Uma Análise de Discursos Jornalísticos sobre Trabalhadoras Domésticas
COTIDIANO & POLÍTICA - USP · Quanto aos gêneros jornalísticos adotados por David Nasser e...
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LETÍCIA NUNES DE MORAES
COTIDIANO & POLÍTICA
Em Carmen da Silva e David Nasser
(19631973)
Tese apresentada ao Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Doutora em História
Área: História Social
Orientadora: Profa. Dra. Maria Aparecida de Aquino
São Paulo
2007
Ao
Leonardo,
Esperança no futuro,
Celso & Eulá,
Com gratidão,
Eleonora, Celso e Cândida,
Irmãos e amigos.
2
Agradecimentos
Além do conhecimento adquirido, as pessoas que encontramos pelos caminhos
da pesquisa são, muitas vezes, surpresas à parte neste percurso. Aqui registro a presença
de algumas delas, cujas contribuições foram imprescindíveis para a realização deste
trabalho, com os meus sinceros agradecimentos.
Em primeiro lugar, à minha orientadora, a Profa. Dra. Maria Aparecida de
Aquino, agradeço a orientação, o incentivo constante e o apoio em todos os momentos
difíceis (e foram muitos!) neste caminho até a conclusão deste trabalho.
À banca argüidora do Exame de Qualificação, composta pelos professores
doutores Sara Albieri e Marcos Napolitano agradeço a leitura atenta e as sugestões
oferecidas e que tanto contribuíram para a conclusão do trabalho.
Ao pessoal da biblioteca do MASP, onde tive acesso à coleção de O Cruzeiro,
que me recebeu com tanta atenção e gentileza, agradeço as tardes agradáveis de estudo.
Mui especialmente, agradeço e parabenizo a Ivani, diretora da biblioteca, pela
dedicação e carinho com que cuida, não apenas do acervo da biblioteca, mas também
dos funcionários e consulentes!
À Andréia, responsável pela Biblioteca Banespa–Santander, agradeço a atenção
e a cordialidade com que me recebeu durante as consultas à coleção de O Cruzeiro
referente ao período entre 1971 e 1973.
À Tamiko, diretora da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, onde consultei o
acervo da revista Claudia, agradeço, como aos demais funcionários, a gentileza e
presteza no acesso à documentação solicitada.
Ao Luiz Maklouf Carvalho sou imensamente grata pela conversa
agradabilíssima que tivemos e pela generosidade com que ofereceu uma variedade de
trabalhos realizados por David Nasser para a TV Tupi e para a revista Manchete, os
3
quais, infelizmente, não puderam ser incorporados a este trabalho em função do prazo
para a apresentação dos resultados finais da pesquisa.
Às amigas de todos os tempos e lugares: Claudia, Marily, Diana, Eduarda,
agradeço a torcida, desculpandome pela ausência nos últimos tempos. Aos amigos e
colegas da Pósgraduação: Admar, Marco Aurélio, Mariana, Pérola, Tadeu, Walter e
Wilma, companhias indispensáveis e, muitas vezes, cúmplices neste trabalho solitário
em tantos momentos.
Aos de casa: meus pais, Celso e Eulá; irmãos, Tuti, Celso, Candi, Gustavo e ao
meu pequeno Léo; Joca, Bel, Biba; agradeço as colaborações das mais variadas formas:
conversando, incentivando, consolando, encorajando, acompanhando, esperando, lendo,
digitando, traduzindo, advogando, orando, pajeando.
Finalmente, ao CNPq e à Comissão de Bolsas do Departamento de História da
FFLCH/ USP agradeço o apoio financeiro concedido através de bolsa de estudos.
A todos meu muitíssimo obrigado.
4
Resumo
Esta tese traz uma reflexão acerca das transformações observadas na sociedade
brasileira nas décadas de 196070, muitas das quais tiveram início ou se aceleraram a
partir do golpe de abril de 1964, com a instauração do regime militar. A discussão
proposta parte do estudo dos artigos assinados por David Nasser, em O Cruzeiro, e
Carmen da Silva, na revista Claudia, entre 19631973. Mostro, através do trabalho
destes autores, as sementes do que resultou num endurecimento político baseado num
aparato repressivo cuidadosamente construído, com o objetivo de cercear e punir idéias
políticas diferentes daquelas que sustentavam a ditadura instaurada. Paralelamente, no
campo social/cultural, observouse a abertura dos costumes e dos comportamentos, o
que contradiz, neste momento da história brasileira, a noção segundo a qual: “É mais
fácil derrubar um ditador do que mudar a cabeça das pessoas”.
Palavraschave: imprensa, cultura, cotidiano, política, autoritarismo.
5
Abstract
This thesis ponders about the transformations that took place in the Brazilian
society in the 196070s. These changes have started or increased in pace following the
civilianmilitary coupd'état of April 1964, with the establishment of the Brazilian
military regime. The proposed discussion has its roots in the study of the news articles
authored by David Nasser in O Cruzeiro and Carmen da Silva, in Claudia, spanning the
years 19631973. I show, through the work of these authors, the seeds of what would
later turn into the political hardening based in a carefully built apparatus to stifle and
punish political ideas dissonant with the ones defended by the established regime. At
the same time, other realms of society saw an increasing flexibility of societal norms
and behaviors. This fact, in this particular moment of the Brazilian history, contradicts
the common belief that: “It is easier to topple a dictator than to change people minds”.
Keywords: press, culture, politics, authoritarianism.
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Sumário
Apresentação...................................................................................................................8
Parte I OS PERSONAGENS......................................................................................23
Capítulo 1: DAVID NASSER...................................................................................24
Capítulo 2: CARMEN DA SILVA..........................................................................57
Parte II – OS AUTORES...............................................................................................84
Capítulo 1: AUTORITARISMO & LIBERDADE.................................................85
Capítulo 2: PÚBLICO & PRIVADO.....................................................................157
Considerações Finais..................................................................................................199
Fontes Utilizadas..........................................................................................................203
Referências Bibliográficas...........................................................................................218
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Apresentação
Esta Tese de Doutorado apresenta uma reflexão acerca de um período recente da
história contemporânea brasileira, em que o país esteve quase todo o tempo governado
por militares, sob um regime marcadamente autoritário, instaurado a partir de abril de
1964, a partir de um golpe civilmilitar que depôs o então presidente, eleito
democraticamente, João Goulart. Os vinte e um anos em que os militares estiveram à
frente do poder executivo representam um momento em que é possível observar
importantes transformações na sociedade brasileira. Transformações marcadas por um
endurecimento político baseado num aparato repressivo cuidadosamente construído,
com o objetivo de cercear e punir idéias políticas diferentes daquelas que sustentavam o
regime autoritário instaurado ao mesmo tempo em que se dá, no campo social/cultural,
a abertura dos costumes e dos comportamentos.
A noção originada no senso comum segundo a qual “é mais fácil derrubar um
ditador do que mudar a cabeça das pessoas” foi a fonte inspiradora das reflexões que
procuro aprofundar nesta pesquisa. Sobretudo porque, no Brasil, aconteceu justamente o
contrário. Ou seja, se não foi possível derrubar o regime militar, pois ele próprio saiu de
cena de forma “lenta, gradual e segura”, a cabeça das pessoas mudou e se abriram novas
possibilidades de estar no mundo.
Como fontes de pesquisa foram utilizados o trabalho de David Nasser como
cronista político na revista semanal O Cruzeiro e Carmen da Silva, responsável pela
seção “A Arte de Ser Mulher” da revista Claudia, de circulação mensal, publicados
entre 1963 e 1973, período em que ambos atuaram em concomitância. Escolhi estes
dois autores por apresentarem visões de mundo e projetos de sociedade muito diferentes
entre si, sendo, por isso, excelentes representantes deste momento da história política e
social do Brasil marcado por esta (aparente) ambigüidade.
8
David Nasser passa escrever crônicas políticas em O Cruzeiro, em 1959,
ocupando semanalmente as duas primeiras páginas da revista. Inicia, nesse momento
uma nova fase em sua longa carreira, iniciada em 1936, no jornal O Globo. Em O
Cruzeiro desde 1943, conquistou fama e notoriedade por sua atuação como repórter ao
lado fotógrafo francês Jean Manzon, quando uma mudança editorial instaurou a
fotorreportagem. Nessa fase, os dois se tornaram os nomes mais importantes dentro da
revista. Em 1973, Nasser escreve pela última vez no semanário e, em 1975, O Cruzeiro
deixa de circular. Entre 1962 e 1970, escreveu crônicas também para o programa
“Diário de um repórter” da TV Tupi, também pertencente à rede Diários Associados,
como O Cruzeiro. Durante esse período, escreveu por um breve período, entre 1966 e
1967, em Manchete, fundada em 1952 e a principal concorrente de O Cruzeiro, mas
manteve seu nome no expediente de O Cruzeiro. Retorna à Manchete em 1976, onde
continuou a escrever suas crônicas até falecer, em dezembro de 1980. Acompanho,
neste trabalho, portanto, apenas as suas crônicas políticas publicadas em O Cruzeiro,
revista para a qual escreveu durante quase toda a sua carreira e cuja história, em alguns
momentos, se confunde com a sua própria.
Dono de uma personalidade autoritária, temido e admirado, David Nasser não
tinha pudores em empregar sua inserção na política em proveito pessoal. Participou da
conspiração civilmilitar que depôs o presidente João Goulart e apoiou o regime militar
em todas as suas etapas, mesmo nos períodos de maior violência repressiva, sempre
sustentando um discurso pródemocracia. Escrevendo na revista de maior circulação
nacional, O Cruzeiro, sua coluna semanal de crônicas políticas, tornouse elemento
chave no cenário político pré e pósgolpe de 1964. Por isso também , para esta pesquisa,
optei por analisar somente as crônicas políticas de David Nasser em O Cruzeiro.
Carmen da Silva, ao contrário, dona de um espírito libertário, realizava um
trabalho de formiga, à frente da seção chamada “A Arte de ser mulher”, publicada numa
revista com circulação e público diferentes de O Cruzeiro. A revista mensal Claudia,
9
da Editora Abril, em que Carmen escreveu durante 22 anos ininterruptos, dirigiase ao
público feminino. A linha editorial da revista, quando foi lançada em 1961, considerava
que o papel da mulher na sociedade era o de esposa, mãe, dona de casa, e que nada tinha
a ver com política ou qualquer outra atividade pública, ou seja, externa ao afazeres
domésticos. Assim, passou o ano de 1964 sem fazer uma menção qualquer ao golpe
civilmilitar ocorrido no final de março daquele ano. Era exatamente esta maneira de
pensar, tanto de homens que de mulheres, da sociedade, enfim, que Carmen da Silva
gostaria de ver modificada e por isso lutou dia após dia, mês a mês, na revista ou fora
dela, em palestras, conferências e congressos dos quais participou em todo o Brasil.
Carmen da Silva assume a autoria da seção “A Arte de ser mulher” em setembro
de 1963, nela escrevendo até sua morte, em 1985. Escritora com formação psicanalítica,
Carmen da Silva, também manteve, durante as duas décadas em que escreveu para
Claudia, um espaço junto à seção de cartas da revista, em que respondia diretamente
aos leitores, um consultório sentimental em sua apresentação mais tradicional, embora
sua forma de responder e mesmo o conteúdo de seus conselhos fossem inovadores.
Pois, em seu projeto de sociedade defendia, como ponto de partida para uma sociedade
mais justa e igualitária, a liberdade, principalmente às mulheres para que pudessem
escolher os papéis que desejassem desempenhar na sociedade, além da opção,
praticamente única até então, de esposa e mãe. Ou seja, defendia o direito de exercício
pela de cidadania também para as mulheres, historicamente oprimidas. O diálogo com
os leitores, a partir da correspondência por eles produzida, era a fonte principal dos
artigos de Carmen na seção “A Arte de ser mulher”, pois definia os temas de seus
artigos a partir dos assuntos abordados pelos leitores. De certa forma, os temas sobre os
quais escreveu em sua seção eram pautados pelas cartas dos leitores também.
Quanto aos gêneros jornalísticos adotados por David Nasser e Carmen da Silva,
ambos podem ser considerados articulistas se levarmos em consideração as duas
definições de artigo; uma que lhe é atribuída pelo senso comum de “matéria publicada
em jornal ou revista. Qualquer que seja”. E outra, “peculiar às instituições
10
jornalísticas, que identificam artigo como um gênero específico, uma forma de
expressão verbal. Tratase de uma matéria jornalística onde alguém (jornalista ou não)
desenvolve uma idéia ou apresenta uma opinião.” 1
Os textos de Carmen da Silva, no entanto, podem ser considerados ensaios, uma
espécie de artigo que dele diferenciase em função do tratamento dado ao tema,
apresentado, no caso dos ensaios, a partir de “pontos de vista mais definitivos,
alicerçados com solidez, porque tem compreensão mais abrangente do fato e pretende
sistematizar o seu conhecimento”, e também em função de sua argumentação, apoiada
“em fontes que se legitimam por sua credibilidade documental, permitindo a
confirmação das idéias defendidas pelo autor”.2 Na construção de sua argumentação,
Carmen da Silva costuma utilizar, de um lado as cartas de leitores e, de outro, conceitos
psicanalíticos como fundamentação teóricocientífica para seus pontos de vista. Além
disso, quanto à finalidade, seu texto assume uma feição claramente doutrinária na
medida em que “se destina a analisar uma questão da atualidade, sugerindo ao público
uma determinada maneira de vêla ou de julgála”.3
Como também são doutrinários os artigos de David Nasser, ainda que
apresentem “julgamentos mais ou menos provisórios, porque escritos enquanto os fatos
ainda estão se configurando” e baseados no próprio conhecimento ou sensibilidade do
articulista. Não tenho dúvidas, todavia, de que, em diversos momentos, os textos de
Nasser podem ser considerados crônicas especializadas em questões relacionadas ao
mundo considerado como parte da política, por sua “feição de relato poético do real,
situado na fronteira entre informação de atualidade e a narração literária”:
1 MELO, José Marques de. A Opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 115, 116.
2 Idem, p. 118.
3 Idem, p.119.
11
“O cronista que sabe atuar como consciência poética da atualidade é aquele que
mantém vivo o interesse do seu público e converte a crônica em algo desejado
pelos leitores. Atua como mediador literário entre os fatos que estão acontecendo
e a psicologia coletiva. (...) realizam uma tradução livre da realidade principal,
acrescentando ironia e humor à chatice do cotidiano, à dureza do diaadia”4.
De fato, David Nasser sabia atrair a atenção dos leitores por meio de suas
crônicas. Divirjo, contudo, do professor José Marques de Melo no que se refere à
“chatice do cotidiano”, pois tomar as experiências do diaadia como algo duro e chato
é visão superada entre os historiadores, que recuperaram o cotidiano como lugar
privilegiado das transformações sociais. Segundo a professora Maria Izilda Santos de
Matos,
“Ao contrário do que alguns apontam, a história do cotidiano não é um terreno
relegado apenas aos hábitos e rotinas obscuras. As abordagens que incorporam a
análise do cotidiano têm revelado todo um universo de tensões e movimento com
uma potencialidade de confrontos, deixando entrever um mundo onde se
multiplicam formas peculiares de resistência/ luta, integração/ diferenciação,
permanência/ transformação, onde a mudança não está excluída, mas sim
vivenciada de diferentes formas. Assim, não se pode dizer que a história do
cotidiano privilegie o estático, já que tem mostrado toda a potencialidade do
cotidiano como espaço de resistência ao processo de dominação.”5
É no cotidiano que o processo histórico transcorre. O movimento da História é
dinâmico, ou seja, nele homens e mulheres agem e interagem como sujeitos que não
4 Idem, p.155.
5 MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura. História, cidade, trabalho. Bauru, SP: EDUSC, 2002, p.26.
12
apenas assistem passivamente ao processo histórico, mas dele participam como atores
interferindo neste processo a partir das suas experiências, sejam individuais ou
coletivas. O historiador inglês Edward Thompson, em trabalho no qual critica autores
que excluíram da História o sujeito e a experiência humana, diz, ressaltando sua
importância:
“Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro deste termo – não
como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que
experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como
necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa
experiência em sua consciência e em sua cultura [grifos no original] (...) das
complexas maneiras (...) e em seguida (...) agem, por sua vez, sobre sua situação
determinada.”6
Nessa medida, a presente tese não deixa de ser uma contribuição para o estudo
histórico da imprensa e suas possibilidades de atuação no Brasil contemporâneo, pois
seus agentes, como os aqui considerados, David Nasser e Carmen da Silva, atuam como
mediadores entre editor e público leitor, uma vez que o material por eles produzido
deve agradar estes dois extremos da cadeia de produção jornalística. E, para
compreender a atuação social por eles desenvolvida é preciso considerar que,
internamente, nas redações de jornais e revistas, desencadeiamse múltiplas e
complexas relações entre os produtores da imprensa. Segundo Maria Aparecida de
Aquino:
“Por prática social dos agentes situados na imprensa estamos entendendo o que
se publica num jornal/hebdomadário/revista/órgãos de divulgação de
6 THOMPSON. Edward. P. A Miséria da Teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
13
periodicidade variada. O que se publica é fruto de uma diversidade de relações
que incluem referenciais diferentes. Há uma linha editorial do periódico que
carrega consigo interesses sociais nele representados pelo grupo que o domina.
Há o trabalho do repórter/jornalista/editor/redator/colaborador que, além de seus
próprios pressupostos sociais, realiza um exercício de
aproximação/distanciamento em relação à linha editorial que pode ser mais ou
menos claramente definida pelo órgão de divulgação. Localizase num
artigo/coluna assinada/editorial, portanto, toda uma trama de relações sociais, ao
mesmo tempo, complexas e difusas.”7
Considerando, de um lado, a existência destas tensões constantes no interior das
redações jornalísticas e, de outro, a experiência empírica de leitura e análise dos artigos
de David Nasser e Carmen da Silva não posso considerar válida a noção segundo a qual
os articulistas guardam independência de opinião, seja em relação aos seus editores, seja
em relação aos leitores. É o próprio José Marques de Melo quem afirma:
“A verdade é que, sendo colaboração espontânea ou solicitação nem sempre
remunerada, o artigo confere liberdade completa ao seu autor. Tratase de
liberdade em relação ao tema, ao juízo de valor emitido, e também em relação ao
modo de expressão verbal.”8
Apesar de ter sido um dos jornalistas mais influentes de O Cruzeiro, David
Nasser teve sua coluna suspensa em várias oportunidades por ter expressado opiniões
que desagradaram seu chefe e dono da revista, Francisco de Assis Chateaubriand.
Carmen da Silva, por sua vez, não teve sua coluna suspensa, o que não significa que não
7 AQUINO, Maria Aparecida de. Caminhos Cruzados. Imprensa e Estado Autoritário no Brasil (196480). São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p.01.
8 MELO, José Marques de. Op. Cit., p. 121.
14
tenha tido suas dificuldades com a direção de Claudia. Apenas utilizou outra tática para
contornar tais situações. Assim, no caso dos autores analisados, a censura interna às
suas respectivas redações jornalísticas foi, muitas vezes, mais incômoda aos dois do que
a rígida censura política imposta pelo regime militar aos meios de comunicação a partir
de 1964.
Isto porque, de sua parte, David Nasser apoiava o governo não sendo, portanto,
uma ameaça à autoridade militar. Já Carmen da Silva escrevia para uma revista cuja
proposta editorial estava em perfeita concordância com a defesa da “moral e dos bons
costumes” tradicionalmente aceitos pela sociedade e que a legislação censória se
pretendia defender.
Os articulistas estão, portanto, sempre sujeitos aos interesses de seus editores e
ao gosto de seus leitores. Da relação com os leitores depende a continuidade da
atividade jornalística e da relação com os editores depende a materialização desta
mesma prática, cuja mediação, sempre presente, é dada pela interferência no texto
podendo transformar suas possibilidades de interpretação, através da escolha das fotos/
imagens, a seqüência em que os textos estarão dispostos etc. O editor materializa o texto
produzido pelo autor transformandoo em objeto. Diz Roger Chartier:
“Contra a representação, elaborada pela própria literatura, do texto ideal,
abstracto, estável, porque desligado de qualquer materialidade, é necessário
recordar vigorosamente que não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a
ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que ele seja, que não
dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor.”9
Ainda considerando o aspecto material das escrituras e refletindo sobre os
significados do ato de escrever, que constitui a principal atividade exercida pelos
9 CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988. p. 127.
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agentes de imprensa empregados como fonte para esta pesquisa, afirma Michel De
Certeau:
“Mas, então, o que é escrever? Designo por escritura a atividade concreta que
consiste, sobre um espaço próprio, a página, em construir um texto que tem poder
sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado. (...)
Diante de sua página em branco cada criança já acha posta na posição do
industrial ou do urbanista, ou do filósofo cartesiano – aquela de ter que gerir o
espaço, próprio e distinto, onde executar um querer próprio. (...)
Uma série de operações articuladas (gestuais, mentais) – literalmente é isto,
escrever, vai traçando na página as trajetórias que desenham palavras, frases e,
enfim, um sistema. Noutras palavras, na página em branco, uma prática
itinerante, progressiva e regulamentada – uma caminhada – compõe o artefato de
um outro ‘mundo’, agora não recebido, mas fabricado.”10
Os projetos de sociedade de David Nasser e Carmen da Silva, elaborados a partir
de visões de mundo tão díspares entre si coexistiram na mesma cultura, numa mesma
época e são o “querer próprio” de cada autor, executados nas revistas para as quais
escreveram. Estas, por sua vez, constituem, ao mesmo tempo, um espaço próprio (dos
autores) e distinto (dos editores e leitores).
Revistas como Claudia e seções como “A Arte de ser Mulher”, de Carmen da
Silva, ampliam o campo de atuação da imprensa para além do debate público sobre
prática política nacional, que sempre norteou os rumos da imprensa, sobretudo da
chamada “grande imprensa”.11 Procurando realizar seu desejo de transformação social,
10 DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1999, p.225.
11 Conforme qualificação apontada por Maria Aparecida de Aquino, considerase “grande imprensa” aquela “cuja dimensão, em termos empresariais, atinja uma estrutura que implique na dependência de um alto financiamento publicitário para sua sobrevivência.” AQUINO, Maria Aparecida. Censura, Imprensa, Estado Autoritário(19681978). Bauru, SP: Edusc, 1999, p.37.
16
Carmen da Silva interfere na vida privada de seus leitores ao dandolhes conselhos e
propondo novas formas de vivenciar seus laços afetivos, tentando assim despertarlhes a
consciência para a relevância de seu papel na sociedade, ou seja na vida pública, e não
apenas na família ou na vida privada.
Evita, portanto, uma rígida separação entre o público/coletivo e o
privado/pessoal, diminuindo estas fronteiras quando afirma que “o pessoal é político”
enquanto David Nasser faz um interessante contraponto como representante da política
nacional, caracterizada por uma tendência de “privatização do público” em causa
própria.
Ao contrário de Carmen da Silva, que sempre privilegiou sua relação com os
leitores, Nasser procurou manter estreitas e boas relações com os representantes do
poder político instaurado ou com os editores das revistas em que escreveu, embora
pudesse abrir mão delas se representassem algum empecilho aos seus interesses
particulares. Isso, apesar de apresentarse invariavelmente como defensor da
democracia. Escrevia suas crônicas e reportagens sem grande compromisso com a
verdade dos fatos sobre os quais emitia suas opiniões, as quais aliás poderiam mudar
conforme lhe conviesse, embora se expressasse com autoridade de profundo conhecedor
da “verdade”.
Foi nesta trajetória, partindo do cotidiano e chegando à política, e da política
retornando ao cotidiano, num permanente diálogo, através da observação das atuações
tão distintas entre si destes dois agentes sociais, que foram se assentando as bases desta
pesquisa, apoiada numa corrente historiográfica resumida de forma precisa por Maria
Izilda Santos de Matos:
“A Nova História, ao ampliar áreas de investigação com a utilização de
metodologias e marcos conceituais renovados (modificando os paradigmas
históricos), também influenciou a abertura de perspectivas para os estudos do
cotidiano.
17
Contudo, a influência mais marcante parece ter sido a descoberta do político no
âmbito do cotidiano, o que levou a um questionamento sobre as transformações da
sociedade, o funcionamento da família, o papel da disciplina e das mulheres, o
significado dos fatos e gestos cotidianos. Assim, o renascer dos estudos do
cotidiano se encontra vinculado a uma redefinição do político frente ao
deslocamento do campo de poder das instituições públicas e do Estado para a
esfera do privado e do cotidiano, com a politização do diaadia”12.
A definição dos objetivos desta pesquisa considera, portanto, o cotidiano como o
lugar central, palco privilegiado de todas as relações sociais. Nele as relações são
constituídas, fortalecidas ou estremecidas. Enfim, é no espaço do cotidiano que a
sociedade vive seus processos de transformação. Segundo Agnes Heller:
“A vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecer
histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social. (...) As grandes ações
não cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e
a ela retornam. Toda grande façanha histórica concreta tornase particular e
histórica precisamente graças ao seu posterior efeito na cotidianidade.”13
Como historiadora, que utiliza a imprensa como documento, entendo que este
objeto de estudo deve ser considerado um agente social, como afirma Maria Helena
Capelato:
“... um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social.
Partindo desse pressuposto, o historiador procura estudálo como agente da
história e captar o movimento vivo das idéias e personagens que circulam pelas 12 MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura. História, cidade, trabalho. Bauru, SP: EDUSC, 2002, p. 22.
13 HELLER, Agnes. O Cotidiano e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 20.
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páginas dos jornais. A categoria abstrata imprensa se desmistifica quando se faz
emergir a figura de seus produtores como sujeitos dotados de consciência
determinada na prática social.”14
E para efetivamente conseguir intervir na vida social e fazer valer seus interesses
é que os jornais precisam de leitores. Mais que isso, precisam de leitores que se
identifiquem com os seus interesses para lhes dar legitimidade. Por isso, todos eles
“procuram atrair o público e conquistar seus corações e mentes. A meta é sempre
conseguir adeptos para uma causa, seja ela empresarial ou política, e os artifícios
utilizados para esse fim são múltiplos.”15
Um recurso muito comum empregado pela imprensa para “conquistar corações
e mentes” é o de apresentar seus próprios interesses, enquanto órgão jornalístico, como
interesses coletivos seus e dos leitores. Põem em prática estes objetivos ora se
colocando como mediadora ou “portavoz” dos interesses e inquietações da sociedade
(ou de parte da sociedade que supõe representar) junto do governo ou poder vigente, ora
se autodenominando “formadora de opiniões”.
Ou seja, ora é a imprensa que “assume” a opinião de seus leitores, ora são os
leitores que “assumem” a opinião do jornal. De qualquer forma, sempre se tenta sugerir
a existência de uma unanimidade de interesses entre imprensa e público leitor. É esta
precisamente a postura adotada por David Nasser. E, embora mais altruísta e tolerante
por considerar e respeitar os desejos e mesmo as limitações de seus leitores, Carmen da
Silva também assume uma postura de “formadora de opinião” na medida que espera
que seus leitores também partilhem das mesmas crenças sobre o que seja viver melhor
em sociedade. São estratégias de tentar mudar o mundo através da escrita. Com a
palavra, Michel De Certeau:14 CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. p. 21. Grifo da autora.
15 Idem, p. 15.
19
“...o jogo escriturístico, produção de um sistema, espaço de formalização, tem
como ‘sentido’ remeter à realidade de que se distinguiu em vista de mudála. Tem
como alvo uma eficácia social. Atua sobre a sua exterioridade. O laboratório da
escritura tem como função ‘estratégica’: ou fazer que uma informação recebida
da tradição ou de fora se encontre ali coligida, classificada, imbricada num
sistema e, assim, transformada; ou fazer que as regras e os modelos elaborados
neste lugar excepcional permitam agir sobre o meio e transformálo.16”
Assim, a análise do material escolhido para a pesquisa foi feita à luz dos
seguintes pressupostos, levando em consideração que tanto Carmen da Silva como
David Nasser empregam linguagens próprias, com estilos pessoais e características que
as diferenciam da linguagem jornalística stricto sensu, porém, como esta, é igualmente
forjada no cotidiano, ou seja, no acontecer social, sendo expressão da realidade social
de cuja construção participa. Além disso, os dois autores falam de lugares sociais
determinados e defendem diferentes projetos de sociedade que podem se aproximar ou
distanciar do projeto apresentado pelas revistas em que escrevem. E, finalmente,
considerar os leitores, ainda que constantemente tolhidos pela edição da revista, como
agentes capazes de expor a contradição, o movimento, a possibilidade de mudança, ao
mostrar as suas formas individuais e particulares de entender e vivenciar a moralidade
de sua época.
Se, de um lado, David Nasser atribui aos “dirigentes políticos”, entre os quais se
inclui, papel decisivo nos rumos da sociedade brasileira, de outro, Carmen da Silva
acredita que transformações sociais mais amplas começam nos indivíduos e são,
portanto, possíveis a partir de gestos e condutas assumidos cotidianamente por cidadãos
conscientes de seu lugar social de atores destas transformações e não simplesmente
16 DE CERTEAU, Michel. Op. Cit., p.226.
20
sujeitos de decisões oriundas de instâncias dirigentes / superiores. Dessa forma, situo
esta pesquisa sob a perspectiva de uma história política renovada, que:
“...permite deixar o campo fechado das idéias políticas, reintegrar as aquisições
epistemológicas e metodológicas de Clio para mostrar a centralidade do político
na história das sociedades. Da lingüística à prática militante, da flutuação da
história das idéias à da opinião e da mídia, do estudo dos comportamentos ao da
filmografia, etc., todos os assuntosobjetos falando do político tecem uma
problemática vastíssima e susceptível de desembocar numa explicação
globalizante da mecânica social e histórica.”17
O primeiro e mais importante livro sobre David Nasser foi escrito pelo jornalista
Luiz Maklouf Carvalho entre julho de 1999 e junho de 2001. O autor teve acesso ao
arquivo pessoal de Nasser, que lhe foi disponibilizado pela sua viúva, dona Isabel
Nasser. Segundo Maklouf, David tinha o hábito de guardar e catalogar os documentos, e
textos que produzia tanto para as revistas, como para a televisão. O contato com essa
documentação lhe permitiu conhecer os bastidores da maior revista brasileira. Percebeu
então que a história de Nasser era indissociável da história de O Cruzeiro, daí o
sugestivo título do livro: Cobras Criadas. David Nasser e O Cruzeiro.
Ainda sobre David Nasser, há um artigo de minha autoria, “David Nasser e a
conspiração de 1964”, publicada na revista Tempo Brasileiro, em 2004, em que abordo
a participação do jornalista na conspiração que depôs o presidente João Goulart, em 31
de março de 1964.
Sobre Carmen da Silva há sua autobiografia, Histórias Híbridas de uma senhora
de respeito, publicada em 1984, um ano antes de sua morte, e Carmen da Silva, o
feminismo na imprensa brasileira, de Ana Rita Fonteles Duarte. Este trabalho é
17 TÉTART, Philippe. Pequena História dos historiadores. Bauru, SP: Edusc, 2000, p.129. grifo original.
21
resultado da Dissertação de Mestrado em História Social desenvolvida por Ana Rita na
Universidade Federal do Ceará e defendida em 2002.
Esta tese foi estruturada em duas partes. A primeira, dividida em dois capítulos,
é dedicada aos dois autores. David Nasser, é contemplado com o primeiro capítulo,
Carmen da Silva, com o segundo. Em cada um deles, procuro apresentar a vida, obra e
o pensamento destes jornalistas em sua amplitude, ou seja, inclusive em períodos que
ficaram excluídos com recorte cronológico definido pela pesquisa. Aqui eles são os
meus personagens, daí o nome desta primeira parte.
Na segunda parte, ao contrário, é como autores que eles são considerados. Nesta
parte procurei expor as observações feitas a partir das leituras dos seus trabalhos em
Claudia e O Cruzeiro. Os dois capítulos desta parte versam sobre grandes temas que
possibilitaram destacar as principais diferenças de pontos de vista entre os autores.
Estes temas, permeiam de alguma forma todo o trabalho dos dois e dão nome aos
capítulos: “Autoritarismo & liberdade” e “Público & privado”.
22
Parte I OS PERSONAGENS
23
Capítulo 1: DAVID NASSER
“Atiraste uma pedra no peito de quem só te fez tanto bem
E quebraste um telhado, perdeste um abrigo
Feriste um amigo
Conseguiste magoar quem das mágoas te livrou
Atiraste uma pedra com as mãos que essa boca
Tantas vezes beijou
Quebraste um telhado
Que nas noites de frio te servia de abrigo
Perdeste um amigo que os teus erros não viu
E o teu pranto enxugou
Mas acima de tudo atiraste uma pedra
Turvando esta água
Esta água que um dia, por estranha ironia
Tua sede matou.”
David Nasser, “Atiraste uma pedra”.
24
Pedras. David Nasser atirou muitas pedras do alto de sua tribuna montada nas
primeiras páginas de O Cruzeiro desde 1959, quando começou a escrever crônicas
políticas. Seus alvos eram os adversários políticos e estes também foram muitos. Em
1963, em meio à conspiração civilmilitar que derrubaria no ano seguinte o Presidente
João Goutart, David Nasser critica, com impressionante violência verbal, o então
Ministro da Fazenda do governo presidencialista de Goulart, Francisco Clementino de
San Tiago Dantas, comparandoo à escrava Chica da Silva:
“Aí temos a nossa Chica da Silva de volta, trazendo hipotéticos dólares para o
presente (se andarmos direitinho) – e a futura Presidência, como excesso de
bagagem – se ele andar direitinho. Não adianta dizer à Chica: São Paulo, com
seus quase cinco milhões de eleitores, vai fazer o Presidente que quiser. Não
adianta. Na sua imensa vaidade, Chica sonha alto. Quer ver, no lago de Brasília,
o barco dos seus sonhos. (...)
Chica da Silva é mulher hábil. Escreve a sua História do Brasil com amor e beijo.
Ninguém mais do que ela sabe fazer cafuné. Chica vive o seu momento de cio
glorioso. Diz uma coisa ao Patrão. Diz outra ao seu povo. Diz ao Patrão o que ele
quer escutar. Diz ao povo o que ele gosta de ouvir. Chica da Silva é a flor mulata
de Minas, que desabrocha, manhosa e bela. Chica da Silva é a fantasia de luxo de
uma escrava. Francisca Clementina da Silva Dantas.”18
Na semana seguinte, no espaço de David Nasser era publicado o artigo “Recolha
as pedras, David – a propósito da missão de San Tiago Dantas”, assinado por Nehemias
Gueiros. Sua ausência foi assim explicada:
“David Nasser cede hoje,voluntariamente, o seu espaço a um amigo dileto
que vem defender alguém de sua velha estima. Honra estas páginas com a sua
18 NASSER, David. Chica da Silva, RJ, O Cruzeiro, 13abr1963, p.4.
25
assinatura o Professor Nehemias Gueiros, antigo catedrático de Direito Civil da
gloriosa Faculdade do Recife e membro vitalício do Conselho Consultivo do
Condomínio Acionário de que ‘O Cruzeiro’ é parte integrante.”19
Considerando texto de David Nasser sobre Ministro San Tiago Dantas
“achincalhe” e “descompostura”, Gueiros escreve dirigindose diretamente ao
jornalista:
“Meu caro David Nasser: Não é sem razão – alguma estranha razão, destas que
só o supersticioso ou o fetichista poderiam explicar, nunca a própria razão – que
V. veste a sua personalidade com um nome que é ao mesmo tempo, átono e tônico:
átono no patronímico que lhe identifica a família e a própria raça, tônico no
prenome que lhe contradiz a genitura e a estirpe. Astúcias e ronhas de hebreu
passando na frente da alma desvairada do árabe que V. nunca deixará de ser:
leal, isto é, conforme a lei, mas exaltado, porque segue, por autenticidade, os
ímpetos da circunstância.
Fiel a si próprio, por essa mesma autenticidade, o verdadeiro David nunca
deixaria de ser, no Velho ou no Novo Testamento, o menino que chegou a rei à
custa de pedradas, e o homem de cuja semente e de cuja seara brotaria a
Redenção. David na dispensação da Lei ou David a dispensação da Graça. (...)
David de uma e de outra época, David de cinco pedras na mão – uma só desferida
contra a cabeça do Gigante, as demais na mão para exortar os outros eventuais
Golias.”20
Entretanto, a resposta de Nasser ao artigo de Nehemias Gueiros publicada duas
semanas depois não permite acreditar que ele tenha cedido seu espaço voluntariamente:
19 GUEIROS, Nehemias. Recolhas as pedras, David, RJ, O Cruzeiro, 20abr1963, p.4.
20 idem, ibidem.
26
“Não, eu jamais insultaria a San Thiago, um homem de honra, intocável em sua
vida limpa. Permitame, entretanto, Nehemias, divergir frontalmente dessa
verdadeira encíclica de descompostura amável que sua pena culta escreveu,
hóspede livre de minhas próprias páginas. (...)
Agora quem grita sou eu: pelo amor de Deus, respeitem o simbolismo, por mais
tosco que ele seja. Não leiam a superfície das palavras. Elas são como o vinho que
não é apenas a uva espremida.”21
E sobre sua própria conduta, replica, irônico:
“Olho para as minhas pobres mãos e lhes pergunto o que fizeram, o que disseram,
que já teriam feito ou não teriam dito antes.
Remexo o meu alforje de cristão esfarrapado e lá ainda estão as cinco pedras do
meu destino. Sento na calçada para ver a procissão da minha vergonha – e então
compreendo a hediondez do meu crime. Eu não sou aquele que matou o gigante a
pedradas. Eu sou o menino que viu o rei nu.”22
Este episódio é muito ilustrativo do como foi a atuação de David Nasser como
cronista político, dono de uma verve genial, sempre pronto para atacar ou defender, o
que melhor lhe conviesse, conforme as circunstâncias. Sobre si mesmo e sua trajetória
escreveu, em colaboração especial à revista Manchete, em 1967, numa seção intitulada
“Autocrítica”:
“ ... e se pusesse a olhar o que sou – e não gosto de mim, não gosto do que fiz, não
creio que em qualquer dos territórios que pisei – o do jornalismo resvaladiço das
injunções diárias, o dos livros de circunstâncias, o das canções mimeografadas,
21 NASSER, David. O Profeta da amizade, RJ O Cruzeiro, 4mai1963, p.5.
22 idem, p.4.
27
tenha feito algo perene. São peças que o acaso irá buscar nas bibliotecas ou nas
discotecas públicas. Houve jornalistas de talento infinitamente maior, como João
do Rio ou José do Patrocínio, que apenas viraram nomes de ruas. Antonio Maria,
o mais puro boêmio da crônica, nem seus ossos desencarnaram – e suas peças
ninguém lembra.”23
Se tamanha modéstia era falsa ou verdadeira pouco importa. O fato é que não se
pode negar que David Nasser foi brilhante escritor e compositor, um dos grandes nomes
da história da imprensa e da música brasileiras, cuja produção pode ajudar a
compreender a sociedade brasileira num determinado período de sua história. “David
Nasser foi o jornalista brasileiro mais famoso dos anos 50”, a afirmação é de Luiz
Maklouf Carvalho, autor de Cobras Criadas24, livro em que apresenta uma detalhada
biografia do jornalista. Maklouf teve acesso ao arquivo pessoal de David Nasser e conta
que não encontrou as peças do jornalista espalhadas ao acaso, ao contrário:
“ o David tinha essa preocupação de guardar tudo, catalogar tudo. Ele deixou
tudo numa lógica, matéria por título. Ele tinha uma preocupação bem séria com
isso. (...) Ele tinha uma compulsão de ver a obra dele... parece que ele imaginou
que um dia alguém fosse fazer um livro sobre ele”25.
Filho de imigrantes libaneses, David Nasser nasceu em Jaú no interior de São Paulo,
em 1º de janeiro de 1917, “franzino, com problemas de visão e paralisa parcial nas
pernas”26. Logo se mudaria com família para o Rio de Janeiro. Seu pai, Alexandre
23 NASSER, David. Autocrítica de David Nasser, RJ, Manchete, 19nov1966. p. 14.
24 CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras Criadas – David Nasser e O Cruzeiro. São Paulo: Editora SENAC, 2001. p.19.
25 Luiz Maklouf Carvalho, entrevista à autora, em São Paulo, 29jan2007.
26 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p. 23.
28
Nasser, sustentava a família com o comércio de pedras preciosas e jóias e nunca fora
fotógrafo das expedições do marechal Cândido Rondon e da Coluna Prestes, como
chegou a escrever em seus artigos.
Entre 1926 e 1932, a família Nasser morou em Caxambu, no sul de Minas Gerais,
onde o pequeno David, aos 9 anos de idade, teve seu primeiro emprego: o de entregador
de pão. Contudo, o primeiro emprego com registro em carteira profissional, foi
arranjado pelo pai, numa loja de jóias e curiosidades, onde trabalhou durante quase um
ano, dos 16 aos 17 anos.
Estudante, já mostrava gosto pela leitura e escrita. Um estágio como contínuo em O
Jornal em 1934, introduziu o jovem David no jornalismo. Ali começou a aprender a ser
repórter. O Jornal, adquirido em 1924, foi o primeiro periódico a compor o império dos
Diários Associados, de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo27 que,
naquela época, já contava com Diário da Noite de São Paulo, O Cruzeiro, o Estado de
Minas, Diário da Noite do Rio de Janeiro. Foi em O Jornal que Nasser conheceu
Chateaubriand. Antônio Accioly Netto, diretor de O Cruzeiro, conta como foi o
encontro:
“Dizem que Assis Chateaubriand, ao vêlo, duvidou que fosse capaz de escrever e
aplicoulhe um teste: trancouo numa sala com algumas folhas de papel em
branco e uma máquina de escrever, depois de lhe dar um tema para que
desenvolvesse. Meia hora depois, ele entregava àquele que depois passaria a
27 Paraibano, Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello nasceu em 05/10/1892. Formado em Direito, chegou a ser aprovado no concurso da Faculdade de Direito de Recife para a cátedra de professor de direito romano e de filosofia do direito. Entretanto, não abandonou as atividades jornalísticas, exercidas desde a juventude. Em 1924, adquiriu o diário O Jornal, o primeiro de sua empresa jornalística, os Diários Associados. A primeira estação de TV no Brasil, a Tupi, foi implantada por ele, em 1950. Na política, foi eleito senador pela Paraíba em 1952 e pelo Maranhão em 1955. Durante o governo de Juscelino Kubitschek, representou o Brasil como embaixador na Inglaterra entre 1957 e 1960. Faleceu em 04/04/1968.
29
chamar de ‘Velho Capitão’ um texto excelente e limpo, sem qualquer rasura. Foi
contratado na hora.”28
Depois disso foi suplente de revisor em O Globo, da família Marinho, para o qual
foi contratado, em 1936, aos 19 anos. Seu segundo emprego registrado em carteira. O
primeiro, como jornalista. Uma reportagem sobre a morte do compositor Noel Rosa,
escrita por Nasser, em maio de 1937, teria chamado a atenção de Roberto Marinho29
para o texto do jovem repórter.
Data desta época também sua entrada como compositor na Música Popular
Brasileira. Na esquina da rua de O Globo ficava a Casa Nice, conhecido ponto de
encontro de compositores e intérpretes, freqüentado também por Nasser durante os
plantões noturnos no jornal. Uma reportagem sobre compositores ligados à Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais (SBAT) teria despertado seu interesse pelo meio artístico.
E logo passaria a compor canções que são referência na história da MPB. Seu primeiro
sucesso foi “Nega do cabelo duro”, de 1940, em parceira com o lutador de boxe
Rubens Soares:
“Nega do cabelo duro,
qual é o pente que te penteia?
qual é o pente que te penteia?
qual é o pente que te penteia?
Miseenplis a ferro e fogo
Não desmancha nem na areia
Tomas banho em Botafogo
28 ACCIOLY NETTO, Antônio. O Império de Papel. Os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina, 1998, p. 109.
29 Roberto Marinho nasceu em 3/12/1904, no Rio de Janeiro, filho do jornalista Irineu Marinho, fundador de O Globo, em 1925. Após a morte do pai, dias depois da fundação do jornal, assume a direção do diário Euclides Matos, companheiro do Irineu. Somente em 1931, com a morte de Matos, Roberto Marinho passa a dirigir o jornal.
30
qual é o pente que te penteia, ó nega?”
Fora da imprensa, construiu uma sólida carreira de compositor tendo assinado a
autoria de mais de duzentas, como “Atiraste uma pedra” e “Canta, Brasil”. Esta, fruto
da parceria com Alcyr Pires Vermelho, foi criada em 1941, para concorrer com a
“Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, a mais cantada no carnaval de 1939. Mesmo
guardada a primazia de “Aquarela”, “Canta, Brasil”, alcançou grande popularidade
entre as composições de Nasser, chegando a ser tema de novela da TV Globo, na voz de
Gal Costa:
“As selvas te deram nas noites seus ritmos bárbaros...
Os negros trouxeram de longe reservas de pranto...
Os brancos falaram de amores em suas canções...
E dessa mistura de vozes nasceu o teu pranto...
Brasil
Minha voz enternecida
já dourou os teus brasões
na expressão mais comovida
das mais ardentes canções...
Também,
a beleza deste céu
onde o azul é mais azul
na aquarela do Brasil,
eu cantei de norte a sul,
mas agora o teu cantar,
meu Brasil, quero escutar
nas preces da sertaneja
nas ondas do riomar...
Oh!!!
31
Esse rio – turbilhão,
Entre selvas e rojão
Continente a caminhar!!!
No céu!
No mar!
Na terra!
Canta, Brasil!!!”
Nasser criou as letras de 231 músicas. Com Herivelto Martins, assinou uma
“Mamãe”, espécie de hino à mulher em seu papel de mãe e “rainha do lar”, ficou
conhecida na voz de Agnaldo Timóteo, e revela um olhar do compositor sobre o
cotidiano:
''Ela é a dona de tudo
Ela é a rainha do lar
Ela vale maia para mim
Que o céu, que a terra, que o mar
Ela é a palavra mais linda
Que um dia o poeta escreveu
Ela é o tesouro que pobre
Das mãos do Senhor recebeu
Mamãe, mamãe, mamãe
Tu és a razão dos meus dias
Tu és feita de amor, de esperança
Ai, ai, mamãe
Eu cresci, o caminho perdi
Volto a ti e me sinto criança
Mamãe, mamãe, mamãe
Eu te lembro o chinelo na mão
32
O avental todo sujo de ovo
Se eu pudesse, eu queira outra vez, mamãe
Começar tudo, tudo de novo”
Também com Herivelto Martins criou vários clássicos no estilo dordecotovelo.
Entre as mais conhecidas destacase “Camisola do dia”, que ilustra uma tradicional
representação feminina no imaginário masculino:
“Amor, eu ainda lembro
Que era linda, muito linda
Um céu azul de organdi
A camisola do dia
Tão transparente e macia
Que eu dei de presente a ti
Tinha rendas de Sevilha
A pequena maravilha
Que o teu corpinho abrigava
E eu era dono de tudo
Do divino conteúdo
Que a camisola ocultava
A camisola que um dia
Guardou a minha alegria
Desbotou, perdeu a cor
Abandonada no leito
Que nunca mais foi desfeito
Pelas vigílias do amor.”
Com esses e outros parceiros talentosos, construiu a obra que lhe assegura também
um destacado capítulo na história da música popular brasileira. E, ao menos no campo
33
da música, ninguém duvida que ele tenha criado algumas peças perenes. Quem nunca
cantou numa virada de ano o hit “Adeus ano velho”, também de sua autoria?
“Adeus Ano Velho
Feliz Ano Novo
Que tudo se realize no ano que vai nascer
Muito dinheiro no bolso,
Saúde para dar e vender!”
Como repórter, David Nasser permaneceu em O Globo até 1943, quando foi para a
revista O Cruzeiro, dos Diários Associados de Chateaubriand, onde virou celebridade e
enriqueceu com o que publicou (ou deixou de publicar), temido e respeitado, vivia
cercado de afagos e bajulações. Lançada em novembro de 1928, O Cruzeiro ainda é a
revista que mais tempo permaneceu em circulação no mercado brasileiro, tendo existido
durante 50 anos. A revista nasceu para ser o primeiro veículo com circulação nacional e
mais um instrumento da atuação política do empresário Francisco de Assis
Chateaubriand Bandeira de Mello, criador e proprietário do conglomerado Diários
Associados.
A criação da revista foi um gesto político de Assis Chateaubriand, que contou
com o apoio decisivo do então Ministro da Fazenda do governo Washington Luís,
Getúlio Vargas, para levantar fundos e assim ressuscitar o projeto fracassado, por falta
de verba, de revista nacional criada, em 1927, pelo jornalista português Carlos
Malheiros Dias. Fernando Morais conta que a revista Cruzeiro (sem o “O”) foi
totalmente reformulada:
“(...) a Cruzeiro de Chateaubriand era uma revista com papel de melhor
qualidade, repleta de fotografias, contaria com os melhores articulistas e
escritores do Brasil e do exterior, e assinaria todos os serviços estrangeiros de
34
artigos e fotografias. Impressa em quatro cores pelo sistema de rotogravura, a
revista teria de ser rodada em Buenos Aires, já que a qualidade das gráficas
brasileiras estava ‘abaixo do nível das africanas’. E tinha mais: Cruzeiro seria
semanal, com tiragem de 50 mil exemplares (e não os 27 mil imaginados por
Malheiros)”. 30
capa da edição de lançamento de
O Cruzeiro
Dentre seus muitos sucessos, a tiragem é um dos aspectos em que a revista
mantém recorde ainda imbatível. No início dos anos 40 a circulação da revista era de 11
mil exemplares, em outubro de 1954, logo após o suicídio de Vargas, saltou para 720
mil, quando a população brasileira estava em cerca de 45 milhões de habitantes. Em
1957, atingiu os 887 mil exemplares, estabilizandose em 550 mil no restante dos anos
50 e início dos 60, quando entra em declínio.31
Na década de 50, período em que alcançou seu pico de tiragem, O Cruzeiro
ampliou significativamente sua proximidade com o público, constituindo parte
30 MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 178.
31 Para se ter uma idéia do que estes números significam em termos de público leitor, hoje, a Veja, revista semanal da Editora Abril, a mais vendida atualmente, tem circulação média de 1,5 milhão exemplares/semana para 160 milhões de brasileiros, aproximadamente.
35
importante do cotidiano de muitos leitores. Sobre o sucesso da revista na década de 50,
Edgard Luiz de Barros escreveu:
“Conforme Millôr Fernandes, O Cruzeiro foi a ‘revista de maior sucesso de todos
os tempos no Brasil. Numa população de 45 milhões de habitantes chegou a
vender 750 mil exemplares semanais e teve uma edição internacional, em língua
espanhola, que circulava até no sul dos Estados Unidos’. Na década de 50, a
empresa se transformou ‘no que equivale à TV GLOBO de hoje, faturando
milhões’.”32
A comparação com a TV Globo é pertinente porque transmite uma noção do que
representava a presença da revista O Cruzeiro no diaadia dos leitores nas décadas de
40 e 50. Embora a primeira emissora de televisão brasileira, a Tupi de São Paulo, tenha
sido inaugurada pelo próprio Assis Chateaubriand, em 1950, é importante lembrar
também que a televisão ainda não fazia parte do cotidiano das pessoas nos anos 50. O
rádio, as revistas e jornais eram os principais veículos de comunicação. Só nos anos 70
o veículo se consolida pela forte presença no cotidiano dos telespectadores33.
Revista semanal ilustrada, de fatos diversos, O Cruzeiro dirigiase ao grande
público e por isso ainda apresentava diversas seções: crítica de cinema, teatro, literatura,
coluna social e as dirigidas ao público feminino: “Elegância e Beleza”; “Lar Doce Lar”,
sobre culinária e “Da Mulher para a Mulher”, consultório sentimental. Merecem
destaque as memoráveis seções de humor: “O PifPaf”, de Millor Fernandes (que
assinava Vão Gôgo) e “O Amigo da Onça”34, personagem de Péricles Maranhão, os 32 BARROS, Edgard Luiz de. O Brasil de 1945 a 1964. São Paulo: contexto, 1999. p. 33.
33 HAMBURGUER, Esther. “Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. Cia das Letras, São Paulo, 2000.
34 “O Amigo da Onça” é, provavelmente, o quadro de humor mais lembrado da revista. O célebre personagem, que age o tempo todo no sentido de promover a derrota do outro sem nunca ser derrotado, foi criado pelo cartunista Péricles Maranhão e se transformou na moldagem de uma visão de mundo, um
36
quadrinhos de Carlos Estevão e “Garotas” de Alceu Penna. O Cruzeiro foi, portanto,
uma revista de variedades, dedicada a informar e divertir o leitor, além de ser
instrumento de atuação política por meio do qual seus editores podiam expor suas
posições frente à política nacional e internacional.
Em 1943, passou por uma importante reformulação editorial, dirigida por Freddy
Chateaubriand, quando foi instaurada a fotorreportagem. As principais estrelas desta
renovação foram a dupla Jean Manzon e David Nasser, que realizavam juntos grandes
reportagens sobre assuntos variados, conforme a classificação de Helouise Costa: culto
à personalidade; esporte e lazer (futebol principalmente); artes, literatura e ciência;
natureza e aventuras; a cidade; o grotesco e o exótico.35 Foi como repórter ao lado de
Manzon, o seu parceiro ideal, que David Nasser conquistou um lugar de destaque na
equipe de O Cruzeiro.
Juntos, os dois criaram a era do ilusionismo no jornalismo. Numa entrevista
concedida à revista Manchete em 1965, publicada com o título ''O rei David'' na
tentativa de minar a concorrente com a contratação do entrevistado, o jornalista resumiu
o capítulo inicial de suas aventuras com o fotógrafo. ''Naquele tempo, ninguém fazia
reportagens, no sentido literal da palavra. (...) Quando o Manzon chegou aqui, era
como um tenista de primeira classe ensinando um tenista de província eu. Aprendi
muito. Em primeiro lugar, aprendi a vencer a timidez, Depois inicieime nos truques da
profissão. O Manzon, embora não sendo um homem de cultura, possui extraordinária
sensibilidade jornalística, acima do comum.”36 Tanto Manzon como Nasser eram
modo de ser. Presente em O Cruzeiro a partir de 1943, os quadros d’O Amigo da Onça foram desenhados pelo seu criador até 1962, ano da morte de Péricles Maranhão. Daí em diante, o personagem passou a ser desenhado por Carlos Estevão. O personagem é tema da pesquisa de doutorado do Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva. Ver: SILVA, Marcos Antônio da. Prazer e Poder d’o Amigo da Onça. São Paulo: USP, Tese (Doutorado) – FFLCH/USP, 1986.
35 COSTA, Helouise. Aprenda a ver as Coisas: fotojornalismo e modernidade da revista O Cruzeiro. São Paulo: USP. Dissertação (Mestrado) – ECA/USP, 1992.
36 O Rei David, RJ, Manchete, 1965.
37
sensíveis, superlativos e sem compromisso com a verdade. Augusto Nunes, por ocasião
do lançamento de Cobras Criadas, escreveu:
“O repórter era um Jean Manzon das palavras. O fotógrafo era um David Nasser
dos textos. O filho de imigrantes árabes materializava miragens com a
competência de um beduíno milagreiro. O destino juntouo ao parisiense cujas
câmeras mágicas eram capazes de documentar, com idêntico brilho, o real, o
recriado ou o imaginário.
Entre 1943 e 1952, nove anos de convívio atestaram que aqueles parceiros haviam
efetivamente nascido um para o outro. Trocaram afagos e estocadas. Prometeram
se o adeus irrevogável para reaproximarse semanas mais tarde, entre juras de
amizade eterna. Estrelas da mesma grandeza, reverenciados por patrões,
jornalistas e leitores, disputaram espaço nos letreiros como artistas
temperamentais. Faz sentido. Nasser e Manzon foram os mais festejados artistas
da imprensa no Brasil dos anos 40 e 50.
Os trabalhos da dupla eram identificados com a aparição dos nomes no alto da
página, lado a lado, nunca superpostos, em letras do mesmo tamanho. Numa
inversão da regra segundo a qual o repórter tem precedência, o fotógrafo
freqüentemente irrompia à frente do desfile. Fotos de Jean Manzon. Texto de
David Nasser. Essa fórmula vigorava quando as fotos eram de tal modo
impressionantes que reduziam todos parágrafos, títulos e legendas a adereços.
Muito vistosos, mas adereços. Foi assim na reportagem em que o deputado
Barreto Pinto, convencido pelo francês sedutor a exibirse na intimidade, topou
posar de cuecas, entre outras situações desconcertantes.”37
A reportagem “Barreto Pinto sem máscara”, foi publicada em 29 de junho de
1946, e trazia o deputado Edmundo Barreto Pinto, do PTB, em cuecas sambacanção e
fraque. Luiz Maklouf afirma que:
37 NUNES, Augusto. Já não se faz imprensa assim. Ainda bem. RJ, Jornal do Brasil, 15dez2001.
38
“Nasser mantinha uma relação promíscua com o deputado, pois o mesmo escrevia
também no Diário da Noite, o folhetim em que o parlamentar narrava suas
memórias. Era Barreto que assinava o folhetim – mas o próprio Nasser confessou
na Manchete, que a obra era de sua autoria, sem esclarecer se remunerada ou
não.
É fato indiscutível que o deputado pagou aos Diários Associados pelas memórias,
como comprova o recibo que Nasser guardou em seu arquivo pessoal. É de 12 de
abril de 1949 e está assinado por Barreto Pinto. Não cita o valor, mas dá o
número do cheque.”38
Com o fim do Estado Novo, em 1945, David Nasser começa a escrever uma
série de artigos, publicados posteriormente no livro Falta alguém em Nuremberg. O
livro denunciava e descrevia as torturas praticadas durante a ditadura de Getúlio Vargas
comparandoas às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. O título,
uma referência ao tribunal internacional em torno do qual, reunidos, em 1946, na cidade
alemã de Nuremberg, os “aliados” julgaram os inimigos por crimes cometidos durante a
guerra, sugere que o exditador Getúlio Vargas deveria ser julgado pelo mesmo
tribunal. No prefácio da primeira edição, de 1947, David Nasser escrevera:
“As atrocidades praticadas no Brasil pela polícia política do Capitão Filinto
Strubling Müller excederam, em alguns pontos, as torturas infligidas pela Gestapo
aos judeus, antinazistas e prisioneiros aliados. Difícil é comparar a maldade com
a maldade, a barbaria com a barbaria, o perverso com o perverso. (...) Os
policiais brasileiros do Sr. Getulio Vargas enfiavam arames nos ouvidos dos
presos. Os nazistas alemães faziam experiências cientificas com os recolhidos aos
campos de concentração. Os policiais brasileiros enfiavam arames na uretra dos
38 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit. P. 156.
39
presos, e, com um maçarico, aqueciam esses arames ate ficarem em brasa. Os
nazistas alemães executavam os presos em câmaras de gás. Os policiais
brasileiros apertavam o crânio dos presos até que eles morressem ou
enlouquecessem.
Tornase impossível, finalmente, quais eram os piores. Observarão os senhores,
apenas, que, enquanto os nazistas alemães pagaram ou estão em vias de pagar
seus crimes espantosos, os policiais brasileiros, autores de crimes contra a
humanidade, mantémse em seus postos, impunes e felizes, quase todos bem
instalados na vida”39.
David Nasser, contudo, não responsabiliza o Capitão Filinto Muller pelas
torturas que denuncia, alegando não ter contra ele “qualquer motivo pessoal de
animosidade”. Seu alvo é Getúlio Vargas:
“O autor do presente livro não conhece pessoalmente o Capitão Filinto Strubling
Müller, nem tem contra ele qualquer motivo pessoal de animosidade, a não ser
aqueles mesmos que nos fazem odiar os inimigos da espécie humana. Julgoo,
porém, o segundo grande responsável pelos crimes praticados sob sua direta
orientação. O primeiro grande culpado, a seu ver, e o Sr. Getulio Vargas, que
poderá fugir a todos os julgamentos atuais, mas não escapara ao implacável, justo
e sereno veredicto da História. Logo que os fatos se coloquem dentro da
perspectiva de analise, ele será apontado no Brasil como o maior assassino dentre
os assassinos que viveram no tempo de sua vida”40.
Se, em 1947, David Nasser nada tinha contra Filinto Muller, quando, em 1972, o
exchefe da polícia política de Getúlio Vargas morre em acidente aéreo, o jornalista não
39 NASSER, David. Falta alguém em Nuremberg. RJ: Edições O Cruzeiro, 1966, p.5.
40 idem, p. 6.
40
só elogiou sua conduta após o Estado Novo, como tentou explicar seu próprio ponto de
vista:
Todos esses anos, após a amarga ditadura de Vargas, Filinto foi o antiFilinto.
Fez o possível e o impossível para que delissem a imagem do homem que faltara
em Nuremberg, a forca vazia. (...)
Naquele tempo, acusar a um tirano era um ato de coragem. Hoje, defender um
velho roído de mágoas, investido de autoridade, devotado inteiro a serviço de uma
causa justa, ou seja, o equilíbrio político, sedimento revolucionário, é uma
crueldade. Personagens assim não nos pertencem mais. Deixaram o cotidiano,
entraram para a História, que os julgará por nossas verdades ou por nossas
mentiras, mas ditas no tempo certo.(...)
O exemplo de sua primeira vida, retratada por mim em dois livros (será que não
basta?), valeu como advertência de que todo ser humano, é preciso repetir, exige
um metro cúbico de respeito em torno de si. O novovelho Filinto, inteiramente
remodelado, merecia de qualquer um, o respeito a que um membro do Conselho
dos Direitos Humanos faz jus. Madalena arrependida, dirão vocês. Não penso
assim. A alma possui tais mistérios que Filinto bem pode ser um Saulo no caminho
de Damasco. Em sua vida há duas vidas, das quais a primeira estava a merecer o
silêncio temporário do jornal, para o julgamento definitivo da História da qual
somos os miseráveis escribas de todo dia, mas não de toda hora”41.
Mas nenhuma reportagem do jornalista conseguiu o sucesso de público
alcançado por Giselle: a espiã nua que abalou Paris, invenção de David Nasser e
ilustrada por vedetes fotografadas por Jean Manzon, anunciada como testemunho
merecedor de credibilidade. Publicado em 59 capítulos pelo Diário da Noite, o folhetim
transformou o jornal em campeão de vendas no segundo semestre de 1948. Editado
41 NASSER, David. Os dois Filintos. RJ, O Cruzeiro, 19abr1972, p.16.
41
como livro de bolso nos anos 60, a história da francesa que, presa num cabaré, rolara
''de prisão em prisão, de cama em cama, satisfazendo os apetites bestiais dos oficiais
nazistas''42 superou a marca dos 500 mil exemplares.
Freddy Chateaubriand, diretor do Diário da Noite e depois de O Cruzeiro,
contou a Luiz Maklouf Carvalho que a nota de abertura apresentava o texto como ''um
documentário traduzido do original francês pelo jornalista italiano Carlo Tancini,
agora de passagem pelo Rio”. Mas, na verdade, “nunca houve Giselle, ela nunca
abalou Paris. O Manzon trazia as fotos não sei de onde e o David escrevia com aquela
facilidade''.43 Na mesma entrevista Freddy Chateubriand, responsável pela reformulação
editorial de O Cruzeiro, em 1943, que uniu a dupla Nasser e Manzon, recorda aqueles
tempos dizendo:
“Os fatos não eram importantes para o David, e sim a criatividade. Ele inventava
coisas pra poder valorizar as reportagens. Foi o Manzon que ensinou isso pra ele.
Eu era tolerante. Se você é jornalista e quer vender, você tem que ser escroto. É
uma palavra meio forte, mas você não pode ter tanto prurido, senão não vende
porra nenhuma. (...)
O Manzon tinha escrúpulo zero. Nenhum escrúpulo. E o David, mais ou menos a
mesma coisa. (...) Talvez por acaso, em uma ou duas reportagens, porque calhou.
Não tinha o que alterar, e a verdade era mais interessante do que a mentira. O
sucesso é que é importante. Veracidade? Quem está ligando pra ver se é verdade?
Era um jornalismo de resultados. Viver de jornal era a coisa mais difícil do
mundo.”44
42 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit. P. 156.
43 Idem, p.198.
44 idem, p. 127.
42
Maklouf destaca ainda a homenagem que Nasser recebeu, em 1954, de O
Cruzeiro, registro da importância do homem que apareceria no expediente como
''repórter principal''. Com o título ''David, o Repórter'', oito páginas abrigam parágrafos
atulhados de adjetivos adulatórios e 81 fotos. “Nenhum repórter no mundo mereceu
homenagem desse porte”. A ordem para a festa de papel fora expedida pelo próprio
Chateaubriand, admirador declarado do repórter que chamava carinhosamente de
''beduíno de uma figa'' ou ''turco louco''.
Sua última grande cobertura como repórter, em 1959, foi um caso policial: o
assassinato de Aída Curi, uma jovem de 18 anos, morta ao ser jogada do décimo
segundo andar de um edifício na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, onde estava em
companhia de Ronaldo Guilherme de Souza Castro, de 19 anos, e Cássio Murilo
Ferreira da Silva, de 16 anos, que facilitara a entrada dos dois no edifício em obras.
Encontrando forte resistência de Aída, Ronaldo, que a forçava uma relação sexual com
a moça, teria lhe dado um tapa e depois sido, deixandoa a sós com Cássio. Meses
depois, indignado com a sentença do juiz Joaquim de Sousa Neto, que encerrou o caso
alegando falta de provas e inocentando os dois menores e o porteiro do prédio que
permitiu a entrada dos três jovens, David Nasser volta a carga com o artigo “Um juiz no
banco dos réus”, em 14 de março de 1960, e consegue reverter o caso. Em 11 de
outubro de 1963, no terceiro e último julgamento do caso, Ronaldo é condenado e à
prisão por treze anos e cinco meses. Cássio, por ser menor, é beneficiado e o porteiro,
absolvido.
Em 1959, David Nasser tornouse, além de principal redator, um dos diretores
da revista e passou a assinar o primeiro artigo do semanário, em página dupla, em geral,
sobre um tema político. No mesmo ano, em 21 de setembro, Chateaubriand doou a 22
empregados 49% da propriedade do seu império de comunicação45, dando origem ao
Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados. Luiz Maklouf Carvalho 45 Constituído, na ocasião, por quarenta jornais e revistas, mais de vinte estações de rádio, quase uma dezena de estações de televisão, uma agência de notícias e uma empresa de propaganda.
43
comenta a nova estrutura de poderes após a distribuição das cotas para criação do
Condomínio: “João Calmon, vicepresidente, era o segundo em importância depois do
fundador. Os terceiros eram Edmundo Monteiro, em São Paulo, e Leão Gondim, no
Rio. Cada qual com seu feudo, e seus interesses, mantinham relativamente contida a
luta pelo poder, afinal indiscutivelmente centralizado por Chateaubriand.”46
David Nasser não foi contemplado no primeiro momento, passando a ser
condômino somente a partir de 1962, “indicado pelo patrão para ingressar no
Condomínio, na vaga aberta pelo falecimento do jornalista paraense Frederico
Barata”47.
Em 28 de fevereiro de 1960, Chateaubriand sofreu uma dupla trombose cerebral
que o deixou quadriplégico, sem movimentos nas pernas e braços. Assim permaneceu
até sua morte, em abril de 1968. Porém, mesmo debilitado fisicamente, Chateaubriand
continuou escrevendo seus artigos, de sua residência em São Paulo, a Casa Amarela,
transformadaa, inclusive, num dos centros de conspiração contra o governo de João
Goulart nos anos que precederam o golpe que depôs o Presidente.
Da relação estabelecida entre Chateaubriand e David Nasser, neste período,
transparece um certo respeito mútuo, preservado por interesses enquanto estes
permanecessem comuns. Pois, em comum mantinham também o mesmo estilo de fazer
jornalismo, ou seja, usar a informação como moeda de troca para obtenção de
benefícios pessoais.
Habilidoso com as palavras, Nasser não poupava de severas críticas e, muitas
vezes, graves ofensas os personagens políticos de seus artigos. Contudo, referiase a
Chateaubriand com muito cuidado, mesmo para criticálo, sem poupar elogios, como no
artigo “Um trio desafinado” em que o chama de “límpido, viril, altivo, autêntico”:
46 CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras Criadas. São Paulo: Senac, 2001. p. 388.
47 MORAIS, Fernando. Op.cit., p. 639.
44
“Assis Chateaubriand é hoje, em sua prisão física, o jornalista mais livre do
Brasil. Nenhum impedimento, nenhum interesse o detém. Vê os seus amigos por
um raioX cruel, desnudandoos, mostrandoos vértebra por vértebra, em todas as
suas fraquezas humanas a uma platéia sádica.”48
Este texto mostra um pouco da dinâmica da relação patrãoempregado mantida
por ChateaubriandNasser. Nele, o assunto é o tratamento dado ao expresidente
Juscelino Kubitschek. Chateaubriand sempre o defendeu das suas críticas, dizia Nasser:
“Quantas, quantas brigas tivemos, eu e meu patrão, por você, Juscelino! (...) Não
queria que eu o maltratasse”. Contudo, a situação mudou e:
“O tempo passou. Juscelino, ao fim do governo, consciente ou inconscientemente,
fez algumas ursadas com o Velho. Faltou com o respeito à antiga amizade. Foi
ingrato. Chateaubriand ficou uma fera. Nunca houve uma criatura que detestasse
tanto a palavra não cumprida. E Juscelino, perdoeme a franqueza, não é muito de
cumprir palavra.”49
No fundo, David Nasser, orgulhoso, reivindicava para si a responsabilidade por
assassinar politicamente o expresidente:
“Permitame, Chefe, que não aceite de suas mãos de anatomista, o cadáver
insepulto do homem que ajudei a assassinar politicamente. Permitame dizerlhe,
companheiro, da Casa Amarela, que o verdadeiro Juscelino é o seu Juscelino de
ontem, o meu Juscelino de hoje. Somos um trio desafinado.”50
48 NASSER, David. Um trio desafinado, RJ, O Cruzeiro, 02fev1963, p.4.
49 Idem, ibidem.
50 Idem, ibidem.
45
Se como cronista político usava a palavra como arma para assassinar
politicamente seus adversários, fora da imprensa também defendeu o uso de outras
armas. Apesar de menos divulgado, é digno de nota seu envolvimento com o Esquadrão
da Morte:
“No começo dos anos 60, Nasser estabeleceu novas amizades com uma turma de
investigadores da polícia civil – aquela que mais tarde viria a ser conhecida como
‘onze homens de ouro’ ou Esquadrão da Morte, ou, ainda, Scuderie Le Cocq. (...)
essa relação informal (...), iria se tornar oficial entre o final de 63 e o golpe
militar, quando Nasser levou os ‘empreiteiros de Jesus’, como os chamava, para
dentro de casa.”51
Na noite de 31 de março de 1964, quando foi deflagrada a ação golpista pelo
general Olímpio Mourão Filho, que saiu de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro, David
Nasser refugiouse em sua própria casa escoltado pelos seus amigos, “homens de ouro”,
conforme suas memórias no artigo “O Dia em que Jango caiu”:
“Na madrugada revolucionária, o esquadrão apareceu aqui em casa com todo
aquele arsenal. Vinha o Le Cocq, velho e querido amigo, guerreiro com alma de
lavrador, a arma entre o cinto e barriga. O Euclides, um garoto de dois metros de
altura, gaguejava ordens. O Paulistinha, o Sivuca, o Guaíba, o Jacaré, o Ivo, o
Arrepiado e tantos outros que estão no álbum de família e cujos nomes me
escapam da memória. A casa no centro de um terreno a alguns metros da rua,
virou fortaleza. Tomaram posição no telhado, na varanda, no jardim. Parecia
guerra de verdade. (...)Tudo aquilo me parecia heróico e ridículo ao mesmo
tempo.” 52
51 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. cit, p. 412414.
52 NASSER, David. “O Dia em que Jango caiu”, in: Manchete, 28/10/1967, p. 140.
46
Em diversas oportunidades Nasser defende publicamente a atuação dos
“empreiteiros de Jesus”. No artigo publicado em 30 de março de 1963, sobre o
assassinato de um rapaz, filho do jornalista Odylo Costa Filho, seu colega em O
Cruzeiro, por outros jovens menores de idade, defende a lei do “olhoporolho”:
“Morreu com a dignidade de um veterano, caiu sob armadura medieval,
defendendo a sua dama contra bandidos. E eram talvez bandidos de sua idade.
Hoje – seu pai, que retoma o trabalho e vê paginar o drama que lhe sai das
entranhas – sabe que tem comigo, com todos os homens decentes dessa
submerdência (e é submerdência mesmo), uma responsabilidade maior: poupar a
vida de nossos filhos, encurtando a dos assassinos. Vamos almoçalos antes que
jantem os nossos meninos. A ordem é essa: um revólver na cintura e atirar para
matar.” 53
No mesmo artigo apresenta a sua solução para o problema da delinqüência
juvenil e defende a atuação do Esquadrão da Morte:
“Há muito tempo venho eu, voz isolada, clamando por medidas que ponham fim à
delinqüência juvenil. Fui acusado de sensacionalista por uns. De exagerado, por
outros. (...) Fabricamos monstros infantis, esses robots de calças curtas. E,
quando eles matam, pomos a culpa em Lacerda, sem lembrar que os maiores
culpados somos nós mesmos.(...)
Pobres dos agentes da lei que se atrevessem a executálos, no cumprimento da
missão, em defesa da própria vida ou de outrem. Respondiam criminalmente a
todos os processos, iam ao banco dos réus, perdiam meses nas salas dos tribunais
– e corriam o risco de uma sentença desfavorável. Era o abominável Esquadrão
da Morte”.54
53 NASSER, David. Só mesmo à bala, RJ, O Cruzeiro, 30mar1963, p. 4.
54 Idem, ibidem.
47
Repórter, escritor, letrista, cronista político. David Nasser foi também dono de
uma personalidade autoritária bastante identificada com o regime militar e autoritário
que ajudou a implantar:
“Em sentido psicológico, falase de personalidade formada por diversos traços de
personalidade autoritária quando se quer denotar um tipo de personalidade
formada por diversos traços característicos centrados no acoplamento de duas
atitudes estreitamente ligadas entre si: de uma parte, a disposição à obediência
preocupada com os superiores, incluindo por vezes o obsequio e a adulação para
com todos aqueles que detém a força e o poder; de outra parte, a disposição em
tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e em geral todos
aqueles que não têm poder e autoridade.” 55
David Nasser, escrevia com bastante autonomia em O Cruzeiro. Num no artigo,
"Jornalismo e liberdade", recorda a liberdade concedida e seus limites, reafirmando
sempre sua independência:
"Muita gente ignora que nada disto me pertence. A não ser o espaço invendável
destas páginas e o direito de discordar até mesmo de Assis Chateaubriand,
direito que ele cavalheirescamente me ofereceu e eu, na minha liberdade filial,
jamais exerci, como que repele uma heresia. De qualquer forma ele me outorgou
esse direito, na sua liberalidade de repórter que sabe o preço exato da
independência.
No meio de arrancarabos homéricos fui antiDutra, quando ele era dutrista, anti
Vargas quando ele defendia a permanência de Vargas, antiJuscelino nos
momentos de seu idílio com o juscelinismo. Nunca me proibiu que tivesse opinião
55 BOBBIO, Norberto e alii. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB, 2000, p.95.
48
própria. Sempre trabalhei aqui, sem que ele exercesse sobre mim a censura prévia
da autoridade. Às vezes, delicadamente, arranjava um jeito de cassarme a
palavra mandandome para Port Said, quando sua vontade era para outro lugar.
Outras vezes, discutia o assunto, mostrando as suas divergências mas isso só
acontecia depois do artigo publicado” 56.
Assim, durante o período analisado nesta pesquisa, David Nasser esteve afastado
das páginas de O Cruzeiro em dois momentos importantes. Sua presença pode ser
acompanhada em três fases distintas, intercaladas por longas ausências. Primeira fase
iniciase em 7 de setembro 1963 e se encerra em 9 de janeiro de 1965, quando anuncia
férias em aviso aos seus leitores: “Vou entrar em férias atrasadas a partir de janeiro”,
advertindoos: “Por favor, não tirem conclusões precipitadas. Não são férias
revolucionárias.”57 Revolucionárias ou não, suas férias foram longas pois, somente
volta a escrever suas crônicas políticas na revista apenas em 2 de outubro daquele ano.
Neste período, Nasser esteve em Portugal onde desembarcou no ano anterior. De
lá, escreveu vários artigos sobre a terra de Camões entre setembro de outubro de 1964:
“Este é o Minho” de 12 de setembro de 1964; “A presença de Camilo” de 19 de
setembro de 1964; “Saudade defumada” de 3 de outubro de 1964; “A Ilha Verde”, 10 de
outubro. Estes e outros artigos foram publicados posteriormente, em 1965, no livro
Portugal, meu avozinho.
Contudo, mesmo em terras estrangeiras, Nasser continuou atuando nos
bastidores da política brasileira. Uma nota na seção de política de O Cruzeiro, “Em
Confiança”, na edição de 7 de agosto de 1965, afirma: “David Nasser entrevistouse
durante hora e meia com o Presidente Oliveira Salazar, recentemente. Que dizia não
entender porque o Marechal Castelo Branco não quer continuar na presidência do
56 NASSER, David. Jânio a face cruel. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1966, p. 10.
57 NASSER, David. O volátil Golbery. RJ, O Cruzeiro, 9jan1965. p.4.
49
Brasil”.58 Outra nota, na mesma seção, conta que, de Lisboa, Nasser teria telefonado
para Juscelino Kubitschek e, dizendo ser adversário político sem nunca ter deixado de
lado a velha amizade, oferecia ao expresidente um “conselho fraternal: não volte
agora. Sua presença no Brasil vai agitar o ambiente, vai trazer complicações, e
ninguém, mais do que você, amigo velho, pode desejar que o clima de tranqüilidade se
restabeleça em sua pátria. Juscelino ouviu e concordou. ‘Voltarei depois das
eleições”, disse. E David atalhou: ‘ não, volte depois da posse dos eleitos.” 59
Outro período de longa ausência ocorreu a partir de 10 junho de 1967, quando
fica afastado por um período ainda maior. Desta vez, o motivo foi o artigo “Burrice
americana”, no qual David Nasser criticava duramente a política comercial do governo
brasileiro, que considera “lesiva aos interesses nacionais” porque, segundo o jornalista,
permitiria aos “norteamericanos pagar menos impostos de renda no Brasil que os
próprios brasileiros.” 60 O tema causa grande repercussão, incluindo resposta do ex
ministro Octávio Bulhões.
David Nasser é afastado e já no segundo semestre de 1967 está escrevendo para
a concorrente Manchete. Criada para ser a principal concorrente de O Cruzeiro,
Manchete chegou às bancas em abril de 1952. Idealizada por Adolpho Bloch61, a revista
também utilizava a linguagem da fotorreportagem. Em 1956, passou por uma
importante reformulação que abrangeu desde a política editorial até a qualidade gráfica,
com a aquisição de novas impressoras. O apogeu de Manchete coincide com o declínio
58 “Em confiança”, RJ, O Cruzeiro, 7ago1965. p.86.
59 idem, ibidem.
60 NASSER, David. A burrice americana. RJ, O Cruzeiro, 13mai1967. p.4.
61 Adolpho Bloch nasceu na antiga União Soviética e veio para o Brasil em 1922 trazendo a experiência adquirida nas tipografias da família em Kiev.
50
de O Cruzeiro. A partir de 1958, descontentes com a postura ética de Chateaubriand,
muitos jornalistas de O Cruzeiro migram para Manchete.62
Nasser mantém, contudo, seu nome no expediente de O Cruzeiro como diretor e
redator principal, “ousadia jamais vista na imprensa brasileira”63. Na concorrente
escreveu sobre seus amigos Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, Chateaubriand,
Castelo Branco, seu pai: Alexandre Nasser, entre outros. Recordou “O Dia em que
Jango caiu” e “Os melhores anos da minha vida”. Neste último, tenta explicar seu
afastamento de O Cruzeiro:
“A história que resultou no meu afastamento voluntário das páginas de O Cruzeiro
e das câmaras associadas não é mais do que uma troca de um substantivo por um
adjetivo. Discípulo fiel de Carlos Drummond de Andrade, sempre que hesitava
entre dois adjetivos, escolhia um substantivo.
Não sei como aconteceu fugir à regra àquele dia. João Calmon havia escrito um
artigo, O Americano Burro. Eu escrevi outro sobre A Burrice Americana. Nem um
nem outro, evidentemente, queriam classificar de burro o povo americano, mas
apenas a burrice de certos americanos, pois a burrice não é privilégio de
ninguém. Muito menos de brasileiros”64.
Possivelmente, uma forma de expressar seu desejo de retornar a O Cruzeiro, de
onde não gostaria de ter saído: “Na minha idade de marinheiro velho, não se pode
mudar de capitão. Ele continuaria a ser o mesmo. Até ele morrer ou até vir mijar na
minha sepultura” 65. O “Velho Capitão” Chateaubriand, por sua vez, também não estava 62 conf. ANDRADE, Ana Maria Ribeiro, CARDOSO, José Leandro Rocha. Aconteceu, virou manchete. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.21, p.243264, 2001.
63 CARVALHO, Luiz Maklouf, Cobras criadas. São Paulo: Senac, 2001, p. 21.
64 NASSER, David. Os melhores anos da minha vida. RJ, Manchete, 02dez1967, p.101.
65 NASSER, David. Jânio a face cruel. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1966, p. 13.
51
muito satisfeito com a presença de “Turco louco” na concorrência e, quando Nasser é
premiado em Portugal por sua obra sobre o país, o dono dos Diários Associados
escreveu:
“A reação primeira que tive, e logo comuniquei a amigos portugueses, quando
recebi a notícia de que David Nasser abiscoitara o ´Prêmio Camões’ deste ano, da
Academia de Ciências de Lisboa, foi imediata: ‘Nem Camões escapou desta
peste!’
O galardão é o maior concedido pela Academia. E se aqueles homens graves, que
conservam a nobre e alta tradição do espírito português, resolveramse a premiar
o turco com tão alta comenda, é que o consideram, no melhor sentido da palavra,
um brilhante homem de letras.
Nós, aqui de O CRUZEIRO, e dos ‘Diários Associados’, estávamos habituados a
ver nele o colunista que brotou do repórter, em uma evolução natural do escriba
que amadureceu e que, de revelador de grandes temas e denunciador de grandes
escândalos, passara a comentador de energia e coragem, dono de um estilo
agressivo, e de uma coragem pessoal rara em nossa vida pública.
Na verdade, onde havia um crime a apontar, uma injustiça a reparar, ou uma
ação nobiliatadora a ressaltar, lá aparecia o turco, desengonçado e feio, mas
brandindo o aço com a força de um Ferrabrás. De adaga em punho, pois tanto
correspondia a sua pena, investia a fundo, embebendo a lâmina no fígado do
adversário, que logo ficava pálido, exangue, reduzido a um trapo. (...)
O prêmio é de David, mas a glória é também nossa, porque nosso, dos
‘Associados’, é o turco da peste que o conquistou.”66
No final de 1966, escreveu em Manchete, sobre sua forma de fazer jornalismo:
66 CHATEAUBRIAND. Francisco de Assis. Nem Camões escapou deste peste! RJ, O Cruzeiro, 16set1967, p.6.
52
“Teria ficado cheio de mim se não soubesse que escrevo razoavelmente, pois não
pagariam para tanto. Nem teria a longevidade profissional que me apavora, me
persegue e quer me destruir, até que eu consiga me livrar de uma vez. Mas, não
me considero, dentro da profissão, um expoente. Tive, acima de tudo, uma sorte de
cachorro. A de encontrar um homem que acreditou num menino de 15 anos e lhe
deu uma maquina de escrever e um destino. Esse menino é o velho que sou hoje,
antes dos 50 que não fiz. O velho é o moço Assis Chateubriand, roble gigante a
esperar, tranqüilamente o raio que o fulminará. Dizer que gosto do escrevo seria
mentir, acho cansativo, pedante, monótono e purgativo. Repito muito as palavras.
Não dou importância aos exageros e às imperfeições, se digo o que quero dizer.
Em Angola, Deus me perdoe, batizaram de nasserismo um estilo jornalístico – e
isso só me envergonha em vez de envaidecer. Significa uma forma apenas de fazer
jornalismo. Bato dura na maquina de escrever, por isso não me adapto à elétrica,
e uso a antiga, a quadrada, com uma bigorna ou um piano de onde nunca
consegui arrancar uma peça romântica. E sei que não poderia fazer isso. Mas,
antes de tudo, com a ajuda de Castelo Branco e a prisão de Assis Chateubriand,
preciso que esqueçam esse mau jornalista e bom sujeito que é o David Nasser.”67
Quando Chateaubriand faleceu, em 4 de abril de 1968, Nasser escreve em
Manchete sua despedida, sempre atento às disputas internas na direção de O Cruzeiro:
“Chateaubriand não apenas respeitava, mas suportava as minhas divergências,
meus descaminhos, minhas rebeldias. Nunca fui seu paumandado. Não quero
tratar aqui, por uma questão de higiene literária, das tentativas que fizeram para
transformar um desacordo político numa questão pessoal. Nunca o conseguiram.
(...) O governo deve preservar a obra de Chateaubriand, o instituto de sua
vontade, dentro da qual talvez eu não esteja após a sucessão, porque até a
67 NASSER, David. Autocrítica”, RJ: Manchete, 19nov1966, p.18.
53
perpetuidade se renuncia para se voltar a ser homem livre. E eu o sou. Como ele o
foi até o fim.”68
Em 8 de setembro de 1970, retorna a O Cruzeiro ocupando novamente as primeiras
páginas. Com grande alarde é anunciada “A Volta do Turco”. Neste período, até em 11
de abril de 1973, quando pára definitivamente de escrever para a revista, seus artigos
podem ser classificados em três grandes temas, segundo Luiz Maklouf de Carvalho:
“O primeiro é o apoio declarado à escalada da repressão e ao governo Médici,
cujo exemplo mais triste e significativo é o artigo que festeja o assassinato de
Carlos Lamarca (‘passional’, ‘fanático’, ‘primata ideológico’, ‘delirante’,
‘paranóico’, ‘dopado de ódio’). Adjetivos assim eram atribuídos a todas as
correntes que lutavam contra a ditadura, especialmente a esquerda que pegou em
armas, mas não só. Dom Hélder Câmara, por exemplo, foi saco de pancadas.(...)
O segundo tema recorrente na volta a O Cruzeiro é o conjunto de artigos em
causa própria, sobre os problemas do café e da pecuária – produzia grãos e bois
com alguma desenvoltura (...) O terceiro tema constante eram os amigos políticos,
rurais, policiais e musicais: Delfim Netto, Mário Andreazza, Armando Falcão,
Haroldo Polland, Ibrahim Abbudi Neto, Jean Manzon, Silvio Caldas, José
Cândido de Carvalho, Juscelino, Le Cocq.”69
Apesar de não escrever mais para O Cruzeiro desde 1973, a sua saída definitiva
só foi formalizada em 20 de maio de 1975, em documento amplamente divulgado na
imprensa no qual declarava discordar “frontalmente do modo pelo qual está sendo
administrado(...) traindo as nobres intenções do criador do instituto”70 o Condomínio 68 NASSER, David. Meu último encontro com Chateaubriand. RJ, Manchete, 7abr1968, p.150.
69 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p.520
70 Carta encaminha a João Calmon, presidente do Condomínio Diários Associados por intermédio de oficial de Justiça do Sexto Ofício de Títulos e Documentos. In: CARVALHO, Luiz Macklouf. Op. Cit., p. 526.
54
Acionário das Emissoras e Diários Associados, presidido desde a morte de
Chateubriand, em abril de 1968, por João Calmon. A própria revista morreu
melancolicamente em 1975, assassinada pela ação conjunta de maus gestores e
vendedores de matérias jornalísticas.
Em 1976 retorna a Manchete, para onde levou toda a sua história em O Cruzeiro e
seu ressentimento em relação a João Calmon. Os artigos escritos contra ele logo lhe
trariam problemas. Bloch, apesar de têlo recebido de braços abertos, encarregou Carlos
Heitor Cony, então diretor de Manchete, a informálo de que um de seus artigos seria
vetado e substituído por uma matéria, escrita pelo próprio Cony: “David Nasser, o
repórter”. Em entrevista concedida a Luiz Maklouf Carvalho, Carlos Heitor Cony
revelou a primeira impressão que teve ao conhecer Nasser pessoalmente, em junho de
1975, durante a crise dos Associados:
“A sensação mais importante que eu tive foi a disparidade entre a imagem pública
– um bocadefogo , um repórter agressivo – e aquele caco que eu encontrei. Era
uma pessoa frágil, indefesa, precisando de apoio para descer uma escada, abotoar
uma camisa. A fragilidade de chocou muito.”71
David Nasser permaneceu escrevendo em Manchete até sua morte, em 10 de
dezembro de 1980, vítima de câncer de fígado. Deixou uma fortuna em imóveis e
fazendas legada à esposa, dona Isabel. De sua bibliografia constam 17 livros, quase
todos coletâneas de seus artigos publicados em jornais e revistas: Mergulho na aventura
(1945), Só meu sangue é alemão (1944), Para Dutra ler na cama (1947), A Cruz de
Jerusalém (1948), Falta Alguém em Nuremberg (1947), A Revolução dos Covardes
(1947), Eu fui guardacostas de Getúlio (1947), Por uma menina morta (1959), Jânio, a
face cruel (1966), O Velho Capitão e outras histórias reais (1962), A Revolução que
71 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p. 537.
55
se perdeu a si mesma (1965), João sem medo (1965), Portugal, meu avozinho (1965),
Chico Viola (1966), A vida trepidante de Carmen Miranda (1966), Autocensura (1977),
Parceiro da Glória: meio século na MPB (1983).
Em resumo, David Nasser na descrição de Augusto Nunes:
“Ele escrevia admiravelmente. Criava metáforas tão imaginosas e exatas que
poderiam ser infiltradas sem retoques num texto de Nelson Rodrigues.
Desengonçado ao moverse, compunha com a máquina de escrever um conjunto
de tal forma elegante e harmonioso que, se pudesse cavalgála, venceriam
qualquer concurso de equitação. As palavras desciam do cérebro para as mãos em
procissões copiosas e belas. Com a coordenação motora prejudicada por uma
doença que o surpreendera na infância, impunhase ao instrumento de trabalho
com o vigor de atleta olímpico. Escrevia bem, escrevia muito, escrevia como
poucos literatos escrevem. Já não se fazem repórteres como David Nasser.
Ainda bem. Porque esse brasileiro que nasceu na cidade paulista de Jaú, viveu
uma infância pobre no Rio e uma adolescência difícil em Caxambu foi também
outra evidência de que um mesmo indivíduo pode exibir, simultaneamente, muito
talento, bastante sensibilidade, nenhum escrúpulo, alguma misericórdia e
excessiva brutalidade.”72
72 NUNES, Augusto. Já não se faz imprensa assim. Ainda bem. RJ, Jornal do Brasil, 15dez2001.
56
Capítulo 2: CARMEN DA SILVA
“Os homens decretaram que só as mulheres ‘foram feitas’ para o amor:
a eles cabem as grandes conquistas, as realizações importantes, o universo inteiro.
E nós, na nossa modéstia, nos vingamos só amando nos homens
o que eles têm de melhor:
o que se deu em chamar seu ‘lado mulher’.
A conclusão a que quero chegar com tudo isso, óbvia e nada brilhante,
Mas fundamental para a tranqüilidade dos dignos cavalheiros, é a seguinte:
Não precisam ter medo, feminista não morde.
Na pior das hipóteses, ela cospe fogo. E aí, sai de baixo!”
Carmen da Silva, “Histórias híbridas de uma senhora de respeito”.
57
Carmen da Silva nasceu em 31 de dezembro de 1919, gaúcha de Rio Grande,
pequena cidade “onde o pampeiro sopra de lado espalhando cheiro de peixe e o
minuano sopra de outro, difundindo o odor de cebola. Não é muito inspirador para
quem fica no meio – aliás, o centro nunca é inspirador – mas, bem ou mal, dá para
sobreviver”.73 A lembrança é da própria Carmen e mostra sua crença de que é sempre
melhor assumir uma posição. E sustentála.
Aos 24 anos, deixou Rio Grande e o Brasil e mudouse para Montevidéu, no
Uruguai. O porquê desta escolha, de novo, é a própria Carmen da Silva quem explica:
“Simplesmente porque não me alcançava a audácia para tentar o Rio de Janeiro. O
Rio era o desconhecido total, outro universo, outro clima, outros hábitos”. Por outro
lado: “Montevidéu eu já conhecia, tinha aí uns primos, havia uma casa, herança de
meu avô, da qual me tocava uma parte: o Uruguai era próximo, quase familiar, o salto
que não cobria distâncias temerárias nem grandes riscos”, conta a jovem e prudente
Carmen.74
Em 1950, mudouse para a Argentina onde viveu uma fase importante de sua
formação intelectual. Em Buenos Aires, publicou seu primeiro romance Setiembre, cuja
inspiração foi a experiência de viver sob a ditadura peronista (19511955). Sobre a
cidade pairava um “clima denso e sufocante – às vezes literalmente, pois era comum ter
de andar pelas ruas com o lenço molhado no nariz para protegerse das emanações de
gás lacrimogêneo, vestígios de escaramuças recentes”75, lembra a autora, que diz ter
ficado profundamente impressionada com a “explosão de liberdade” assistida em 16 de
setembro de 1955, com a queda de Perón:
73 SILVA, Carmen. Histórias Híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 190.
74 Idem, p. 43.
75 Idem, p. 74.
58
“Em cinco anos que vivera em Buenos Aires, jamais testemunhara nada
semelhante: rostos abertos em sorriso, comunicação espontânea, desconhecidos se
abraçando, carros particulares arrebanhando gente, dez, quinze pessoas
apertadas em cada um deles (...). Até então eu só vira aglomerações que eram
massa, pela primeira vez eu via povo.
Dezesseis de setembro ficou trabalhandome a cabeça, como uma data decisiva
um marco. (...) eu passava por um período meio depressivo, problemas pessoais,
fase analítica difícil e aquilo foi uma tremenda e fecunda sacudida, tirando meu
euzinho de seu nicho de absoluta importância e feroz singularidade: meu primeiro
vislumbre de consciência coletiva, o sentimento de ser plural.”76
Publicado em 1957, o romance Setiembre recebeu o prêmio “Faixa de Ouro”,
concedido pela Sociedade Argentina de Escritores. Ainda na Argentina, como
jornalista, escreveu para diversos jornais e revistas. Nesta fase, também investiu em sua
formação psicanalítica. Alice Barreto, sobrinha de Carmen, conta que a tia “trabalhou
na revista da Associação Psicanalítica Argentina. Nessa época estudava muito, lia
muito e fez um curso de psicodiagnóstico. E, para pagar seu tratamento psicanalítico
era secretária da Associação.”77
Assim, quando retornou ao Brasil, em 1962, Carmen da Silva tinha 43 anos e um
nome construído a partir de uma história de “lutas, amores, encantos e desencantos”78.
E, desta vez, pode optar pelo Rio de Janeiro: “amei minha própria coragem de me
transplantar já na meia idade, deixando em Buenos Aires uma existência em certo
modo privilegiada para vir enfrentar em meu país uma realidade que, nos primeiros
tempos, afora o esplendor da moldura, se apresentou bem mesquinha”79. Mas a decisão 76 Idem, p. 8283. 77 Entrevista a Claudia, maio de 1987. Citado por DUARTE, Ana Rita Fonteles. Carmen da Silva, o feminismo na imprensa brasileira. Fortaleza, CE: Edições Nudoc, UFC, 2005, p. 86. 78 SILVA, Carmen. Histórias Híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 19. 79 Idem, p. 115.
59
de voltar a morar no Brasil não foi fácil: “Vontade, mesmo, eu tinha era de enterrar a
cabeça no chão, na terra fofa de meu cotidiano gostoso, bem engendrado, rodeado de
presenças mais gratas e cordiais e esquecer o chavão patrioteiro, surrado e cafona
que eu entendera de tomar a sério e converter em imperativo: Lugar de brasileiro é no
Brasil.” Entre os amigos argentinos, contudo:
“A renúncia de Jânio Quadros deume uma imprevista e injustificada
importância: para meus amigos, tratandose de Brasil, l’État, c’etait moi. De um
momento para outro minha casa virou quartelgeneral de boatos, conjecturas e
comentários, uma espécie de sede extraterritorial dos acontecimentos. (...) Sem
perceberem, sem se proporem, meus amigos de certa forma me estavam
expulsando de seu convívio ao fazerme sentir cada vez mais comprometida com
meu país.”80
E, já em território nacional, a sensação de ser estrangeira custou um pouco a
passar. A adaptação ao Brasil e aos costumes cariocas foi difícil. Tornarse consciente
da realidade brasileira, só fez reafirmar sua vontade de assumir seu lugar no mundo, o
mundo que gostaria de ver diferente e para isso seria preciso adotar uma posição e
exercer sua cidadania:
“Mais tarde, vim a descobrir que o chavão só vale para brasileiro mixa, feito eu.
Ou os ainda mais mixas do que eu, flagelados de todos os flagelos: as secas, as
enchentes, as emanações da mina, a inflação, o salário mínimo, as filas da
previdência social onde e quando há alguma previdência social, a alternativa
entre a proliferação ad infinitum e as pílulas da Benfam distribuídas como
pacotinhos de balas e os pacotinhos de balas distribuídos no natal pelas damas
caridosas a crianças que terão de fazer a balas durarem até março porque nos
80 Idem, p. 111112.
60
próximos três meses não terão outra coisa para enganar a fome e depois do
trimestre bem, isso vai ser ver quando chegar a hora porque o futuro a Deus
pertence. Futuro de brasileiro mixa pertence a Deus porque nenhum ser humano
que tenha escolha quer tocar em semelhante futuro em com pinça.
“Lugar de brasileiro importante é no exterior. Pedindo dinheiro emprestado a
juros extorsivos e embolsando as comissões. (...) Lugar de brasileiro importante é
nos cofres suíços: toda a importância dos brasileiros importantes mora lá.
“às vezes tenho meus momentos de crise. Aí bato o pé no chão e grito para minhas
quatro paredes: como é que é, gente, eu vim para o Brasil para votar: como é que
é? Como é que é?”81
Seu primeiro emprego no Brasil foi de secretária num escritório. Através do
contato com as colegas, “moças que ganhavam seu próprio sustento, levantandose às
seis da manhã, fazendo longos trajetos apertadas em ônibus ou lotações, trabalhavam
oito horas diárias, almoçavam um sanduíche rápido (...), moravam sozinhas ou com
uma companheira, voltavam à casa esfalfadas no fim do dia, arrumavam o
apartamentinho, enfeitavamse com as escassas galas que o salário permitia e punham
se a esperar. Esperar o que desse e viesse: um convite para sair, um namorado que não
fosse muito mal intencionado, um marido que não vinha justamente porque elas
trabalhavam fora e de ‘mulher independente’ homem não gosta”82. Do contato com
essas moças, Carmen “descobriu” a mulher. E foi uma revelação:
“novamente a queda do sétimo véu, o último e mais superficial que ainda encobria
minha visão. Compreendi que a mulher não é obra da natureza e sim uma
paciente, laboriosa – e maliciosa – obra da cultura. ‘On ne naît pas femme: fazse
81 Idem, p. 112113. grifo original.
82 Idem, p. 118.
61
a mulher dentro de um molde e a que sai do padrão leva o rótulo de monstro.
Somos produzidas em série, dentro de especificações da ‘feminilidade’ tal como os
homens acharam por bem de interpretala segundo seus melhores interesses e
enquadradas no tipo físico determinado por um Instituto de Pesos e Medidas, que
analisa o material e descarta a escória. Mais uma vez: jóia e flor ou bagulho.”83
Carmen da Silva admite que – “talvez porque freqüentava homens de um grupo
um tanto especial – escrevia, publicava, fizera um nomezinho para mim na Argentina,
tinha uma cabeça ‘arejada’” – começou a sentir “uma certa superioridade,
asquerosamente machista , sobre suas colegas do escritório”. E aos poucos percebeu
que elas “enfrentavam sozinhas, com plácida coragem inconsciente de si, todos os
desafios da existência, exceto o mais compensador: o desafio de ser. O direito de dizer
eu gosto, eu quero, eu faço, eu desejaria, eu pretendo, sem copiar gestos, quereres,
desejos e pretensões condicionados por séculos de lavagem cerebral”. A “casquinha de
noz à deriva da correnteza”84 foi o tema de seu primeiro artigo, “A Protagonista”,
publicado em Claudia, da Editora Abril.
A aproximação com a Editora Abril, aconteceu após a publicação, em 1963, de
Sangue sem Dono, romance que marcou seu reencontro com sua língua e sua pátria, e a
encorajou a procurar a Editora. Carmen lembra: “consegui uma coluna à qual, Deus me
perdoe, a direção deu o nome de “A Arte de Ser Mulher”. Bem, está certo, se você
acha que acrobacia é arte.”85 Assim, Carmen da Silva estreava na imprensa brasileira
em setembro de 1963.
83 Idem, p. 117.
84 Idem, p. 119. grifo original.
85 Idem, p. 120.
62
Em circulação até os dias de hoje, Claudia foi lançada em 1961, pela Editora Abril,
do empresário Victor Civita.86 Com tiragem inicial 150 mil exemplares, a revista
dirigiase à mulher donadecasa e trazia mensalmente, além da seção de Carmen da
Silva, “Arte de ser mulher”, matérias sobre moda, beleza, culinária, literatura: contos e
crônicas, reportagens sobre personalidades, lugares e comportamentos e diversas seções
de entretenimento. Durante o período analisado nesta pesquisa, entre 19631973 a
tiragem de Claudia mantevese em torno dos 200 mil exemplares.
Claudia, surge no auge do processo de industrialização brasileira, iniciado em 1945,
e que promoveu notáveis mudanças nos hábitos cotidianos das cidades e das famílias,
por exemplo, com a introdução de “todas as maravilhas eletrodomésticas: o ferro
elétrico, que substituiu o ferro a carvão; o fogão a gás de botijão, que veio tomar o
lugar do fogão elétrico, na casa dos ricos, ou do fogão a carvão, do fogão a lenha, do
fogareiro e da espiriteira, na casa dos remediados ou pobres: em cima dos fogões
estavam agora, panelas – inclusive a de pressão – ou frigideiras de alumínio e não de
barro ou de ferro; o chuveiro elétrico; o liquidificador e a batedeira de bolo; a
geladeira; o secador de cabelos”87
“A revista amiga” da “mulher moderna”, Claudia dirigiase à mulher de classe
média que, além dos eletrodomésticos, podia adquirir alimentos industrializados e
freqüentava supermercados e shopping centers. O Editorial de apresentação, em seu
primeiro número, dizia:
“Por que Claudia?
86 Filho de italianos, Victor Civita nasceu em Nova York em 9 de fevereiro de 1907. Dos 2 aos 20 anos viveu em Milão, cidade natal de seus pais. Aos 42 anos deixou novamente Nova York e veio para São Paulo, onde fundou a Editora Abril, em 1950. Maior editora do país, publica atualmente mais de 200 títulos, entre os quais a revista semanal Veja. Faleceu em 24 de agosto de 1990.
87 NOVAIS, Fernando e MELLO, João Manuel Cardoso de. “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”. In: SCHWARCZ, Lilia Mortiz (org.). História da Vida Privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006, p.564.
63
O Brasil está mudando rapidamente. A explosiva evolução da classe média torna
necessária uma revista para orientar, informar, e apoiar o crescente número de
donas de casa que querem e (devem) adaptarse ao ritmo da vida moderna.
Claudia será dirigida a essas mulheres e dedicada a encontrar soluções para seus
novos problemas. Claudia não esquecerá, porém, que a mulher tem mais interesse
em polidores do que em política, mais em cozinha do que em contrabando, mais
em seu próprio mundo do que em outros planetas.
Claudia, enfim, entenderá que o eixo do universo da mulher é seu lar.”88
Capa da edição de lançamento de Claudia,
em outubro de 1961.
Estão claramente presentes neste texto duas características que definem o que
Dulcília Buitoni chama de “imprensa feminina”: a despolitização e a linguagem
publicitária. Afirma a autora: “uma das acusações mais freqüentes à imprensa feminina
concentrase na sua atividade quase sempre despolitizadora. Transferindo a solução da
88 Claudia, out1961, p.3.
64
maior parte dos problemas da esfera pública para a privada, as revistas contribuem
para reforçar o pessoal em detrimento do social”89
Carla Bassanezi confirma tal característica em Claudia ao observar que, em
1964, por exemplo, não houve sequer uma menção a respeito do golpe civilmilitar,
ocorrido em 31 de março daquele ano, sendo, segundo a autora, “o único sinal dos
‘novos tempos’ o aumento do preço da revista e a justificativa de seu editor em julho de
1964 apoiando as diretrizes do novo governo: ‘o Brasil entrou num período novo,
sadio’.”90 Carmen da Silva, entretanto, mostravase bastante consciente do cenário
político traçado no país desde a chegada dos militares ao poder. Em 1966, na revista
Realidade91, escreveu um artigo bem humorado, no qual criticava a desorganização das
esquerdas ainda incapazes de fazer uma oposição eficiente ao governo autoritário
recémimplantado:
“Esquerdistas, hoje em dia, são todos os que, por um motivo ou outro, por razões
objetivas ou subjetivas, estão pedindo o pescoço do Governo. Mas este sabe, com
a certeza dos fortes, que isso, precisamente, ninguém vai conseguir”92.
Não seria exagero afirmar também que cerca de metade do material publicado
em Claudia era de propaganda dos mais variados produtos: de eletrodomésticos e
alimentos a absorventes higiênicos, dirigidos à mulher que, como observa Ana Rita
89 BUITONI, Dulcília. Imprensa feminina. São Paulo: Ática, 1986. p. 69.
90 BASSANEZI, Carla Beozzo. Virando as Páginas, revendo as mulheres. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p.40.
91 Publicação mensal da Editora Abril na qual Carmen da Silva esteve freqüentemente presente assinando artigos sobre variados assuntos, Realidade circulou entre 1966 e 1976 é lembrada pelo pioneirismo com que abordou temas tabus para aquela época, como o divórcio, por exemplo. Foi fonte de estudo de minha Dissertação de Mestrado, defendido em 2001, e agora publicado em livro: MORAES, Letícia Nunes de. Leituras da revista Realidade. São Paulo: Alameda, 2007.
92 SILVA, Carmen da. Esquerda, volver! SP: Realidade, jul1966, p.104.
65
Fonteles, era “encarregada de fazer as compras e administrar o orçamento doméstico,
difundindo o gosto, decidindo o sucesso da moda, ‘reinando’ sobre o consumo’.93
Dulcília Buitoni também chama a atenção para o fato de que, nos periódicos dirigidos às
mulheres, a propaganda “invade” inclusive o material jornalístico: “numa linguagem
muito próxima da publicitária, os textos dirigidos à mulher são verdadeira
comunicação persuasiva, aconselhandoa a todo momento sobre o que fazer. A
proximidade e a contaminação são tão grandes, que muitas vezes não distinguimos um
texto publicitário de uma matéria.”94 Ainda assim, Buitoni acredita que:
“O consumismo e a estética da utilidade acarretam sérias restrições, mas, apesar
de tudo, a imprensa feminina trata da vida – o vestir, o comer, o morar, o amar.
Ela pode influir mais decisivamente no cotidiano das pessoas que um poderoso
jornal diário. Múltipla e contraditória – como a vida , ela é um campo imenso,
movimentado e estimulante.”95
Estas afirmações sugerem uma conduta esperada de passividade por parte das
leitoras da imprensa feminina, uma vez que, despolitizadas, não atuariam no social e
suas ações e escolhas seriam ditadas pela revista – esta sim – capaz de influenciar o
cotidiano. Pois Carmen da Silva caminhou, dentro da revista, em direção oposta à
delineada por Dulcília Buitoni, sendo mesmo um “oásis” dentro da produção
jornalística voltada ao público feminino durante o período estudado. Logo em seu artigo
de estréia da revista, “A Protagonista”, convidava as leitoras a serem “protagonistas de
duma aventura apaixonante e singular: que é nossa própria vida”, abandonando a
habitual e estimulada passividade:
93 DUARTE, Ana Rita Fonteles. Op. Cit., p. 18.
94 BUITONI, Dulcília. Op. Cit., p. 75.
95 Idem, p. 78.
66
“Muitas mulheres se casam esperando que o amor lhes dê felicidade; trabalham
pensando que um emprego lhes dará independência, ou estudam com o objetivo de
que uma carreira lhes dê prestígio. Nos três casos partem de premissas errôneas:
a felicidade, a independência, o prestigio e os demais bens da vida não são
outorgados a ninguém em bandeja de prata. O amor de outrem, o trabalho e a
carreira em si, não dão nada: constituem apenas instrumentos que nos ajudam a
construir o que desejamos. A palavra construir sugere a idéia de tarefa, de
esforço inconsciente e intencional: nada mais oposto à atitude passiva e estéril de
esperar que as coisas fundamentais nos chovam do céu.” 96
Em três aspectos, Carmen da Silva, diferenciavase da “imprensa feminina”, tal
como descrita por Dulcília Buitoni. Em primeiro lugar porque não lhe agradava o
consumismo exacerbado divulgando equivocadamente, segundo ela, o conceito
capitalista segundo o qual “ser independente é consumir”. Em segundo lugar, acreditava
que essa falsa noção de independência reforçava o individualismo, ou seja, recusava
abertamente a despolitização que enfatizava o pessoal em detrimento do social, mesmo
acreditando que o exercício pleno da cidadania e de uma vida pública dependesse
muitas vezes, sobretudo no caso das mulheres, de um processo de conscientização a ser
vivenciado individualmente. E, finalmente, porque não gostava da partição do mundo
em dois: o masculino e o feminino. O que fica evidente quando fala sobre os primeiros
tempos de seu trabalho em Claudia:
“Função: redatora de ‘assuntos femininos’. Como de hábito o mundo dividido em
dois – e, depois, as feministas é que são acusados de divisionismo. Proposta auto
assumida: mexer em abelheiro: no meu e nos alheios. Mexi. Meus artigos caíram
como UFOs incandescentes no marasmo em que dormitava a mulher brasileira
naquela época. Logo comecei a receber uma avalanche de cartas em todos os
96 SILVA, Carmen. A protagonista. SP, Claudia, set1963. p. 108. grifo original.
67
tons: desesperados apelos, xingamentos, pedidos de clemência: deixenos em paz,
preferimos não saber! Consciência dói – olé se dói, mais do que ‘patada em los
huevos” – e lá vinha eu mês a mês com a minha lengalenga, remoendo, insistindo,
revolvendo as feridas.”97
E para manterse escrevendo, como voz dissonante dentro da revista, durante 22
anos ininterruptos, sem afastar o público leitor, nem perder o lugar conquistado junto à
direção da revista, Carmen da Silva precisou ter muita paciência e negociar muito com a
direção da revista. Internamente, com a editora, Carmen minimizava as dificuldades:
“tudo corria em boa harmonia, exceto alguns aborrecimentos menores”.98 Em suas
memórias, narra um dos maiores aborrecimentos que teve com a direção da revista:
“Durante alguns anos tive um chefe que se apaixonou por um tema e me cobrava
mês a mês sua abordagem: ‘Como é, quando é que sai?’ Tinha o título pronto na
cabeça: ‘Meu marido não me abraça mais’ e discorria com entusiasmo sobre a
idéia: dirigirse à mulher que, mergulhada na monotonia de um longo casamento,
esquece as artes da sedução, a camisola de rendas pretas (...).Tentei explicarlhe o
caráter machista dessa noção da onipotência feminina: ‘se seu marido não quer
trepar mais é porque você não sabe fazêlo querer’: ser onipotente é arcar com
todas as responsabilidades, todas as culpas.(...)
Passei dois anos esquivando o corpo como bem podia ao nãoabraço conjugal.
(...) Depois o senhor bateu asas em outra direção e as rendas pretas ficaram como
mera lembrança de um pesadelo antigo e ligeiramente hitchcockiano.” 99
97 SILVA, Carmen. Histórias híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 120. 98 Idem, p.121.
99 SILVA, Carmen. op. Cit., p.123124.
68
Além da seção “A Arte de ser mulher”, Carmen da Silva manteve outro espaço
na seção de cartas de Claudia, “Caixa Postal Intimidade”, no qual respondia
diretamente às leitoras sobre suas dúvidas e angústias. A partir de abril de 1970, a
jornalista e psicóloga ‘personifica’ a seção de cartas que muda de nome para “Aqui
Carmen responde”. Chegou a receber cerca de 400 cartas por mês. Assim, entre avanços
e recuos, seu termômetro sempre foi as cartas que recebia dos leitores e leitoras,
principalmente.
Permitir que os leitores se tornem colaboradores da revista, convidandoos a
fazer parte da edição da revista é uma forma de satisfazer “a impaciência” do leitor em
manifestar seus interesses, segundo a expressão do escritor russo Sergei Tetriakov,
citado por Walter Benjamim: “o fato de que nada prende tanto o leitor a seu jornal
como essa impaciência, que exige uma alimentação diária, foi há muito utilizado pelos
redatores, que abrem continuamente novas seções, para satisfazer suas perguntas
opiniões e protestos.”100
A psicanálise foi a linguagem encontrada para comunicarse com as leitoras,
tentando assim aproximarse delas o mais profundamente possível, para fazer emergir
de dentro delas a consciência de si. O trabalho de Carmen da Silva como responsável
pela seção “A Arte de ser Mulher” pautouse todo o tempo pelo diálogo com os leitores.
Através das cartas que recebia do público leitor, a jornalista podia saber como seu
trabalho estava sendo recebido e, a partir desse conhecimento, definia o assunto a ser
tratado no mês seguinte e a abordagem que lhe seria dada e se poderia avançar mais um
pouco em seu projeto de conscientização:
“Naturalmente eu tinha muita preocupação, no princípio, de ir longe demais.
Minha tática era a seguinte: se eu vou um quilômetro adiante das leitoras elas não
me seguem, porque não me vêem, me perdem na primeira esquina. Se eu vou junto
100 BENJAMIN, Walter, “O autor como produtor”, in: Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1996, p. 124.
69
com elas não estou adiantando nada. Se eu vou 50 metros adiante, elas vêm atrás.
Então eu ia 50 metros adiante. De repente eu tentava ir 51”.101
Tendo como objetivo: “oferecer orientação psicológica em nível sociológico”102
, Carmen da Silva localiza o caráter inovador de sua proposta numa interpretação
diferenciada dos problemas apresentados pelas leitoras, mais atenta ao que há de
particular em cada carta. Em artigo publicado, em 1967, na revista Realidade, a autora
explica sua inovadora proposta:
“Através das páginas da revista Claudia venho realizando há três anos a
experiência de substituir o consultório sentimental pelo consultório de orientação
psicológica. (...)
A diferença entre os dois tipos de consultório, entretanto, não é determinada pelo
conteúdo das consultas, mas sim pelo modo de focalizálas e respondêlas. Sei, por
exemplo, que não adianta recomendar à insone que tome um chazinho antes de se
deitar e só pense em coisas agradáveis; procuro nas entrelinhas da sua carta, na
escolha das palavras, nas vacilações, nas contradições, nas ocultações (mais
evidentes do que se supõe), nos fatos apenas sugeridos, o conflito ou sentimento
que sua consciência está evitando tão tenazmente a ponto de ela poder abandonar
suas defesas e dormir. (...) Descobrindo ‘segredos’ que o próprio consulente
ignora, através de pistas que ele nem sabe que deu, meu propósito é despertarlhe
o maior grau possível de consciência de si mesmo no mundo.”103
101 NEHRING, Maria Lígia Quartim de Moraes. Família e feminismo – reflexões sobre papéis femininos na imprensa para mulheres. São Paulo, Tese (Doutorado em Ciências Políticas), Universidade de São Paulo, 1981. p.134135. Entrevista de Carmen da Silva a autora. 102 SILVA, Carmen da. A favor...não contra os homens. SP, Cláudia, mar1964, p. 106. 103 SILVA, Carmen da. Consultório Sentimental. SP: Realidade, jan1967, p. 86. Grifo original.
70
Assim, dosando pacientemente acrobacia e arte, transformou, através de sua
coluna mensal, o tradicional modelo de consultório sentimental de revistas femininas ao
introduzir a psicanálise no diálogo com as leitoras, mesmo ciente das limitações desta
forma de comunicação:
“A comunicação com o público no nível da psicologia nas páginas de uma revista
apresenta desoladoras limitações. Só posso fazer o consulente olhar para dentro
de si, analisarse tento quanto ele puder. Aponto caminhos, abro perspectivas mas
a possibilidade de seguilos e aproveitalos depende da extensão e profundidade
de seus problemas íntimos.
Às vezes percebo, com alegria, que basta orientar o desorientado, desmanchar
equivocas mais intelectuais que afetivos, desatar um nozinho aqui outro ali, dar
um empurrãozinho, enfim. Mas outras vezes tenho a consciência de que minha
ajuda não modificará nada. Por correspondência não se cura uma neurose, não
se altera um padrão de reações já estruturado em bases mórbidas.”104
É com essa linha de raciocínio que Carmen da Silva procura mostrar aos leitores
suas contradições entre condutas mentais e ações práticas como causadoras de inúmeros
conflitos familiares e sociais. Um exemplo muito enfatizado pela articulista é o fato de
haver códigos morais diferentes para os nossos filhos e para os filhos de outrem. Em
artigo que aborda educação e juventude no Brasil, por exemplo, argumenta:
“Há uma diferença marcante entre boa conduta e moral sólida. A boa conduta
pode ser o resultado de circunstâncias externas, de pressões ambientais, inibições,
receios; a moral sólida, por sua vez, assegura a boa conduta independentemente
dos fatores circunstanciais. Em outras palavras: havendo uma sólida moral, a
ocasião não faz o ladrão.
104 SILVA, Carmen da. Consultório Sentimental. SP: Realidade, jan1967, p. 86.
71
Não podemos pretender dar a nossos filhos uma base moral sólida se lhes
ensinamos duas morais diversas. Na maioria dos lares vigoram dois códigos: um
para as meninas, outro para os rapazes.”105
Desta forma, ciente de que a conscientização das pessoas, em geral, é um trabalho
delicado e moroso, Carmen optou por fazer este trabalho junto a um público mais amplo
em detrimento de manter, por exemplo, um consultório psicológico particular, que
“serviria para quebrar um galho de um pequeno número de pessoas, ao longo de
muitos anos”. (....) Prefiro sacrificar um pouco a profundidade a favor da extensão:
dar ao maior número possível de pessoas uma primeira noção de que existem, contam,
são responsáveis. Sacudir as falsas seguranças. Conscientizar. É o que venho tentando
fazer.”106
A noção dos limites e dos desafios imposta por sua escolha é também perceptível
quando a autora demonstra muita clareza a respeito do público com quem pode
compartilhar suas idéias: a mulher de classe média. “O problema da emancipação só
existe para a mulher da classe média: é ela que está problematizada. A mulher de
classe proletária não tem esse problema porque sofre a opressão econômica, e isso é o
dado mais importante da sua vida – logo, ela não pensa em termos de sexo. A mulher
de classe alta está acima dos tabus e das contenções de ordem social, já que goza de
privilégios.”107 E explica, como chegar à emancipação, através da consciência e da ação
política:
105 SILVA, Carmen da. A Chamada idade difícil. SP: Claudia, dez1963, p. 136. Grifo original.
106 Carmen da Silva em entrevista ao Correio da Manhã, Rio de Janeiro, em 5 de maio de 1968. Citado em DUARTE, Ana Rita Fonteles. Op. Cit., p. 86. 107 Carmen da Silva, “Manchete debate”. RJ, Manchete, fev1968, p. 116.
72
“Há atualmente um movimento muito grande no seio do grupo jovem e
universitário que, na minha opinião está sendo mal orientado, em função exclusiva
da liberdade sexual. E o sexual é muito pouco, em relação ao humano. As jovens
que assumem posições políticas, conscientizadoras, procurando modificar o atual
sistema, estão muito mais perto da emancipação do que as que se preocupam só
com o sexo.”108
É possível observar três fases ao longo da seção “A Arte de ser mulher” dentro
do recorte cronológico definido por esta pesquisa (19631973). Estas “fases” não estão
contidas em marcos rígidos, ao longo do período estudado, mas se interpenetram o
tempo todo, sendo antes de qualquer coisa diferentes olhares sobre a mesma questão: a
maior participação da mulher na sociedade. Numa primeira fase de existência de sua
coluna, que bem poderia tomar de empréstimo, como título, o mesmo escolhido pela
própria Carmen da Silva para inaugurar a seção: “A Protagonista”, pois este é o
momento em que se dedica a conscientizar suas leitoras sobre a possibilidade de
assumirem lugares sociais, tornandose assim protagonistas da própria vida, afastando
se de uma organização tradicional, segundo a qual:
“...basta que a menina cumpra com suas atividades escolares, que a mocinha não
envergonhe seus pais com atitudes excessivamente descocadas, que a jovem se
case com ‘rapaz sério e de boa família’, que a senhora casada mantenha sua casa
razoavelmente em ordem, receba bem e tome certo interesse na educação dos
filhos, se os tem. Obtido esse mínimo, dáse a sociedade por satisfeita e considera
que a mulher possui o quanto necessita para sentirse feliz e realizada.”109
108 Idem, ibidem.
109 SILVA, Carmen. Você vive ou vegeta? SP, Claudia, out1964, p.78.
73
A abordagem em termos psicanalíticos está presente intensamente em todos os
artigos. Neste período os principais temas tratados são a importância de desenvolver
uma atividade além das de donadecasa e mãe, ou seja, uma atividade mais voltada
para a sociedade, visando aprimorar a relação com os homens e consigo mesma, com o
mundo, e que garanta, por conseqüência, a sua independência, deixando de viver à
sombra dos maridos:
“a verdade é que nossos homens em geral não respeitam suas mulheres como o
fariam se além de amálas, também as estimassem na qualidade de seres humanos
livres. Eles as cuidam, mimam, protegem, dirigem e orientam na vida; cumprem
religiosamente deveres que, em última estância, muito se assemelham aos que tem
um pai com relação a seus filhos. Quanto às obrigações de marido propriamente
ditas – fidelidade, companheirismo, comunicação, diálogo – amiúde são
transgredidas, o que prova que o sistema não dá tão bons resultados como se
pretende crer. A independência feminina assusta porque viria exigir a recolocação
do problema em bases novas, deitando por terra hábitos e rotinas mentais
enraizados de longa data.”110
Carmen da Silva adverte, contudo:
“não pretendo absolutamente incitar o sexo feminino a cair no extremo oposto,
isto é, situarse ante o homem em posição de reivindicatória e autoritária,
tratando de autoafirmarse sem necessidade a custa da lógica, da sensatez e do
bom entendimento que deve reinar entre ambos. Homem e mulher não são senhor
e escravo; não são antagonistas que devam medir suas forças.”111
110 SILVA, Carmen. As razões da independência. SP, Claudia, dez1964. p.180.
111 SILVA, Carmen. Você vive no tempo presente? SP, Claudia, fev1964, p.31.
74
Mas, ao contrário, convida as mulheres a abandonar esse lugar de infantilização
que lhe foi reservado pela sociedade, passando a agir como adultas e protagonistas da
própria existência:
“a idade cronológica de uma pessoa é um dado inequívoco; figura não só nos
livros do registro Civil como na memória, não raro indiscreta, de seus familiares e
contemporâneos. Também a idade mental é mensurável, embora com um pouco
menos de precisão, mediante conhecidos testes para aferir o coeficiente de
inteligência. Já a idade psicológica é assunto variável, caprichoso e delicado.
Apresenta com relação às outras duas, as flutuações mais acentuadas e
imprevistas: sabemos que é comum observar sinais de criancice psíquica no
adulto, bem como indícios de velhice prematura no jovem, divergências entre a
idade real e a idade espiritual, revelando um desnível, às vezes chocante, na
evolução das diversas facetas que compõem uma personalidade. Nossa sociedade
tende a estimular um alto grau de puerilidade nas mulheres. (...) não resta a
menor duvida de que essa atitude da sociedade com relação à mulher é agressiva,
na medida em que é empobrecedora, restritiva ao seu desenvolvimento como
humano; semelha a conduta da mãe que educa seu filho visando fazer dele uma
eterna criança, para sempre incapaz de responsabilidade e autonomia.”112
A segunda fase é bem representada por um artigo publicado em julho de 1968,
intitulado “A Presença do Outro” porque pode ser considerado uma espécie de síntese
dos temas tratados por Carmen da Silva nesse período. A protagonista agora é chamada
a refletir sobre sua relação com o outro, o estranho na rua, ou os familiares em casa. Os
conceitos psicanalíticos ainda são muito presentes, mas agora ganham contornos mais
relacionados à sociedade:
112 SILVA, Carmen. Que idade tem sua alma? SP, Claudia, jun1965, p.113.
75
“Vivemos, na atualidade, uma cultura predominantemente visual (cinema,
televisão, fotos, cartazes) que trata de empurrarnos seus mitos e tabus olhos
adentro, para que os assimilemos ao primeiro impacto, sem submetelos a
elaboração intelectual, à análise crítica.(...) Soterrados sobre uma montanha de
exterioridades, desaparece o verdadeiro Si Mesmo, desaparece o Outro.
As deformações que a sociedade cria, porém, não nos podem servir de
justificativa; na medida em que tomamos consciência delas, cabenos combatêlas,
superálas em nós mesmas e modificar a sociedade que as origina. Uma sociedade
onde o outro não tem lugar não é justa, humana, eqüitativa, racional. Mas ela não
vai mudar por si só, sem o esforço conjugado de todos nós. Portanto, mãos á
obra.”113
Pois, tomada a consciência de si, é hora de olhar em volta:
“No bojo dessa tomada de consciência surge, peremptória e inescapável,
uma exigência: a ação. Se nos limitássemos ao diálogo do eu com o próprio eu e
com os elementos e pessoas que, de modo mais imediato, rodeiam e satisfazem as
necessidades do eu, em vez de conquistar a liberdade cairíamos no egocentrismo
narcisista. O ponto de referência que situa o eu no tempo e no espaço são os
outros.”114
Assim, o indivíduo, consciente de si, poderá experimentar o coletivo, o ser
plural, na medida em que o esforço de cada um, beneficia a todos:
“É obvio que se todas a pessoas economicamente improdutivas passassem a
trabalhar, a comunidade se veria enriquecida em conseqüência dessa
contribuição. E a maior riqueza coletiva traria como resultado a atenuação das
113 SILVA, Carmen. A presença do outro. SP, Claudia, jul1968. p.142.
114 SILVA, Carmen. De amor e de liberdade. SP, Claudia, nov1966, p.181. grifo original.
76
inconvenientes materiais do trabalho: teríamos horários mais reduzidos, melhores
meios de transporte, mais comodidade para todos.”115
Mas, contrariamente:
“Cada vez que permitimos dentro de nossas quatro paredes o predomínio do
egoísmo, da injustiça, da mentira, estamos contribuindo para aumentar o já vasto
caudal de egoísmo, injustiça e mentira imperante no mundo. Inversamente, nossa
tolerância, nossa generosidade, nosso equilíbrio, virão aumentar o acervo
mundial de tolerância, generosidade e equilíbrio. A orientação moral que damos a
cada uma de nossas atitudes tem inegável projeção futura.”116
Carmen da Silva, procurava o caminho do diálogo com seus leitores, evitando os
imperativos. De forma gradual e organizada, expondo diversos conceitos da psicanálise,
explicativos do comportamento humano, a autora adotava um discurso particularizante,
ou seja, procurava incentivar os leitores a descobrirem suas virtudes e limitações, numa
palavra: seus potenciais, e possam escolher e assumir lugares sociais com autonomia:
“a plena realização dentro da sociedade depende, entre outros, de certos fatores
pessoais básicos: disciplina, senso de responsabilidade, capacidade de
organização mental. (...) Sem elas não se vai muito longe, nem no lar nem no
mundo.”117
Afirma, entretanto que “ia devagar mas sem recuo, sem fazer concessões nas
idéias mas evitando termos que podiam chocar e criar anticorpos. Foi assim que levei
115 SILVA, Carmen. Mais trabalho e menos conversa. SP, Claudia, mar1966,p.47.
116 SILVA, Carmen. Otimismo para viver. SP, Claudia, nov1965.p. 131.
117 SILVA, Carmen. A favor... Não contra os homens! SP, Claudia, mar1964, p.106.
77
oito anos de aparente indefinição antes de empregar a palavrabichopapão:
feminismo118. E só a escrevi, preto no branco, quando já não escandalizava
ninguém”.119
A partir de 1971, Carmen começa a incluir artigos sobre o feminismo que
começa a se organizar nos Estados Unidos. Em artigo de julho de 1971, festeja:
“A 26 de agosto de 1970, os meios de comunicação divulgaram uma notícia que
causou formidável impacto: as mulheres americanas estavam nas ruas. Em Nova
York, Washington, Boston, Detroit e várias outras cidades dos estados Unidos,
elas desfilavam em massa com cartazes e clamores. Que mulheres? Estudantes,
operárias, esposas de grevistas ou de empregados, mães de soldados, viúvas de
guerra?
Nada disso: apenas mulheres. Esse era o dado comum e não a idade, raça,
religião, classe social, situação cultural, profissional ou familiar. Era na
qualidade de mulheres que elas contestavam reivindicavam.”120
Carmen da Silva escreve em defesa da passeata promovida pela Organização
Nacional de Mulheres (NOW), pois o evento fora desprestigiado pela imprensa:
“Uma verdadeira onde de sarcasmo e agressão levantouse em torno da passeata.
A imprensa tudo fez para desqualificala pela ironia e pelo ridículo, mostrandoa
118 “Com este termo, indicase um movimento e um conjunto de teorias que tem em vista a libertação da mulher. Esse movimento nasceu nos Estados Unidos, na segunda metade da década de 60, e se desenvolveu rapidamente por todos os países industrialmente avançados, entre os anos 1968 e 1977.” ODORISIO, Ginevra Conti. In: BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de Política. Brasília: UnB, São Paulo: Imprensa Oficial, 2000, vol I, p.486. 119 SILVA, Carmen. Op. Cit., p.123.
120 SILVA, Carmen. O que é uma mulher livre? SP, Claudia, jul1971. p.106.
78
como uma colossal manifestação de histeria coletiva. A líderes (Betty Friedan,
Kate Millet, TiGrace Atkinson, Katherine Camp e outras) foram descritas como
frustradas, neuróticas, homossexuais, megeras ressentidas espumando de ódio
contra o sexo masculino”121.
Nesse mesmo artigo, Carmen explica aos seus leitores o conceito da “mística
feminina”, desenvolvido pela feminista norteamericana Betty Friedan: “ideologia que
destina a mulher ao desempenho exclusivo de seu papel sexual e doméstico. Qualquer
veleidade intelectual ou desejo de realização é rotulado de pouco feminino e paira
sobre as rebeldes a dramática ameaça de viver no desamor e na solidão”122. A trajetória
de Carmen da Silva guardaria então pontos de identificação com a da feminista norte
americana:
“Formada em psicologia, redatora de uma revista feminina, entrevistando grande
número de mulheres sobre temas vinculados ao casamento, o lar, os filhos, a
comunidade, Betty Friedan começou a perceber entre elas claros indícios de um
problema ainda indefinido”123.
Carmen da Silva destaca o ano de 1971, como um ano de importantes conquistas
femininas:
“O ano de 1971 marcou uma etapa ativa, movimentada e rica para a mulher
brasileira. Houve uma importante campanha de imprensa no sentido do
estabelecimento de creches em fábricas e comunidades – um dos elementos
indispensáveis quando se encara o problema da emancipação feminina (...).
121 idem, ibidem.
122 idem, p.107.
123 idem, ibidem.
79
Vários sindicatos e organizações profissionais apoiaram de modo decisivo tal
campanha e dirigiramse ao Conselho de Mulheres solicitando que colocasse a
iniciativa sob sua égide, dandolhe caráter prioritário.
Em abril, recebemos a visita de Betty Friedan, uma das líderes do Movimento de
Libertação Feminina Americano, que, de certa forma nasceu sob a inspiração de
seu livro ‘Mística Feminina’. Houve conferências, debates, discussões, mesas
redondas – e houve também uma sistemática maliciosa campanha de imprensa
contra Betty Friedan, porque é feia, porque diz a verdade, porque fala o que se
preferiria calar, porque incomoda.”124
Sobre esta opção explica porque o feminismo se abriu para ela um campo de luta
ao mesmo tempo em que não se sente fechada nele:
“Escolhi o feminismo como forma específica de luta porque é o terreno onde piso
com mais segurança, maior conhecimento de causa: branca, alfabetizada,
originária da burguesia média – no tempo em que isso ainda existia no Brasil , o
opressão sexista é a que mais intensa e diretamente senti na própria carne. Meus
calos mais vulneráveis eram os de mulher. Mas não seja por isso: se me
solicitarem outras empresas em que me possa desempenhar mais ou menos bem,
estamos aí. Modestamente.”125
No Brasil, o movimento feminista começa a se organizar em 1975, o Ano
Internacional da Mulher e, como movimento político, passa inclusive a ser alvo dos
órgãos de repressão126. Em 1974, contudo, Carmen escreveu indignada sobre a
124 SILVA, Carmen. Igualdade, justiça e participação. SP, Claudia, abr1972, p.55.
125 Idem, p. 189.
126 Conf. MORAES, Letícia Nunes de G. “Agentes infiltrados no movimento feminista brasileiro”. In: AQUINO, Maria Aparecida de et alli. O Dissecar da estrutura administrativa do DEOPS/SP. São Paulo, Arquivo do Estado de São Paulo: Imprensa Oficial, 2002. pp. 5589.
80
resistência que observava nas brasileiras em aderir a um movimento que só tem
benefícios a lhe oferecer. Em “Afinal, o que é o movimento feminista?”, escreveu:
“Não temos propriamente um movimento feminista no Brasil. Consultada a
respeito, a brasileira, no melhor dos casos, mostrase reticente; o mais comum,
porém, é que reaja mal, desqualificando feminismo como exagerado e ridículo ou
simplesmente desnecessário. Parece estranha essa atitude: nossas mulheres
procuram sabotar um movimento mundial que visa precisamente a liberálas das
discriminações que sofrem e das formas tradicionais de servidão a que estão
submetidas. Alegar que não existe tal discriminação e servidão é fechar
completamente os olhos à realidade; uma breve síntese da situação feminina entre
nós basta para demonstrar o contrário.
A brasileira média vive mergulhada de cabeça em tabus sexuais. Inútil
dizer que hoje em dia já não é assim e falar em ‘sociedade permissiva’, porque no
Brasil ela ainda não se impôs. Por certo, reina bastante liberdade de costumes no
seio das chamadas ‘elites’, econômicas e intelectuais; em alguns grupos auto
intitulados representantes do underground e também em pequenos círculos
sofisticados que habitam os bairros elegantes das grandes cidades. Mas isso de
nenhum modo reflete o panorama geral: é a exceção e não a regra. Aliás, mesmo
dentro dessa exceção tenho encontrado muitíssima gente conflituada pelo choque
entre suas justificativas intelectuais e suas reações emocionais; não raro, nossas
moças avançadas e ‘badalativas’ são um poço de contradições e problemas.
A regra são os preconceitos, temores e inibições que dominam a imensa
maioria de nossas mulheres – situação que, no fundo, mudou muito menos do que
parece durante os últimos anos. É verdade que, a esta altura, já nenhuma pessoa
com bom nível de instrução e informação sustentaria que é justo haver duas
morais sexuais: uma, permissiva, para os homens; outra, restritiva, para as
mulheres.”127
127 SILVA, Carmen. Afinal, o que é o movimento feminista? SP: Claudia, nov1974, p.131.
81
Apesar das resistências, pois não é fácil mudar a mentalidade de uma sociedade,
Carmen da Silva encontrava junto aos seus leitores, campo aberto às novas
possibilidades. Em algum nível, na parcela da sociedade representada pelo seu público,
sempre encontrou ressonância para suas idéias. Apesar das resistências, sempre
encontrou terreno fértil. Este é o momento em que, no Brasil, se organiza o movimento
feminista, permitindo à jornalista e psicóloga refletir junto aos seus leitores sobre sua
convicção de o privado é político, pois crê que o exercício pleno da cidadania não pode
manter tão rígidos os limites de atuação dentro das esferas pública e privada.
Carmen da Silva faleceu em 29 de abril de 1985, vítima de um aneurisma
abdominal, enquanto realizava uma palestra sobre a condição feminina em Resende, no
interior do Rio de Janeiro. “De repente, seu ventre cresceu e, brincalhona, exclamou:
‘Fiquei grávida, nessa idade!’ Atendida por um médico na platéia, foi levada para o
Hospital de Volta Redonda (RJ), onde veio a falecer.”128
Permaneceu atuante até o último dia de sua vida, escrevendo a mesma seção “A
Arte de ser mulher” em Claudia. E dando palestras pelo Brasil. Um ano antes de
falecer, desfilou, em celebração ao Dia Internacional da Mulher, vestida de Liberdade,
expressão de suas convicções, pelo que lutou cotidianamente, mesmo (ou
principalmente) nos tempos mais difíceis:
“iniciado em fase precoce, meu longo e apaixonado romance com a liberdade vem
durando toda a vida. Claro que paixão e constância, em certo modo,parecem se
opor. Assim, houve altos e baixos, alternativas, intermitências,esfriamentos,
vaivens, épocas de estarmos out, às vezes ela me deixou na mão nas horas mais
cruciais e cometi homéricas tolices, mas enfim, se deu um jeito: não sou orgulhosa
e, chegando o caso, não me envergonho de pedir arreglo. E nada é irreversível
128 BRAZIL, Erico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil de 1500 até a atualidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. p. 131, 132.
82
nesse mundo – a não ser, dizemnos, esse regime espúrio que o demônio nos
deixou cair no lombo nos idos de um março que se eterniza, mais tenebroso que o
de César. Agora, a estas alturas de minhas seis décadas, aprendemos a conviver
em gostosa intimidade, apoiandonos mutuamente sob o céu borrascoso – e como!
– que nos cobre.
Claro que não é cem por cento uma idílica harmonia: para variar, sempre há um
pequeno enguiço. Mais uma vez, a pedrinha – aliás, o cascote – no sapato são os
outros: liberdade é oxigênio demais para caber em monopólios, enquanto todos
não forem livres... tararátererê, o resto vocês já sabem de cor e desculpem o
lugarcomum.”129
Em sua bibliografia constam os romances Septiembre (1957), Sangue sem dono
(1963) e Fuga em setembro (1973). Publicou ainda os livros de ensaios Guia de boas
maneiras (1965) A arte de ser mulher (1966), O homem e a mulher no mundo moderno
(1969) – ambos coletâneas de seus artigos em Claudia – a novela Dalva na rua Mar
(1965) e a autobiografia Histórias Híbridas de uma senhora de respeito (1985).
Em resumo, Carmen da Silva por ela mesma:
“Atéia e satreana, acredito que a existência em si não tem qualquer significado ou
finalidade. Tanto melhor: cabe a nós, os viventes, edificar sobre o vazio,
construindo num terreno sem entulho nossa própria razão de viver. A minha se
chama precisamente nós, viventes. De hoje e de amanhã. Aliás, se possível, com
duração indeterminada. E de preferência instalados num mundo decente e
razoavelmente aconchegante. Tarefa para moralista nenhum botar defeito. E a
prioridade número um consiste em impedir que algum filhodaputa aperte aquele
botão vermelho, no desenvolto exercício de um poder que só os nun plus ultra dos
filhosdaputa se arrogam.”130
129 SILVA, Carmen. Op. Cit. P.188189.130 SILVA, Carmen da. Histórias Híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense, 1985,p. 188.
83
Parte II – OS AUTORES
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Capítulo 1: AUTORITARISMO & LIBERDADE
Nós, revolucionários de 1964, seremos julgados pela História (...).
Simples golpistas ou responsáveis pela mudança de estruturas,
característica fundamental de uma verdadeira revolução.
(NASSER, David. O mito Andreazza. RJ, O Cruzeiro, 18ago1971)
“A liberdade não é um bolo que deve ser dividido entre certo número de pessoas,
de maneira que a fatia dada a cada um possa diminuir a cota que cabe ao outro.
A liberdade é uma condição vital, um modo de ser do individuo que alcançou certo
grau de evolução, uma forma de relacionarse com a sociedade e o mundo em
termos de maturidade.”
(SILVA, Carmen da . Nós e a luta das mulheres. SP, Claudia, mai1972)
85
Dentro do recorte cronológico definido para esta pesquisa, ou seja, entre setembro
de 1963 e abril de 1973, o Brasil viveu a queda do Presidente João Goulart, eleito
democraticamente, por um golpe civilmilitar de cuja conspiração participaram
decisivamente importantes setores da sociedade incluindo diversos órgãos da imprensa,
e a formação de um Estado Autoritário pelas Forças Armadas. Durante 21 anos,
contados a partir de 31 março de 1964, quando a ação golpista é deflagrada, o país foi
governado por militares.
Foram cinco os presidentes militares nestas duas décadas. Logo após o golpe,
assume o governo o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (19641967). O
segundo presidente militar foi o marechal Artur da Costa e Silva (19671969) que
afastado por uma isquemia cerebral, é substituído temporariamente por uma junta
militar, até que se define como seu sucessor o marechal Emílio Garrastazu Médici
(19691974). Ernesto Geisel (19741980) e João Batista Figueiredo (19801985) são os
últimos presidentes militares. Para esta pesquisa são considerados para a análise os
meses que antecederam o golpe de 1964 e os três primeiros governos militares.
Em setembro de 1963, Carmen da Silva iniciava, nas páginas de Claudia, sua luta
diária e incansável pela transformação da sociedade fundamentada essencialmente na
conquista da liberdade para todos, mulheres e homens. Para a jornalista e psicóloga,
todos devem ter o direito à educação, ao trabalho, à cidadania, enfim, à uma vida em
sociedade garantida em termos de liberdade individual para criar, para ser. Projeto de
sociedade, sem dúvida, incompatível com um governo autoritário, que impusesse à
sociedade forte repressão sobre comportamento e idéias.
David Nasser, por sua vez, conspirou abertamente pela deposição de João Goulart e
apoiou o Estado Autoritário em todas as suas etapas. O fio condutor de seus artigos no
período analisado é seu apoio constante às Forças Armadas e aos argumentos sobre os
quais se fundamentou, tanto a conspiração golpista, quanto a constituição de um cruel
aparelho repressivo, ou seja, a luta contra o comunismo e a defesa da democracia. O
jornalista se opôs apenas ocasionalmente a determinadas decisões do governo que
86
viessem a interferir em suas atividades particulares de empresário e fazendeiro, que
desenvolvia paralelamente ao jornalismo desde a década de 50.
Assim, o ano de 1964 é, portanto, um marco de ruptura no processo político
institucional do Brasil. Em 31 de março daquele ano, o presidente João Goulart,
constitucional e legitimamente empossado, é deposto por um golpe civilmilitar. A
ameaça de golpe de Estado, entretanto, foi uma constante durante todo o seu governo.
Eleito vicepresidente de Jânio Quadros, Goulart era, portanto, seu sucessor natural
quando este renunciou ao cargo em agosto de 1961, ocasião em que sofreu a primeira
ofensiva militar, na tentativa impedir sua posse. A saída para o impasse foi a solução
parlamentarista, que lhe permitiria assumir a Presidência, mas não governar o país. Só
em janeiro de 1963 um plebiscito revogou a emenda parlamentarista. Este período é
significativo na história do país, segundo Caio Navarro de Toledo,
“pois nele intensificam e se condensam alguns dos impasses e dos conflitos da
democracia burguesa. Se entendemos que as contradições sociais são processos
constitutivos da formação social capitalista e de seus regimes políticos, então o
período de 1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida
política brasileira posto que nele ocorreu uma polarização política e ideológica
com dimensões inéditas e com características singulares. Para os que vêem nos
conflitos e nos antagonismos o sinal da desagregação social, os ‘tempos de
Goulart’ só podem ser encarados como trágicos ‘tempos de caos e anarquia’.”131
De acordo com o mesmo autor, “para a direita brasileira e para a embaixada
norteamericana, não cabiam mais dúvidas quanto à ‘esquerdização’ do governo
Goulart”:
131 TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.9.
87
“Duas graves denúncias passavam a circular com insistência nos meios políticos,
tendo ampla cobertura da imprensa em geral.Bilac Pinto, presidente da UDN132 e
portavoz político do chefe de Estado Maior do Exercito, gal.Castelo Branco, com
grande alarde divulgou um documento onde se declarava que estava em curso do
país uma ‘guerra revolucionária’. (...) Ou seja, o país estava prestes a assistir à
tomada do poder pelos comunistas’. Denunciava a direita que o governo Goulart
insuflava as invasões de terra, as greves operárias e de trabalhadores do campo,
além de ‘distribuir armas a sindicatos rurais e marítimos’. Na verdade tratavase
do início da ‘guerra psicológica’ contra o governo constitucional, pois nenhuma
prova concreta foi oferecida quanto à veracidade dos fatos denunciados.”133
René Armand Dreifuss, outro estudioso do período, analisa a formação da
conspiração que derrubou João Goulart e levou os militares ao poder a partir de um
ponto de vista macroeconômico, ou seja, considerando a inserção do Brasil no sistema
capitalista internacional. Neste sentido, Dreifuss fala da formação, desde o governo de
Juscelino Kubitschek (19551960), de dois blocos de interesses antagônicos: o
“multinacional e associado” e o “oligárquico industrial”. Pensando no governo de
João Goulart, podese dizer que o bloco “oligárquico industrial” representava aqueles
que apoiavam o presidente enquanto o grupo “multinacional e associado”, formado
pelos “tecnoempresários” ligados ao capital internacional, entendase,
fundamentalmente, norteamericano, representava a oposição ou os “conspiradores”
unidos contra Jango. Por isso, segundo Dreifuss, a conspiração antiJango caracterizou
se pela atuação de uma “elite orgânica”134, composta por políticos, empresários e
132 União Democrática Nacional, partido de oposição ao governo de João Goulart.
133 idem, p. 92.
134 As expressões entre aspas são do autor. DREIFUSS, René Armand. 1964: A Conquista do Estado. Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis, Vozes, 2006.
88
militares unidos em defesa dos seus interesses multinacionais e associados, que agia
através de organizações criadas e controladas diretamente pelos EUA. Diz o autor:
“Eles desejavam compartilhar do governo político e moldar a opinião pública,
assim o fazendo através da criação de grupos de ação política e ideológica. O
primeiro desses grupos a ter notoriedade nacional em fins da década de cinqüenta
foi o IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática”. 135
Após a criação do IBAD, em 1959, surgiu, em 1961, o IPES Instituto de
Pesquisa e Estudos Sociais para unir forças:
“Os fundadores do IPES do Rio e de São Paulo, o núcleo do que se tornaria uma
rede nacional de militantes grupos de ação, vieram de diferentes backgrounds
ideológicos. O que os unificava, no entanto, eram suas relações econômicas
multinacionais e associadas, e seu posicionamento anticomunista e a sua ambição
de readequar e reformular o Estado. (...) O IPES desenvolveu uma dupla vida
política desde seu início. (...) Para realçar ainda mais a sua fachada, o IPES era
apresentado (por sua liderança) entre o grande público, como uma organização
educacional, que fazia doações para reduzir o analfabetismo das crianças pobres
e como um centro de discussões acadêmicas”.136
O autor destaca o envolvimento direto de importantes grupos da grande
imprensa que atuaram juntamente com o IPES na articulação do golpe:
“O IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública,
através de seu relacionamento especial com os mais importantes jornais, rádios e
135 DREIFUSS, René Armand., op. cit., p. 111112.
136 Idem, pp. 163164.
89
televisões nacionais, como: os Diários Associados (poderosa rede de jornais,
rádio e televisão de Assis Chateaubriand, por intermédio de Edmundo Monteiro,
seu diretorgeral e líder no IPES), a Folha de S. Paulo (do grupo Octavio Frias,
associado do IPES), O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde (do Grupo
Mesquita, ligado ao IPES, que também possuía a prestigiosa Rádio Eldorado de
São Paulo). Diversos jornalistas influentes e editores de O Estado de S. Paulo
estavam diretamente envolvidos no Grupo de Opinião Pública do IPES. Entre os
demais participantes da campanha incluíamse J. Dantas, do Diário de Notícias, a
TV Record e a TV Paulista, ligadas ao IPES pelo seu líder Paulo Barbosa Lessa, o
ativista ipesiano Wilson Figueiredo do Jornal do Brasil, o Correio do Povo, do Rio
Grande do Sul e O Globo das Organizações Globo do grupo Roberto Marinho,
que também detinha o controle da influente Rádio Globo, de alcance nacional.
Eram também ‘feitas’ em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação
de pagamento e reproduzidas como informação fatual. Dessas notícias, uma que
provocou um grande impacto na opinião pública foi que a União Soviética
imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as
formas de pressão internas e externas para aquele fim.
Outros jornais do país se puseram a serviço do IPES.”137
A participação dos Diários Associados, do qual fazia parte a revista O Cruzeiro,
na conspiração foi declarada, conforme Fernando Morais afirma:
“Chateaubriand deu ordens para que João Calmon se preparasse para ajudar na
organização e, no momento oportuno, colocar todas as rádios Associadas à
disposição da ‘Cadeia Democrática’, que estava sendo planejada pelo Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), organização que investira 5 milhões de
dólares no financiamento de campanhas de deputados anticomunistas nas eleições
de 1962. O IBAD (que seria fechado por decreto do governo antes mesmo do
137 DREIFUSS, René Armand., op. cit., p. 233.
90
golpe militar de 1964) tinha planos de montar uma cadeia de pelo menos cem
estações de rádio até o final do ano para propagar idéias contra o governo
Goulart e enfrentar com as mesmas armas a pregação política irradiada em
vários estados do Brasil pelo deputado Brizola em defesa das chamadas ‘reformas
de base’.”138
Nesse contexto, é importante também considerar o papel da imprensa na relação
entre Estado & sociedade. Se num primeiro momento, a imprensa representou
importante elemento de desestabilização e derrubada do governo de João Goulart, frente
ao endurecimento da atuação política, contudo, a qual passou a restringir a participação
da sociedade, vários veículos da imprensa passam a denunciar os atos governamentais,
tornandose também alvo de seu instrumental repressivo, com a criação de uma
legislação especifica139 e da posterior implementação da censura.
A participação da Escola Superior de Guerra (ESG) na conspiração que derrubou
João Goulart, foi decisiva ao lado do complexo IBAD/IPES. Maria Helena Moreira
Alves, ressalta sua importância como um elementochave na desestabilização do
governo de João Goulart, através do que ela chamou de Doutrina da Segurança
Nacional e Desenvolvimento, desenvolvida e disseminada pela Escola Superior de
Guerra entre militares e civis. Segundo a autora, a “Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento efetivamente prevê que o Estado conquistará certo grau de
legitimidade graças a um constante desenvolvimento capitalista e a seu desempenho
como defensor da nação contra a ameaça dos ‘inimigos internos’ e da ‘guerra
psicológica’.” 140 Em suas palavras:
138 MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995, p. 638.
139 Lei de Imprensa, Lei 5250, de 9 de fevereiro de 1967: “regula a liberdade de manifestação de pensamento e dá outras providências”.
140 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (19641984). Bauru: EDUSC, 2005. p. 27.
91
“A tomada do poder de Estado foi precedida de uma bem orquestrada política de
desestabilização que envolveu corporações multinacionais, o capital brasileiro
associadodependente, o governo dos Estados Unidos – em especial um grupo de
oficiais da Escola Superior de Guerra (ESG). Documentos recentemente tornados
públicos demonstram que o governo norteamericano, através da CIA, agiu em
coordenação com civis e oficiais militares – membros das classes clientelísticas –
no preparo e realização de planos para desestabilizar o governo Goulart. A
conspiração foi levada a efeito através de instituições civis de fachada, em
especial o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). A Escola Superior de Guerra coordenava as
iniciativas de conspiradores civis e militares. A necessária justificação ideológica
da tomada do Estado e da modificação de suas estruturas para impor uma
variante autoritária foi encontrada na Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento ministrada na Escola Superior de Guerra.”141.
Fundada em 1949, a Escola Superior de Guerra preservava um claro
alinhamento com o pensamento das Forças Armadas dos EUA, orientado por um forte
sentimento anticomunista. A aproximação se deu durante a Segunda Guerra Mundial
quando, na Itália, lutando ao lado dos aliados junto ao V Exército dos EUA, a Força
Expedicionária Brasileira (FEB) contribuiu para a vitória aliada. Segundo Maria Helena
Moreira Alves, “pelo seu alto nível de ensino, a ESG tornouse conhecida como a
‘Sobonne’ do establishment militar”:
141 ALVES, Maria Helena Moreira., op. cit., p.. 2324.
92
“O desenvolvimento de teorias da guerra fria resultou em ênfase para
interpenetração de fatores, políticos, econômicos, filosóficos e militares na
formulação da política de segurança nacional, passandose a dar crescente
prioridade adestramento em teoria do desenvolvimento.”142
A Escola Superior de Guerra brasileira guardaria, contudo, duas características
particulares que a distinguiriam da Escola Nacional de Guerra norteamericana, tais
como indicadas por Alfredo Stepan: de um lado, a maior “ênfase sobre aspectos
internos do desenvolvimento e da segurança”, pois, “a questão de uma Força Armada
forte, num país em desenvolvimento como o Brasil, não podia separarse do problema
do desenvolvimento econômico, nem a questão da segurança nacional separarse da
educação, indústria ou agricultura”:
“A outra inovação brasileira foi converter a participação dos civis num aspecto
fundamental da Escola de Guerra. (...) justamente porque a escola brasileira devia
preocuparse com todas as fases do desenvolvimento e da segurança, julgouse
necessário incluir civis de certas áreas como educação, indústria, comunicações e
sistema bancário. A decisão de incluir civis como parte central da ESG. Mostrou
ser decisiva para o desenvolvimento da escola. Colocou os oficiais militares em
contato sistemático com os líderes civis ”143
Vários civis que participaram de atividades na ESG antes do golpe ocupariam
cargos de ministro de Estado durante o regime militar. Pela proximidade com David
Nasser merecem destaque Antônio Delfim Netto e Mário David Andreazza. O jornalista
não se vinculou à ESG mas atuou ativamente na conspiração contra o governo de João
Goulart seja através de seus artigos para O Cruzeiro nos quais disseminava as idéias
difundidas pelo complexo IBAD/IPES/ESG, seja cultivando relações com militares e
142 Idem, p. 28.
143 STEPAN, Alfred. Os militares na política. Rio de Janeiro: Artenova, 1975, p. 127128.
93
civis e participado de reuniões clandestinas com golpistas. De acordo com Luiz
Maklouf Carvalho, “não há prova de que tenha tido ligações formais com o IPES,
como outros jornalistas tiveram, mas é certo que comungava o ideário e assumia
publicamente sua defesa.”144
Em sintonia com o pensamento da grande imprensa na época, o principal
argumento empregado pelos conspiradores para justificar a necessidade de derrubar o
governo legalmente constituído de João Goulart era a inevitável instauração, no Brasil,
de um regime comunista que poria fim à democracia. Este mesmo argumento é utilizado
por David Nasser em “Aurora Vermelha”:
“Nunca a idéia deste País, tão manso em sua maneira de ser, tão despreocupado
e agradável, transformado numa república sindicalista ou proletária, ou algo
parecido, havia passado por minha cabeça. (...)
Não tardará o momento em que uma chuva de sangue desabe sobre esta Nação,
até agora feliz. O Brasil mudou, e hoje aceito tristemente a hipótese de ser
ocupado pelos comunistas sem que tenham necessidade de disparar um tiro.”145
Neste mesmo artigo, o jornalista anuncia a intervenção das Forças Armadas
como meio de defesa da democracia contra o comunismo:
“Atentem bem os dirigentes políticos brasileiros, os democratas – para um detalhe
importante: não é desmoralizando as Forças Armadas nem procurando substituí
las que se evita o perigo comunista. Mais de uma vez tenho dito que os militares
brasileiros são classes médias de uniformes, são democratas e tem a defender,
com o Brasil democrático, inclusive as suas carreiras.” 146
144 CARVALHO, Luiz Maklouf. Cobras criadas. São Paulo, SENAC, 2001, p. 418.145 NASSER, David. Aurora Vermelha, RJ, O Cruzeiro, 23nov1963, p. 6.
146 Idem.
94
Em outro artigo, Nasser reforça seu apoio à intervenção militar na política
nacional autodenominadose um democrata. E conclama quem mais assim se
considerar, a formar uma “santa aliança” defendendo a legalidade ameaçada pelo perigo
de um golpe comunista. Os demais, os antidemocratas, devem se calar. Procura desta
forma unificar o discurso da conspiração e silenciar as resistências. Em “O Grande
Mudo”, sobre o Exército brasileiro, reitera seu apoio à intervenção militar na política
nacional:
“O Exército (e como exército se aceite a principal força militar) é o defensor,
executor e o mantenedor da legalidade, e não o seu intérprete, o seu jurista (...).
Ninguém pode falar em nome do Exército Brasileiro, da Marinha Brasileira, ou da
Força Aérea Brasileira – se a sua fala é antidemocrática. Tenho repetido que os
militares são simples civis de uniforme, são cidadãos da classe média que
enfrentam os mesmos problemas, sofrem as mesmas angústias, sentem as mesmas
depressões, os mesmos temores, as dificuldades iguais às de todos os brasileiros.
(...)Todos nós, democratas, devemos considerar as Forças Armadas como a base
de uma santa aliança contra a invasão comunista do Brasil.”147
A posição de Nasser como conspirador, revelada em seu discurso político,
mostra que estava em sintonia com o pensamento da grande imprensa na época. Alguns
conspiradores diziam acreditar que a intervenção militar seria pontual e deveria garantir
a legalidade na transição do governo sucessor de João Goulart, impedindo a chegada do
“perigo comunista” e preservando as liberdades democráticas. Este pensamento estava
manifestado em outros jornais e revistas que também apoiaram o golpe militar, como o
Estado de S.Paulo. Maria Aparecida de Aquino, que estudou a atuação deste diário
147 NASSER, David. O Grande Mudo, RJ, O Cruzeiro, 15fev1964, p. 4
95
paulista durante os primeiros anos do regime militar, de 19641968, chama a atenção
para uma “contradição aparente”:
“Falase em contradição porque pode causar espanto o fato de que o grupo que
representa os interesses dos proprietários do jornal, tradicionalmente defensores
de uma postura liberal democrática, em vários editoriais do período que antecede
o golpe de 1964, não hesita em propor até a intervenção por intermédio da ação
das Forças Armadas para a derrubada de um governo democraticamente
constituído. (...) a posição do grupo (...) conspirando abertamente contra o
governo constitucional de João Goulart, é teoricamente justificável nos moldes do
liberalismo lockeano. (...) Assim, apesar de defender a democracia, OESP
entendia as atitudes de João Goulart como interferência demasiada do governante
e usurpação dos direitos naturais dos indivíduos, portanto, como alvo de
resistência da sociedade civil.”148
Pela presença ampla de manifestações conspiratórias em vários veículos de
imprensa, a presença e o discurso proferido por João Goulart na noite de 30 de março
de 1964, no Automóvel Clube para a comemoração do aniversário da Associação dos
Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guanabara, surpreendeu seus assessores,
pois a trama golpista dava evidentes sinais de sua marcha desde o dia 13 de março
quando, em comício, na presença de cerca de 200 mil pessoas, o presidente João
Goulart,
“após 3 horas de inflamados discursos, encerrou o ato anunciando a promulgação
de dois decretos: o da nacionalização das refinarias particulares de petróleo e o
da desapropriação das propriedades de terras (com mais de 100 hectares) que
ladeavam as rodovias e ferrovias federais. Prometeu também enviar ao Congresso 148 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (19681978). Bauru: Edusc, 1999, p. 3839.
96
outros projetos de reformas (agrária, eleitoral, universitária e constitucional);
anunciou ainda nos próximos dias decretaria algumas medidas urgentes ‘em
defesa do povo e das classes populares’ (tabelamento de aluguéis, controle dos
preços, etc.).”149
Desde então diversos setores da classe média e da burguesia articularamse em
defesa da propriedade, da fé religiosa e da moral sob a bandeira do anticomunismo, e
foram às ruas em manifestações civis, destacandose a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, realizada em São Paulo, em 19 de março, que reuniu cerca de 500 mil
pessoas. Organizada por entidades femininas, contou com o apoio do governo de estado
de São Paulo, setores da Igreja Católica, da FIESP, da sociedade Rural Brasileira.
Encerrada com inflamados discursos contra o governo Goulart, a manifestação fez
parte de ofensiva golpista para criar um clima favorável à intervenção militar. É neste
contexto que Caio Navarro de Toledo considera o discurso de Goulart no Automóvel
Clube no dia 30 de março, uma espécie de suicídio político. “No discurso que
pronunciou, transmitido por rádio e televisão, Jango denunciou as pressões que vinha
sofrendo da direita. Para ele a tentativa de golpe contra seu governo estava sendo
financiada pelo imperialismo e pela burguesia associada.”150 O presidente bradava:
“Não admitirei o golpe dos reacionários. O golpe que desejamos é o golpe
das reformas de base, tão necessárias ao nosso país. Não queremos o Congresso
fechado. Ao contrário, queremos o Congresso aberto. Queremos apenas que os
congressistas sejam sensíveis às mínimas reivindicações populares.”151
149 TOLEDO, Caio Navarro de. O governo Goulart e golpe de 64. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 97.
150 TOLEDO, Caio Navarro de. Op. Cit., p. 103.
151 Citado em GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada, São Paulo, Cia. Das Letras, 2004, p. 65.
97
Historiadores da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, tem contribuído
significativamente para a ampliação da historiografia sobre o regime militar ao levantar
as razões dos militares para o golpe através da realização de entrevistas com militares
que tiveram atuação importante enquanto estiveram no poder ou próximo dele e da
análise de textos por eles produzidos.
Parte dos resultados deste trabalho estão publicados em artigo de autoria de
Gláucio Ary Dillon Soares no qual critica as análises tradicionais mais vinculadas a
correntes teóricas européias e norteamericanas do que à realidade nacional. Segundo o
historiador, estes analistas “deduziam o que aconteceria com bases em teorias
supostamente universais e não em pesquisa concreta, feita no Brasil e sobre ele. O
resultado foi uma produção sociológica e política livresca, derivada da leitura de
textos clássicos, mas sem contato com a realidade política brasileira.”152
Um fator externo muito discutido quando o assunto é o golpe militar é a
influência norteamericana na conspiração. É conhecido hoje o auxílio financeiro dado
pelos Estados Unidos como clara manifestação de apoio ao golpe e subseqüente regime.
Entre os militares, entretanto, é consenso que o apoio daquele país foi irrelevante para a
realização do golpe. Segundo o autor, Dillon Soares, que concorda com o ponto de vista
dos militares neste aspecto, “uma coisa é o fato de os EUA apoiarem o golpe e outra é
a essencialidade deste apoio.” 153
152 SOARES, Gláucio Ary Dillon. “O Golpe de 64”, in: 21 Anos de Regime Militar. Balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 12. 153 SOARES, Gláucio Ary Dillon. Op. cit., p. 45.
98
Dillon Soares aprofunda sua crítica dizendo que “assim, autores diferentes
colocaram os militares a serviço seja da aristocracia, seja da burguesia, seja das
classes médias. A autonomia dos militares foi sistematicamente subestimada. Como
resultado, foram grosseiros os erros de avaliação da situação militar.”154 E afirma:
“o golpe, porém, foi essencialmente militar: não foi dado pela burguesia ou pela classe
média, independentemente do apoio que estas lhe prestaram.”155
Entre as principais razões dos militares levantadas pelos estudiosos do Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio
Vargas (CPDOCFGV) para o golpe de 1964 destacamos o caos gerado pela
instabilidade, pela “paralisia decisória” e “ingovernabilidade da administração Goulart”,
sendo assim portanto justificado o necessário restabelecimento da ordem. Outra razão
importante foi o perigo comunista. Em outro trabalho, em que estão publicadas as
entrevistas realizadas com os militares, os historiadores do CPDOC afirmam que eles
costumam justificar os acontecimentos de 1964 como “um contragolpe ao golpe de
esquerda que viria, provavelmente assumindo a feição de uma ‘república sindicalista’
ou ‘popular’.”156
Desta forma, episódios ocorridos durante o governo Goulart, tais como a
Rebelião dos Marinheiros e Fuzileiros Navais no Sindicato dos Metalúrgicos, no dia 20
de março de 1964, e Reunião dos Sargentos no Automóvel Clube, dez dias depois, com
a presença do presidente Goulart caracterizaram, para os militares, violação do
princípio de hierarquia e quebra da autonomia. O que se transformou no pretexto que
faltava para a tomada do poder.
154 Idem, ibidem. Grifo original.
155 Idem , ibidem, p. 27. 156 D’ARAÚJO, Maria Celina et alii. Visões do Golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro, RelumeDumará, 1994. p. 12.
99
O exgovernador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola foi o principal
adversário político de David Nasser durante o período conspiratório. Eleito com 269 mil
votos, o deputado federal mais votado da história do Congresso até aquela data, Brizola
já havia mostrado sua força política e sua habilidade no trato com a imprensa em 1961
quando, para garantir a posse do cunhado e vicepresidente, João Goulart, após a crise
que sucedeu a renúncia de Jânio Quadros, formou a chamada "Cadeia da Legalidade",
comandando 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses e mobilizando a
população em defesa da posse de Goulart. Denunciava a adoção do parlamentarismo
como violação da Constituição.
Cunhado do presidente João Goulart, durante o seu governo, Leonel Brizola se
tornaria a principal liderança da esquerda radical e, por isso, passaria a enfrentar
divergências com o presidente a quem acusava de aliarse a forças políticas
conservadoras e próimperialistas. Entretanto, denunciou sistematicamente, através da
imprensa, utilizando principalmente a rádio carioca Mayrink Veiga, a formação da
conspiração civilmilitar que acabou por depor o presidente. Brizola tornouse, por isso,
alvo de ataques, na imprensa, dos setores conservadores, envolvidos da “Cadeia
Democrática”, coordenada pelo complexo IBAD/IPES/ESG. David Nasser foi um dos
jornalistas que o enfrentou. E o fez da forma mais dura entre todos os políticos sobre os
quais escreveu. A particularidade da desavença entre os dois é chegaram ao extremo da
agressão física.
100
A briga entre David Nasser e Leonel Brizola começou em abril de 1963,
conforme narra Luiz Maklouf, quando Brizola se desentendeu com João Calmon, eleito
governador pelo Espírito Santo, em 1962: “em abril de 1963, quando visitava Chatô
nos Estados Unidos, O Jornal deu uma nota afirmando que Brizola comprara um
apartamento em Ipanema. Brizola foi aos estúdios da TV Rio, desmentiu a notícia e
atacou Calmon e os Diários Associados. Na volta da viagem, em 29 de abril, Calmon
revidou os ataques na TV Tupi”157 David Nasser assumiu a defesa de Calmon e passou a
atacar o exgovernador do Rio Grande do Sul.
Durante todo o ano de 1963, Nasser escreveu vários artigos insultando o ex
governador. “A Besta do Apocalipse” de 22 de junho de 1963, “O Bandoleiro da
Sintaxe” de 06 de abril, “Os Brizolas passam, o Brasil fica” 06 de julho, “Resposta a um
pulha”, de 20 de julho. Entre as ofensas disparadas contra o exgovernador podese
destacar “covarde”, “bestinha fácil de montar”, “inimigo da imprensa, da gramática e
do alfabeto”. Quando, depois disso, Brizola entrou com processo por injúria e
difamação contra o jornalista, a resposta veio em “O Réu Feliz”. Habilidoso com as
palavras, Nasser dizia:
“Talvez tenha a minha mão carregado no adjetivo (...). Não recorrerei, por
desnecessário, à adjetivação que coloriu de marrom – reconheço – a minha
resposta. Mas reconheçam, também, que não se responde a uma bofetada com
uma flor (...). Senhor juiz, sou réu confesso, se é possível medir o adjetivo. Porém,
todas as vezes, neste mesmo lugar, neste mesmo banco onde me traz a profissão,
todas as vezes que a honra me trouxer aqui, eu serei um réu feliz.”158
Contudo, o desdobramento mais emblemático do desentendimento entre Nasser
e Brizola aconteceu em dezembro de 1963, quando os dois se encontraram casualmente 157 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p.422.
158 NASSER, David. O Réu Feliz, RJ, O Cruzeiro, 28set1963, p. 6
101
no Aeroporto do Galeão e foram ao chão, aos socos. O episódio ainda rendeu o artigo
“O Coice do pangaré”, no qual Nasser afirma ter sido agredido pelas costas:
“Depois da agressão pelas costas – e do revide pela frente – bato o teclado desta
máquina com a mão que esbofeteou uma canalha pela segunda vez. A primeira,
quando o retratou moralmente. A segunda, quando respondeu ao ataque
traiçoeiro. (...) Se Kennedy, que era Kennedy, não pode evitar a bala de um louco
de Dallas – como poderia eu escapar ao coice de um pangaré de Carazinho? São
acidentes do trabalho.”159
O Cruzeiro deu ampla repercussão à briga entre Brizola e Nasser ocorrida no
aeroporto do Galeão. Em 18 de janeiro de 1964, a revista publica “Os covardes atacam
pelas costas”, assinada por Nasser e que já havia sido publicada em O Jornal, em 27 de
dezembro de 1963. A matéria é ilustrada com fotos de David Nasser sentado à máquina
de escrever redigindo “O Coice do Pangaré” e exibindo a nuca, onde foi golpeado com
o soco de Brizola. Outras ilustrações em quadrinhos narram o episódio.160 Em 23 de
março, a revista, fiel à campanha de desmoralização do deputado Leonel Brizola,
publica matéria, exibida em formato de fotonovela, sobre uma peça teatral encenada no
Rio de Janeiro chamada “O cunhado do presidente” na qual o personagem principal, o
“deputado Frajola” é uma sátira sobre Brizola.161 Apesar de todas as agressões, David
Nasser não conseguiu assassinar politicamente Leonel Brizola que, mesmo com todos
os ataques seguiu sua carreira política.
Quanto a João Goulart, o presidente mais maltratado e desrespeitado pela
imprensa na história do Brasil, nem com ele David Nasser foi tão duro. Ainda que
159 NASSER, David. O Coice do pangaré, RJ, O Cruzeiro, 18jan1964, p. 6
160 NASSER, David. Os covardes atacam pelas costas, RJ O Cruzeiro, 18jan1964, p. 89.
161 “Aventuras de um deputado Frajola ”, RJ, O Cruzeiro, 23mar1964, p. 124127.
102
mencionando com alguma freqüência o lado “boa praça” de Goulart, ajudou a construir
a imagem do presidente como homem fraco em indeciso. As agressões eram motivadas
pela expectativa disseminada pelos conspiradores e aceita por alguns estudiosos do
período, como o jornalista Elio Gaspari, de que “havia dois golpes em marcha. O de
Jango viria amparado pelo ‘dispositivo militar’ e nas bases sindicais, que cairiam
sobre o Congresso, obrigandoo a aprovar um pacote de reformas e a mudança das
regras do jogo da sucessão presidencial.”162 Moniz Bandeira, contudo, afirma que
Goulart:
“nunca pretendeu, em realidade, desfechar o golpe de Estado. Apenas se
inclinara, em função da crise, a tomar uma atitude de força, sem transpor o
espaço constitucional, embora considerasse que suas balizas tolhiam a ação e
inibiam agilidade do Governo, não só para a adoção de medidas de defesa como
para a realização das reformas de base.”163
Ainda segundo Bandeira, “Brizola sempre advogara uma atitude dura do
Governo. Aconselhara diversas vezes a Goulart a dar ele próprio o golpe de Estado.
‘Senão dermos o golpe eles o darão contra nós’ – dizia.” 164:
“Desde a luta pela posse de Goulart, em 1961, ele defendia uma solução
revolucionária e, posteriormente, passara a combater o que considerava como
concessões ao conservadorismo. Preocupavao o desgaste do Governo, que a seu
ver, não se definia e com isso beneficiava a conspiração em marcha.”165
162 GASPARI, Elio. A Ditadura envergonhada. São Paulo, Cia. Das Letras, 2004, p. 51. 163 BANDEIRA, Moniz. O Governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (19611964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p.131. 164 idem, ibidem. Entrevista de Brizola ao autor.
165 Idem, ibidem. Entrevistas de Brizola e Goutart ao autor.
103
A estes conflitos Nasser se apegou em sua campanha desestabilizadora,
atribuindo ao que considera falta de estrutura ideológica do partido do presidente, o
PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), o fracasso da política de conciliação adotado por
João Goulart, por meio da qual tentou ampliar a base política do governo, buscando
apoio do centro sem abrir mão de sua relação com setores de esquerda, na tentativa de
neutralizar a oposição.
Em outubro, Nasser escreve “O Brasil de Jango”, artigo no qual sugere que o
presidente Goulart estaria planejando um golpe de Estado enquanto, como num jogo de
cartas marcadas, aparecesse como sujeito traído por seus correligionários. Neste texto
David Nasser garante ter advertido o presidente sobre uma “espantosa contradição”:
“Mostreilhe a espantosa contradição, o paradoxo monstruoso: enquanto os seus
adversários mais intransigentes sustentavam a tese de que dentro da lei o
Presidente era intocável, que o seu mandato era intocável, que ele devia carregar
a cruz ate o fim – enquanto a oposição dizia isso e lutava por isso – os amigos, os
correligionários, os parentes do Senhor João Goulart conspiravam contra ele,
tramando a sua deposição, o fim do regime legal, a abolição das normas
constitucionais.
Não há uma pessoa de bomsenso neste País, Presidente, que não acredite estar
o Senhor e eles jogando de cartas marcadas.”166
E conclui o artigo com um desafio e uma provocação:
“Agora, só falta você, Jango, revelar o verdadeiro B de sua biografia. Se é o B de
Brizola, do Bocayuva, do Brasil ou de uma santa burrice que o levará a Getúlio
antes do tempo e o Brasil à baderna antes da hora.”167
166 NASSER, David. O Brasil de Jango, RJ, O Cruzeiro, 05out1963, p. 4.
167 idem, ibidem.
104
Com esta provocação, David Nasser chama a atenção para a responsabilidade
quanto ao futuro do Brasil que João Goulart assumira como Presidente de República,
sobretudo no que diz respeito a uma definição política. A resposta para a provocação a
respeito do “verdadeiro B” da biografia de Jango, David Nasser publicou em dois de
maio de 1964, portanto, imediatamente, após o golpe civilmilitar que o derrubou em
abril daquele ano, sob o título “Caiu de burro”, uma coletânea de advertências dirigida
ao presidente foi apresentada ao público com as seguintes palavras: “Longos, longos
meses, adverti a Nação da marcha batida do Sr. João Goulart para a deposição ou a
renúncia. O Brasil não acreditava. O presidente sorria. Aí estão, recortadas, algumas
palavras que seriam realmente proféticas se o destino de João Goulart não fora um
livro aberto.” 168
Ao final deste texto, foi publicado facsímile de telegrama que Chateaubriand
teria enviado ao jornalista, com o seguinte teor: “Esta vitória teve em você um dos seus
mais formidáveis generais. Foi o maravilhoso anjo vingador. Chateaubriand.” A
mensagem mostra que houve uma participação ativa, um envolvimento concreto, de
David Nasser na conspiração para a derrubada de João Goulart.
Assim, antes do final de seu mandato, João Goulart era despojado da Presidência
da República, sem conseguir implementar seu plano de governo fundamentado nas
Reformas de Base, que “visavam, basicamente, enfrentar alguns dos grandes impasses
do capitalismo no Brasil, modernizando relações arcaicas e ampliando a participação
popular na vida nacional”169, explica Edgard Luiz de Barros. Porém, devido à intensa
oposição do Congresso Nacional, as reformas nunca passaram de slogans políticos.
Segundo Barros:
168 NASSER, David. Caiu de burro, RJ, O Cruzeiro, 02mai1964, p. 4.
169 BARROS, Edgard Luiz de. O Brasil de 1945 a 1964. São Paulo: Contexto, 1999, p. 60.
105
“Os ‘tempos de Goulart’ singularizaramse dentro da história política brasileira:
neles, a política deixou de ser privilégio do parlamento, do governo e das classes
dominantes, para alcançar de forma intensa a fábrica, o campo, o quartel.
Pressionado pelo movimento popular organizado e pelas esquerdas em geral, o
governo de João Goulart foi sendo também praticamente encurralado pela
violenta oposição e conspiração dos setores civis e militares. Além da permanente
pregação anticomunista e de combate a uma ‘República Sindicalista’ irreal que
Jango nunca pensou em instalar, o que unia as classes dominantes era a ameaça
mais concreta que pairava sobre seus lucros e suas propriedades, menos em
função de medidas econômicas nacionalistas, mas principalmente pelas sucessivas
greves e ampliação dos direitos dos trabalhadores rurais.” 170
Golpe engendrado, Presidente deposto, o Brasil entrava, assim, na fase de
construção de um Estado Autoritário conduzido por militares que, sustentandose pela
força coercitiva, propunhase a defender a democracia no país contra comunismo.
Sobre o conceito de autoritarismo, cabe esclarecer:
“Na tipologia dos sistemas políticos, são chamados de autoritários os regimes que
privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos
radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou
de um só órgão e colocando em posição secundária as instituições representativas.
Nesse contexto, a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidos
à expressão mínima e as instituições destinadas à representar a autoridade de
baixo para cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas.”171
170 BARROS, Edgard Luiz de. Op. Cit., p.65.
171 STOPPINO, Mario. “Autoritarismo”, in: BOBBIO, Norberto at alii. Dicionário de Política. São Paulo/Brasília: Imprensa Oficial/Editora UnB, 2000, vol.1, p.94.
106
Esta conceituação é compatível com o pensamento militar, resumido por
Gláucio Ary Dillon Soares:
“A mente militar é mais simples do que as teorias explicativas do golpe. Ela
girava em torno de uma noção muito particular (da instituição militar) e exigente
de ordem, de previsibilidade; ela rejeita e não consegue conviver com o conflito
social, desenvolveuse num ambiente ferozmente anticomunista e é extremamente
ciosa da autonomia da corporação e da hierarquia dentro dela. A hierarquia,
conceito fundamental nas forças armadas, não convive bem com a igualdade,
conceito fundamental da democracia.”172
No entanto, David Nasser mantevese perfeitamente alinhado ao discurso dos
presidentes militares, os quais:
“desde o primeiro (marechal Humberto de Alencar Castelo Branco – 196467) até
o último (general João Baptista de Oliveira Figueiredo – 197985) dos presidentes
militares, nos discursos para o grande público, notadamente aqueles nos quais
tomam posse formalmente no exercício das funções presidenciais, fazem questão
de reafirmar suas ações e comportamentos em nome da defesa e da democracia no
país.”173
Desta forma, as justificativas adotadas para a ação golpista tornaramse os
princípios norteadores do Estado Autoritário implantado pelos militares com apoio de
importantes setores da sociedade civil como a imprensa, a Igreja, e o empresariado.
172 SOARES, Gláucio Ary Dillon. “O Golpe de 64”, in: 21 Anos de Regime Militar. Balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 47.
173 AQUINO, Maria Aparecida de. “A Especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercício empírico”, in: ”, in: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). Intelectuais, história e política. Séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7letras, 1997. p. 272.Conf. FIORIN, José Luiz. O Regime de 1964. Discurso e ideologia. São Paulo: Atual, 1988.
107
Desta vez, entretanto, os militares abandonaram o caráter tradicionalmente
intervencionista de suas ações ao ocuparem o Poder Executivo. Optando assim por
assumir o poder no país, a “contradição aparente” que, como já foi apontado, justificava
a intervenção militar junto ao governo do Presidente João Goulart, como forma de
garantir os “direitos naturais do homem”, transformase numa das principais
ambigüidades que caracterizaram o Estado Autoritário brasileiro entre 19741985 na
medida em que, apesar de mantido o discurso liberal pródemocracia, a já frágil
democracia brasileira foi sendo completamente descaracterizada. De acordo com o
cientista político Décio Saes,
“os ‘liberais’ pensam que a única democracia possível e desejável nas sociedades
contemporâneas é o Estado democrático, tal qual ele existe nas formações sociais
capitalistas. Por isso, negam toda legitimidade ao trabalho de construção do
conceito de democracia proletária e o estabelecimento de uma distinção teórica
entre democracia proletária e democracia burguesa”174.
Ainda sobre a definição de democracia no pensamento liberal, afirma Saes:
“O regime político democrático lhes parece caracterizado pelos seguintes
elementos: a) pluripartidarismo ilimitado, expresso no terreno do processo
eleitoral (isto é, concorrência partidária sem limites no terreno eleitoral); b) plena
vigência de liberdades políticas para todos, sem qualquer discriminação de classe
ou ideológica; c) vigência efetiva da mais estrita legalidade e, portanto, de um
sistema de garantias às liberdades individuais.(...)
Os ‘liberais’ também propõem uma caracterização da forma de Estado
democrática. A seu ver, esta se caracteriza, basicamente, por: a) soberania do
174 SAES, Décio. Estado e democracia: ensaios teóricos. Campinas: IFCH/Unicamp, 1998,p. 175. grifo original.
108
Parlamento, eleito pelo sufrágio universal; b) separação, independência e
equilíbrio dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário).”175.
A instituição do novo governo militar sob um Estado Autoritário ao qual David
Nasser se refere sempre como “Revolução” (assim: com “R” maiúsculo), se dá entre
ambigüidades, sendo a principal delas preservação constante do discurso pró
democracia mesmo quando, em nome da segurança nacional, caracterizase a
perseguição aos “inimigos internos”, conceito criado dentro da “lógica” anticomunista
que designou, num primeiro momento, os membros do governo deposto ou a ele
ligados, e posteriormente, qualquer brasileiro que se opusesse ao novo regime. Assim,
de acordo com Maria Aparecida de Aquino:
“A democracia é, por sua origem, um regime que não usa da violência, não é
imposto, respeita a escolha do cidadão e, em função de sua liberdade e
integridade mental e física, é exercido. ‘Prender e arrebentar’176 não são atributos
seus, e sim a garantia da manutenção de todos os direitos inalienáveis do cidadão,
inclusive o de discordância pública com os governantes. Estes, na plena vigência
do regime, devem demonstrar inequivocamente a capacidade de convivência com
os mais variados antagonismos que são fruto da sociedade, entendida como
conflituosa por natureza.”177
O historiador Daniel Aarão Reis Filho entende que as contradições internas que
caracterizaram o governo militar, tal como a necessidade de se fundamentar num
discurso democrático, embora em sua prática se mostrasse cada vez mais autoritário e
175 Idem, p. 176. grifo original.
176 Referência a um pronunciamento do último presidente militar, João Batista Figueiredo, que chegou prometer defender a democracia, mesmo que para isso fosse preciso “prender e arrebentar”. 177 AQUINO, Maria Aparecida de. “A Especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercício empírico”, in: REIS FILHO, Daniel Aarão, Intelectuais, história e política. RJ: 7letras, p. 273
109
violento contra aqueles que considerasse seus “inimigos”, tem origem na multiplicidade
de forças que apoiaram a deposição do presidente João Goulart. Diz o historiador, sobre
o que chamou de “estranha fraqueza, a das ditaduras que não conseguem se assumir”:
“As contradições da ditadura não residiam em nenhuma confusão mental, mas se
radicavam nas realidades bem palpáveis do caráter heterogêneo da ampla frente
de forças que derrubara o regime presidido por João Goulart.
Ali se reuniram a espada, a cruz, a propriedade e o dinheiro. E o medo,
um medo muito grande, de que gentes indistintas pudessem cobrar forças e virar o
país e a sociedade de pontacabeça. Se a hipótese tinha base na realidade ou não,
é uma outra questão. O fato é que o medo a tomava como provável, como
iminente. Era preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa, para colocar aquelas
gentes nos lugares que eram os seus, dos quais nunca deveriam ter saído e para os
quais haveriam de voltar.”178
Semanas após o golpe, Nasser, a despeito de aceitar como “salutares” a medidas
de expurgo adotadas pelo novo governo, adverte para importância de manter tais ações
em termos legais:
“longe de mim duvidar das santas intenções do Comando Supremo. Porém, zelo
para que a Revolução não se desfaça em si mesma, tornando antecipadamente
inócuas as suas salutares medidas de expurgo, pela arbitrariedade com que
possam ter sido executadas, pela desvestimenta jurídica, pela orfandade legal que
cercam a maioria de seus atos.(...)
“E a Revolução não pode perder a sua grandeza, a sua longitude, a sua
legitimidade, a sua linha exata, com as punições apressadas, sem formação de
178 REIS FILHO, Daniel Aarão. “1968, o curto ano de todos os desejos”. Tempo Social; Revista de Sociologia USP, São Paulo, outubro de 1998, p.26.
110
culpa. Sem direito de defesa, num estímulo a denúncia anônima, à delação
encapuzada ao tribunal dos surdosmudos, à vingança do ‘falta um’.”
“A injustiça é um boomerang que se volta contra quem o atira...”179
Este artigo foi publicado após um mês em vigor do Ato Institucional no.1, de 9
de abril de 1964, dois dias antes da posse do primeiro Presidente militar, o marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco. O AI1 prometia manter a Constituição de 1946 e
o Congresso Nacional, mas restringiu bastante os poderes do Legislativo e aumentou de
forma considerável os poderes do Executivo. Foi suspensa temporariamente a
imunidade parlamentar, o que permitiu muitas cassações, também foi extinta por seis
meses a vitaliciedade e a estabilidade dos funcionários públicos, o que permitia
demissões e afastamentos de pessoas “indesejáveis”, os “inimigos internos”. Nesta
época, eram perseguidos principalmente os participantes do governo deposto.
A suspensão dos direitos individuais foi outra medida de controle do Judiciário
trazida pelo AI1. Por meio dos IPM’s (Inquérito Policial Militar) criouse “um
mecanismo legal para a busca sistemática de segurança absoluta e a eliminação do
‘inimigo interno’.”180 Criavase uma nova situação jurídica no país que abria caminho
para a “operação limpeza”. Martha Huggins, que estudou a presença da polícia norte
americana na Brasil, afirma em seu trabalho que o governo do general Castelo Branco
procurou o que ela chama de “reabilitação moral” utilizando a violência. Diz a autora:
“Essa ‘reabilitação moral’ – intitulada ‘Operação Limpeza’ – visou, na verdade,
retirar dos cargos eletivos e do serviço público os partidários de Goulart, o
presidente deposto. O objetivo final da ‘limpeza’ era previsível desde o início. Em
2 de abril de 1964, (...) três governadores estaduais favoráveis a Goulart foram
179 NASSER, David. O Tribunal do silencio, RJ, O Cruzeiro, 9mai64, p.4.
180 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil: 19641984. Petrópolis, Vozes, 1984, p. 56.
111
depostos e detidos (...), quase dez mil funcionários públicos foram demitidos de
seus cargos, 122 oficiais das Forças Armadas foram obrigados a reformarse, e
378 líderes políticos e intelectuais foram despojados de seus direitos civis pela
cassação, que os impedia de votar e serem votados durante dez anos.” 181
Apesar disso, David Nasser considera que o Ato Institucional no.1 foi generoso,
mesmo revelando “preocupações quanto efeitos saudáveis desse remédio violento”:
“O Ato mantém generosamente, as instituições, atingindoas de resvalo apenas.
(...) O povo tem mandatários no exercício da função legislativa, embora o
Congresso tenha sido castrado preventivamente para não ter assomos de
virilidade (...). Toda Constituição tem o hímen complacente.(...) já temos uma lei
de segurança que permite sejam processados os conspiradores vermelhos.
Modifiquemola para o futuro, mas não destruamos a democracia em nome da
democracia.”182
A preocupação com a legitimidade do Estado Autoritário a ser sustentada
através de legislação a que se refere Nasser é uma das características do regime militar,
que foi, segundo Maria Aparecida de Aquino:
“profícuo na produção de leis, mesmo que fosse para regulamentar o exercício da
repressão à oposição da sociedade. Foi o caso das chamadas Leis de Segurança
Nacional (LSN), que previam condenações aos crimes considerados atentatórios à
Segurança Nacional (na ótica do regime entendida como segurança interna,
voltada contra os ‘inimigos’ alojados no próprio país); bem como legislações mais
181 HUGGINS, Martha, Polícia e Política. Relações Estados Unidos/ América Latina. São Paulo, Cortez, 1998. p. 141. 182 NASSER, David. “O idos de março”, in: O Cruzeiro, 16/4/64, p. 4.
112
especificas como a que procurou regulamentar a censura prévia aos órgãos de
comunicação (Lei número 1077 de 26/01/1970)”183
Assim, durante todo o período em que os militares estiveram no poder, mas
sobretudo nos governos dos marechais Castelo Branco e Costa e Silva, foram marcados
pela busca de legalidade. A estruturação do Estado de Segurança Nacional, nos termos
empregados por Maria Helena Moreira Alves, foi fundamentada em três fatores
principais: a criação do SNI, Serviço Nacional de Informações, a implementação do
PAEG, Programa de Ação Econômica do Governo, e o controle salarial. Procuravase
assim garantir a segurança interna e criar as bases para o processo de desenvolvimento
cujos “principais objetivos eram, com toda evidência, a atração de capitais
multinacionais e o estabelecimento de uma política de controle salarial que
maximizasse a exploração e com isso aumentasse os lucros”184.
A partir do AI1, todos os setores da sociedade que apoiaram o golpe, certos de
que a intervenção dos militares seria passageira, começaram a desconfiar dos rumos da
revolução:
“como a doutrina não era amplamente conhecida do público na época, o Ato
Institucional surpreendeu os que haviam apoiado a intervenção dos militares na
crença de que sua intenção era restaurar a democracia. A reação da imprensa foi
quase unanimemente negativa. E, com efeito, o Ato Institucional No 1 rompeu o
apoio tácito à coalizão civilmilitar, dando origem à dialética
Estado/oposição”.185
183 AQUNO, Maria Aparecida de. “A Especificidade do regime militar brasileiro: abordagem teórica e exercício empírico”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). Intelectuais, história e política. Séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: 7letras, 1997, p.273.
184ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., p. 78.
185 Idem, p. 54.
113
Ainda em abril de 1964, alguns setores que participaram ativamente do golpe,
sobretudo os veículos de imprensa, já se opunham ao novo regime. Um exemplo
emblemático da força investida pelo governo militar contra aqueles se opusessem às
suas decisões, é o do jornal carioca Correio da Manhã, que foi obrigado a fechar as
portas em 7 de junho de 1974, após anos de crise administrativa provocadas por
perseguições políticas186. Um dos primeiros jornais entre os que apoiaram o golpe a se
voltar contra ele denunciando e condenando o recurso à violência e à tortura já
registradas desde os primeiros dias de governo militar, a oposição do Correio da
Manhã teve a mesma força de sua campanha pela deposição do presidente Goulart.
Sobre o este jornal, afirma Maria Aparecida de Aquino:
“Este periódico, fundado em 1901, por Edmundo Bittencourt, em 1964 um
poderoso órgão de divulgação, vem fazer coro à imagem construída de um golpe
que estaria sendo arquitetado por João Goulart para assegurar a realização das
reformas pretendidas por seu governo. No mês de março, produz manchetes e
editoriais com chamadas à manutenção da disciplina e da legalidade. E, em 31 de
março e 1º de abril, seus dois famosos editoriais “Basta!” e “Fora!” apontavam
para o fato de que a ‘população’ teria perdido a paciência com os desmandos
governamentais e conclamavam para a saída de João Goulart da Presidência.
O mesmo jornal, porém, apenas dois dias mais tarde, em 3 de abril de
1964, publicava outro editorial – reproduzido, na íntegra, no jornal Última Hora
do Rio de Janeiro (UH/RJ) – com o título de impacto “Terrorismo, não!” em que
se voltava contra as violências cometidas pela polícia da Guanabara e acusava
claramente o governador Carlos Lacerda.”187
186 Conf. ANDRADE, Jeferson. Um jornal assassinado. A última batalha do Correio da Manhã . Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. 187 AQUINO, Maria Aparecida de. Caminhos Cruzados, imprensa e Estado Autoritário no Brasil (196480). São Paulo, 1994. Tese (Doutorado em História Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 04.
114
Este não foi o caso de David Nasser em O Cruzeiro. As cassações, prisões e
práticas de tortura levadas a efeito pelo novo governo logo em seus primeiros dias eram
ameaças também aos que ainda acreditavam que a intervenção dos militares seria
pontual e o governo, devolvido em breve aos civis. Embora a Constituição de 1946,
preservada em parte pelo AI1, ainda previsse a realização de eleições no ano seguinte,
já era evidente endurecimento do regime, bem como a intenção dos militares em
permanecer no poder. Assim, em junho de 1964, era criado o Serviço Nacional de
Informações:
“Após tomarem o poder em 1964, os militares se preocuparam de imediato com a
criação de um órgão de informações moderno e eficiente. (...) a precariedade das
informações é apontada como um dos pontos cruciais que facilitaram o
crescimento e a vitória da conspiração contra João Goulart. A lição foi bem
aprendida, pois ainda em junho de 1964 foi criado o Serviço Nacional de
Informações (SNI), com o objetivo de assessorar o presidente da República na
orientação e coordenação das atividades de informação. Arquitetado por Golbery
do Couto e Silva, o SNI cresceu e espalhou seus tentáculos sobre toda a sociedade
e sobre os aparelhos do Estado. (...) Tendo como cliente principal o presidente da
República, o SNI expandiu suas atividades, ultrapassando os limites da área de
informações e de operações. Tornouse também um gerenciador de atividades
políticas e empresariais. O gigantismo e a ação diversificada, e até mesmo
descontrolada, desse órgão levou sem mentor, Golberi, a declarar, anos mais
tarde, que havia criado ‘um monstro’.”188
188 D’ARAÚJO, Maria Celina et alii (orgs.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 14. Conf. FICO, Carlos. Como eles agiam. Rio de Janeiro: Record, 2001.
115
David Nasser declarou seu apoio à criação do Serviço Nacional de Informações,
apenas advertiu seu chefe, Golbery, a evitar excessos, a fim de não prejudicar a
“dignidade do governo”:
“Sou um impenitente admirador do Golbery, embora não o conheça além de sua
envoltura plástica. Todos no Exército, onde serviu atestam sua probidade. É um
homem pobre, mora em Jacarepaguá, não sonhava com a perda de sua vida
mansa e interior. Deve estar ansioso para que esta Revolução se torne adulta,
tome juízo e se emancipe, para ele voltar às suas galinhas e ais seus livros. Mas, o
general Golbery lê Nietzche, e quando um general lê Nietzche, em vez de ler os
cem dias napoleônicos, é motivo de preocupação.
Baseado nas excelentes relações que temos desde a época em que conspirávamos
juntos (sem que víssemos tantos robustos e intransigentes revolucionários de hoje)
atrevome a dar alguns conselhos ao chefe do Serviço Nacional de Informações.
Ninguém duvida da necessidade de um serviço de inteligência de um governo que
enfrenta um teste de popularidade tão difícil. Mas é preciso, general, conter os
meninos dentro das fraldas, senão eles molham tudo. Os meninos e as meninas.
(...) Tratase de um serviço bem montado, bem bolado, (...). Certos excessos,
poderiam, entretanto, ferir a dignidade de um governo.”189
Toda a tensão deste momento decisivo da política nacional, é perceptível através
dos textos de David Nasser, embora, como sempre, em meio a ela, circule de acordo
com seus próprios interesses. Desta postura resultam inúmeras contradições, idas e
vindas, em suas opiniões políticas. Em maio de 1964, por exemplo, adverte o ex
presidente Juscelino Kubitschek, candidato à sucessão presidencial em 1965, a não fazer
oposição ao poder vigente, prometendo anular cassações. Merece destaque o caráter
mandatário de seu discurso:
189 NASSER, David. O volátil Golbery. RJ, O Cruzeiro, 9jan1965. p.4.
116
“sem Juscelino não existirá Lacerda na próxima eleição. Nem Lacerda, nem
Magalhães Pinto, nem Adhemar, nem eleições. (...) Entrar numa ditadura é tão
fácil como entrar num presídio. Sair é difícil. Ninguém desconhece o
fortalecimento da economia num regime de ferro. (...) Esse mesmo regime
vigoroso, entretanto, enfraquece a democracia e pode transformarse num hábito
deprimente. (...) É falsa a afirmativa de que ele já prometeu, com seu sorriso
trêfego, dançando uma valsa, que eleito anistiará os presos e tornará sem efeito a
cassação dos mandatos. Ninguém vai permitir que essas desgraça aconteça ao
Brasil e que esta Revolução seja uma revolução de masturbadores. Juscelino
precisa, antes de tudo, comprometerse publicamente a não tentar eleição através
da derrota dos ideais revolucionários. (...) Juscelino precisa se convencer não é
Gigi de Mangueira. Ou é do morro ou é da planície.”190
Todavia, em novembro de 1964, apóia uma emenda constitucional proposta pelo
deputado Nelson Carneiro que garante o direito de defesa aos acusados pelo governo,
argumentando:
“A Revolução é um estado de espírito. A justiça é uma consciência. Todas as
decisões nascidas no ciclo revolucionário são passíveis de reexame, assim que um
general deixa de fazer pipi na História.(...) nada mais justo, portanto, que o
Congresso aprove a emenda constitucional daquele parlamentar, assegurando a
todos os alcançados pelo Ato Institucional o direito de pretender provar perante o
Supremo Tribunal Federal a inconsistência das acusações contra eles levantada.
É que a punição em tais casos vai além dos por ela fulminados. Atinge a família,
os amigos, a própria sociedade.(...) Ou então caminharemos a passos largos para
a Ditadura, para o Estado Militar. Não há indicio mais veemente dessa tísica do
civismo, dessa agonia democrática, que a falência do judiciário – ou antes – da
190 NASSER, David. Gigi de Mangueira, RJ, O Cruzeiro, 23mai64, p.6.
117
ausência de fé na Justiça. (...) o que não contaria (o passado o indica, o presente
o aconselha) com a presença do Marechal Castello Branco. Um comandante da
FEB não pode ser um traidor da Revolução.”191
Quando o Juscelino Kubitschek, na condição de potencial candidato às eleições
(ainda previstas) de 1965 é cassado pelo Presidente Castelo Branco, em junho de 1964,
David Nasser declara: “Não sei porque, mas não dá vontade de rir:”
“A arte política, entretanto, é diferente da arte militar. Exige uma dose de malícia
e de tolerância que a rigidez dos estrategos não admite. O tempo dirá se o
afastamento de Juscelino não implica na fabricação de um pretexto da contra
revolução. (...) Acredito, mesmo, que o afastamento de Juscelino importe
colateralmente no afastamento de todas as outras candidaturas. Não haverá, com
quase certeza, eleição presidencial em 1965. (...) Sim, impedir que Juscelino fosse
a ponte por onde voltariam os espúrios foi um ato de legítima defesa, mas, talvez,
o ato cirúrgico não fosse o mais indicado e sim um tratamento clínico através da
lei eleitoral. A bravura ou a inconsciência fez com que o Conselho Nacional de
Segurança assumisse a responsabilidade de lancetar um tumor ou de fabricar um
mártir.”192
Sobre outro presidenciável, Adhemar de Barros, o tom do discurso era bem
outro:
“O Senhor Adhemar de Barros pode ser encarado como o maior político
brasileiro ou como o de maior estrela. (...) Sempre a mesma base, um, dois
milhões de votos, para prefeito, para governador, para presidente. Que vê nesse
191 NASSER, David. O Estado Militar, RJ, O Cruzeiro, 7nov64. p.6.
192 NASSER, David. Delendus Juscelino, RJ, O Cruzeiro, 27jun1964, p. 4.
118
homem essa multidão de votos? Jamais alguém foi tão caluniado, tão detratado,
tão destratado, tão triturado. (...) Sobre as acusações de roubo: Nem ele mesmo se
defende das acusações que se lhe fazem. Tem couro duro, o Velho Diabo. (...) Mas,
se teimam, explica a sua fortuna. Teve até fabricas de chocolate, fazendas, olarias,
industria de tecido, estações de radio, jornais. O inicio de tudo isto? Para se
andar uma milha, basta dar o primeiro passo, para se ter um bilhão, basta ter um
tostão. (...) Existem aqueles que, sendo ricos, não se envergonham de sua riqueza
bem ganha. Outros que são ricos e vivem como pobres, Jânio quadros, por
exemplo.” 193
Conclui, considerando a possibilidade de retorno de civis à presidência através
de eleições, serem adiadas para 1966:
“Adhemar de Barros não será candidato à sucessão em 1965, porque não haverá,
provavelmente, em 1965, eleição direta. Em 1966, se estiver com saúde, teremos o
velho com todos os seus imensos defeitos, as suas imensas qualidades e a sua sorte
(...). Um homem que nasceu como ele, virado para a lua, tem o direito de aspirar a
todos os títulos – o de honesto ou o de Presidente.”194
No ano seguinte, quando já estava definido o nome do general Costa e Silva
como sucessor de Castelo Branco, sua opinião era outra:
“A Corte de Seu Artur está em efervescência. Todos sabem que o Presidente
Castello Branco tem horror ao continuísmo, mas nenhum militar desconhece que a
revolução necessita de continuidade. Costa e Silva não é o único. A mim tanto faz
ele como Bizarria Mamede, Justino Alves Bastos, Amaury Kruel, Cordeiro de
193 NASSER, David. O Diabo velho, RJ, O Cruzeiro, 11jul1964, p.5.
194 NASSER, David. O Diabo velho, RJ, O Cruzeiro, 11jul1964, p.5.
119
Farias, Juracy Magalhães, Décio Escobar, contanto que vista farda ou a tenha
vestido. Por mais estranho que pareça, o Brasil para ter um governo bem civil,
precisa de um bom militar. Alguns já nascem com a natureza paisana do nosso
Castello, a quem as gerações vindouras hão de fazer justiça. Outros vão se
civilizando como o Seu Artur. O grande erro de Carlos Lacerda foi escolher a
Faculdade de Direito, em vez de escolher a Escola Militar.”195
Sobre os rumos do governo pósgolpe, dirigindose aos leitores: “dignas
senhoras, respeitáveis cavalheiros, jovens assustados”, esclarece o “objetivo tríplice”
da “Revolução”: “Varrer o comunismo da superfície e do subsolo político e social do
Brasil. Moralizar a administração pública. E restaurar as finanças.” No mesmo artigo,
contudo, alegando que “vale tudo para salvar o objetivo da revolução”, trata a
corrupção como prática institucionalizada e, referindose à Juscelino Kubitschek,
questiona:
“quantos políticos brasileiros, que agora o condenam, elegeramse sem os
recursos de uma caixinha? (...) Mas, ao menos, tenhamos a coragem de dizer a
verdade. Tenhamos a coragem revolucionária de dizer que a derrubada de
Juscelino é um ato político necessário.
As medidas revolucionárias, sob a vigilância da História, precisam ter a
motivação do interesse público, da conveniência nacional ou do resguardo da
democracia. Não podem servir a interesses pessoais de sobas instalados no poder.
(...) se esta revolução, que é órfã, (...), tiver a marca de uma conveniência pessoal,
de uma ambição mesquinha, não terá sido uma revolução, mas um golpe de
mão.”196
195 NASSER, David. Na corte de seu Artur. RJ, O Cruzeiro, 11ez1965. p.4.
196 NASSER, David. Vale tudo, RJ, O Cruzeiro, 20jun1964, p. 6.
120
A delicada questão da tortura aplicada a presos políticos durante o regime
militar, desde os seus primeiros dias, foi tratado por David Nasser, de diferentes formas.
Ora ele tenta negala, ora ele próprio a denuncia. Em julho de 1964 escrevia sobre a
“necessidade desta revolução ser explicada a outros povos”, incumbência atribuída ao
exgovernador da Guanabara, Carlos Lacerda – o “Corvo genial” – que, em Paris:
“negava a caça às bruxas em que teria se transformado a revolução brasileira. E
quando se lhe perguntou sobre a depuração, o corvo genial pediu que não se
confundisse o sentido da palavra: com efeito, depuração quer dizer: lavagem de
cérebro, torturas, fuzilamentos sumários, como se faz na China, na Rússia, em
Cuba. Nada disso acontece no Brasil.”197
Porém, “repor as coisas em seu lugar não era tarefa mesmo para um senhor
Carlos Lacerda”, o que foi feito em oito dias por seu amigo, o fotógrafo francês, Jean
Manzon, “que há treze anos procura ‘vender’ o Brasil aos estrangeiros”:
“Durante muito tempo(...) os jornalistas estrangeiros venderam aos seus leitores a
idéia de um Presidente reformista, preocupado com a parte social do problemas,
um líder apoiado pela grande maioria do seu povo, dos militares, dos
trabalhadores. (...) De repente, um golpe, em 48 horas, sem derramamento de
sangue, apeia do Poder o presidente bonzinho. E seu povo não esboça um gesto
para ajudalo (...) como explicar aos leitores o erro dos correspondentes? Teria
sido necessário um pouco de humildade, mas vós sabeis, em nossa profissão de
jornalista a humildade não é muito comum. O jeito é apresentar os democratas
brasileiros como homens de palha de Washington. Ora, não somos homens de
palha de ninguém. E foi aí que Dom Carlos enfureceu.”198
197 NASSER, David. O Cambronne brasileiro. RJ, O Cruzeiro, 4jul1964, p. 4.
198 Idem, ibidem.
121
A questão aqui é a preocupação constante de David Nasser em distinguir o que é
do que parece ser, ou seja, a preocupação em manter uma imagem idônea e
“democrática” do país escondendo o que ocorre nos porões brasileiros, sobretudo da
imprensa estrangeira. O próprio Nasser, contudo, já havia mencionado o uso da
violência como medida punitiva:
“Toda revolução, fatalmente traz a cara do seu chefe. Esta revolução começou, na
rapidez das medidas punitivas, com a cara de Costa e Silva e se abrandou na
fisionomia de Castello Branco. Hoje talvez seja uma revolução híbrida. O
Ministro usa um cassetete. O Presidente usa uma pluma. Mas é a pluma que
legaliza o cassetete.”199
O fato é que a tortura contra presos políticos foi amplamente empregada durante
o regime militar, não apenas como meio para obtenção de informações, mas também
como método de controle da sociedade em geral:
“O uso generalizado e institucionalizado da tortura numa sociedade cria um
‘efeito demonstrativo’ capaz de intimidar o que têm conhecimento de sua
existência e inibir a participação política. (...) Durante o período referido era
difícil encontrar um brasileiro que não tivesse entrado em contato pessoal direto
ou indireto com uma vítima da tortura, ou que não se tivesse envolvido em uma
operação militar de busca e detenção. Histórias de violência institucional
tornaramse parte da cultura política quotidiana.”200
199 NASSER, David. Vale tudo, RJ, O Cruzeiro, 20jun1964, p. 6.
200 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (19641984). Bauru: EDUSC, 2005. p.204.
122
Em dezembro de 1964, David Nasser divulgou, com grande sensacionalismo, o
caso do “IPM de Goiás”. Ao mesmo tempo em que se apresenta como um indignado
denunciador, contribui para disseminar o terror pela sociedade. Com grande destaque, o
jornalista publicou, na íntegra, documentos com denúncias de torturas em Goiás, cujo
governador, Mauro Borges, segundo Jacob Gorender:
“incomodava o general Castello Branco, novo ocupante do Palácio do Planalto.
O general Ernesto Geisel, chefe da Casa Militar, não podia esquecer a oposição
eficiente do Governador goiano em agosto de 1961, quando ele, Geisel, chefiava
o Escalão Avançado de Brasília. Aliados à facção latifundiária da família Caiado,
oficiais do Exército montaram a farsa a respeito de uma rede de espionagem
orientada financiada pela Embaixada da Polônia, em conluio com o Palácio das
Esmeraldas. A tortura extorquiu confissões falsas de funcionários do governo
goiano, militantes do PCB e da POLOP201 ou sem filiação de esquerda. Somente
por ser paranaense de origem polonesa é que se ajustava à trama forjada. Foi
preso e seviciado num quartel do Exército o professor da Faculdade de Medicina
Simão Kossobudski. O cerco se apertou, tropas federais comandadas pelo general
Meira Mattos ocuparam Goiás e, a 26 de novembro de 1964, um ato ditatorial do
generalpresidente declarou Mauro Borges deposto.”202
David Nasser publica, em dez páginas o IPM de Goiás, em que é montada a
farsa contra o governador Mauro Borges, que ele atribui a uma indefinida ‘linha dura’,
isentando o Presidente Castelo Branco de qualquer responsabilidade no caso. Suas
201 PCB: Partido Comunista Brasileiro; POLOP: Organização Revolucionária Marxista – Política Operária. “Esta nasceu em 1961, agrupando elementos de várias pequenas tendências alternativas ao PCB, com influência sobretudo nos meios universitários. A POLOP contestava idéias reformistas e pacifistas do PCB propondo a luta armada revolucionária pelo socialismo.” In: RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 1993. p.26.Conf. REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990.
202 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 2003. p.16.
123
denúncias de prática de tortura sob o regime militar não significavam, contudo,
oposição ao regime. Neste momento, Nasser é defensor de Castelo Branco, e julga
importante mantêlo na presidência, como meio de preservação dos “princípios
revolucionários”:
“em nome de uma revolução democrática usase de métodos idênticos aos de
regimes discricionários, impostos por uma abstrata Linha Dura. (...) Por estranha
e feliz coincidência, assim, no Brasil, o ambiente para outra cruzada civilista.
Armase uma resistência interior contra as Forças Armadas brasileiras que eram
consideradas as mais democráticas do Mundo (...) a utilização da Justiça Militar
nesse episódio não é mais do que o recurso a um foro especial e inadequado –
onde o réu não é o sr. Mauro Borges, mas a caquética e agonizante democracia
brasileira. (...) não foi para implantar uma ditadura fascista no Brasil – depois da
agonia do fascismo em todo o Mundo – que se fez uma revolução. (...) e o
Presidente Castello Branco não pode, por sua vez, fazer o papel de boneco na
Presidência, sob pena de todos nós, democratas incuráveis, termos de retificar o
conceito que formamos de sua inteligência, de seu patriotismo, de sua coragem, e
de sua democracia.(...) não haverá Medusa mais feia que a cabeça de Castello
Branco exibida por um ambicioso general da Linha Dura.”203
Afirma levar ao conhecimento da nação e do presidente Castelo Branco, que
considera “homem decente” e pede ao Presidente que solicite à “Cruz Vermelha
Internacional que lhe desfaça a dúvida que porventura exista em seu honesto, honrado
e ingênuo coração.”204 Considerandoo, portanto, alheio ao que acontecia nos porões
das delegacias, alega que o Presidente:
203 NASSER, David. A Cabeça de Mauro, RJ, O Cruzeiro, 5dez64, p. 4.
204 NASSER, David. David Nasser denuncia terror e miséria da linha dura. RJ, O Cruzeiro, 5dez1964, p. 14.
124
“precisa saber que alguns de seus mais próximos colaboradores lhe estão faltando
com a verdade, ao negar as torturas, sevícias, os irreparáveis danos morais e
físicos contra criatura humana, ocorridos, lamentavelmente, embora alguns não a
tivessem feito. (...) defendo a pureza do mandato de Castello Branco, denunciando
o barbarismo que uma quadrilha de radicais leva a alguns interrogatórios.
Simples jornalista de província guindado a um cenário nacional bem maior que
sua importância, se a liberdade fosse suprimida e um homem fosse aviltado nos
seus direitos naturais, eu não saberia trabalhar, viver ou silenciar.” 205
Havia, de fato, duas principais tendências no interior do regime militar: uma
representada pelos oficiais ligados ao grupo da “Sorbonne”, que desejava uma
intervenção rápida encerrandose com a devolução dos poderes aos civis, agrupada em
torno do presidente Castelo Branco, e outra representada pelos oficiais mais radicais,
agrupada em torno do ministro da Guerra Costa e Silva, a chamada “linhadura”.
Pesquisadores do CPDOC afirmam que:
“Houve ‘duros’ e ‘moderados’ , duas tendências expressivas dentro dos quartéis,
mas é demasiado simplista a tese de que pura e simplesmente eles se revezaram no
poder. Os dois grupos estiveram juntos no governo Castelo Branco – não esquecer
que o ministro da guerra era o próprio Costa e Silva , mas com predominância
dos moderados. Os termos se inverteram com Costa e Silva, com a ascensão dos
duros. Manter a coesão dos militares obrigou a composições constantes”206.
A respeito dos “duros” e “moderados”, escreveu Nasser:
205 Idem, ibidem.
206 D’ARAÚJO, Maria Celina et alii (org.). Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão . Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 20.
125
“Apenas a democracia de um troupier não é a democracia de um – digamos –
sourbonnier. É a diferença que existe entre a garagem do Flamengo e o Quartier
Latin. Este vê a democracia, sentea quase como um credo. Aquela, usaa como
um sistema. O credo é inalterável, porque é dogmático. O sistema é fluído, porque
sua eficiência depende da maleabilidade. O que diferencia, a meu ver, os homens
que detém o Governo e o Poder – o Marechal Castello Branco e o General Costa e
Silva – é a diferença que sempre existiu em suas carreiras militares. Um, o
soldado intelectual, o estrategista de EstadoMaior. Outro, o soldado à la
Bernadotte, o marechaldecampo, o cumpridor de ordens até absurdas. O fio que
os prende é o da lealdade.”207
Na mesma ocasião em que David Nasser “denunciava” o IPM de Goiás
também publicava o livro “A revolução que se perdeu a si mesma”. Em nota sobre o
lançamento do livro, uma coletânea de artigos assinados pelo jornalista entre 1962 e
1964, O Cruzeiro, afirma:
“David Nasser, que se confessa no fim de sua carreira de jornalista militante e no
inicio de sua carreira de escritor profissional, está lançando o seu 12º livro (...).
Sentese o soldado raso (para Chateaubriand, um dos generais civis foi David
Nasser) inteiramente deslocado dentro de um movimento que falhou em sua
missão redentora”208.
O próprio Nasser, na mesma nota, escrevera sobre o “movimento de Março
Abril”: “quem sabe, revendo as páginas que um modesto historiador do cotidiano
escreveu sobre sua Pátria, os homens que a dirigem reflitam sobre os descaminhos
207 NASSER, David. Na corte de seu Artur. RJ, O Cruzeiro, 11dez1965. p.4.
208 O Cruzeiro, 5dez1964, p.112.
126
fascistas para onde a estão criminosamente levando”209. Até então o autor isentara o
presidente Castelo Branco das prisões e torturas, David Nasser afirmando, por
exemplo, que este só poderia governar quando fosse revogado o Ato Institucional n° 1:
“até o momento em que os relógios marquem o fim de um Ato fisiológico, nascido
talvez da necessidade da urgência ou do desespero, mas nem por isso perfilhado
pela democracia, o Presidente é um prisioneiro. (...) Até agora o Presidente da
República era o Ato Institucional (...) libertase o Marechal Castello Branco.
Toma posse. (...) É a esse verdadeiro revolucionário que me dirijo, para exigir que
reponha a Revolução em seu verdadeiro lugar. (...) Ninguém pede clemência aos
culpados. O que pedimos é clemência para uma Revolução, no instante em que,
libertada do ódio, comparece ante o tribunal da História.” 210
A partir do lançamento do livro “A revolução que se perdeu a si mesma”,
argumentando que “a discórdia entre os revolucionários” estava sendo fomentada pelos
“os que desejam para o Brasil a integração definitiva na área soviética” obtendo
“êxitos espetaculares nesse cruzeiro de intrigas”, David Nasser afirma lutar pela “volta
do diálogo e pela unificação do catecismo”, ou ainda, por uma nova composição entre
duros e moderados:
“No instante psicológico em que lancei o protesto de um livro contra a perda
consciente da Revolução, tinha para mim que seria possível fazer algo para
ressuscitála. Bastaria não caminharmos para o erro de todas as revoluções que
se voltam através das punições, mais para o passado do que para o futuro. Os
primeiros excessos foram contínuos. Os brasileiros voltaram a se reconhecer na
pátria comum.(...) Desejava, entretanto, salientar a minha convicção pessoal de
209 idem, ibidem.
210 NASSER, David. Carta a um verdadeiro revolucionário, RJ, O Cruzeiro, 31out64, p. 4.
127
que existe um ponto insanável, uma discordância a não ser de métodos para se
atingir o mesmo fim – que é a impossibilidade da volta ao estado anterior e a
libertação definitiva do Brasil de um sistema de vida contrario à vontade de seu
povo. No dia em que Governo e dissidentes compreenderem a necessidade de um
casamento revolucionário com comunhão de bens – a Revolução estará salva”211.
Assim, a despeito das denúncias sobre os “descaminhos fascistas” pelos quais a
“Revolução” estaria sendo conduzida, e que poderiam fazer pensar que David Nasser,
como os diários Correio da Manhã e O Estado de S. Paulo, iniciava uma oposição ao
regime militar, o jornalista, na verdade, ingressava na campanha pelo nome de Costa e
Silva, então Ministro da Guerra, como sucessor de Castelo Branco, ou seja, defendia o
endurecimento do regime:
“Uma revolução não pode viver sempre a 40 graus. Esfria, sente baixar a
temperatura, normalizase. Se traz um conteúdo, institucionalizase. Se não tem
mensagem, esvaziase. O que diferencia uma revolução de um golpe de estado – e
sua capacidade de modificar o próprio erro que a criou. Pergunto a mim mesmo
se o General Costa e Silva é um revolucionário ou um golpista, e chego, à honesta
conclusão de que é um revolucionário. Pensasse simplesmente em golpe,
ambicionasse apenas o poder – e por duas vezes talvez o tivesse em suas mãos. O
poder de um déspota. (...) Sim, por duas vezes, o pânico levou em uma bandeja a
ditadura – e por duas vezes ele a recusou. Na sua aparência de camponês, o
Ministro da Guerra é homem da maior sagacidade do que imaginar se possa – e
raciocina de maneira perfeita. (...) Seu Artur sabe que o ditador é um homem só.
Cercado de áulicos, rodeado de bajuladores, o tirano, ou o ditador (a diferença é
pequena), luta minuto a minuto para preservar o poder. Não confia em ninguém.
Nunca tem certeza de que lado vem a traição.(...) Seu Artur, por mais que o
211 NASSER, David. A revolução de cada um. RJ, O Cruzeiro, 1jan1966. p.4.
128
duvidem, tem vocação democrática. Vem isto do Exército, a que serve desde
menino.”212
A respeito das eleições de outubro de 1965, para governos de estado e
prefeituras, realizadas ainda de forma direta, David Nasser escreveu o artigo “Que
eleições são essas?” no qual afirma que “nunca houve um pleito mais contraindicado,
mais errado e mais inoportuno”. Continua:
“Só posso interpretálo como excesso de zelo, de um democrata até a planta dos
pés, como é o Presidente. (...) Não há nada, nunca existiu nada mais
antidemocrático que o Ato Institucional, fruto da imaginação brasileira. E o nosso
marechal jamais hesitou em usálo, porque sendo, o Ato antidemocrático, era
naquela eventualidade, uma arma em defesa da Democracia.”213
Dizendose defensor das eleições democráticas, aponta para a intervenção do
governo no resultado das eleições, segundo o jornalista, necessária à continuidade da
“Revolução”:
“Pelo amor de Deus, compreendamme, não que eu seja contra as eleições, que
são a maneira única de o povo manifestar o seu ponto de vista. Não vejo, porém,
como juntar na mesma urna coisas que se repelem.
As eleições para terem sentido democrático (...) exigem condições de vitória para
todos os concorrentes. A Revolução, contudo, e acertadamente, não pode admitir a
vitória da antirevolução. (...) Nenhuma revolução pode submeterse a uma
eleição que tenha a possibilidade teórica de negála ou destruíla. (...)Das duas
uma: ou a Revolução faz eleições que não admitam certo resultado – e, seria,
212 NASSER, David. Na corte de seu Artur. RJ, O Cruzeiro, 11dez1965. p.4.
213 NASSER, David. Que eleições são estas? RJ, O Cruzeiro, 16out1965. p.4.
129
ínsito uma eleição pantomima , ou a Revolução admite o resultado que a negue,
logo não seria revolução”214.
Conclui o artigo referindose ao presidente Castelo Branco e ao povo:
“Quem teve coragem, no outono de sua carreira, de avançar pelo atalho da
ilegalidade para salvar a Democracia, não pode voltar no meio do caminho. (...) o
mal está feito. Resta ao povo, sismógrafo ultrasensível da democracia, salvar a
Revolução.”215
Até o final do governo de Castelo Branco, em 15 de março de 1967, ainda
seriam promulgados o Ato Institucional no 2 e uma nova Constituição. O AI2, de
outubro de 1965, tinha como principais resoluções a instituição de eleições indiretas
para todos os cargos eletivos e a supressão dos partidos políticos com a criação do
bipartidarismo: a ARENA, Aliança Renovadora Nacional, de apoio ao governo, e o
MDB, Movimento Democrático Brasileiro, a “oposição consentida”. O objetivo era
debilitar a oposição, vitoriosa em muitos estados na última eleição direta para
governador, e aumentar o controle sobre o jogo eleitoral.
“A Constituição de 1967 incorporou os controles mais importantes dos
dois atos institucionais anteriores e de uma série de atos complementares. Tais
controles perderam assim seu caráter excepcional, que se fundamentara no poder
revolucionário, ganhando força de poder constitucional.”216
214 ibidem.
215 Idem, p.5.
216 ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., p. 111. Grifo original.
130
Assim foram institucionalizados a Doutrina de Segurança Nacional bem como a
política econômica implementada pelo governo militar. Na crítica de Leôncio Basbaum,
os três anos de governo de Castelo Branco foram “devastadores”. Na política, segundo
Basbaum, o governo de Castelo Branco foi marcado pela perseguição aos subversivos,
aos opositores do regime, e pelo enfraquecimento do Congresso Nacional. No plano
cultural, a devastação se deu sobretudo pela perseguição a estudantes e professores
universitários. “Ao fim de 3 anos de governo o presidente Castelo Branco entregou ao
seu sucessor um país literalmente arrasado, econômica, política e culturalmente”217.
Fazendo um paralelo com o slogan “50 anos em 5”, da política desenvolvimentista de
Juscelino Kubitschek, o autor afirma: “o governo do presidente Castelo Branco
conseguiu o Brasil retroceder 50 anos em três”218.
Em novembro de 1965, logo após decretação do Ato Institucional nº2, David
Nasser publicou em sua coluna a Declaração dos Direitos Humanos:
“Não quero provocar a ira dos deuses, mas, em defesa do próprio Ato nº 2,
convém relembrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada por
todos os PaísesMembros da Organização das Nações Unidas, publicada em todo
o Mundo, lida e explicada nas escolas. No limiar de um período excepcional, esta
Bíblia leiga precisa estar bem viva na consciência de todos os brasileiros”219
O jornalista celebra, entretanto, a definição do nome do general Artur da Costa e
Silva para a sucessão do marechal Castelo Branco:
217 BASBAUM, Leôncio. História Sincera da República: de 1961 a 1967. São Paulo: AlfaÔmega, 1983, p. 187.
218 Idem, p. 192.
219 NASSER, David. Os direitos do homem. RJ, O Cruzeiro, 20nov1965. p.4.
131
“De seu lado, a oposição, sempre cada vez mais estúpida, não compreende que
Costa e Silva representa a etapa imprescindível entre a revolução necessária e a
liberdade indispensável.
O homem é este. Que outro iríamos escolher? Um civil para fantoche? Um militar
sem prestígio?
Ninguém pode assegurar que o General Costa e Silva será um grande Presidente,
ele que é um homem médio nas qualidades e nos defeitos de todos de todos os
brasileiros. O povo, entretanto, confia em seu temperamento aberto. Com ele, o
Brasil espera deixar de ser um país carrancudo, uma nação infeliz”220.
Apostava no governo de Costa e Silva para a Revolução alcançasse seus
objetivos, pois, segundo Nasser:
“Presidente, uma Revolução foi feita neste País há dois anos. Sua tarefa, sua
missão, seu papel era sacudir as estruturas apodrecidas. O que ela fez até agora
além de empurrar para longe o fantasma vermelho e de cassar alguns subversivos
e corruptos? Nada.”221
A oposição, considerada “estúpida” por Nasser, uniu até mesmo tradicionais
inimigos políticos. Durante a “campanha” de Costa e Silva à presidência, Carlos
Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek juntos formaram, no final de 1966, a
“Frente Ampla” para aumentar a oposição e a pressão sobre os militares e tentar tirálos
do poder. Os três eram potenciais candidatos à presidência desde antes do golpe. A
“Frente Ampla”, todavia, foi mais um movimento da oposição rapidamente apagado
pelo governo militar. Sobre Carlos Lacerda, exgovernador da Guanabara, Nasser
escrevera, como em outras oportunidades, minimizando atos de corrupção em prol um
220 NASSER, David. Este é o homem. RJ, O Cruzeiro, 16jun1966. p.5.
221 idem, p. 4.
132
certo reconhecimento pela capacidade administrativa ou, como ficou conhecido na
cultura política brasileira, o jargão popular “rouba, mas faz”:
“À porta da saída, no momento em que deixa um governo que honrou com seu
nome e tumultuou com o seu gênio, já escuta os primeiros cochichos dos
adversários sem grandeza que esperam a saída de Gulliver para começar as
baixezas liliputianas. Ele sabe que muitos erros foram cometidos em seu nome e
sob sua responsabilidade. Tenho para mim que nenhum o foi conscientemente.(...)
Ao Governador que aplicou bilhões acusam de haver construído um andar a mais
em seu apartamento. São os seus adversários os primeiros a construir em triplex o
monumento de sua grandeza. Esta Cidade por muito tempo o lembrará quando
não mais o tenha. E este País há de lamentarse de o não ter tido.”222
A sociedade assistiu, assim à sucessão de Castelo Branco por Costa e Silva por
meio de eleição indireta, como determinava a constituição de 1967, numa disputa
restrita às duas tendências dentro das Forças Armadas: os moderados e a linha dura.
Dessa forma, assumia a predominância do poder o grupo dos militares mais radicais,
defensores do aprofundamento das medidas coercitivas e da manutenção do poder nas
mãos dos militares até que a segurança nacional estivesse garantida, ou seja, por tempo
indeterminado.
Com a posse de Costa e Silva em março de 1967, acelerase o processo de
endurecimento do regime, que assume definitivamente seu caráter autoritário a
decretação do Ato Institucional n° 5, em 13 de dezembro de 1968. A bibliografia,
entretanto, é praticamente unânime em mostrar que o governo, sob o controle dos duros,
já estava com o texto do Ato Institucional no 5 pronto desde bem antes de 13 de
dezembro de 1968, data de sua decretação223. Só não foi instaurado anteriormente por 222 NASSER, David. Até breve, Carlos. RJ, O Cruzeiro, 27nov1965. p.4.
223 Conf. VENTURA, Zuenir. 1968:O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. ALVES, Márcio Moreira. 68 mudou o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
133
uma questão de estratégia. Os militares preferiram esperar a hora e o pretexto certos
para apresentálo. Deixaram a oposição se manifestar, os conflitos acontecerem e se
repetirem. Esperaram a situação do país se agravar para usála como justificativa para o
endurecimento definitivo que representava o AI5. Jacob Gorender chega a narrar
episódios de ações praticadas a mando do governo com o objetivo de incriminar grupos
de oposição:
“Apesar das ações da esquerda radical, a extrema direita do regime ditatorial não
as julgou suficientes para a criação do clima propício para o fechamento
completo. Daí a formação de organizações paramilitares e de bandos de
provocadores às ordens de diferentes chefias do alto escalão governamental.”224
A oposição ao regime militar, então se intensificaria e se tornaria mais
organizada.
“É importante lembrar que 1967 começou com uma débil tentativa dos estudantes,
em manifestações, de chamar a atenção para seus problemas específicos. Em
1968, este movimento já tinha a adesão de muita gente de diferentes classes e
correntes ideológicas. O conflito deslocarase dos estudantes para as classes
médias, em seguida para os trabalhadores e finalmente, graças a repressão,
envolvera a Igreja Católica.”225
A crise política que culminou com a decretação do AI5 teve início com um
discurso proferido pelo deputado federal Márcio Moreira Alves por ocasião da festa
comemorativa da Independência do Brasil. Neste discurso, o deputado criticava a
224 GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática, 1990. P. 150.
225 ALVES, Maria Helena Moreira. Op. Cit., p. 136.
134
agressividade da invasão militar à Universidade de Brasília ocorrida poucos dias antes e
sugeria, numa referência à tragédia grega Lisístrata, um boicote popular ao desfile
militar de 07 de setembro que estava próximo.
“A parada militar do Dia da Independência era importante componente
psicológico da estratégia de intimidação. Uma vez por ano, a população pode ver
em exibição todo o equipamento militar pesado. (...) Márcio Moreira Alves tocou,
assim, um ponto sensível da estratégia geral de controle social do Estado. (...) os
oficiais da linhadura que já planejavam um segundo golpe de Estado, que lhes
daria mais liberdade na defesa da Segurança Interna, acharamno
particularmente útil a seus propósitos.”226
Os militares queriam processar Márcio Moreira Alves, mas para isso era preciso
quebrar a imunidade parlamentar. A votação no Congresso Nacional que decidiria pela
suspensão ou manutenção da imunidade parlamentar se transformou numa séria crise
política. No dia 12 de dezembro de 1968 a Câmara dos Deputados votou pela
preservação dos seus direitos políticos por 216 votos contra e 141 a favor. O resultado
representou uma amarga derrota para o governo e uma ótima oportunidade de mostrar
sua força.
Pretexto encontrado, crise criada, no dia seguinte, 13 de dezembro, foi baixado o
Ato Institucional no 5. Ao contrário dos atos institucionais anteriores, o AI5 não tinha
data definida para sua revogação e determinava, entre outras medidas: o fechamento do
Congresso Nacional (reaberto em outubro de 1969), a cassação de direitos políticos dos
cidadãos, suspensão de mandatos eleitorais e extinguia a garantia de habeas corpus.
Com essas medidas, segundo Maria Helena Moreira Alves, o AI5 introduziu um
terceiro ciclo repressivo:
226 Idem, p. 129.
135
“O primeiro ciclo, em 1964, concentravase no expurgo de pessoas politicamente
ligadas a anteriores governos populistas, especialmente o de Goulart. (...) O
segundo ciclo (19651966), após a promulgação do Ato Institucional nº 2,
objetivara concluir expurgos na burocracia de Estado e nos cargos eleitorais; não
incluiu o emprego direto e generalizado da violência.
O terceiro ciclo caracterizouse por amplos expurgos em órgãos políticos
representativos, universidades, redes de informação e no aparato burocrático de
Estado, acompanhados de manobras militares em larga escala, com
indiscriminado emprego da violência contra todas as classes. Os desafios do
Estado por parte das classes médias, especialmente o movimento estudantil,
convencera as forças de repressão da existência de áreas de ‘pressão’ em todas
as classes. Desse modo, as campanhas de busca e detenção em escala nacional
estenderamse a setores da população até então não at ingidos.”227
Foi após o AI5 que a cesura à imprensa foi regulamentada e impôs graves
restrições ao conteúdo que os diversos veículos de informação. Sebastião Geraldo
Breguês, “a partir daí, de uma forma mais aberta e descarada possível, a censura
reaparece em cena, e de forma definitiva (...). Outros decretos vieram depois. Em 26 de
janeiro de 1970, o Presidente Médici baixou o decretolei nº 1077228, que visa a
227 Idem, p.172.
228 Este decreto, baseado no artigo 153, parágrafo 8º, da Emenda Constitucional número 1 de 1969, e que, posteriormente, serviu de base para o estabelecimento da censura prévia, proibia publicações contrárias à moral e bons costumes por relacionar os atentados à moral a um eventual plano subversivo, gerando riscos à segurança nacional. Diz o decretolei 1077, do qual reproduzo a seguir o trecho inicial:“Dispõe sobre a execução do art. 153, parágrafo 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil.O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere a artigo 55, inciso I da Constituição; eConsiderando que a constituição da República, no artigo 153, parágrafo 8º, dispõe que não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes;Considerando que esta norma visa proteger a instituição da família, preservarlhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade;Considerando, todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais de televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;Considerando que se tem generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum;
136
reprimir as publicações obscenas. Posteriormente surgiu a CensuraPrévia, através da
Portaria 11B do Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, em 6 de fevereiro de 1970.”229
Mais do que publicações obscenas, a legislação censória proibia a divulgação, de acordo
com Maria Aparecida de Aquino, de:
“notícias que faziam críticas ao regime militar ou apontavam para ações
repressivas dos governos, torturando, matando, fazendo desaparecer seus
oponentes e, no caso dos periódicos que não pertenciam à grande imprensa (...) os
cortes censórios atingiam também críticas à política econômica do governo e à
abertura desenfreada ao capital estrangeiro. Atingiam também críticas à política
social do regime(...)”230
Desde o golpe, em 1964, gradativamente foram surgindo movimentos de
resistência ao endurecimento imposto pelos militares organizados por diferentes grupos
sociais. O meio estudantil agitouse particularmente ganhando caráter de militância
política ao longo de 1968. Episódios como o confronto entre os estudantes da Faculdade
de Filosofia da USP e da Universidade Mackenzie, ambas situadas na rua Maria
Antônia, no início de outubro de 1968 e o XXX Congresso Nacional da UNE realizado
Considerando que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores da sociedade brasileira;Considerando que o emprego desses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional decreta:Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os meios de comunicação.Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição anunciada no artigo anterior.(...)”
229 BREGUÊS, Sebastião Geraldo. “A Imprensa Brasileira Após 64”. In: Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, ago. 1978. p. 150. 230 AQUINO, Maria Aparecida de. “A Especificidade do Regime Militar Brasileiro: abordagem teórica e exercício empírico”, in: REIS F°, Daniel Aarão (org.). Intelectuais, História e Política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro, 7Letras, 2000, p.274.
137
em Ibiúna, em 12 de outubro, mostram como o movimento estudantil havia se
politizado desde a morte do estudante Edson Luiz, em março daquele ano231. E após a
decretação do AI5, em dezembro de 1968, caminharia para a luta armada como forma
de resistência.
Afastado de O Cruzeiro em junho de 1967 por divergências com Chateaubriand,
Nasser silencia sobre quase todo o governo do general Costa e Silva. Luiz Maklouf,
conta, entretanto, que em seu programa na TV Tupi, Diário de um repórter, escrevera
sobre o AI5: “a medida de sobrevivência revolucionária a que ninguém podia
escapar”232. Sobre sua relação com presidente Costa e Silva, por exemplo, o jornalista
costumava demonstrar intimidade. Segundo Maklouf:
“No caso de Costa e Silva, Nasser deuse por ‘amigo’, afirmando, em diversos
artigos, que tiveram certa intimidade e que até freqüentava sua residência para
conspirar, jogar baralho, conversar fiado e dar palpites nos discursos, na
indicação de ministros e no andamento do governo. Não chegou a tanto, mas é
verdade que Costa e Silva lhe tinha apreço como jornalista”233.
Mesmo que não fosse, de fato, amigo íntimo do presidente Costa e Silva, Nasser
foi o responsável pela indicação de Antônio Delfim Netto para o Ministério da Fazenda
durante sua gestão, como relata orgulhosamente em artigo publicado em abril de 1973,
o último que escreveu para O Cruzeiro:
“De São Paulo, o telefone bate. É Delfim, o moço amigo. Não nos conhecíamos
antes da Revolução. O primeiro encontro, no Morumbi, teve de entremeio a figura
231 conf. VENTURA, Zuenir. 1968:O ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
232 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p.494.
233 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p.460.
138
modesta de Natel234, o simples. Francamente, a impressão que Delfim me deu,
antes de falar, foi a de um taberneiro. Depois que estendeu sua lucidez sobre a
mesa do restaurante do Jaraguá, onde comíamos tête à tête, ele, eu e a esperança,
tive a nítida certeza de que herdara a inteligência de Roberto Campos sem
arsênico nem sotaque. Mais ainda: em matéria econômica era pragmático, tanto
comia caviar como tutu à mineira. O horror de que sempre me achei possuído pelo
antinacionalismo exacerbado do antecessor matogrossense fezme amigo de
Delfim à primeira vista. A carta que mandei ao virtual Presidente Costa e Silva, de
andança no exterior, e que lhe foi entregue com o curriculum e uma fotografia do
homem que não pleiteava nada, mas podia tudo, arrancou, segundo o italiano
Mario David, o comentário dessa bondosa figura de antiherói que foi seu Artur.
Então, o Feolinha é isto tudo!
Convidou Delfim para o seminário. O moço comeu a bola e saiu ministro.”235
Ao jornalista, Luiz Maklouf, o exministro confirmou a sua indicação para a
participação no seminário que abriu o caminho para a sua indicação ao ministério:
“É fato que o David Nasser indicou meu nome ao presidente eleito, general Costa
e Silva, para participar de uma série de seminários organizada no Rio de Janeiro,
na qual se discutia a atualidade econômica do país. Eu era secretário da Fazenda
do governo Laudo Natel e fui convidado para fazer uma exposição sobre o papel
da agricultura no desenvolvimento brasileiro.”236
Entre todos os ministros com os quais David Nasser se relacionou, Mário David
Andreazza, ministro dos Transportes nos governos de Costa e Silva e Médici e,
234 Laudo Natel, então governador do estado de São Paulo.
235 NASSER, David. Delfim, entre a cruz e a espada. RJ, O Cruzeiro, 11abr1973, p.20.
236 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p.462.
139
posteriormente, do Interior, no governo Geisel, foi o mais próximo, “de maior
confiança e intimidade”, segundo Maklouf, a quem “pediu e prestou serviços”:
“David escrevia seus discursos, defendiao das acusações, aconselhavao nos
problemas internos do ministério, tinha acesso a informações confidenciais sobre
as crises no governo,levavao a grandes festas na sua casa. Era o ‘seu’ ministro,
como gostava de dizer.”237
Em O Cruzeiro, escrevera sobre o ministro e amigo, quando de seu ingresso no
governo, só palavras de incentivo. Mais do que tornar o novo ministro conhecido do
grande público, através do artigo, o jornalista provavelmente pretendia favorecer a
captação de recursos para os seus projetos de construções de grandes estradas:
“ Andreazza, até a Revolução era um desconhecido para o grande público, tinha
de longa data o seu conceito no Exército, e desse ninguém escapa. Sabiam os seus
camaradas que ele fora um dos melhores instrutores na Escola Superior de
Guerra (...) Levado para o Ministério dos Transportes pelo faro (kennedyano) do
Marechal Costa e Silva, o Coronel Andreazza sabe que vai enfrentar problemas
sérios decorrentes da conjuntura econômica e da crise de confiança. (...) Sim,
todos confiam no Andreazza – porque confiança é o que ele vem espalhando entre
nós, desde o primeiro dia da Revolução. Confiança que ele tem nos bons e tem em
si próprio, porque é um deles. Sem ódio, nem perseguição, mas inflexível no
cumprimento do dever, cabeça aberta aos argumentos válidos, Mario Andreazza
chega ao Ministério dos Transportes de um país que tem sede de estradas mas não
tem dinheiro.
Vamos, gringo!”238
237 idem, p. 464.
238 NASSER, David. Vamos, Gringo! RJ, O Cruzeiro, 18mar1967, p.4.
140
Quatro anos mais tarde, o antes desconhecido ministro dos Transportes era
descrito como:
“um antipolítico orgânico, mas um executivo autêntico. O peninsular em seu
temperamento de altos e baixos, eufórico, depressivo, entusiasta, agressivo, aqui
está, em visão panorâmica, um dos responsáveis pelo desenvolvimento do país
após o Movimento de Março. Seu nome é Mário David Andreazza. Um derrubador
de mitos, um mito, ele próprio”239.
Aqui, o objetivo o artigo era calar as críticas destacando as obras já realizadas
pelo ministro dos Transportes:
“A Dutra foi duplicada. Grandes transversais – tais como a Porto Alegre
Uruguaiana, ParanaguáFoz do Iguaçu, São PauloCampo Grande e Vitória
Uberaba – aproximam o interior do litoral. (...) Num só governo se promete
construir a Transamazônica, a CuiabáSantarém e a maior ponte do mundo”240.
Numa época em se acreditava: “governar é abrir estradas”, a contribuição de
Andreazza para o desenvolvimento do país estava dada, conclui Nasser:
“A obra que se realiza no setor é histórica. Jamais se fez tanto em tão pouco
tempo. (...) A Revolução teria fracassado se qualquer de seus objetivos fosse
atingido. 1) Estancar a inflação. 2) Marchar para o desenvolvimento. 3) Eliminar
a corrupção. Ninguém poderá dizer que Andreazza, mestredeobras de dois
239 NASSER, David. O mito Andreazza. RJ, O Cruzeiro, 18ago1971,p.20.
240 idem, ibidem. A “maior ponte do mundo” mencionada no artigo é a Ponte RioNiterói, inaugurada em 1974.
141
governos revolucionários, não cumpriu a sua parte, deixando pedaços de si pelos
caminhos”241.
Uma característica importante apontada por Luiz Maklouf em seu livro sobre
David Nasser e o Cruzeiro é a de a revista “nunca teve nenhum constrangimento em
publicar reportagens pagas como material jornalístico – característica que chegou a
uma orgia descontrolada na época da ditadura militar”242. David Nasser, contudo, não
vendia matérias. A maneira encontrada por ele de lucrar com o jornalismo era através
do tráfico de influência e do suborno, a exemplo do seu “Velho Capitão”,
Chateaubriand243. Maklouf pondera:
“Que diferença havia entre uma matéria paga convencional e o rendoso tráfico de
influência de Nasser? Para o repórter, muita diferença: a de não manchar a fama
alardeada de jornalista independente e sem compromisso com a qual fizera o seu
nome. Embora tenha assinado muitas reportagens com toda a aparência de
matérias pagas, Nasser tinha o cuidado de nunca assinar aquelas muito óbvias,
que Manzon e Jorge Audi assinavam sozinhos. Preservavase a um preço maior
que os 20% de comissão levados por quem fazia matéria paga, assinada ou
não.”244
Assim, na medida em que se consolidava o caráter autoritário do governo,
Nasser também foi assumindo, ou melhor, mostrando sua personalidade autoritária.
Retorna à revista O Cruzeiro em setembro de 1970, após breve passagem pela
241 Idem, p.21.
242 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p. 469.
243 Conf. MORAIS, Fernando. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo: Cia. Das Letras, 1995.
244 CARVALHO, Luiz Maklouf. Op. Cit., p. 469.
142
concorrente Manchete, com agressiva campanha desmoralizadora contra Dom Helder
Câmara, pelas denúncias de tortura no Brasil feitas pelo arcebispo no exterior. Desde
1968, o dramaturgo Nélson Rodrigues, colunista de O Globo, perseguia o arcebispo e
candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Elio Gaspari afirma que:
“Se não toda essa manobra, pelo menos uma parte dela era montada pelo Serviço
Nacional de Informações. Foi de lá que saiu uma fotografia dos anos 30 na qual o
padre Helder Câmara, com os gestos largos de sempre, falava a uma platéia de
integralistas uniformizados, com suas camisas verdes. Ela viria a ser mostrada
pelo jornalista David Nasser, no seu programa Diário de um Repórter, na rede
Associada de TV, e na revista O Cruzeiro”245.
Além das críticas a Dom Helder Câmara por sua aproximação com o socialismo,
depois de ter sido vinculado ao movimento integralista na década de 1930, ao longo da
campanha contra o arcebispo, que durou meses, David Nasser acusavao de inimigo da
nação:
“dezenas de cidadãos iguais a ele, políticos da mesma vocação, foram banidos
pela Revolução ou dela se afastaram depois. Não sei de um só, chamese Carlos
Lacerda, Juscelino Kubitschek João Goulart, que se tenha posto a liderar,
babando de ódio, uma campanha contra o próprio país. (...) Dom Helder, o
candidato do Brizola à presidência do Soviete Brasileiro, não.(...) saiu em campo,
pelo mundo afora numa tarefa de demolição. (...) Passou a denunciar como
sistemática a tortura de presos políticos no Brasil.”246
245 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002, p. 294.
246 NASSER, David. Quem paga ao bispo? RJ, O Cruzeiro, 29set1970, p.20.
143
Neste, mesmo artigo, o jornalista lembrava também das denúncias de tortura que
ele próprio havia feito, em 1964, sobre o IPM de Goiás, e narra conversa que teria tido
na ocasião com Castelo Branco em que o presidente o ameaçara de prisão, caso suas
denúncias fossem falsas, afirmando: “não há homem decente neste país, civil ou militar,
que apóie a tortura como elemento político. Nem para interrogar nem para castigar.” E
conclui com uma acusação: “o pagamento para o nosso santo varão tem um cheiro. O
das trinta moedas no jardim das Oliveiras. Ou do cofre do Adhemar”247.
A esta altura o Brasil já sob o governo do marechal Emílio Garrastazu Médici,
vivia o “milagre econômico”, quando a distribuição de renda nacional passou por
profundas transformações. Segundo Elio Gaspari:
“A faixa dos 5%, mais ricos aumentara sua participação na renda em 9% e
detinha em suas mãos 36,3% da renda nacional. Já a faixa dos 80% mais pobres
diminuíra sua participação em 8,7% em relação ao que tinha em 1960 e ficara
com 36,8% da renda. Dada a expansão da economia, isso significava que os ricos
ficaram mais ricos, mas não significava que os pobres ficaram mais pobres.
Depois de uma queda vertiginosa entre 1964 e 1967, o salário mínimo declinara
suavemente, enquanto a renda dos trabalhadores na indústria se mantivera em
alta sensível e contínua.”248
Alimentado por esses dados e pela conquista do Tricampeonato na Copa de
Mundo pela seleção brasileira de futebol, em junho de 1970, o ufanismo nacionalista do
regime militar era disseminado pelos slogans “Pra frente, Brasil”, “Ninguém segura
esse país”, “Este é um país que vai pra frente” e “Brasil, ameo ou deixeo”. David
247 idem, p. 21. Alusão ao roubo do cofre do exgovernador paulista, Adhemar de Barros, em ação engendrada pela esquerda armada, em julho de 1969, que tinha o mesmo objetivo dos assaltos a bancos: levantamento de fundos para outras ações armadas contra o Estado Autoritário pós1964.
248 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002, p. 210.
144
Nasser, sempre acompanhando os passos do governo, engrossava o discurso ufanista,
minimizando os efeitos trágicos da repressão:
“Nenhum outro governo, nenhuma outra revolução, nenhum outro momento mais
propício do que este – sem que seja preciso mudar, cassar ou prender. É o
momento estelar de um povo que quer encurtar a distancia entre a riqueza e a
miséria. E é também o momento estelar de um Presidente que veio do
desconhecido para a possível imortalidade.”249
Elio Gaspari afirma ainda que a “ditadura era, se não a causa, indiscutivelmente
a garantia da prosperidade”250 e o “Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram
simultâneos. Ambos reais, coexistiram negandose”251. Pois, os anos do expressivo
crescimento econômico foram também os anos em que ocorrem importantes
enfrentamentos entre as forças de repressão e as organizações armadas de oposição ao
regime:
“As forças de repressão dizimaram as fileiras das organizações clandestinas pelo
uso generalizado da tortura, para obter informações que pudessem levar à prisão
de outros e ao desmantelamento das redes de apoio dos grupos de guerrilha. Os
grupos clandestinos reagiram, seqüestrando mais três diplomatas para conseguir
a libertação de militantes importantes252. O último desses seqüestros – o do
embaixador da Suíça, em dezembro de 1970 – encontrou resistência por parte do
249 NASSER, David. A revolução do homem. RJ, O Cruzeiro, 19jan1972. p.22.
250 GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002, p. 210.
251 Idem, p. 14.
252 O primeiro seqüestro, do embaixador norteamericano, Charles Elbrick, foi realizado em setembro de 1969. O chanceler foi solto em troca da libertação de 15 presos políticos e da divulgação, nos principais veículos de rádio e televisão, de um panfleto sobre os objetivos da ação. Virgílio Gomes da Silva, líder da ação, foi preso logo após o desfecho do seqüestro, é o primeiro desaparecido sob o regime militar. Conf. GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? São Paulo: Cia. Das Letras, 1997.
145
Estado de Segurança Nacional, não mais disposto a fazer concessões. Depois de
três meses de difíceis negociações, entretanto, o embaixador foi trocado por 70
presos políticos que embarcaram para o Chile.”253
Sobre o seqüestro do embaixador suíço, Nasser escreveu com desdém:
“Será difícil ao colega suíço entender de que maneira o seqüestro de um
embaixador que levava a vida mais tranqüila, mais neutra e mais doce nesta
cidade convulsionada pode contribuir para a libertação do Brasil. Certamente,
eles, os seqüestradores, fazem exigências pesadas, quais sejam a soltura de
dezenas de presos políticos, publicação de manifestos de autoinsulto etc. Em que
isto contribui para a vitória da causa, não sei. Libertar os presos é uma
diminuição de despesas. Ofenderse no rádio e na televisão por um dever de
humanidade faz com que a ofensa fatalmente caia em terra árida. Breve não
teremos mais subversivos detidos para trocar e caminharemos para a terra de
ninguém”254.
Mais uma vez, apoiando as forças repressivas, quando Carlos Lamarca, ex
capitão do Exército e principal líder da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária)255 foi
morto, em setembro de 1971, durante emboscada no sertão da Bahia, David Nasser
escreveu sobre o guerrilheiro: “De nada adianta insultar os mortos, mas apontar o seus
erros”. Entretanto, insulta verborragicamente:
“Tumultuado, passional, fanático, nem ele mesmo sabia o que pregava nem o
rumo que seguia. Primata ideológico, indigente político, misturava tudo, idéias,
253 ALVES, Maria Helena Moreira, op. Cit., p. 193.
254 NASSER, David. O Bom Bucher. RJ, O Cruzeiro, 22dez1970,p.20.
255 Conf. MACIEL, Wilma Antunes. O Capitão Lamarca e a VPR. São Paulo: Alameda, 2006.
146
mapas, planos, granadas, sandálias, mágoas, sonhos, e saía por aí como
cangaceiro do marxismo de tempero chinês, ora pregando a guerrilha urbana, ora
defendendo a guerrilha rural – mas só, sempre só, sem agrupar em torno de si, de
suas idéias, de sua loucura, mais do que um grupo ultraradical. (...) Delirante,
paranóico, briga com a própria sombra.”256
Neste momento, paralelamente à perseguição política aos opositores do governo,
ganhava terreno a ação clandestina dos esquadrões da morte. No Rio de Janeiro, o nome
Scuderie Le Cocq é uma homenagem do grupo ao detetive Milton Le Cocq, morto em
27 de agosto de 1964 por Manoel Moreira, conhecido no mundo crime como “Cara de
Cavalo”. Nasser, que sempre apoiou publicamente as práticas do Esquadrão da Morte,
escreveu sobre o amigo assassinado:
“O Detetive Le Cocq era um homem sério. Se não tivesse sido policial – um dos
mais brilhantes e queridos que a corporação teve em sua história , teria sido um
lavrador tranqüilo. Só tinha um horror em sua vida: ao assassino profissional,
desses que disparam sobre um velho paralítico ou daqueles que atiram num chefe
de família que volta para casa carregado de embrulhos, desses que atiram em
jovens que passeiam com suas namoradas, desses que atiram com suas armas
pesadas, sorrindo, desses que despejam toda a carga, só pelo prazer de ver o
boneco cair como eles próprios costumam dizer.(...)
Realmente é preciso responder com um único argumento que eles entendem, à
bala, levando o terror até onde esses bandidos vivem [...]. que dêem aos policiais
uma ordem: atirem para matar. Dez bandidos mortos por um policial
tombado,como o inesquecível Le Cocq,no cumprimento de um dever mal pago pelo
Estado e mal compreendido pelo povo.”257
256 NASSER, David. O último diálogo. RJ, O Cruzeiro, 6out1971, p.16.
257 “David Nasser fala de seu amigo Le Cocq”. RJ: O Cruzeiro, 19set1964, p.14.
147
“Cara de cavalo” foi morto em vingança pela “empreiteiros de Jesus” durante na
madrugada de 3 de outubro de 1964. Cem tiros foram disparados. Cinqüenta e dois
atingiram seu corpo. No mesmo dia, Mário de Moraes, colega de David Nasser em O
Cruzeiro, escreve sobre a formação do grupo, criado pelo então chefe de polícia da
Guanabara, Amaury Kruel:
“Eles não gostavam da alcunha, mas eram conhecidos como membros do
Esquadrão da Morte. O nome nasceu ao tempo em que Kruel ocupava a chefia de
Polícia da Guanabara. Os marginais infestavam a cidade matando, assaltando,
praticando toda sorte de atrocidades. Não temiam a Polícia. Eram mais eles.
Kruel achou que bastava. Reuniu um grupo de bons policiais, e passoulhes o
problema. E eles resolveram, com distinção. (...) Alguns, é bem verdade, foram
mandados desta para outra. Não sei, nem quero saber, até onde a turma,
especializada do Kruel contribuiu para esse obituário. Le Cocq sempre foi o chefe
do Esquadrão. A idade e a experiência valeramlhe o comando, sem discussão.”258
As ações do Esquadrão da Morte não ficaram restritas ao estado da Guanabara.
A Scuderie Le Cocq tinham também uma representação em São Paulo, funcionando no
Palácio da Polícia Civil, onde atuava o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o homem forte
da repressão política. Conta o jornalista Percival de Souza, sobre o temido delegado,
que:
“A fama lhe veio, entretanto, quando um grupo de policiais formou um órgão de
extermínio autodenominado Esquadrão da Morte, para liquidar os que seriam os
bandidos mais perigosos da cidade, num desafio aberto à Justiça e com apoio
irrestrito dos mais altos escalões dos responsáveis pela segurança pública. Então
Fleury passou a ser reverenciado como se seus homens – ‘a equipe do doutor
258 MORAES, Mário de. Morreu Le Cocq, RJ: O Cruzeiro, 19out1964, p. 89.
148
Fleury’, conforme se dizia, tivessem licença especial para matar, sem nenhum
questionamento. A matança chegou a ser tão ostensiva que o Esquadrão designou
um delegado, Alberto Barbour, para se apresentar como ‘relaçõespúblicas’ do
bando armado. Ele telefonava para a imprensa e informava os lugares onde
tinham sido desovados os presuntos, linguagem macabra para designar os lugares
da cidade, ou seus arredores, onde eram jogados – sucessiva e rotineiramente – os
corpos das vítimas que o Esquadrão prendia, julgava, condenava e executava.”259
Em junho de 1970, história muito similar a da morte de detetive Le Cocq se
repete, desta vez, em São Paulo. O investigador de Polícia Agostinho de Carvalho fora
baleado por marginais nos arredores da cidade de São Paulo. Caberia à Justiça o
julgamento e punição dos responsáveis de crimes este. No entanto, o sentimento de
vingança ecoou em toda a Polícia de São Paulo, a qual se mobilizou para dar caça ao
assassino. Como no caso do detetive carioca, o assassino do investigador paulista foi
morto com cerca de oitenta tiros.
Inconformado com a proporção adquirida pela atuação do Esquadrão da Morte,
Hélio Bicudo, então Procurador da Justiça do Estado de São Paulo, obtém, em 23 de
julho de 1970, autorização do Procurador Geral de Justiça, Dario de Abreu Pereira,
para orientar e supervisionar o trabalho do Ministério Público no caso do Esquadrão da
Morte:
“Adepto, por formação caracteriológica e profissional, de uma atuação decidida
do Ministério Público no combate ao crime, entendia e entendo que as coisas não
poderiam ficar no ponto que se encontravam já. Se às escâncaras, com intensa
cobertura jornalística, o escândalo já ultrapassava as nossas fronteiras e revistas
de todo o mundo narravam as façanhas do ‘Esquadrão’, a Procuradoria da
Justiça não podia descansar de braços cruzados.”260
259 SOUZA, Percival de. Autópsia do medo. São Paulo: Editora Globo, 2000, p.17.
260 BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1976, p.25.
149
Nesta ocasião, O Cruzeiro publicou uma matéria do jornalista Jorge Audi na
qual pretendia desvincular a Scuderie Le Cocq do Esquadrão da Morte. Para tanto
entrevista o delegado Euclides Nascimento, presidente da Scuderie, e o promotor
Rodolfo Avena, que seria, segundo a reportagem, “o homem que primeiro se levantou
contra o morticínio dos esquadrões”. O texto, preocupado com a imagem da Scuderie
Le Cocq no exterior e no Brasil, pretende desvinculala da ação do Esquadrão da Morte,
tentando legitimar a sua ação amparandoa no Código Penal:
“De repente a imprensa estrangeira começou a se preocupar com a saúde do
Brasil. Destaca o Esquadrão da Morte, como prática institucionalizada pelo nosso
organismo policial, a matança indiscriminada e oficializada. Deforma nossa
fisionomia aos olhos de outras nações. Que o Esquadrão da Morte existe, não
resta a menor dúvida, mas não da forma que pretendem no exterior.
Ninguém desconhece que a Guanabara detém um dos maiores índices de
criminalidade no país. Em determinadas épocas o fluxo aumenta. Então surge a
necessidade de medidas mais objetivas. (...) Diante da crescente onda de assaltos e
mortes, o general Amaury [Kruel] resolveu por em prática outro método. Criou o
Serviço de Diligências. Era uma seção destinada a dar combate ao criminoso fora
do comum. O criminoso profissional, de índole ruim. Era necessário batêlo no
seu terreno. Reprimir a agressão, numa luta igual. Usar arma se ele a usasse.
Afinal, o Código Penal diz que isso é estrito cumprimento do dever.”261
As dificuldades encontradas por Hélio Bicudo foram muitas e o trabalho ficou
pela metade, recorda o procurador: “Apenas se desvendaram os delitos e seus autores
261 AUDI, Jorge. “Scuderie LeCocq contra o Esquadrão da Morte”. RJ: O Cruzeiro, 29set1970, p. 20
150
diretos, permanecendo na sombra os seus autores intelectuais.” 262 A ausência de
garantias individuais imposta pelo AI5, desde dezembro de 1968, abriu caminho para
ações violentas da polícia sobre população, misturando a repressão aos chamados
crimes políticos (contra a segurança nacional) à perseguição aos criminosos ‘comuns’ e
esmoreceu a atuação dos órgãos de fiscalização do Estado, reféns da estrutura de poder
montada pelo regime militar. Hélio Bicudo destaca a importância do delegado paulista
Sérgio Paranhos Fleury nesta rede de poder:
“Transformado em homem símbolo da luta contra a subversão, não se pejaram as
autoridades federais de lhe dispensar todo o peso de um apoio incondicional, que
chegou a se refletir na edição de uma lei especial que o pudesse livrar da prisão
provisória decorrente de sentenças de pronúncia que o remetiam a julgamento
pelo Tribunal do Júri e impondo censura a órgãos de imprensa que expediam
considerações a propósito de sua atuação policial, apontandoo como violento e
corrupto.
Dessa proteção e desse temor, dizem bem o julgamento a que já foi submetido no
II Tribunal do Júri de São Paulo e o despacho que revogou, sem recurso hábil, a
prisão preventiva, decretada mesmo depois da edição da chamada ‘Lei Fleury’,
pelo juiz de Direito da Comarca de Guarulhos, como o conivente silêncio do
Ministério Público.”263
Quando a Scuderie LeCocq foi legalizada, em 1971, Nasser foi oficialmente
escolhido seu presidente de honra. No mesmo ano, escreveu artigo no qual contava que
o cineasta francês Marcel Camus lhe teria procurado com proposta de fazer um filme
sobre o Esquadrão da Morte. Nasser rechaçou a idéia, argumentando: “um filme como
262 BICUDO, Hélio Pereira. Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1976, p.22.
263 BICUDO, Hélio. Op. Cit., p. 52.
151
este seria contra o Brasil, muito mais de que contra todos os abomináveis esquadrões
da morte. Contribuiria pra que lá fora imaginassem que a Revolução compactuaria ou
ao menos não reprimiria esses processos sumários de combater o crime. (...) Sou
contra todas as penas de morte – sejam ditadas pelos esquadrões dos terroristas, dos
policiais ou as penas capitais inseridas nas leis brasileiras após quase um século”264.
Neste artigo, Nasser aproveita para explicar ao cineasta e aos leitores que
Esquadrão da Morte, uma “máfia”, e a Scuderie, uma associação, são coisas distintas:
“ Preste atenção, Camus. Você julga possível que uma organização invisível, uma
espécie de máfia, tenha sede, tabuleta na porta, estatutos, contabilidade, sócios em
toda parte do mundo, embaixadores, militares, artistas, músicos, jornalistas? De
comum entre a Scuderie e o Esquadrão só existe a caveira.
E aquelas iniciais E.M.?
Estavam na bandeira do grupo de Le Cocq desde os tempos da Polícia Especial,
quando todos eram integrantes do Esquadrão Motorizado.(...) Seria ingenuidade
supor que uma organização de criminosos deixasse a sua assinatura, a sua marca
sobre os cadáveres. (...) Tire da sua cabeça, Marcel, qualquer ligação entre a
Scuderie que tem uma existência oficial, que vive à luz do dia – e esse bando de
verdugos que quer substituir o aparelho legal da justiça”.265
Se é uma organização formal, qual seu objetivo declarado da Scuderie?
Perguntamse o cineasta francês e os leitores. Ao que Nasser, o presidente de honra,
com a palavra, responde: “presta auxílio nas estradas, cuida de defender os autos
contra os puxadores, é uma espécie de rotariana a Scuderie LeCocq.”266 Ia ficando para
trás, então o David Nasser denunciador de torturas:264 NASSER, David. Le Cocq foi o antiesquadrão. RJ, O Cruzeiro, 23jun1971. p.20.
265 idem, p.21.
266 Idem, ibidem.
152
“Sempre que alguém, em algum lugar, for atingido no seu direito natural – de
gente, de animal humano – não me interessa a sua condição política, a natureza
de seus atos. Eu o defenderei.” 267
Entretanto, a vida é um direito natural. E, segundo Carmen da Silva, liberdade
também. Mas em tempos de autoritarismo, a liberdade, como a democracia, podem ter
sido muito propaladas, mas foram pouco exercitadas. Se, para David Nasser, a liberdade
que defendia era a sua liberdade de imprensa, Carmen da Silva tinha noção de liberdade
muito diferente:
“Enfim, por seu caráter abstrato, a palavra liberdade tem servido para rotular
muita coisa que seria mais propriamente definida como egoísmo, omissão,
descompromisso, irresponsabilidade ou mesmo opressão.
Podemos definir liberdade como a capacidade de discernir e escolher. Discernir
com lucidez, isto é, ter consciência de si mesmo como individuo singular e, ao
mesmo tempo, como parcela do mundo, influenciado por sua época e por suas
circunstâncias e também capaz de exercer influência sobre elas. (...)
Vemos, pois, que a liberdade é uma árdua e lenta conquista interior. Entretanto,
seu exercício real só é possível a partir de liberdades concretas no plano
biológico, econômico, social e político. Sem pão, vivenda, saúde, instrução,
trabalho, garantias e seguranças normais, direito à convivência e à participação
nas decisões coletivas, o individuo está esmagado e com suas possibilidades de
escolha anuladas. Não é à toa que ninguém se incomoda com as reivindicações de
liberdade abstrata; as objeções críticas surgem é quando são reclamadas as
liberdades concretas que lhe servem de fundamento.”268
267 NASSER, David. O mal menor, RJ, O Cruzeiro, 26dez64, p. 7.
268 SILVA, Carmen. Por que é preciso ser livre?, SP: Claudia, ago1971, p. 131.
153
Por afirmações como essa, recorrentes em seus artigos, considero o trabalho de
Carmen da Silva na imprensa como atividade de resistência ao regime autoritário,
violentamente coercitivo, instalado no país a partir de abril de 1964, já que:
“Nesse ambiente, fazer oposição podia significar uma infinidade de coisas. De
fato, as formas de participação e o grau de envolvimento na atividade de
resistência variavam muito desde ações espontâneas e ocasionais de solidariedade
a um perseguido pela repressão até o engajamento em tempo integral na
militância clandestina dos grupos armados. Entre esses dois extremos, ser de
oposição incluía assinar manifestos, participar de assembléias e manifestações
públicas, dar conferencias, escrever artigos, criar músicas, romances, filmes ou
peças de teatro; emprestar a casa para reuniões políticas, guardar ou distribuir
panfletos de organizações ilegais, abrigar um militante de passagem; fazer chegar
à imprensa denúncias de tortura, participar de centros acadêmicos ou associações
profissionais, e assim por diante.
Dadas as características do regime, qualquer desses atos envolvia riscos pessoais
impossíveis de ser avaliados de antemão.”269
Dotada de sólida consciência política, Carmen da Silva, não dispensava uma
oportunidade sequer de pôr seus leitores em contato com a triste e dolorosa realidade do
país, sob um regime autoritário e violento. Defendia a liberdade, como defendia o
diálogo, como neste artigo em que celebra o oitavo aniversário da seção “A arte de ser
mulher”:
269 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de e WEIS, Luiz. “Carrozero e paudearara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”, in: SCHWRCZ, Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006. p. 328.
154
“Numa época em que a confraternização coletiva só parece existir no plano do
transe místico ou da alucinação tóxica; num tempo em que a agressão substitui os
argumentos e as mensagens procuram se impor mediante um impacto violento e
brutal sobre os sentidos com gritos, uivos, lampejos, clarões, choques, e sacudidas
que aturdem, embotam, estraçalham os nervos e anestesiam as faculdades críticas,
vocês me provaram que ainda é possível e fecunda a comunicação ao nível da
palavra, do diálogo racional, do debate no plano da inteligência. Apesar de tudo,
a velha frase feita ‘é falando que a gente se entende’ continua em vigor: seja para
concordar ou discordar, há oito anos que vimos nos entendendo às mil
maravilhas”.270
A jornalista e psicóloga construiu, assim, uma forma peculiar de resistência e
luta, ao apostar no cotidiano como um meio – na verdade, talvez, o único – para as
grandes transformações sociais. E, para isso, trabalhou como uma formiga:
“a vida diária nos oferece infinitas oportunidades de contribuirmos para criar um
futuro mais ajustado a nossas aspirações. A cada momento nos topamos com a
hipocrisia, a injustiça, a desonestidade, o desrespeito pelo direito de outrem.
Supor que isso se modificará sem intervenção ativa de nossa parte é cair no
otimismo infundado, é deixar correr o barco – o que em termos sociais representa
uma omissão culpável, uma forma passiva de conivência com o mal. Temos o
dever de tomar posição muito clara e contundente ante a hipocrisia, a
inautenticidade, a ignorância, o erro. (...) Não se trata, porém, de assumir atitudes
heróicas e romper lanças contra o mundo. Tratase de realizar, dentro do âmbito
social em que atua cada uma, a parte que lhe corresponde. (...)
Sem dúvida, é o trabalho da formiga. E talvez nosso orgulho pretendesse
realizações mais espetaculares. No entanto, qualquer pessoa que tenha observado
270 SILVA, Carmen. Parabéns a todas nós. SP, Claudia, set1971. p.78.
155
a tenacidade e paciência com que a formiguinha constrói e abastece seus
domínios, há de reconhecer que o esforço vale a pena.”271
271 SILVA, Carmen. Otimismo para viver. SP, Claudia, nov1965, p.131
156
Capítulo 2: PÚBLICO & PRIVADO
“A vida cotidiana nos coloca
ante infinidade de situações que exigem decisão, energia, coragem.
Tomálas com ânimo dramático como faz o pessimista, é erro tão grave
como sacudir os ombros e esperar que as coisas se arranjem por si mesmas”.
(SILVA, Carmen da. Otimismo para viver. SP, Claudia, nov1965)
“Os Governos fazem a História,
os jornalistas a escrevem.
Nem sempre a mesma pode ser contada a quatro mãos”.
(NASSER, David. A voz do dono.RJ, O Cruzeiro, 13jun64)
157
Nos artigos de David Nasser e Carmen da Silva é possível perceber diferenças
marcantes na postura adotada por cada um deles em relação às esferas pública e privada
da vida em sociedade. Considerando o espaço público aquele no qual os cidadãos
organizados em associações como, por exemplo, os partidos políticos, ou
individualmente, como eleitores, atuam no sistema político no sentido de escolher ou
conquistar, exercer ou fiscalizar o governo instituído. Em contraposição:
“É consenso considerar privado, em sentido amplo, o âmbito da chamada
sociedade civil: as atitudes, atividades, relações, instituições e formas de
organização não voltadas para o sistema político, ou, mais especificamente, não
orientadas para influenciar conquistar ou exercer o governo. Assim, fazem parte
do universo privado: a família, o círculo de amizades, as relações amorosas, a
experiência religiosa ou mística, o trabalho, o estudo, o lazer, o entretenimento e a
fruição da cultura.”272
Considerando o Estado Autoritário vigente no país desde 1964, os autores Maria
Hermínia Tavares de Almeida e Luiz Weis observam ainda que:
“Nos regimes de força, os limites entre as dimensões pública e privada são mais
imprecisos e movediços do que nas democracias. Pois, embora o autoritarismo
procure restringir a participação política autônoma e promova a desmobilização,
a resistência ao regime inevitavelmente arrasta a política para dentro da órbita
privada. Primeiro, porque parte ponderável da atividade política é trama
clandestina que deve ser ocultada dos órgãos repressivos. Segundo, porque,
reprimida, a atividade política produz conseqüências diretas sobre o diaadia.
272 ALMEIDA, Maria Hermínia e Weis, Luiz. “Carrozero e paudearara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. História Privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. Das Letras, 2006. p.327.
158
Pode implicar perda de emprego; mudança de casa; afastamento da família, dos
amigos e parceiros, e ainda, prisão, exílio, morte.”273
Com ironia e bom humor, Carmen da Silva aponta, além da presença da política
do cotidiano, para a tradição autoritária da sociedade brasileira, na qual as relações de
dominação extrapolam da esfera política percorrendo as demais a relações sociais. Em
seu livro autobiográfico de memórias, a jornalista destaca a presença marcante da
política, como campo de tensão permanente entre dominadores e dominados, sobre
vários aspectos da vida privada, desde o dia em nascemos:
“Não é à toa que o Dr. Leboyer, ao tomar a si a tarefa de organizar uma recepção
menos traumática para os recémnascidos, encontrou a mais ferrenha oposição
entre os médicos tradicionais, que o acusavam de querer ‘politizar’ o parto. Daí
surgem algumas interrogações que me deixam bem perplexa. Parto ‘apolitico’,
então seria aquele sobre o qual o médico, em representação da sociedade, exerce
um controle absoluto: ele dirige a concepção ou a anticoncepção, proíbe o aborto
(e lucra com ele debaixo do pano), fixa a data do nascimento de acordo com as
conveniências de sua agenda, induz o processo, faz as cesarianas necessárias e
supérfluas e,de quebra, dá seus bons safanões no pequeno intruso: uma criança a
mais num mundo já tão cheio. Parto ‘apolítico’, sempre segundo esse critério,
seria aquele que garante ao Estado total domínio sobre o cidadão. Porque, na
verdade, que docilidade se pode esperar de um folgado que vem ao mundo sem
sequer receber um sopapo para baixarlhe a crista e ensinarlhe o que é bom?
Como poderá a sociedade manipular a seu arbítrio indivíduos que não engoliram,
junto com o primeiríssimo hausto de ar, uma lição de humildade, a noção de que
esta terra é mesmo um vale de lágrimas? É de pequenino que se torce o pepino,
273 idem, ibidem.
159
ensina o ditado. Gente não dobrada e pepino não torcido dão maior subversão. Na
salada ou na Ordem Constituída, conforme o caso.”274
Em sua seção “A Arte de ser mulher” na revista Claudia, Carmen da Silva
propôs que a relação entre o público e o privado seja dada pela coerência entre opções
pessoais concernentes à vida privada e a atuação no espaço público. Dirigese
predominantemente às mulheres porque a elas historicamente foi permitida
preferencialmente a vivência em circuito privado, sendolhes muito reduzidas as
possibilidades de atuação em âmbito público, ou seja, a participação política. E mesmo
nas relações familiares e conjugais, esteve tradicionalmente submetida ao poder
masculino exercido pelo pai ou marido. Sobre as relações entre público e privado e a
repartição de poderes entre os sexos, desde o século XIX, observa a historiadora
Michelle Perrot:
“Esboçase um triplo movimento no século XIX: relativo retraimento das mulheres
em relação ao espaço público; constituição de um espaço privado familiar
predominantemente feminino; superinvestimento do imaginário e do simbólico
masculino nas representações femininas. Mas algumas ressalvas preliminares.
Primeiramente, nem todo público é ‘político’, nem todo público é masculino. A
presença das mulheres, tão forte na rua do século XVIII, persiste na cidade do
século XIX, onde elas mantêm circulações do passado, cercam espaços mistos,
constituem espaços próprios. Por outro lado, nem todo o privado é feminino. Na
família, o poder principal continua a ser o do pai, de direito e de fato. (...) Na
casa, coexistem lugares de representação (o salão burguês), espaços de trabalho
masculino (o escritório onde mulher e filhos só entram nas pontas dos pés). A
fronteira entre público e privado é variável, sinuosa e atravessa até mesmo o
microespaço doméstico.”275 274 SILVA, Carmen. Histórias Híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense, 1985, p.10.
275 PERROT, Michelle. Os Excluídos da História. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.180.
160
É precisamente sobre esta historicidade da participação feminina na sociedade
que Carmen da Silva pretendeu exercer influência, transformandoa. Para isso, fez de
sua seção na revista Claudia uma tribuna de onde discursou chamando as mulheres a se
questionarem a respeito de seus papéis em família e em sociedade. E ainda sobre novas
possibilidades de estar no mundo, uma vez que desde a década de 30 as mulheres
brasileiras haviam conquistado o direito de votar e serem votadas. Dizia Carmen da
Silva aos seus leitores em 1964:
“quando em princípios deste século as ‘sufragistas’ saíram à rua reclamando
direitos civis para a mulher, o caráter pioneiro de suas reivindicações obrigouas
a um grande desgaste de energia e até de agressividade. (...) graças aos seus
sacrifícios, hoje recebemos em bandeja, já ao nascer, coisas que há um século nos
eram negadas. Exceto em alguns países ainda sumamente primitivos, as mulheres
atualmente votam, tem assegurada por lei a liberdade de escolher seu trabalho,
sua carreira, seu marido; tem voz ativa na disposição dos bens do casal, podem
candidatarse a cargos públicos – em suma, são cidadãs com plenitude de direitos
sem mais necessidade de lutar.”276
A nova sociedade, cuja construção era pregada por Carmen da Silva previa,
portanto, o rompimento com o modelo patriarcal caracterizado pelo autoritarismo
masculino e submissão feminina, permitindo a igualdade de direitos e deveres entre os
sexos, seja em âmbito público ou privado, na política ou em família:
“Em síntese, antes de mais nada, teremos que corrigir as distorções subjetivas e
adotar uma ótica racional. Logo, começaremos por banir de nossa casa o sistema
276 SILVA, Carmen. A favor... Não contra os homens! SP, Claudia, mar1964, p.106.
161
patriarcal nos aspectos que está em nossas mãos modificar de imediato: a
servidão da mulher ao lar, sua exclusão da participação ativa no mundo. A partir
daí quem sabe? – irão desaparecendo por si sós outras facetas do
patricarcalismo que nos são decididamente ingratas: o autoritarismo do marido,
os direitos abusivos que ele se arroga (dominação, infidelidade), a noção de
superioridade masculina e de subalternidade feminina que ainda permeiam nossos
valores. E, sendo a família a célulamáter da sociedade, a derrubada do sistema
patriarcal dentro dos lares, poderá talvez... mas não, vamos subir o primeiro
degrau antes de arriscar prognósticos sobre o que nos espera no topo da
escada.”277
Consciente, portanto, de que tais mudanças ocorreriam cotidiana e lentamente,
pois era imprescindível uma mudança de mentalidade antes da mudança de
comportamento, Carmen da Silva nunca esmoreceu em seu desejo de liberdade e
igualdade para homens e mulheres, a despeito das resistências que encontrou tanto neles
como nelas. A mensagem central que Carmen da Silva queria transmitir aos leitores era
a sua:
“certeza de que uma existência transcorrida em passividade e automatismo só
pode ser fonte frustrações, aridez, vazio, desgosto de si mesmo, decepções com os
demais, senso inconfortável e humilhante de despersonalização, deslocamento,
marginalização no mundo. Vivendo como barcos à deriva não sabemos a ciência
certa onde estamos: o lugar que ocupamos se nos afigura usurpado ou concedido
por um favor da sorte que a qualquer momento poderia cessar.”278
Assim, de acordo com o pensamento de Carmen da Silva expresso em seus
artigos na seção “A Arte de ser mulher”, a conquista de um lugar no mundo é o
277 SILVA, Carmen. O complexo de donadecasa. SP, Claudia, jun1967. p.120.
278 SILVA, Carmen. Parabéns a todas nós. SP, Claudia, set1971. p.7172.
162
caminho para a “vida plena”, ou seja a vida com independência e liberdade, duas
“necessidades vitais”, segundo ela. Aos que almejam viver plenamente, contudo, são
impostos alguns prérequisitos. O principal é que se tenha atingido um determinado
grau de maturidade intelectual e afetiva. Tal amadurecimento, por sua vez, é pontuado
por certas etapas imprescindíveis ao desenvolvimento de homens e mulheres: a
consciência de si, num primeiro plano, e a consciência dos outros, como conseqüência.
Em poucas palavras, esta é a causa defendida por Carmen da Silva presente em todos os
seus artigos. Em todos os temas que abordou: casamento, filhos, trabalho, juventude,
sexo, divórcio, etc. este conjunto de valores deram o tom, desde os primeiros textos.
Valores fundamentados em convicções pessoais, segundo a autora:
“Em setembro de 1963 eu estreava na então recémnascida seção ‘A Arte de ser
mulher’. Voltava ao Brasil após muitos anos – bonitos, transbordantes, decisivos –
de residência no estrangeiro. (...) Mesmo em meio aos tateios e vacilações iniciais,
eu já trazia uma firme e profunda convicção, nascida de vivências pessoais,
marcada a ferro e fogo na carne, incrustada na mente, incorporada à própria
massa do sangue. (...) É só tomando nas mãos as rédeas do destino, construindoo
e construindose, que se alcança um razoável domínio sobre a insegurança e se
conquista a sensação de plenitude, de vida vivida numa dimensão total. É
querendo, fazendo e sendo – com toda a angústia, com todos os riscos que isso
implica – que perdemos a condição de joguetes do acaso e assumimos o caráter de
protagonistas desta aventura apaixonante e singular é a própria existência.”279
Nos seus primeiros artigos, nos quais procurava despertar nas leitoras a
consciência de si, chamava a atenção das leitoras para um determinado sintoma muito
comum entre as mulheres, sobretudo as casadas, ‘diagnosticado’ pelo que a feminista e
279 SILVA, Carmen. Parabéns a todas nós. SP, Claudia, set1971. p.78. grifo original.
163
escritora norteamericana Betty Friedan denominou de “mística feminina”280, conceito
atualíssimo em 1963, resumido por Carmen da Silva da seguinte forma:
“isto é, um conceito de feminilidade que entra em conflito com as mais legítimas
exigências anímicas do ser humano normal. A mulher deve ser terna, paciente,
meiga, um pouco incapaz ante a vida prática, dependente, com um certo matiz de
puerilidade... (...) Incapacidade, dependência, puerilidade... serão deveras
inerentes à condição feminina? Com um mínimo de honestidade, responderemos:
não. São características infantis; num adulto só revelam falta de maturidade.”281
Daí o título do artigo “Uma pequena rainha triste”, numa alusão ao romance
infantojuvenil O Pequeno Príncipe, do escritor francês SaintExupéry, em que o
personagem principal em visita a um asteróide habitado unicamente pelo rei, que por
isso, na verdade, não reinava sobre nada. Segundo Carmen da Silva, “nossa sociedade
outorga à mulher, esposa e mãe, o título de rainha do lar. Árbitro e senhora de seu
diminuto universo. Mas... não será ela também uma rainha triste?”282
Em outro artigo, explora outro aspecto sobre a mulher donadecasa referente
precisamente à “magnitude que o trabalho doméstico assume em seus pensamentos, em
seus sentimentos. A impossibilidade de livrarse dele como escravidão mental – mesmo
que não o tenham como obrigação material”283. Citando outras importantes pensadoras,
pioneiras no debate acerca das questões propriamente femininas, as ensaístas francesas
Evelyne Sullerot e Simone de Beauvoir284, Carmen da Silva afirma que “digase o que 280 Conf. FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.
281 SILVA, Carmen. Uma pequena rainha triste. SP, Claudia, nov1963.p.125.
282 idem, p.124.
283 SILVA, Carmen. O complexo da donadecasa. SP, Claudia, jun1967. p.120.
284 conf. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
164
disser sobre a mentalidade da mulher moderna, ainda há uma ideologia doméstica,
uma noção de moral associada às tarefas do lar”:
“A ensaísta Evelyne Sullerot acentua esse aspecto dos trabalhos caseiros: “O bem
e o mal são inseparáveis do menor gesto. É bem lavar fraldas, é mal ler um
romance enquanto há fraldas por lavar. Fazer sacrifícios é bem,evitálos é mal.
Também Simone de Beauvoir enfatiza o lado moral atribuído à lida, a sujeira e os
detritos simbolizando o mal, a ordem e a limpeza representando o bem. Vai mais
longe e mostra a índole obsessiva que os afazeres assumem: ‘A dona de casa não
tem a impressão de conquistar um bem positivo e sim de lutar indefinidamente
contra o mal: é uma luta que se renova todos os dias. Lavar, passar, varrer,
descobrir os flocos de poeira escondidos sob armários é recusar a vida, embora
detendo a morte: pois num só movimento o tempo cria e destrói : a dona de casa
só lhe apreende o aspecto negativo. Através dos resíduos que deixa atrás de si
toda expansão viva ela ataca a própria vida’. (...) Voltando à associação
inconsciente a casa e o próprio corpo, começamos a compreender o sentido da
domesticidade obsessiva e a índole ‘moral’ atribuída às tarefas do lar: a sujeira, o
pó, a desordem são o ‘mal’ porque representam os despojos do ventre materno; a
limpeza e a ordem são o ‘bem’ porque implicam num intento de reparar o que a
nossa agressão danificou.”285
Carmen da Silva, propõe então um novo enfoque sobre a questão, de ordem
prática e imediata, para se começar mudar tal estado de coisas, libertandose de tal
“escravidão mental”:
“Limpar, arrumar, varrer, lavar quando for necessário, sem perder de vista o fato
de que a casa foi feita para nós e não nós para a casa. Fiscalizar a empregada, se
as temos, na medida em que sua inexperiência exige fiscalizações e tratálas 285 SILVA, Carmen. O complexo de donadecasa. SP, Claudia, jun1967. p. 120.
165
humanamente, sem fazer delas o centro de nosso panorama mental. Usar as mãos
e a inteligência para realizar a lida. (...) Solicitar a colaboração do marido e dos
filhos que já estão em idade adequada, ela nos é dada de boa vontade e até
espontaneamente, se a merecemos. Mas não deixemos ao homem todo o ônus do
trabalho externo e da manutenção do lar, não seria eqüitativo pedirlhe auxílio
também nas tarefas domésticas.”
Assim, a prevalecer o princípio da equidade, se o homem pode ser solicitado a
auxiliar nas tarefas domésticas, igualmente a mulher também pode e deve colaborar
com trabalho externo ao lar. Para Carmen da Silva este, aliás, é um aspecto fulcral
alcançar a almejada transformação social. Pois, tornandose economicamente produtiva,
a mulher, como o homem, poderia conquistar independência e liberdade e, assim,
alcançar o exercício da plena cidadania. O trabalho seria o meio capaz de garantir a sua
autonomia financeira e assegurar a sua inclusão social, na qual passariam a ter
participação ativa. Entre 1963 e 1973, Carmen da Silva tratou deste assunto em
diferentes abordagens.
O primeiro artigo sobre o tema, “Trabalhar para não ser bibelô” , foi publicado
na edição de agosto de 1964. Nele, a articulista responde à pergunta sobre se deve a
recémcasada trabalhar, comparando as “moças de hoje” às suas avós: “a avó passou
diretamente da infância para ao matrimônio; em realidade até o nascimento de seu
primeiro filho ela brincava de bonecas às escondidas do marido e dos pais, que
rivalizavam em severidade”. Para a “noiva de hoje” o “casamento não significa uma
resignação ao destino ou uma norma inarredável, mas sim em escolha, uma decisão
livremente assumida”. Desta forma, afirma:
“a recémcasada, mesmo nas melhores condições pecuniárias, terá um trabalho
remunerado, isto é, uma tarefa que constitua obrigação, compromisso”. (...) Sabe
que trabalhar é, entre outras coisas, um modo de estar aberto ao mundo, de nele
166
participar como uma presença e não como um peso morto; se seu marido
trabalha e ela não hão de viver os dois em planos diferentes da realidade e isso
pode criar um abismo de surda desinteligência. Só entre seres da mesma espécie é
possível uma linguagem comum. (...) Sintetizando: a jovem moderna recusa o
papel de bonequinha de luxo, de bibelô do lar, de flor de estufa: sabe muito bem
que sua avó pagou por essas vantagens fictícias um preço real de submissão e
imaturidade. Por fim, ela não ignora que vive numa época de instabilidade e
transição, na qual o único patrimônio verdadeiramente seguro é a própria força
de trabalho.”286
Em dezembro de 1964, no artigo “As razões da independência”, Carmen da
Silva volta o tema, observado agora pelo significado da independência, definida pela
autora como uma ‘necessidade vital’ cuja falta é provocadora de inúmeros distúrbios
até mesmo emocionais:
“Há certos bens – especial e proverbialmente a saúde, a boa reputação – aos
quais ninguém presta maior atenção enquanto os tem.(...) Só quando perdidos são,
finalmente, apreciados em seu justo valor. Outros, pelo contrário, só podem se
cabalmente avaliados por quem os possui em plena vigência; quem deles carece
não os compreende a fundo, desconhece seus alcances, duvida de suas vantagens.
Tal é o caso da independência, qualidade mais fácil de sentir do que de explicar,
pois mais do que noção abstrata ela é, sobretudo vivência, impulso anímico, modo
de ser.(...) Ela é uma necessidade vital um clamor que está na massa do sangue de
qualquer um. Emudecido, oprimido, negado, esse grito do espírito se transforma
em malestar subjetivo, insatisfação, receios difusos, tensão interior, insegurança
e ansiedade. Por isso a pessoa adulta que vive sob o amparo material e moral de
outra, absorvendo as opiniões que já vêm préfabricadas, (...) substituindo o ‘ser’
pelo ‘estar’ e o ‘pensar’ pelo ‘fazer’, reconhecendose apenas como membro de 286 SILVA, Carmen. Trabalhar para não ser bibelô. SP, Claudia, ago1964. p.121. Grifos originais.
167
determinado grupo ou família, mas não como parcela decisiva da humanidade (...)
habita um castelo de cartas que ameaça ruir ao mais leve sopro da brisa, e não
consegue evitar a ingrata sensação de que tudo é precário, cambaleante,
instável.”287
O tema mobilizou leitores e leitoras que escreveram em cartas sua indignação e
desconforto em relação ao assunto. No artigo, Carmen expõe a opinião do público,
destacando a “avalancha de cartas que nos chegam cada vez que um artigo desta seção
concita as mulheres a conquistarem sua independência”. Quanto ao teor das cartas,
esclarece:
“É certo que algumas dessas missivas constituem testemunhos alentadores,
objetivos e valiosos. A maioria, entretanto, contêm indignados protestos de
leitores de ambos os sexos. Os homens agem como se alguém – no caso, a
articulista – estivesse tratando de ‘desencaminhar’ suas noivas e esposas com a
mais censurável leviandade, metendolhes perniciosas caraminholas na cabeça.
(...) não há textos, conferências, conselhos ou exortações capazes de exercer
influência adversa sobre a mente equilibrada, que pensa com autonomia e julga
com isenção – isto é, a mente de um ser livre. De modo que esses ardorosos
defensores do velho esquema de dependência feminina, em última estância não
confiam – sabem que não podem confiar – no critério de suas esposas,
precisamente pelo fato de elas não serem independentes.
Por sua vez, as cartas das mulheres, deixam transparecer sob o tom enfático e a
aparente racionalidade do conteúdo, uma corrente subterrânea de pânico, uma
velada e quase patética imploração: ‘Deixemnos nos em paz, queremos continuar
acreditando que tudo está bem assim; quem é a senhora para vir pôr o dedo na
chaga que preferimos manter oculta?”288
287 SILVA, Carmen. As razões da independência. SP, Claudia, dez1964. p.129. grifo original.
288 SILVA, Carmen. As razões da independência. SP, Claudia, dez1964. p.129.
168
Observase assim, estabelecida entre a jornalista e o público, o que Roger
Chartier chamou de “tensão fundamental” sempre presente na relação entre autores e
leitores. Segundo o historiador:
“abordar a leitura é, portanto, considerar conjuntamente, a irredutível liberdade
dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreála. Esta tensão
fundamental pode ser trabalhada pelo historiador através de uma dupla pesquisa:
identificar a diversidade das leituras antigas a partir dos seus esparsos vestígios e
reconhecer as estratégias através das quais autores e editores tentavam impor
uma ortodoxia do texto, uma leitura forçada. Dessas estratégias umas são
explícitas, recorrendo ao discurso (nos prefácios, advertências, glosas e notas), e
outras implícitas, fazendo do texto uma maquinaria que, necessariamente, deve
impor uma justa compreensão. Orientado ou colocado numa armadilha, o leitor
encontrase, sempre, inscrito no texto, mas, por seu turno, este inscrevese
diversamente nos seus leitores”.289
O assunto continuou gerando bastante polêmica entre os leitores e Carmen da
Silva retornou a ele em setembro de 1965 com “Resposta a um mito”: “Cada vez que
esta seção aborda o tema ‘independência feminina’, ‘participação da mulher na
sociedade’, ‘trabalho’, já sei que posso esperar uma avalanche de cartas”. O mito,
segundo a articulista, era o argumento utilizado pelas leitoras que refutavam a idéia de
desenvolver atividade remunerada fora de casa por considerar tal prática incompatível
com os cuidados com a família e a casa. A sua resposta:
“Compreendo perfeitamente a acusação de destrutividade, e, num certo senso, ela
é justa: eu trato de destruir os mitos aos quais muitas mulheres ainda se apegam.
289 CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1988, p. 123.
169
Um desses mitos é o da impossibilidade prática de conciliar as atividades externas
com as do lar. A missivista – e, antes dela, algumas centenas de leitoras – pede
idéias e práticas. Todas clamam por soluções.
Essa atitude de pôr suas decisões em minhas mãos vem corroborar o já
mencionado desejo de fugir à responsabilidade. (...)
É curioso que precisamente nas classes pobres as famílias costumem ser muito
mais numerosas que nos grupos mais economicamente mais favorecidos. As
famílias operárias em geral têm seis, oito, dez filhos. Mas essas mães trabalham.
Trabalham porque não têm mais remédio, não podem se dar ao luxo de esgrimir
escusas. Convém que as ‘rainhas tristes’ reexaminem seus pretextos com o intuito
de ver se eles não se destinam apenas a convalidar privilégios.”290
Carmen da Silva, contudo, não recuava de seu ponto de vista, apesar da forte
resistência encontrada junto aos seus leitores, como ela mesma mostra, quando descreve
o teor das cartas dos leitores:
“Algumas de apoio (não as mais numerosas por certo), procedentes de mulheres
que, baseadas numa vasta experiência pessoal de maridos a atender, filhos a
cuidar, tarefas domésticas que desempenhar ou fiscalizar e, ainda, atividades
alheias ao lar, declaramse realizadas e felizes. Ou de jovens solteiras de mente
alerta e espírito vivaz, que se manifestam dispostas a fazer de seu futuro
matrimônio uma forma a mais de enriquecimento da personalidade e não um
pretexto para a mutilação de si mesmas.
Outras, de homens que com indisfarçável tonzinho feudal, põe a boca no mundo
alegando que querem as suas esposas dentro de casa, submissas, obedientes, sem
horizontes além das quatro paredes, com os olhos fechados a tudo que não seja a
grandeza de seu dono e senhor.(...)
290 SILVA, Carmen. Resposta a um mito. SP, Claudia, set1965. p.143.
170
A imensa maioria de missivas, entretanto, é constituída de protestos, às vezes
bastante amargos, de mulheres casadas, ‘pequenas rainhas tristes’ que se sentem
atacadas, tomando por agressão as minhas palavras de incitação e estímulo.
Ofendidas e irritadas por certas verdades que lhes ficam remoendo na alma e que
preferiam ignorar.”291
Otimista, antes de mais nada, Carmen da Silva, reitera seu apelo às donas de
casa que acompanham seus artigos em Claudia para que examinem e reconsiderem as
suas possibilidade de estar no mundo:
“Circulamos todo o dia entre produtos do esforço humano. Não podemos
prescindir de determinados bens e serviços que dezenas de séculos de atividade
humana puseram à nossa disposição.
Acho que é necessária uma grande insensibilidade de consciência para que
alguém possa sentirse eximido de acrescentar seu grãozinho de areia – modesto,
se for o caso, mas bem intencionado – a essa herança universal. Tanto mais que
ela nos foi legada por gente que também morou, limpou, preparou refeições, se
multiplicou.
Homem ou mulher, celibatária ou casada, dona de casa, mãe: a dívida é de todos,
sem exceção. Podemos, talvez fechar os olhos a esse compromisso de honra. Mas
se o fizermos, não nos sentiremos em paz. Como não se sentem as ‘pequenas
rainhas tristes’, que começam a me pedir trégua – uma trégua que suas próprias
consciências já não lhes querem dar.” 292
Em “Mais trabalho e menos conversa”, de março de 1966, Carmen da Silva
retorna ao tema novamente: “Desta vez o que vamos fazer é uma verdadeira ‘mesa
291 idem, p.140.
292 SILVA, Carmen. Resposta a um mito. SP, Claudia, set1965. p.183
171
redonda’. Tantas e tão diversas foram as repostas ao artigo relativo ao trabalho da
mulher – mais especificamente, da mulher casada – que não podemos fugir à incitação
de voltar ao assunto. Salta à vista que essa é uma questão que, no presente momento,
está fermentado nas consciências: focalizálas é malhar a ferro quente. E é isso
justamente a que nos propomos”. Continua:
“Nada mais estimulante para nós do que observarmos essa reação. Não
pretendemos convencer ninguém, não queremos dar a ninguém noções pré
fabricadas sobre o bem e o mal, sobre os deveres do individuo para consigo e para
com a sociedade. Ao analisarmos e elucidarmos vários problemas da mulher como
ser humano inserido no mundo, nossa intenção é fazer pensar: suscitar a
especulação, a dúvida, o debate, a reavaliação critica de certas idéias e opiniões
até agora aceitas como pontos pacíficos – e que talvez não o sejam. A partir dessa
reformulação, cada uma estará melhor equipada para escolher com mais lucidez e
consciência o seu caminho.”293
Carmen da Silva afirma, portanto, prezar e preservar a autonomia dos seus
leitores. Cabe então lembrar o que afirma Michel De Certeau a esse respeito:
“A autonomia do leitor depende de uma transformação das relações sociais que
sobredeterminam a sua relação com os textos. Tarefa necessária. Mas esta
revolução seria de novo o totalitarismo de uma elite com pretensão de criar, ela
mesma, condutas diferentes e capazes de substituir uma Educação anterior por
outra normativa também, se não pudesse contar com o fato de já existir,
multiforme embora subreptícia ou reprimida, uma outra experiência que não é a
da passividade.”294
293 SILVA, Carmen. Mais trabalho e menos conversa. SP, Claudia, mar1966. p.46. grifo original.
294 DE CERTEAU, Michel, A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 268.
172
Carmen da Silva, mesmo estimulando suas leitoras a pensarem autonomamente
e recebendo muito bem todas as críticas e até rejeições às suas idéias, guarda dentro de
si, enquanto autora, a representação de um leitor “ideal”, que saberia ler seu trabalho
dandolhe a interpretação “correta”. Mesmo respeitando o tempo, o limite e as
diferenças para a aceitação de suas idéias, permanece a tensão constante entre leitores e
autores/editores:
“Há portanto tensão entre dois elementos. De uma parte, o que está do lado do
autor, e por vezes do editor, e que visa impor explicitamente maneiras de ler,
códigos de leitura (foi lembrada a proliferação crescente de prefácios), seja de
maneira mais subreptícia uma leitura precisa (através de todos os dispositivos
evocados antes, sejam tipográficos ou textuais). Este conjunto de intenções
explícitas ou depositadas no próprio texto, no limite, postularia que um único
leitor pudesse ser o verdadeiro detentor da verdade da leitura.”295
Em seus artigos, Carmen da Silva busca a adesão dos leitores operando o
discurso da mudança:
“estar vivo é, precisamente, mudar. Não apenas cada 365 dias: a vida não espera
tanto. Nesse sentido, seria mais adequado dizer: dia novo, vida nova. (...) Cultivar
a mesmice é uma das mais difundidas defesas contra o medo de mudar, porque é
acolher o desconhecido que apavora, pois carecemos de mais já testados para
lidar com ele.”296
295 CHARTIER, Roger. Práticas de Leitura, São Paulo, Estação Liberdade, 1998, p. 245.
296 SILVA, Carmen. Olhe, aqui, menina, em 69 vamos é viver. SP, Claudia, dez1968. p.136.
173
Utilizando expressões como “mulher moderna”, “jovem de hoje”, “possuidoras
de um espírito vivaz” para designar aquelas mulheres que ela considera maduras que,
portanto, foram capazes de vencer o medo e corajosamente se lançaram à conquista de
seu lugar no mundo optando assim por viver plenamente, ao contrário de suas mãe, a
geração anterior, das ‘pequenas rainhas tristes’ e suas vidas vazias porque presas a
tradições que as mantém alienadas do mundo. Naturalmente, a jornalista espera que as
leitoras se identifiquem com o modelo de mulher moderna, levando adiante o seu
projeto de transformação da sociedade. Em um de seus artigos publicado em 1968, isto
é particularmente notável:
“As jovens de nossos dias começam a sofrer um sintoma que, forçando uma pouco
a metáfora, eu chamaria de ‘claustrofobia ao casamento’. Para a mentalidade da
moça moderna, inteligente, instruída, participante, instalada no mundo de hoje, a
união matrimonial em bases tradicionais vaise tornando cada vez mais uma
espécie de recinto fechado, um circulo estreito, uma asfixiante enxovia; não é de
surpreender que ela dispare assustada ante a perspectiva de ver sua existência
estiolarse entre os muros sombrios de uma prisão perpétua.
A diferença entre essa atitude e a do claustrofóbico é que este receia fantasmas
criados por sua própria imaginação doentia, ao passo os temores com que a
mulher de hoje encara o casamento são concretos, realistas, fundados e, portanto,
nada tem de neuróticos.”297
Conclamando estas jovens, “criaturas pertencentes ao sexo que só é frágil
quando quer e porque quer” a construir o novo, pois “se as jovens de hoje desejam que
o casamento passe a ser erigido em bases novas, cabelhes a tarefa de construílas”,
adverte, contudo:
297 SILVA, Carmen. Claustrofobia ao casamento. SP, Claudia, fev1968. p.43.
174
“ não basta fazer das próprias idéias uma bandeira pessoal – e desfraldalas com
azeda ambivalência. Como também não basta esgrimilas ante o homem que,
naturalmente, não as aceitará de boa vontade. É preciso compreender que a
reformulação das bases do casamento implica numa reformulação total do nosso
conceito do homem, da mulher, das relações humanas, da sociedade. (...)
Trabalho, a melhor tática: ingressando na vida conjugal com uma atividade
estável, a mulher já tem a seu favor o fato consumado, o que simplifica as coisas.
E quando, isso ocorre, raramente é necessário que o casal se empenhe em grandes
debates teóricos sobre os direitos da mulher à autonomia, ao respeito como
pessoa, à realização de objetivos próprios. Pois não sendo ela dependente, ele não
terá veleidades de tratála como tal: sua condição de ser humano livre já estará
implicitamente afirmada, reconhecida, condicionando as atitudes do marido.”298
A noção de tática, proposta por Carmen da Silva neste artigo, de mudar as bases
do casamento preservando a instituição, está encontra identificação com a definição de
tática elaborada por De Certeau:
“Denomino, ao contrário, ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um
próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade
visível. A tática só tem por lugar o do outro. Aí ela se insinua, fragmentariamente,
sem apreendelo por inteiro, sem poder retêlo à distância. Ela não dispõe de base
onde capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma
independência em face das circunstâncias. (...) Tem constantemente que jogar com
os acontecimentos para os transformar em ‘ocasiões’. Sem cessar, o fraco deve
tirar partido de forças que lhe são estranhas.”299
298 SILVA, Carmen. Claustrofobia ao casamento. SP, Claudia, fev1968. p.140.
299 Idem, pp. 4647.
175
A própria jornalista desenvolveu suas táticas para manterse na revista Claudia
sendo voz dissonante dentro dela, por criticar uma sociedade na qual o mensário estava
perfeita e comodamente adaptado. Durante os primeiros anos, principalmente, Carmen
da Silva, escolheu cautelosamente os temas a tratar e mesmo as palavras a empregar:
“Cada vez mais esta seção se aproxima do que sempre desejamos que fosse: uma
espécie de foro de debates, ponto de encontro entre Claudia e o pensamento da
mulher brasileira. Uma copiosíssima correspondência, trazendonos os
comentários mais variados, as reações mais contraditórias e cada tese que
apresentamos, nos permite comprovar que não estamos monologando. E as cartas
nos dão um índice valioso sobre quais os assuntos de mais palpitante atualidade,
que provocam mais intensas e profundas repercussões. São os interesses, os
entusiasmos, os protestos e as vacilações das leitoras que nos ditam os temas a
abordar.”300
Importante destacar dentro deste panorama o ano de 1968, quando tem início,
durante o mês de maio, em Paris, um amplo movimento de estudantes que sai às ruas
em luta por liberdade. A agitação encontrou ressonância em diversas cidades:
Berckeley, Berlim, Varsóvia, Praga. E , de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais
tarde, acabariam repercutindo no mundo inteiro. Olgária Matos explica que aquele foi o
“momento em que a luta política coincide com um estado de alegria e de exuberância;
felicidade é sinônimo de luta”. Prossegue a autora:
“Nestas manifestações se exprimiram antecipações da felicidade a ser
concretizada imediatamente: ‘tudo, já’, foi um dos lemas do movimento.
Sublimação nãorepressiva, cidadania ao principio de prazer. Necessidades
300 SILVA, Carmen. Mais trabalho e menos conversa. SP, Claudia, mar1966.p.46.
176
instituais e razão se reconciliam, eliminando a punição da sensualidade ou da
reflexão.”301
No Brasil, decretação do Ato Institucional n°5, em 13 de dezembro de 1968, expõe
definitivamente o caráter autoritário e repressor do regime instituído. Elio Gaspari
referese a este momento utilizando a imagem de duas rodas girando em sentido
contrário: “por uma fatalidade histórica, começou em 1964 no Brasil um período de
supressão das liberdades públicas precisamente quando o mundo vivia um dos
períodos mais ricos e divertidos da história da humanidade”302. Segundo o jornalista,
“a ditadura brasileira, com suas violências e mesquinharias, caíra com sua pretensão
desmobilizadora no meio daquela delirante agitação sem entendêla, mas pensando em
reprimila.”303
Contudo, se é verdade que o regime militar tinha a pretensão de reprimir e
desmobilizar toda e qualquer forma de oposição, também é verdade que não lhe foi
possível inibir completamente a resistência, que se manifestou de diferentes maneiras. E
se, no campo da política não foi possível à oposição retirar o poder das mãos dos
militares e romper com a tradição autoritária que permeia nossa cultura política, no
campo das idéias, algo começou a mudar durante aqueles anos. De acordo Carmen da
Silva:
“Vivemos numa época em que todos os valores do passado estão sendo
submetidos à revisão; mais rapidamente do que em qualquer outra fase da
história, os avanços da ciência nos obrigam a discutir o que fora considerado
indiscutível, a descartar noções consagradas. Os inúmeros preconceitos que
tolhiam a existência feminina estão sendo minados pela base: o desenvolvimento
301 MATOS, Olgária C. F. Paris 1968. As barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.14, 15.
302 GASPARI, Elio. A Ditadura Envergonhada. São Paulo, Cia. Das Letras, 2004, p.211.
303 idem, p. 233.
177
industrial e as pressões econômicas arrancam a mulher de seu papel tradicional
no lar, inserindoa na atividade; os meios de difusão maciça levam a cultura ou,
pelo menos, a atualização, ao quatro cantos do mundo e até a mais recalcitrante
vovó está a par da bomba de hidrogênio e da minisaia; o parto sem dor levantou
a maldição bíblica que pesava sobre o destino feminino e o aperfeiçoamento dos
sistemas anticoncepcionais transformou a maternidade numa escolha, ou seja,
num ato de liberdade. A moral de ontem já se tornou, pois, inadequada para
manobrar a realidade de hoje; lembremos que a própria palavra moral vem de
‘mores’, que significa ‘costumes’ – e os nossos estão sendo radicalmente
modificados.”304
Se, por um lado, em vários momentos, o desejo de mudança expresso por
Carmen da Silva poderia parecer uma mera antecipação sem respaldo da sociedade; por
outro, a quantidade de cartas que recebia, mesmo com manifestações contrárias aos seus
pontos de vista, revelam a aceitação de seu trabalho. Possivelmente porque a
transformação da sociedade através da conquista de liberdade para os indivíduos não
fosse um desejo exclusivo seu, mas coletivo, ainda que latente, e que os estudantes
parisienses levaram às ruas em maio 1968, em palavras de ordem como: “É proibido
proibir”, “A imaginação no poder”. Assim, mais do que antecipar, Carmen da Silva,
talvez simplesmente ecoasse as mudanças em marcha:
“A eterna luta de gerações vem tomando, hoje em dia, um aspecto bem peculiar.
Na época da produção em série, da difusão maciça, das comunicações ultra
rápidas, da massificação das idéias, do ócio industrialmente organizado, a
juventude encontrou meios de dar um caráter coletivo à batalha que, antes, cada
um devia empreender individualmente no âmbito de sua família. O recurso de
coletivizar o enfrentamento de gerações tornao menos angustiante porque, em
304 SILVA, Carmen. O Superego. SP, Claudia, jan1968. p.110.
178
certa forma, o despersonaliza: em vez de ser ‘eu contra meus pais’, com toda a
carga de culpa atitude pressupõe, passou a ser: ‘nós, os moços, contra os mais
velhos e a sociedade constituída por eles’. Os pais se sentem menos feridos com
essas acusações feitas de modo genérico; e de parte a parte, o antagonismo se
dilui no numero, atenuando o impacto dos fatores afetivos implícitos no conflito
intrafamiliar. Sabese, além disso, que a ação coletiva tem mais repercussão,
eficiência e, geralmente, objetividade, do que a individual”305.
Os artigos da jornalista revelariam então a tensão entre o modelo tradicional
familiar e novo modelo em gestação, ou nos termos da época: educação dos filhos
“liberal”, “moderna”, “atualizada” em contraposição a uma educação “quadrada” e
“antiquada”. Sobre este conflito de gerações, Carmen da Silva escreveu, em defesa dos
jovens:
“viuse uma sucessão de tipos juvenis os mais estranhos. Primeiro, os
extravagantes e sujíssimos ‘existencialistas’; depois os ‘beatniks’, céticos, cheios
de desprezo pelo mundo e também não muito limpos; os ‘rockers’, transbordantes
de excitação motriz; os transviados, impetuosos e desafiando a cada instante a
sociedade e a própria vida; as curras, os ‘playboys’, os vivedores e delinqüentes.
E muita gente pretendeu inverter novamente a situação, reentronizando os pais na
sua antiga condição de autoridade suprema e incontestável, e sentando os jovens
no banco dos réus. Sempre é mais fácil encontrar bodes expiatórios do que boas
razões e soluções racionais.
É realmente perdida a juventude atual? Não. É um erro confundir a juventude
normal com a juventudeproblema, estatisticamente uma fração mínima do
conjunto. (...) Mas, tanto no Brasil como nos demais países do mundo, a grande
massa da juventude não é nem marginal, nem singular. Se algo a distingue da
305 SILVA, Carmen da. Aviso aos moços: não é o guardachuva que faz chover. SP, Claudia, jul1967, p.30.
179
mocidade de outras épocas é, precisamente, seu maior grau de consciência e
lucidez, senso de responsabilidade.”306
Alguns anos mais tarde, o maior grau de consciência e lucidez desta geração
levou muitos jovens às ruas, em passeatas e outras manifestações públicas contra o
governo militar. O endurecimento do regime conduziria ainda, muitos deles, a se
vincularem a grupos de luta armada, passando a uma vida clandestina.
Merece destaque na trajetória de Carmen da Silva em Claudia o ano de 1971,
quando o movimento feminista foi às ruas nos Estados Unidos e, no Brasil, ela
finalmente pode dar cartaz à palavra ‘bichopapão’: feminismo. Segundo a definição de
Maria Amélia Almeida Teles:
“O feminismo é uma filosofia universal que considera a existência de uma
opressão específica a todas as mulheres. Essa opressão se manifesta tanto em
nível das estruturas como das superestruturas (ideologia, cultura e política).
Assume formas diversas conforme as classes e camadas sociais, nos diferentes
grupos étnicos e culturas.
Em seu significado mais amplo, o feminismo é um movimento político. Questiona
as relações de poder, a opressão e a exploração de grupos de pessoas sobre
outras. Contrapõese radicalmente ao poder patriarcal. Propõe uma
transformação social, econômica, política, e ideológica da sociedade”307.
A luta das mulheres no Brasil, contudo, teve seu caráter político ampliando na
medida em que, não apenas elas, mas toda a sociedade vivia a opressão de um Estado
Autoritário que, na década de 1970, estava no seu auge. Assim, uma luta importante que
306 SILVA, Carmen. A Chamada idade difícil. SP: Claudia, dez1963, p. 135.
307 TELES, Maria Amélia Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 10.
180
começou com as mulheres foi a da anistia, que mobilizou primeiro as mães, esposas e
irmãs de presos políticos.
Em 1972, Carmen da Silva deu grande destaque ao Congresso Nacional de
Mulheres, ocorrido entre 26 e 30 de abril daquele ano, no Hotel Glória no Rio de
Janeiro. Organizado pelo Conselho Nacional de Mulheres: “entidade presidida pela
dra. Roni Medeiros da Fonseca, e entre suas organizadoras contam elementos
vinculados a diversos campos: a física e ensaísta Rose Marie Muraro, autora de várias
obras, inclusive ‘Libertação Sexual da Mulher’; a jornalista e ficcionista Heloneida
Studart, autora de ‘A Culpa’ e outros romances de grande repercussão crítica e de
público, outra conhecida escritora e cronista, Diná Silveira de Queiroz; a diretora da
Escola de Enfermagem, Ana Néri; a figurinista de reputação internacional Zuzu Angel,
designada pela imprensa como a Mulher do Ano; e mais embaixatrizes, mulheres de
carreira, etc.” E, sobre os objetivos do Congresso, advertiu:
“A intenção não é travar a essas alturas uma ridícula e descabida guerrinha
sexual, senão colocar um pauta problemas da mulher brasileira no mundo de hoje
e procurar os caminhos para solucionálos. Ora, não é possível reformular a
posição de metade da comunidade sem alterar fundamentalmente suas relações
com a outra metade e o equilíbrio do conjunto; de modo que uma reestruturação
da posição social da mulher equivale a uma reestruturação de toda a sociedade.
Não é de surpreender, pois, que os homens estejam dentro da jogada; aliás, a
maioria das teses foi feita por eles. Não todos os homens, claro; como também
nem todas as mulheres: somente aqueles e aquelas dotados de suficiente
capacidade intelectual, maturidade emocional e abertura social para não se
encastelarem na posição cômoda e cega de achar que tudo irá bem no melhor dos
mundos possíveis enquanto as tradições forem preservadas.”308
308 SILVA, Carmen. Igualdade, justiça e participação. SP, Claudia, abr1972, p.51.
181
A mudança de postura e de lugar da mulher na sociedade impunha como
conseqüência, necessariamente, outra mudança de papel dentro de casa, em relação à
família, como esposa e mãe, na educação dos filhos. A solidariedade entre os sexos para
o sucesso da luta era então imprescindível:
“E posto que somos gregários, isto é, ‘solidários’, a escravização de uma só
pessoa constitui uma ofensa a toda a humanidade. Portanto, a libertação da
mulher não pode implicar na escravização do homem – ou viceversa. A liberdade
de um sexo complementa a do outro e lhe dá sentido;ou então, ambas são um mito
que é preciso desmascarar.”309
Desta forma, seu projeto de sociedade, ou sua representação de mundo, na
expressão de Roger Chartier, aos poucos, ganham maior visibilidade e legitimidade na
medida em que, segundo o historiador:
“estas representações como matrizes de discursos e de práticas diferenciadas –
‘mesmo as representações coletivas mais elevadas só têm uma existência, isto é, só
o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam atos’ – que têm
por objetivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória
das identidades – tanto a dos outros como a sua.”310
Em 1972, a abordagem sobre a necessidade de a mulher trabalhar fora de casa já
era diferente: mais direta e objetiva, indicativa de uma mudança de postura das
mulheres, que agora, pareciam querer trabalhar, vencendo as próprias dificuldades. A
estas mulheres Carmen da Silva incentiva, ajudando a pensar em “Como encontrar um
309 SILVA, Carmen. Nós e a luta das mulheres. SP, Claudia, mai1972. p.124
310 CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 1988. p. 18.
182
trabalho”. Segunda articulista, as donas de casa são as mais resistentes à idéia de
exercer atividade fora de casa:
“As mais recalcitrantes, aqui como em todos os lados, costumam ser as donas de
casa e mães de família de classe média, sem atividades extradomésticas, na faixa
de idade que vai dos trinta e tantos aos quarenta e vários. E é compreensível que
assim seja. No ramerrão da existência, suas faculdades de embotam, faltalhes
energia, a flexibilidade de adaptação a situações novas, a decisão rápida e
objetiva das pessoas tarimbadas na ação.”311
A estas leitoras, a articulista auxilia a descobrirem suas aptidões, estimulandoas
se desenvolverem e obter remuneração através delas. Adverteas ainda, a darem a justa
importância à atividade extradoméstica, sem a idealizam em demasia subestimando ou
superestimando suas próprias capacidades:
“Cansada da estreiteza de seus horizontes, da monotonia de suas tarefas, da falta
de objetivos vitais e,talvez, da tibieza das relações matrimonias, a dona de casa às
vezes encara o trabalho com ilusões desmedidas, supondoo uma panacéia para
todos os seus males: graças a ele, será importante, admirada, sua vaidade obterá
as maiores gratificações. Independente de suas habilitações reais – que são o que
vai pesar na balança , ela se imagina em cargos interessantes e relevantes. (...)
As coisas não são bem assim: vamos desidealizálas e colocar os pés na terra.
Certamente ela não vai conseguir um trabalho superior a suas capacidades,
avaliadas por outrem de modo muito realista. O mais provável é que ela venha a
ser uma rodinha na engrenagem – e não a manivela que move todo o mecanismo.
Como todos nós, aliás. (...)
311 SILVA, Carmen. Como encontrar um trabalho. SP, Claudia, ago1972. p.63.
183
Igualmente convém não exagerar as repercussões do trabalho da mulher sobre
sua vida familiar. Uma família normal se alegrará de seus eventuais sucessos e
conquistas.”312
A bandeira de luta de Carmen da Silva, a emancipação feminina, tinha como
objetivo tirálas da opressão imposta pela “mística feminina” alçandolhe da “condição
feminina” à “condição humana”, guardando assim, laços de identificação com o
pensamento de Hannah Arendt. A “vida plena” de Carmen da Silva corresponde a ‘vita
activa’ de Arendt:
“Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas
fundamentais: labor, trabalho, ação. Tratase de atividades fundamentais porque
a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a
vida foi dada ao homem na Terra.
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,
(...) A condição humana do labor é a própria vida.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência
humana,existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da
espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. (...) A condição
humana do trabalho é a mundanidade.
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre homens sem mediação das
coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de
homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos
da condição humana têm a ver com a política; mas esta pluralidade é
especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas conditio
per quam – de toda a vida política.”313
312 SILVA, Carmen. Como encontrar um trabalho. SP, Claudia, ago1972. p.65.
313 HELLER, Agnes. A Condição humana. Rio de Janeiro: Forenseuniversitária, 1983.p.15.
184
Assim, através do feminismo como movimento político, Carmen da Silva
expunha junto aos seus leitores sua convicção de o privado é político, pois acreditava
que o exercício pleno da cidadania não poderia manter rígidos os limites de atuação
dentro das esferas pública e privada. O trabalho extradoméstico, como caminho para
uma vida pela e ativa, tornaria as mulheres, não apenas mais participativas, mas
também menos egoístas:
“A mulher que trabalha está mais apta a compreender os seus filhos e não lhes
exigir mais do que seria lícito: ela também passou vários meses adiando o repouso
e as distrações favoritas. Mas a esposa e mãe sem profissão, que fica em casa a
aguardar o regresso de seus queridos – o marco mais importante de seus dias –
tende a tornarse um tanto absorvente e egoísta durante as férias: acha que a
disponibilidade do marido e dos filhos tem de ser em beneficio dela. Ao mesmo
tempo, precisamente por ter feito da espera cotidiana a sua razão de ser, sente
certa inquietação e desconforto ao têlos em casa todo o tempo: sua existência
saiu dos eixos. A verdade é que quem não assume também o seu fardo de formiga,
não ganha o direito de cantar como cigarra.” 314
Em seu livro de memórias, escrito um ano antes de sua morte, em 1985, aos 65
anos, Carmen da Silva apresenta os princípios que nortearam sua vida e trabalho, a
partir do título da publicação: Histórias Híbridas de uma senhora de respeito:
“ ‘Histórias’ porque recuso o anglicismo ‘estórias’, com sua intenção marota de
traçar uma linha divisória entre o pessoal e o coletivo, desvinculando os sucessos
individuais do curso da História. A grafia agái enfatiza minha convicção de que o
privado é político. Híbridas porque misturam experiências minhas e alheias,
314 SILVA, Carmen. Você tem certeza que vai divertirse nestas férias? SP, Claudia, jan1967. p.139.
185
narração e reflexão, memórias e mexericos. E senhoraderespeito, apesar de
lamentáveis conotações que lembram damas rezadeiras e marchadeiras, porque
não encontrei nos dicionários qualquer outro rótulo mais ou menos honroso que
me fosse aplicável: mulher, na minha faixa de idade, ou é respeitável ou não
existe, existamos, pois. Com todo o respeito.”315
Se, de um lado, Carmen da Silva lamentava a atuação das “damas rezadeiras e
marchaderias”, em referência às entidades femininas que, em 1964, organizaram
marchas em diversas cidades do país em defesa da “família cristã” contra o comunismo,
patrocinadas pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Socais (IPES) e Instituto Brasileiro de
Ação Democrática); de outro, David Nasser, um importante portavoz do projeto
desenvolvido por estes institutos para desestabilização do governo do presidente João
Goulart, as mulheres que foram às ruas em marcha contra o comunismo. Neste artigo,
no qual referese às mineiras, revela uma representação tradicional das mulheres,
esposas e mães, que só saem às ruas em circunstâncias excepcionais e em defesa de
interesses que não seriam propriamente os seus:
“Revoltada com a passividade com que se admitia a instalação, em Belo
Horizonte, de um congresso comunista, onde tchecos, romenos, russos, chineses,
cubanos e outros povos escravos vinham discutir os planos para a escravização do
Brasil – a mulher mineira saiu à rua. (...) Em poucas cidades brasileiras é tão
profundo o sentimento religioso da população. Os comunistas riam disso. Pois
riam mal. (...) Estes dias de civismo, que vivemos em Belo Horizonte, devemolos
exclusivamente à mulher mineira. Foram elas a vanguarda da reação
democrática. A ação que tiveram não foi só nas ruas. Acenderam a lareira.(...)
As panelas ficaram no fogo. As mamadeiras aquecendo:
315 SILVA, Carmen. Histórias Híbridas de uma senhora de respeito. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 7. grifo original.
186
Marido, dê essa mamadeira à criança, enquanto vou lá fora resolver um trem.
Mas o homem seguia a mulher e a criança ficava sem mamar. A dona de casa
virou em Minas, nesse dia histórico, soldado sem farda. Um espetáculo de
comover”316.
Se, portanto, em sua luta, Carmen da Silva apontava no sentido da politização do
privado, David Nasser, por seu turno, usava o exercício do jornalismo em benefício
pessoal, através da prática do “tráfico de influência” que construiu a partir das suas
relações com o poder instituído. Em sentido inverso ao de Carmen da Silva, portanto,
praticava a privatização do público. No seu último período em O Cruzeiro, entre 1970 e
1973, quando o regime militar, em seu terceiro ciclo, sob o governo do general Emílio
Garrastazu Médici, há sete anos no poder, vivia de um lado o “milagre econômico” e,
de outro, o período mais duro da repressão à oposição, David Nasser parecia mais à
vontade junto aos dirigentes políticos. Apesar do festejado desenvolvimento, contudo, a
“revolução” ainda não tinha chegado ao homem:
“O discurso do Presidente Médici – e a inflexível constância com que bate nessa
tecla – é franco, leal e positivo. A Revolução ainda não chegou ao Homem. Está a
caminho, bases econômicas são preparadas, a química do professor Delfim deve
estar sendo manipulada no seu laboratório de bruxarias (...) há uma distância que
a Revolução, numa critica honesta, pode afirmar que ainda não encurtou: a
quilometragem das classes. (...)
Esboçase a mudança, toma corpo, em cada medida voltada para a terra, em cada
programa social, seja no plano de expansão da entrega da gleba aos que nunca a
tiveram, seja na extensão do homem do campo da Previdência Social, seja no
plano de habitação popular – e é evidente que e a revolução social se espraia
horizontalmente e desce verticalmente, buscando lá longe e bem no fundo a
extirpação da miséria.”317
316 NASSER, David. A Mulher mineira, RJ, O Cruzeiro, 22fev1964, p.7.
317 NASSER, David. A revolução do homem. RJ, O Cruzeiro, 19jan1972, p.22.
187
Defende então, para “encurtar a distância entre as classes” e “extirpar a miséria”
uma reforma agrária que afaste os pequenos agricultores dos grandes centros:
“Este Zé Cavalcanti, o presidente do Incra, pode errar. Aqui tem acertado. Porque
sabe que não é dando terra cansada, ocupada, plantada, pertinho da cidade, aos
que precisam de um chão para plantar, que se faz reforma agrária, mas fixandoos
nas terras mesmo distantes, mas ubérrimas, lhes dando, além da gleba, os
instrumentos de trabalho, para o pontapé inicial. É longe, mas é terra para
macho, como os primeiros bandeirantes”318.
Enquanto isso, O Cruzeiro publicava matérias sobre David Nasser e suas
atividades extrajornalísticas de fazendeiro, produtor de bois e café. O tom das
reportagens enaltece o empreendedor:
“David Nasser recebeu há 20 anos uma incumbência de Chateaubriand: ‘ Retrate
o milagre do Novo Paraná’. E o Velho Capitão acrescentou: ‘ Pobreza lá é
inépcia’.
Estamos nos primeiros anos da década de 50. Um repórter malajambrado desce
de um avião comercial em Londrina para uma história que ficará em sua vida. O
que ele não sabia, o jornalista, é que o destino estava lá, naquela encruzilhada. O
tecoteco que o levaria ao ponto mais distante do Norte do Paraná iria
transformar o viajeiro, que só se preocupava com histórias, num abridor de
fazendas e até um fundador de cidades.(...) Ontem, autografava livros. Hoje,
autografa bois”319.
318 NASSER, David. Terra é pra macho. RJ, O Cruzeiro, 8set1971, p.20.
319 NASSER, David. David Nasser volta ao Paraná. RJ, O Cruzeiro, 9jun1971, p.58.
188
Outra reportagem recorda a aquisição da Fazenda Bela Vista, no interior de São
Paulo, em 1961:
“A Bela Vista era coberta de cafezais plantados e tratados por escravos. Apenas
uma fazendafantasma, quando o jornalista a comprou há 10 anos. Hoje é
fazendamodelo de S. Paulo (a uma hora de Campinas).
Hoje, quem chega à Bela Vista, (...) poderia contar mil vacas que saíram do
caminhão ou do botijão. Os cinco touros puros de origem não levam boa vida.
Uma milhão e meio de litros anualmente vão para o outrora pequeno laticínio de
Poços. Quatro mil sacas de café seguem para Santos, via Pinhal. A quieta Pinhal é
uma cidade quase universitária. São João da Boa Vista aumenta suas faculdades.
A melhor gente de mundo vive ali. O melhor café do mundo sai dali. E agora,
quando aquele maluco que comprou o esqueleto da Boa Vista passa, a gente de
uma e de outra cidade, desde os Florence até os Osório, atravessa a rua,
atravessa a rua para abraçálo, sente, sabe que é um dos seus, porque tem cheiro
de terra nas mãos e bosta de curral nas botas”320.
Como fazendeiro e produtor de café, David Nasser enfrentava, como outros
agricultores, a ameaça da ferrugem, um fungo capaz, segundo o jornalista, de atacar a
lavoura cafeeira de forma mais devastadora do que as geadas. Para combater este mal,
dirigese ao presidente Médici, “na simplicidade de homem rural”:
320 NASSER, David. Aqui dormiu um bandeirante. RJ, O Cruzeiro, 30jun1971, p.56.
189
“Repito que as peculiaridades de nossos cafezais, altos e sem espaço, dificultam a
imunização duvidosa e cara. Entregase a um produtor confiscado a tarefa de
custear a pulverização, dada a impossibilidade do Governo fiscalizar os 500
milhões de cafeeiros. Mutilado, às voltas com a cultura de baixa rentabilidade, o
cafeicultor trocará fatalmente o café pelo boi – e, quando entra o boi, o homem
sai”321.
Pede, a intervenção em causa própria, alegando interesse nacional na questão:
“‘Vai ver o David está falando em causa própria’, dirá algum político ao mais
graduado servidor desta Nação que é Vossa Excelência. De fato, Presidente, tenho
cem mil pés. Se a ferrugem bater lá (e está por perto), boto o trator no cafezal e
planto tranqüilidade, isto é, planto capim e pronto. Se todo mundo fizer o mesmo,
ferrugem acabam, mas o café também, acaba o confisco, acaba o IBC – e teremos
de importar robusta da África ou beber chá ou mate. A ferrugem não ameaça o
cafeicultor, porque este plantará outra coisa ou criará vacas ou engordará bois
que só exigem sal, capim e vento. A ferrugem ameaça o Brasil – que não tem outro
produto para substituir o café. A ferrugem é pior que mil geadas para a economia
nacional. Só uma guerra, um comando único ou, na linguagem da moda, a
conscientização do problema em sua horrenda importância – para deter seus
passos. Porque a ferrugem é o câncer do café e – tal qual o câncer – espera o
milagre de uma revolução.”322
Além da ferrugem, o jornalista também solicita mudanças na política cambial
adotada pelo governo, através de seu ministro da Fazenda Delfim Netto, outro fator que
considera ainda mais prejudicial aos seus negócios:
321 NASSER, David. Ferrugem, confisco total. RJ, O Cruzeiro, 3nov1971, p.21.
322 NASSER, David. Ferrugem, confisco total. RJ, O Cruzeiro, 3nov1971, p.20.
190
“O horizonte é cruel. Um rei está deposto, o café. Para salvar seu domínio – o
velho bom senso do professor Delfim Netto deve buscar a solução cambial, sem
esperar que os químicos descubram o fungicida que há mais de um século
procuram e a genética revele as espécies resistentes à ferrugem, o câncer do café,
tudo isso a longo prazo. Basta seguir o conselho de alguém que sabe do problema
tão bem quanto ele, catedrático, eventualmente ministro: liberte os plantadores de
café da escravidão do confisco cambial, dandolhes condições iguais à de outros
produtos de exportação, sem (...) apropriação indébita, pela força”323.
No mesmo artigo, alegando que no mercado internacional consumidor de café o
Brasil ocupa lugar de “mero fornecedor residual”, afirma o jornalista e cafeicultor,
sobre a necessidade conscientizar o grande público sobre a questão:
“continuo a divergir fundamentalmente do tratamento discriminatório que se dá
há longo tempo ao principal formador de divisas, que é o café, e da apatia
nacional da própria classe ante a catástrofe que a ferrugem não faz mais do que
antecipar, pois o confisco [‘manipulação cambial’] de há muito a determina.
Para a maioria daqueles que lêem uma revista de assuntos leves, o café é matéria
pesada, não creio que haja outra forma de levar a consciência exata do problema
ao grande público senão a de entremear a sua grave aridez com as matérias
suaves, neste relaxamento de nervos semanal.”324
Aqui se vê com clareza o David Nasser de que falou Luiz Maklouf Carvalho:
323 NASSER, David. Exrei café. RJ, O Cruzeiro, 17nov1971, p.20.
324 idem, ibidem.
191
“A democracia que o Nasser defende é a democracia que não o atrapalhe
individualmente. Eu entendo ele como uma pessoa que nasceu, se criou e
trabalhou a vida inteira em prol do seu interesse. Ele queria crescer na vida,
queria ter recursos, queria ganhar dinheiro. Viu cedo que o jornalismo era uma
arma para isso e não teve mais nenhum escrúpulo em relação a isso. Nem aquele
escrúpulo de disfarçar isso melhor, ele teve.”325
A estratégia adotada por David Nasser, portanto, é a de empregar um discurso
no qual defende o bem da nação quando, na verdade, simplesmente está a proteger seus
próprios interesses particulares. Sendo ao termo “estratégia” atribuído o mesmo
significado a ele dado por Michel De Certeau:
“Chamo de ‘estratégia’ o cálculo das relações de forças que torna possível a
partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um
‘ambiente’. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e
portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma
exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou científica foi
construída segundo esse modelo estratégico.”326
Apesar do apoio ao golpe de Estado, Nasser já fazia críticas à política econômica
adotada pelo regime militar, desde o primeiro governo, do marechal Castelo Branco. Já
se preocupava com o mercado exportador de café desde 1964, quando se dirigia ao
presidente nos seguintes termos:
“Uma revolução, Senhor Presidente Castello Branco, se frustra para o povo na
medida em que fracassa economicamente. Na proporção em que a vida sobe, a
325 Luiz Maklouf Carvalho, entrevista à autora, em 29jan2007.
326 CERTEAU, Michel De, A Invenção do Cotidiano, Petrópolis, Vozes, 1999, p. 46.
192
Revolução se esvazia. (...) Pertenço àqueles que vêem na atitude firme dos
militares, que planejaram e executaram esse movimento, com a ajuda de
governadores e parlamentares democráticos, um propósito nobre: o de salvar o
Brasil da ameaça comunista e da hemorragia inflacionária. As medidas agora
materializadas pelos sábios conselheiros dos Ministros Roberto Campos e Otávio
Bulhões, entretanto não irão combater a inflação e irão positivamente favorecer o
comunismo, através da maior miséria. (...) Sua Excelência: proceda como um
magistrado. Corte todas as vantagens, suprima todos os privilégios de jornalistas,
professores, militares, civis. Mas não permita que a Revolução seja esvaziada com
essas medidas que nenhum resultado positivo trazem em seu bojo, a não ser para
os especuladores que já estão comprando café.”327
Se, contudo, neste artigo desponta seu interesse em relação ao mercado de café,
na semana anterior já publicara artigo em que revelava seu desagrado com a política
econômica traçada pelos ministros Roberto Campos, da Fazenda, e Otavio Bulhões,
Planejamento, aos quais se dirigia, parecendo levar em consideração os interesses do
“povo”:
“Esta revolução salvadora que ajudamos a deflagrar e que mal começou – será
medida pelo povo bom e ordeiro deste País através do custo de vida. (...) Do ato
que acabaram de lavrar talvez surja o destino da própria revolução. Talvez seja o
começo do fim. (...) Para combater a inflação que devora a economia do povo,
inverteram os termos da equação – e passaram a devorar a economia do povo
para combater a inflação. (...) Para o povo, que irá pagar tudo pelo preço
dobrado, o eufemismo criado pelas assessorias técnicas, para explicar o inevitável
aumento de preços resultante das medidas adotadas em tão má hora, soará como
‘slogans’ mistificadores, iguais ou piores que os da reforma de base indefinida.”328
327 NASSER, David. Os coveiros da revolução. RJ, O Cruzeiro, 6jun1964 p.4.
328 NASSER, David. A revolução antropófaga. RJ, O Cruzeiro, 30mai1964, p. 6.
193
O “povo bom e ordeiro deste País”, contudo, de uma hora para outra, é
desqualificado em sua capacidade e inteligência, quando se tornam eleitores “de má
qualidade”:
“O povo acredita ou não acredita, mas age não em função do juízo que faz. O mal
não tem sido a má qualidade dos eleitos, mas a dos eleitores. Uma República
semianalfabetizada não se convence pelos argumentos de ordem moral. O que se
deve fazer – a curto prazo – é o que está fazendo este Governo. Através do
processo político, pela via da uma legislação eleitoral, anular os maus resultados
das eleições em que o eleitorado vota mal.”329
Em 1954 David Nasser passou a compor o expediente da revista O Cruzeiro
como redator principal. Em 1959, tornouse um dos diretores da revista ao lado de João
Calmon e Edmundo Monteiro. O novo título o torna destinatário de vasta
correspondência, à qual o jornalista demonstra desprezo, reafirmando sempre sua
independência em relação à revista:
“Hoje, um cargo e um título fazem comigo o que o Velho não fazia: aprisionam
me. Essa história de ser diretor e redator principal não traz vantagem alguma.
Parece mesmo uma condecoração. Muita gente pensa que sou mesmo diretor para
valer e chovem sobre minha mesa pedidos de emprego, protestos, queixas,
reclamações e eu não tenho nada com isso. Essa faixa de diretor dáme a
impressão de um Ministro sem Pasta. E, quando, num redator, se reconhece
irremediavelmente a ausência total das qualidades especificas de chefia, tornase
um pobre em redatorchefe. Entendase, assim, que a orientação geral e política
da Revista não é Deus me livre! traçada por mim. A única coisa que sou,
329 NASSER, David. O segundo cadáver. RJ, O Cruzeiro, 8jan1966. p.4
194
graças a Deus, é chefe de mim mesmo. Destas duas páginas. Desta coluna
independente. (...) Não podia ser doutra forma, havendo cento e tantas páginas
para brincarem, opinarem, guerrearem , trucidarem, fazerem as pazes, deixando
me em paz em meu diálogo com o público. O meu DIP330 sou eu mesmo”331.
Seu pretenso “diálogo” com o público, entretanto, nunca passou de mera
retórica, “força de expressão”. Pois muitas vezes tratou seus leitores como um
verdadeiro criador de gado, como na precisa observação de Michel De Certeau:
“Em lugar de um nomadismo terseia então uma ‘redução’ e um estacionamento:
o consumo, organizado por esse mapeamento expansionista, assumiria a figura de
uma atividade de arrebanhamento, progressivamente imobilizada e ‘tratada’
graças à crescente mobilidade dos conquistadores do espaço que são os meios de
massa. Fixação dos consumidores e circulação dos meios. Às massas só restaria a
liberdade de pastar a ração de simulacros que o sistema distribui a cada um/a”332.
À atividade jornalística praticada de forma verdadeiramente independente
poderia ser atribuído o papel de um Quarto Poder, na medida em que:
“Os meios de informação desempenham uma função determinante para a
politização da opinião pública e, nas democracias constitucionais, têm capacidade
de exercer o controle crítico sobre os órgãos dos três poderes, legislativo,
executivo e judiciário. A imprensa independente, portanto, enquanto se posiciona
330 Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão de controle da imprensa para censura e propaganda do governo de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (19371945).
331 NASSER, David. Jânio a face cruel. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1966, p. 913
332 DE CERTEAU, Michel. Op. Cit., p. 260.
195
em competição cooperativa com os órgãos do poder público, foi definida como o
Quarto poder.”333
Todavia, ao considerar o jornalismo tal como exercido por David Nasser, ou
seja, fundamentado não no controle crítico sobre os três poderes, mas baseado no tráfico
de influência com vistas à defesa de interesses pessoais. E, mais ainda, considerando o
contexto em que se fez tal jornalismo, ou seja, sob um Estado Autoritário que impôs
grave censura aos meios de comunicação reduzindo ao mínimo o pluralismo e o
confronte de opiniões, há que questionar o papel de uma imprensa que se autoproclama
“formadora de opiniões”, e mesmo a possibilidade de existência de uma “opinião
pública”. O filósofo alemão Jürgen Habermas afirma que a “opinião pública” assume
funções distintas, de acordo com a publicidade da qual é destinatária. Diz o autor:
“A ‘opinião pública’ assume um significado diferente conforme reivindique para
si a condição de uma instância crítica em relação à publicidade normativa
imposta da execução do poder político e social, ou sirva como instância receptiva
em relação à publicidade manipulativamente difundida de pessoas e instituições,
bens de consumo ou programas. Na esfera pública ambos os tipos de publicidade
estão presentes, mas ‘a’ opinião pública é sua destinatária comum.”334
Para entender o papel da chamada “opinião pública”, sobretudo no que se
relaciona com a publicidade do poder político, para a qual é considerada “inata, visto
333 ZANONE, Valério. “Quarto poder”. In: BOBBIO, Norberto at alii. Dicionário de Política. São Paulo/Brasília: Imprensa Oficial/Editora UnB, 2000, p. 1040 (vol.2).
334 HABERMAS, Jürgen. “Comunicação, opinião pública e poder”. in: COHN, Gabriel (org.). Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo, Editora Nacional, 1971. p. 187.
196
que ainda é a única base aceita para legitimar a dominação política”335, o autor
apresenta dois caminhos para a definição de um conceito:
“O primeiro conduz de volta a posições do liberalismo, que pretendia salvar,
em meio a uma esfera pública em desintegração, a comunicação entre um círculo
interno de representantes publicamente capacitados e formadores de opinião, que
constituiria um público raciocinador em meio àquele apenas aclamador. (...)
O outro caminho conduz a uma concepção da opinião pública que não dá
qualquer atenção a critérios materiais como a racionalidade e a
representatividade, e se limita a critérios institucionais. (...)
Ambas essas versões dão conta do fato de que, no processo da formação da
vontade e opinião no contexto da democracia de massa, a opinião popular mal
mantém uma função política relevante se tomada independentemente das
organizações, pelas quais é mobilizada e integrada. Ao mesmo tempo, é nesse
ponto que se revela a debilidade dessa teoria: na medida em que ela substitui o
público, enquanto sujeito da opinião pública, pelas instâncias indispensáveis à sua
capacidade de atuação política, esse conceito de opinião pública tornase vazio de
características.”336
Apesar de caminhar com indisfarçável despudor no sentido da privatização do
público, por vezes, David Nasser mostrou alguma preocupação, ainda que meramente
retórica, em separar vida pessoal e atuação política dos personagens de seus textos.
Sobre o amigo e expresidente Juscelino Kubitschek tal inquietação foi particularmente
recorrente:
“De minha parte, sempre fui um péssimo juiz de amigos. E entre eles incluo o
Senhor Juscelino Kubitschek de Oliveira. Combatio impiedosamente em todo o
335 Idem, p. 188.
336 Idem, p. 188190.
197
seu governo, sem atravessar a linha que distingue o administrador público do
amigo pessoal. Por um defeito, talvez, que marcou toda a minha vida profissional,
nunca fui nesse sentido um homem isento. Peço perdão.”337
337 NASSER, David. O segundo cadáver. RJ, O Cruzeiro, 8jan1966. p.4
198
Considerações Finais
Partindo da noção segundo a qual “é mais fácil derrubar um ditador do que
mudar a cabeça das pessoas” e tomando como material de análise os artigos publicados
por Carmen da Silva na revista Claudia e por David Nasser em O Cruzeiro entre 1963 e
1973 procurei mostrar que, neste período, no Brasil, aconteceu o contrário. Ou seja,
algo começou a mudar na cabeça e no comportamento das pessoas ao mesmo tempo em
que se estruturava um Estado Autoritário após um golpe civilmilitar que derrubou o
presidente democraticamente eleito, João Goulart, em 31 de março de 1964.
David Nasser participou ativamente da conspiração para a desestabilização do
presidente Goulart que contou também o apoio de diversos setores da sociedade civil e
fora engendrada por órgãos como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), o
Instituto de Pesquisa e Estudos Socais (IPES) e a Escola Superior de Guerra (ESG), as
quais camuflavam suas intenções golpistas apresentandose como espaços de estudos e
debates sobre a sociedade. A intervenção militar em 1964 duraria, desta vez, 21 anos.
Apenas em 1985 o país voltaria a ser governado por um presidente civil.
Durante este período, a democracia só existiu nos discursos dos presidentes
militares e daqueles que sempre o apoiaram como David Nasser. A sociedade brasileira
inaugurava, assim, um momento de intensas transformações. O Estado Autoritário
vigente no Brasil pós1964 é o resultado de um endurecimento político baseado num
aparato repressivo cuidadosamente construído, com o objetivo de cercear e punir idéias
políticas diferentes daquelas em que se fundamentou o regime militar caracterizadas por
um anticomunismo ferrenho.
Na contramão destas transformações, observouse, paralelamente, no campo
social/cultural, ainda que em ritmo mais lento, a abertura dos costumes e dos
comportamentos. A explosão do movimento estudantil na França, em 1968, e a
199
repercussão que teve internacionalmente, revelam uma dimensão, de certo modo
universal, de um sentimento de recusa a determinada forma de existência social mais do
que impossibilidade de subsistir nesta sociedade.
Neste contexto, no Brasil, Carmen da Silva inicia seu trabalho na revista
Claudia, no qual, dirigindose principalmente às mulheres de classe média,
tradicionalmente educadas para serem apenas esposas e mães, procura incentiválas a
alcançarem uma nova forma de existência social ampliando sua participação na
sociedade. Precisamente num momento em que a participação política de todos os
cidadãos está sendo severamente tolhida.
Os artigos assinados por David Nasser, em O Cruzeiro, e por Carmen da Silva,
na revista Claudia, guardam, portanto, algumas das sementes destas transformações em
mão dupla. O recorte cronológico, de 1963 a 1973, representa o período em que ambos
estiverem trabalhando concomitantemente. Ela inaugura seção “A Arte de ser mulher”
em setembro de 1963 e nela só pára de escrever em 1985, ano de sua morte. Ele,
começa a escrever crônicas políticas em O Cruzeiro, em 1959. Em abril de 1973 publica
seu último artigo na revista. Quando morreu, em 1980, escrevia para a concorrente
Manchete desde 1976, para onde levou as mágoas, as lembranças e a saudade da revista
para a qual escrevera por três décadas: de 1943 a 1973.
Filho de imigrantes libaneses, David Nasser nasceu no interior de São Paulo. Foi
um dos grandes nomes da história da imprensa brasileira. Brilhante escritor e poeta, sua
trajetória se confunde em alguns momentos com a da revista O Cruzeiro, onde alcançou
fama e notoriedade por sua atuação como repórter, ao lado do fotógrafo francês Jean
Manzon, ainda na década de 40. Juntos, eles foram pioneiros de grandes reportagens no
país. Em 1959, David Nasser tornouse, além de principal redator, um dos diretores da
revista e passou a assinar o primeiro artigo do semanário, em página dupla, em geral,
sobre um tema político. É sobre esta sua faceta de cronista político a que nos referimos
neste trabalho.
200
Gaúcha, Carmen da Silva iniciou sua carreira de jornalista e escritora no
Uruguai e Argentina, onde viveu durante toda a sua juventude. A participação em
Claudia, a partir de 1963, marca também o seu retorno ao Brasil, sua terra natal.
Através de sua coluna transformou o tradicional modelo de consultório sentimental de
revistas femininas introduzindo a psicanálise no diálogo com as leitoras. Carmen da
Silva possui formação psicanalítica, mais uma experiência adquirida no exterior. Na
revista mensalmente escrevia artigos que versavam sobre um único tema definido a
partir da leitura das cartas que as leitoras lhe enviavam. Esta foi a forma encontrada
para conscientizar seus leitores sobre o lugar de cada um no mundo.
Ele, David Nasser, com sua personalidade autoritária, conspirou contra um
governo democrático, apoiou a formação de um Estado Autoritário e do aparelho
repressivo por ele construído. Orgulhosamente, responsabilizouse pelo assassinato
político de homens como, por exemplo, o expresidente Juscelino Kubitschek, a quem
tinha como amigo. O jornalismo lhe proporcionou fama e fortuna, através do tráfico de
influência junto aos dirigentes políticos, dos quais mantevese sempre próximo. Fora da
imprensa, foi compositor da Música Popular Brasileira, fazendeiro e presidente de
honra da Scuderie Le Cocq, o abominável esquadrão da morte.
Ela, Carmen da Silva, com seu espírito libertário, empunhou corajosamente sua
bandeira de luta, qual seja: a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, em
que homens e mulheres, em equivalência de direitos e obrigações, tivessem garantidos –
como direitos naturais – sua liberdade e independência, sem os quais não seriam
possível alcançar a “vida plena”. Tais objetivos exigiriam então a transformação da
sociedade, que ainda impunha, particularmente às mulheres, restrições a uma
participação social e política efetiva. A jornalista e psicóloga fez de sua seção na revista
Claudia uma tribuna, através da qual, empregando muitas vezes uma linguagem
psicanalítica, estabeleceu um diálogo com os leitores, tentando conscientizálos sobre a
importância de a mulher, historicamente oprimida, exercer de forma ampla sua
201
cidadania. O primeiro passo seria então a conquista de um espaço, além do âmbito
privado, através do qual passasse a integrar a população economicamente ativa da
sociedade através do exercício de uma atividade extralar.
Assim, portanto, se ele, David Nasser, apoiou o regime militar; ela, Carmen da
Silva, repudiava qualquer forma de autoritarismo que tolhesse a liberdade do indivíduo.
Se ele usou o jornalismo para se aproximar dos dirigentes políticos e usar o poder
público em benefício pessoal; ela fez da imprensa um instrumento de diálogo com os
leitores, oferecendolhes sua recompensadora experiência pessoal, na qual conquistara
lenta e arduamente sua liberdade e independência, como exemplo a ser seguido. Se há
nisso algo de ambicioso e pretensioso, há também algo de generoso, na medida em que
ambiciona o bem estar de outrem.
Se ele, que gostava de se autodenominar um “historiador do cotidiano”,
preservada uma noção de história, na qual predominava a política, ou seja, uma história
“de cima para baixo”, escrita por gente, como ele, ligada ao poder político; ela, por sua
vez, acreditava numa história escrita por todos os cidadãos, os quais considerava
sujeitos da história, e não meros espectadores. A “sua” história seria então tecida “de
baixo para cima”, no cotidiano, na vida diária.
Assim, portanto, se não foi possível à oposição tirar os militares do poder, pois
eles mesmos saíram de cena, de forma “lenta, gradual e segura”, após 21 anos de
autoritarismo; a sociedade, violentamente agredida durante esse período, ingressou
fortalecida e amadurecida numa outra etapa da história brasileira, na qual democracia e
liberdade têm sido mais prestigiadas e bem cuidadas por todos. Por isso, apesar de
terem dizimado toda a oposição, os militares deixaram o governo, vencidos. A cultura
de uma sociedade é seu maior bem, é a sua força, e pode ser mais forte do que as
ditaduras.
202
Fontes Utilizadas
1. Claudia
SILVA, Carmen da. A protagonista. SP, Claudia, set1963. (p.108)
SILVA, Carmen da. Pura magia, quase milagre. SP, Claudia, out1963. (p.110)
SILVA, Carmen da. Uma pequena rainha triste. SP, Claudia, nov1963. (p.124)
SILVA, Carmen da. A chamada idade difícil. SP, Claudia, dez1963. (p.72)
SILVA, Carmen da. Amor: morte e ressurreição. SP, Claudia, jan1964. (p.60)
SILVA, Carmen da. Você vive no tempo presente? SP, Claudia, fev1964. (p.28)
SILVA, Carmen da. A favor... Não contra os homens! SP, Claudia, mar1964. (p.104)
SILVA, Carmen da. A arte de não ser bela. SP, Claudia, abr1964. (p.80)
SILVA, Carmen da. A arte de ser jovem e de compreender os jovens. SP, Claudia,
mai1964. (p.72)
SILVA, Carmen da. Infidelidade. SP, Claudia, jun1964. (p.104)
SILVA, Carmen da. Um muro é um muro. SP, Claudia, jul1964. (p.106)
SILVA, Carmen da. Trabalhar para não ser bibelô. SP, Claudia, ago1964. (p.66)
SILVA, Carmen da. Ciúme, por quê? SP, Claudia, set1964. (p.108)
SILVA, Carmen da. Você vive ou vegeta? SP, Claudia, out1964. (p.78)
SILVA, Carmen da. O complexo da idade. SP, Claudia, nov1964. (p.74)
SILVA, Carmen da. As razões da independência. SP, Claudia, dez1964. (p.128)
SILVA, Carmen da. Solidão, tristeza que tem fim. SP, Claudia, jan1965. (p.102)
SILVA, Carmen da. A escolha infeliz. SP, Claudia, fev1965. (p.56)
SILVA, Carmen da. O eterno triângulo. SP, Claudia, mar1965. (p.43)
SILVA, Carmen da. A geração inquieta. SP, Claudia, abr1965. (p.80)
SILVA, Carmen da. Quando a abnegação é uma prisão. SP, Claudia, mai1965. (p.86)
SILVA, Carmen da. Que idade tem sua alma? SP, Claudia, jun1965. (p.112)
203
SILVA, Carmen da. A palavra é de ouro. SP, Claudia, ago1965. (p.44)
SILVA, Carmen da. Resposta a um mito. SP, Claudia, set1965. (p.140)
SILVA, Carmen da. O outro lado do triângulo. SP, Claudia, out1965. (p.68)
SILVA, Carmen da. Otimismo para viver. SP, Claudia, nov1965. (p.37)
SILVA, Carmen da. Questão de simpatia. SP, Claudia, jan1966. (p.36)
SILVA, Carmen da. Carnaval, tal e qual. SP, Claudia, fev1966. (p.39)
SILVA, Carmen da. Mais trabalho e menos conversa. SP, Claudia, mar1966. (p.46)
SILVA, Carmen da. Carmen da Silva analisa Roberto Carlos.Um garoto feliz: só tem
uma palmada para recordar. SP, Claudia, mai1966. (p.30)
SILVA, Carmen da. Divórcio: antes da lei, a responsabilidade SP, Claudia, mai1966.
(p.60)
SILVA, Carmen da. Pra que rimar amor com dor? SP, Claudia, jun1966. (p.38)
SILVA, Carmen da. “Grande sonho” é grande fuga. SP, Claudia, jul1966. (p.70)
SILVA, Carmen da. Veja, ouça e fale. SP, Claudia, ago1966. (p.58)
SILVA, Carmen da. O Tédio. SP, Claudia, set1966. (p.36)
SILVA, Carmen da. De amor e de liberdade. SP, Claudia, nov1966. (p.40)
SILVA, Carmen da. Você acredita em Papai Noel? SP, Claudia, dez1966. (p.76)
SILVA, Carmen da. Você tem certeza que vai divertirse nestas férias? SP, Claudia,
jan1967. (p.30)
SILVA, Carmen da. Proibido proibir. SP, Claudia, fev1967. (p.30)
SILVA, Carmen da. Começa a grande aventura. SP, Claudia, mar1967. (p.60)
SILVA, Carmen da. Para tranqüilizar as noivas. SP, Claudia, mai1967. (p.30)
SILVA, Carmen da. O complexo de donadecasa. SP, Claudia, jun1967. (p.83)
SILVA, Carmen da. Aviso aos moços: não é o guardachuva que faz chover. SP,
Claudia, jul1967. (p.30)
SILVA, Carmen da. O divórcio e os filhos. SP, Claudia, ago1967. (p.37)
SILVA, Carmen da. Quando não houver mais dor. SP, Claudia, set1967. (p.70)
204
SILVA, Carmen da. Dona Rosa Bonita. SP, Claudia, set1967. (p.77)
SILVA, Carmen da. Mãe. SP, Claudia, nov1967. (p.37)
SILVA, Carmen da. Derrubem os ídolos. SP, Claudia, dez1967. (p.84)
SILVA, Carmen da. O Superego. SP, Claudia, jan1968. (p.17)
SILVA, Carmen da. Claustrofobia ao casamento. SP, Claudia, fev1968. (p.43)
SILVA, Carmen da. Por que as pessoas se casam. SP, Claudia, fev1968. (p.51)
SILVA, Carmen da. Sexo: uma lei para os filhos, outra para as filhas. SP, Claudia,
mar1968. (p.74)
SILVA, Carmen da. Só muda quem está viva. SP, Claudia, abr1968. (p.74)
SILVA, Carmen da. Como vai a mulher soviética. SP, Claudia, mai1968. (p.64)
SILVA, Carmen da. A contradição. SP, Claudia, jun1968. (p.39)
SILVA, Carmen da. A presença do outro. SP, Claudia, jul1968. (p.39)
SILVA, Carmen da. A primavera esta chegando. SP, Claudia, set1968. (p.41)
SILVA, Carmen da. Uma armadilha para a mãe moderna. SP, Claudia, nov1968. (p.39)
SILVA, Carmen da. Olhe, aqui, menina, em 69 vamos é viver. SP, Claudia, dez1968.
(p.135)
SILVA, Carmen da. No casamento o perigo se chama monotonia. SP, Claudia, jan1969.
(p.19)
SILVA, Carmen da. O cigarra não é lá um homem tão feliz assim. SP, Claudia,
fev1969. (p.17)
SILVA, Carmen da. Nós. SP, Claudia, mar1969. (p.32)
SILVA, Carmen da. A outra, outra vez. SP, Claudia, abr1969. (p.32)
SILVA, Carmen da. A imagem da mulher. SP, Claudia, mai1969. (p.166)
SILVA, Carmen da. Tenho 40 anos. SP, Claudia, jun1969. (p.32)
SILVA, Carmen da. Em tom de confissão. SP, Claudia, jul1969. (p.26)
SILVA, Carmen da. Mulheres vocês são gente, não anjo. SP, Claudia, ago1969. (p.50)
205
SILVA, Carmen da. Terrível: os jovens estão doentes precisam de nós. SP, Claudia,
set1969. (p.94)
SILVA, Carmen da. A grande amorosa não sabe amar. SP, Claudia, out1969. (p.110)
SILVA, Carmen da. Mulher de verdade não quer ser nem Barbarella, nem ingênua, nem
boneca. SP, Claudia, dez1969. (p.98)
SILVA, Carmen da. A cabeleira não faz o hippie. SP, Claudia, jan1970. (p.88)
SILVA, Carmen da. A crise no casamento. SP, Claudia, fev970. (p.102)
SILVA, Carmen da. Seus 40 valem 20. SP, Claudia, mar1970. (p.40)
SILVA, Carmen da. Carta ao homem brasileiro. SP, Claudia, abr1970. (p.70)
SILVA, Carmen da. Você acha que sabe o que quer? SP, Claudia, mai1970. (p.28)
SILVA, Carmen da. Não bote avental no seu marido. SP, Claudia, jun1970. (p.40)
SILVA, Carmen da. Qual sua posição dentro do casamento? SP, Claudia, jul1970.
(p.32)
SILVA, Carmen da. O preconceito ao amor. SP, Claudia, ago1970. (p.40)
SILVA, Carmen da. Revolução sexual. SP, Claudia, set1970. (p.44)
SILVA, Carmen da. Drogas, não! SP, Claudia, out1970. (p.48)
SILVA, Carmen da. A superioridade natural da mulher. SP, Claudia, nov1970. (p.26)
SILVA, Carmen da. Chegou a hora de agir. SP, Claudia, dez1970. (p.34)
SILVA, Carmen da. Aprenda a viver. SP, Claudia, fev1971. (p.104)
SILVA, Carmen da. Era uma vez uma tímida. SP, Claudia, abr1971. (p.26)
SILVA, Carmen da. O velho amor está no fim? SP, Claudia, mai1971. (p.38)
SILVA, Carmen da. Seja o que você é. SP, Claudia, jun1971. (p.146)
SILVA, Carmen da. O que é uma mulher livre? SP, Claudia, jul1971. (p.106)
SILVA, Carmen da. Por que é preciso ser livre? SP, Claudia, ago1971. (p.130)
SILVA, Carmen da. Parabéns a todas nós. SP, Claudia, set1971. (p.70)
SILVA, Carmen da. Vamos quebrar a velha imagem. SP, Claudia, out1971. (p.46)
SILVA, Carmen da. Como ser uma nova mulher? SP, Claudia, dez1971. (p.182)
206
SILVA, Carmen da. O namoro está em crise? SP, Claudia, jan1972. (p.122)
SILVA, Carmen da. O namoro e a intimidade. SP, Claudia, fev1972. (p.42)
SILVA, Carmen da. Você precisa de um confidente? SP, Claudia, mar1972. (p.56)
SILVA, Carmen da. Igualdade, justiça e participação. SP, Claudia, abr1972. (p.50)
SILVA, Carmen da. Nós e a luta das mulheres. SP, Claudia, mai1972. (p.120)
SILVA, Carmen da. Crise no casamento. SP, Claudia, jun1972. (p.182)
SILVA, Carmen da. Vivam com os pés na terra. SP, Claudia, jul1972. (p.52)
SILVA, Carmen da. Como encontrar um trabalho. SP, Claudia, ago1972. (p.62)
SILVA, Carmen da. Como você encara a mentira? SP, Claudia, set1972. (p.74)
SILVA, Carmen da. Bondade não é sacrifício. SP, Claudia, out1972. (p.30)
SILVA, Carmen da. Não fique remoendo a sua raiva. SP, Claudia, nov1972. (p.58)
SILVA, Carmen da. Com a palavra, nós, as mulheres. SP, Claudia, dez1972. (p.38)
SILVA, Carmen da. Neste desquite, a mulher entrou com o dinheiro. SP, Claudia,
jan1973. (p.46)
SILVA, Carmen da. O casamento já não é mais aquela festa. SP, Claudia, fev1973. (p.)
SILVA, Carmen da. A idade difícil do homem. SP, Claudia, mar1973. (p.)
SILVA, Carmen da. O papel da segunda mulher. SP, Claudia, abr1973. (p.50)
207
2. O Cruzeiro
NASSER, David. Pergunte ao João. RJ, O Cruzeiro, 7set1963. (p.4)
NASSER, David. A guerrinha do Ventura. RJ, O Cruzeiro, 14set1963. (p.6)
NASSER, David. A guerra dos vocábulos. RJ, O Cruzeiro, 21set1963. (p.4)
NASSER, David. O réu feliz. RJ, O Cruzeiro, 28set1963. (p.6)
NASSER, David. O Brasil de Jango. RJ, O Cruzeiro, 5out1963. (p.6)
NASSER, David. Últimos dias de Pompéia. RJ, O Cruzeiro, 12out1963. (p.6)
NASSER, David. Jair bala. RJ, O Cruzeiro, 19out1963. (p.6)
NASSER, David. A República do Torto. RJ, O Cruzeiro, 26out1963. (p.6)
NASSER, David. O bobo do rei. RJ, O Cruzeiro, 2nov1963. (p.6)
NASSER, David. O primo Leão. RJ, O Cruzeiro, 9nov1963. (p.6)
NASSER, David. A montanha pariu um Tarso. RJ, O Cruzeiro, 16nov1963. (p.6)
NASSER, David. Aurora vermelha. RJ, O Cruzeiro, 23nov1963. (p.6)
NASSER, David. O coice do pangaré. RJ, O Cruzeiro, 18jan1964. (p.6)
NASSER, David. Um adjetivo: Brizola. A Fazenda Sarandi. RJ, O Cruzeiro, 25jan1964.
(p.4)
NASSER, David. As marmeladas do sr. Brizola. RJ, O Cruzeiro, 2fev1964. (p.4)
NASSER, David. Morrer com los botins. RJ, O Cruzeiro, 8fev1964. (p.4)
NASSER, David. O grande mudo. RJ, O Cruzeiro, 15fev1964. (p.4)
NASSER, David. A mulher mineira. RJ, O Cruzeiro, 22fev1964. (p.6)
NASSER, David. O animal político. RJ, O Cruzeiro, 14mar1964. (p.6)
NASSER, David. A esquerda fugitiva. RJ, O Cruzeiro, 21mar1964. (p.6)
NASSER, David. O vice Calmon. RJ, O Cruzeiro, 28mar1964. (p.6)
NASSER, David. O menino da Supra. RJ, O Cruzeiro, 4abr1964. (p.4)
NASSER, David. O mudo falou. RJ, O Cruzeiro, 11abr1964. (p.4)
NASSER, David. O missionário sem crença. RJ, O Cruzeiro, 18abr1964. (p.6)
208
NASSER, David. O grande mudo. RJ, O Cruzeiro, 25abr1964. (p.6)
NASSER, David. Caiu de burro. RJ, O Cruzeiro, 2mai1964. (p.4)
NASSER, David. O tribunal do silêncio. RJ, O Cruzeiro, 9mai1964. (p.4)
NASSER, David. Os idos de Março. RJ, O Cruzeiro, 16mai1964. (p.6)
NASSER, David. Gigi de Mangueira. RJ, O Cruzeiro, 23mai1964. (p.6)
NASSER, David. A revolução antropófaga. RJ, O Cruzeiro, 30mai1964. (p.6)
NASSER, David. Os coveiros da revolução. RJ, O Cruzeiro, 6jun1964. (p.4)
NASSER, David. A voz do dono. RJ, O Cruzeiro, 13jun1964. (p.4)
NASSER, David. Vale tudo. RJ, O Cruzeiro, 20jun1964. (p.6)
NASSER, David. Delendus Juscelino. RJ, O Cruzeiro, 27jun1964. (p.4)
NASSER, David. O Cambronne brasileiro. RJ, O Cruzeiro, 4jul1964. (p.4)
NASSER, David. O Diabo Velho. RJ, O Cruzeiro, 11jul1964. (p.4)
NASSER, David. Este é o Minho. RJ, O Cruzeiro, 12set1964. (p.72)
NASSER, David. A presença de Camilo. RJ, O Cruzeiro, 26set1964. (p.66).
NASSER, David. Saudade defumada. RJ, O Cruzeiro, 3out1964. (p.80)
NASSER, David. A Ilha Verde. RJ, O Cruzeiro, 10out1964. (p.28)
NASSER, David. O Debret da câmera. RJ, O Cruzeiro, 17out1964. (p.100)
NASSER, David. Carta a um falso revolucionário. RJ, O Cruzeiro, 24out1964. (p.4)
NASSER, David. Carta a um verdadeiro revolucionário. RJ, O Cruzeiro, 31out1964.
(p.4)
NASSER, David. O Estado militar. RJ, O Cruzeiro, 7nov1964. (p.6)
NASSER, David. De barriga aberta. RJ, O Cruzeiro, 14nov1964. (p.6)
NASSER, David. A linha bamba. RJ, O Cruzeiro, 21nov1964. (p.6)
NASSER, David. O ditador e a bicicleta. RJ, O Cruzeiro, 28nov1964. (p.6)
NASSER, David. A cabeça de Mauro. RJ, O Cruzeiro, 5dez1964. (p.4)
NASSER, David. David Nasser denuncia terror e miséria da linha dura. RJ, O Cruzeiro,
5dez1964. (p.6)
209
NASSER, David. Uma vela pela liberdade. RJ, O Cruzeiro, 19dez1964. (p.4)
NASSER, David. O mal menor. RJ, O Cruzeiro, 26dez1964. (p.6)
NASSER, David. O príncipe herdeiro. RJ, O Cruzeiro, 2jan1965. (p.4)
NASSER, David. O volátil Golbery. RJ, O Cruzeiro, 9jan1965. (p.4)
NASSER, David. O Nordeste assassinado. RJ, O Cruzeiro, 2out1965. (p.6)
NASSER, David. Juiz e réu. RJ, O Cruzeiro, 9out1965. (p.4)
NASSER, David. Que eleições são estas? RJ, O Cruzeiro, 16out1965. (p.4)
NASSER, David. O grande circo de Getúlio a Castello. RJ, O Cruzeiro, 23out1965.
(p.4)
NASSER, David. Vila Dallas. RJ, O Cruzeiro, 30out1965. (p.4)
NASSER, David. 1957: Carta para Márcia (menina). RJ, O Cruzeiro, 30out1965. (p.6)
NASSER, David. 1965: Carta para Márcia (senhora). RJ, O Cruzeiro, 6nov1965. (p.4)
NASSER, David. Os jovens turcos. RJ, O Cruzeiro, 13nov1965. (p.4)
NASSER, David. Os direitos do homem. RJ, O Cruzeiro, 20nov1965. (p.4)
NASSER, David. Até breve, Carlos. RJ, O Cruzeiro, 27nov1965. (p.4)
NASSER, David. Carta aos revolucionários. RJ, O Cruzeiro, 4dez1965. (p.4)
NASSER, David. Na corte de seu Artur. RJ, O Cruzeiro, 11ez1965. (p.4)
NASSER, David. Cuidado com a História. RJ, O Cruzeiro, 18dez1965. (p.4)
NASSER, David. A revolução de cada um. RJ, O Cruzeiro, 1jan1966. (p.4)
NASSER, David. O segundo cadáver. RJ, O Cruzeiro, 8jan1966. (p.4)
NASSER, David. Adubo de esperança. RJ, O Cruzeiro, 15jan1966. (p.4)
NASSER, David. Um PortoRico maior. RJ, O Cruzeiro, 22jan1966. (p.4)
NASSER, David. Amigos, mas não colonos. RJ, O Cruzeiro, 29jan1966. (p.4)
NASSER, David. Gangsteres não têm pátria. RJ, O Cruzeiro, 5fev1966. (p.4)
NASSER, David. Aos americanos leais. RJ, O Cruzeiro, 12fev1966. (p.4)
NASSER, David. A flor e a luva. RJ, O Cruzeiro, 19fev1966. (p.4)
NASSER, David. Defesa e insulto. RJ, O Cruzeiro, 26fev1966. (p.4)
210
NASSER, David. Dólar sujo. RJ, O Cruzeiro, 5mar1966. (p.4)
NASSER, David. Libertemos a princesa. RJ, O Cruzeiro, 26mar1966. (p.4)
NASSER, David. Se Ruy fosse vivo. RJ, O Cruzeiro, 2abr1966. (p.4)
NASSER, David. O rei do Sião. RJ, O Cruzeiro, 9abr1966. (p.6)
NASSER, David. O dragão da rua larga. RJ, O Cruzeiro, 16abr1966. (p.4)
NASSER, David. As águas da ingratidão. RJ, O Cruzeiro, 22abr1966. (p.4)
NASSER, David. O proscrito dos deuses. RJ, O Cruzeiro, 29abr1966. (p.4)
NASSER, David. Brizola azulmarinho. RJ, O Cruzeiro, 5mai1966. (p.4)
NASSER, David. O ladrão roubado. RJ, O Cruzeiro, 13mai1966. (p.6)
NASSER, David. O nariz postiço. RJ, O Cruzeiro, 20mai1966. (p.4)
NASSER, David. Salmos de Golbery. RJ, O Cruzeiro, 26mai1966. (p.4)
NASSER, David. O engolidor de sapos. RJ, O Cruzeiro, 9jun1966. (p.4)
NASSER, David. Este é o homem. RJ, O Cruzeiro, 16jun1966. (p.4)
NASSER, David. O cemitério da revolução. RJ, O Cruzeiro, 29jun1966. (p.4)
NASSER, David. Oposição de papagaios. RJ, O Cruzeiro, 6jul1966. (p.6)
NASSER, David. O monstro moral. RJ, O Cruzeiro, 13jul1966. (p.4)
NASSER, David. Os mortos de Pistóia te saúdam! RJ, O Cruzeiro, 20jul1966. (p.4)
NASSER, David. Ave César. RJ, O Cruzeiro, 26jul1966. (p.4)
NASSER, David. Viva a diferença. RJ, O Cruzeiro, 2ago1966. (p.6)
NASSER, David. Napoleão, hem? RJ, O Cruzeiro, 9ago1966. (p.4)
NASSER, David. Acorda, Brutus! RJ, O Cruzeiro, 16ago1966. (p.4)
NASSER, David. Até quando, Catalina? RJ, O Cruzeiro, 23ago1966. (p.4)
NASSER, David. A face de César. RJ, O Cruzeiro, 29ago1966. (p.4)
NASSER, David. A queda de Roma. RJ, O Cruzeiro, 5set1966. (p.4)
NASSER, David. O homem e a pílula. RJ, O Cruzeiro, 12set1966. (p.4)
NASSER, David. O Messiânico e o Messejânico. RJ, O Cruzeiro, 25set1966. (p.4)
NASSER, David. Pacto com o diabo. RJ, O Cruzeiro, 2out1966. (p.4)
211
NASSER, David. A alma no rosto. RJ, O Cruzeiro, 9out1966. (p.4)
NASSER, David. O último marechal, a última esperança. RJ, O Cruzeiro, 16out1966.
(p.4)
NASSER, David. Caderno de memórias: Rubem Berta. RJ, O Cruzeiro, 7jan1967. (p.4)
NASSER, David. Caderno de memórias: Getúlio Vargas. RJ, O Cruzeiro, 14jan1967.
(p.4)
NASSER, David. Caderno de memórias: Castello Branco. RJ, O Cruzeiro, 21jan1967.
(p.4)
NASSER, David. Leia, Marechal! RJ, O Cruzeiro, 11mar1967. (p.4)
NASSER, David. Vamos, Gringo! RJ, O Cruzeiro, 18mar1967. (p.4)
NASSER, David. Autópsia do medo. RJ, O Cruzeiro, 25mar1967. (p.4)
NASSER, David. Sem fita amarela. RJ, O Cruzeiro, 1abr1967. (p.4)
NASSER, David. Revisão das cassações. RJ, O Cruzeiro, 8abr1967. (p.4)
NASSER, David. O homem que ri. RJ, O Cruzeiro, 15abr1967. (p.4)
NASSER, David. O Estadocurral. RJ, O Cruzeiro, 22abr1967. (p.4)
NASSER, David. O brasileiro Juscelino. RJ, O Cruzeiro, 29abr1967. (p.4)
NASSER, David. Quem vaiou Tuthill. RJ, O Cruzeiro, 6mai1967. (p.4)
NASSER, David. A burrice americana. RJ, O Cruzeiro, 13mai1967. (p.4)
NASSER, David. A sombra de Rebeca. RJ, O Cruzeiro, 20mai1967. (p.4)
NASSER, David. Resposta a Bulhões. RJ, O Cruzeiro, 10jun1967. (p.4)
NASSER, David. Andreazza escolhe 100 frases de David Nasser. RJ, O Cruzeiro,
30dez1967. (p.4)
NASSER, David. Juscelino Kubitschek escolhe 100 frases de David Nasser. RJ, O
Cruzeiro, 6jan1968. (p.4)
NASSER, David. João Calmon escolhe 100 frases de David Nasser. RJ, O Cruzeiro,
13jan1968. (p.4)
212
NASSER, David. Chateaubriand escolhe 100 frases de David Nasser. RJ, O Cruzeiro,
20jan1968. (p.4)
NASSER, David. Costa e Silva escolhe 108 frases de David Nasser. RJ, O Cruzeiro,
27jan1968. (p.4)
NASSER, David. D.Yolanda escolhe 100 frases de David Nasser. RJ, O Cruzeiro,
3fev1968. (p.4)
NASSER, David. Menotti Del Picchia escolhe 100 frases de David Nasser. RJ, O
Cruzeiro, 10fev1968. (p.4)
NASSER, David. 100 frases de Gilberto Amado sobre Chateaubriand e David Nasser.
RJ, O Cruzeiro, 17fev1968. (p.4)
NASSER, David. Rachel de Queiroz escolhe 100 frases sobre David Nasser. RJ, O
Cruzeiro, 24fev1968. (p.4)
NASSER, David. Senador Marcelo de Alencar escolhe 100 frases de David Nasser. RJ,
O Cruzeiro, 2mar1968. (p.4)
NASSER, David. A volta de um fantasma. RJ, O Cruzeiro, 8set1970. (p.20)
NASSER, David. O anjo do terror. RJ, O Cruzeiro, 15set1970. (p.20)
NASSER, David. O Cristo que mata. RJ, O Cruzeiro, 22set1970. (p.20)
NASSER, David. Quem paga ao bispo? RJ, O Cruzeiro, 29set1970. (p.20)
NASSER, David. Igreja cúmplice. RJ, O Cruzeiro, 6out1970. (p.20)
NASSER, David. Minha Igreja. RJ, O Cruzeiro, 13out1970. (p.24)
NASSER, David. O Cristo fuzilado. RJ, O Cruzeiro, 20out1970. (p.20)
NASSER, David. 'Governar por tortura'. RJ, O Cruzeiro, 27out1970. (p.20)
NASSER, David. 'Viva Chile, M'... RJ, O Cruzeiro, 3nov1970. (p.20)
NASSER, David. Fidel de batina. RJ, O Cruzeiro, 10nov1970. (p.20)
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NASSER, David. O padre e o Espírito Santo. RJ, O Cruzeiro, 24nov1970. (p.20)
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