
deve lhe oferecer
este diploma!
Era atrás do edifício da Noite, na passagem lamacenta
onde se
aglomeram vendedores de canetas automáticas de dez
cores, e outros
artigos. O rapaz aproximou-se da banca onde se exibiam
os diplomas.
Pediu licença para pegar num deles, enquanto o vendedor
continuava
gritando a mercadoria sentimental.
Mirou e remirou o papel com atençao.
- Onde é que bota o retrato?
- Que retrato?inquiriu o camelô.
- O meu, para oferecer a ela...
- Ah, compreendo, o cavalheiro quer oferecer um
retratinho a sua
mamãe. Muito bem, pode colocar sua bonita estampa nas
costas do diploma,
está vendo?
Timidamente, o rapaz formulou a objeção:
- Mas, se ela enquadrar o diploma e pendurar na
parede, o
retrato fica escondido nas costas.
- Perfeitamente, nesse caso ela pode pendurar o
quadro de
costas, e o amigo fica aparecendo.
- Isso não. Eu queria botar meu retrato na frente do
diploma,
junto disso tudo que está escrito aí.
- Não tem problema, cola aqui neste canto, fica até
mais
interessante.
O rapaz tirou um embrulhinho do bolso, tirou do
embrulhinho
sua fotografia em tamanho de postal, aplicou-a sobre o
diploma, no lugar
indicado pelo vendedor. Reconheceu, consternado:
- Cabe não.
- Cabe sim. Com licença, cavalheiro. Olhe como ficou
bacana.
- Assim ele tapa as letras da escrita.
- Ora, só umas letrinhas. A maioria das palavras
continua
visível. Que importância tem tapar algumas palavras? O
cavalheiro
cobre elas com o carinho da sua fotografia.
O rapaz continuava indeciso. Dar um diploma a sua
mãe, no Dia
das Mães, era idéia nova, excitante. Não entendia bem o
que fosse
diploma, porém, certamente, sua mãe o merecia; e se o
diploma levasse o
retrato dele, deixava de ser um diploma qualquer, oferecido
a qualquer
mãe. Mas, como, se não tinham previsto o lugar para o
retrato do filho?
- Vai levar?perguntou o camelô, desejoso de fechar o
negócio e
voltar à pregação oratória - pois eles gostam ainda mais de
falar à
multidão do que de vender.
- Bem... eu levo. Corto o peito do meu retrato, assim
ele cabe
sem ofender as palavras. E como é que eu faço para
mandar para
Inajaroba?
- Onde fica isso, meu chapa?
- Sergipe, então não sabe?
- Até este momento não sabia, mas não tem problema.
Enrola,
bota no Correio, vai de avião.
- Chega todo esbandalhado.
- Então, passa ali na papelaria e pede para botar
enchimento,
fazer uma embalagem bem legal.
- Mais um favorzinho, moço - e o rapaz baixou a voz e a
cabeça.
- Vai dizendo, vai dizendo.
- Pode ler para mim o que está escrito aí? Eu não
gostava que
minha mãe recebesse o diploma sem eu saber o que estou
mandando dizer
nele...
- Com todo o prazer - e leu com ênfase, para o rapaz e
para o
grupo em redor, a declaração de amor de um filho a sua
mamãe, em forma
de diploma.
A OUTRA NOITE – RUBEM BRAGA
Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma
noite de
vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para
casa de táxi,
encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele
que lá em
cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de Lua cheia;
e que as
nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima,
enluaradas,
colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.
Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer
aproveitou um
sinal fechado para voltar-se para mim:
- O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua
conversa.
Mas, tem mesmo luar lá em cima?
Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e
enlamaçada e
torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.
- Mas, que coisa...
Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o
céu fechado
de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não
sei se sonhava
em ser aviador ou pensava em outra coisa.
- Ora, sim senhor...
E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse
um"boa noite"
e um"muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes,
como se eu
lhe tivesse feito um presente de rei.