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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA E

    ANTROPOLOGIA

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    Cristina Pedroza de Faria

    Rio de Janeiro 2005

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    Corpos no ringue:

    Encontros de discursos e prticas, representaes e imagens na experincia de participao em um projeto social, entre jovens moradores da Mar (RJ)

    Dissertao de Mestrado em Sociologia e Antropologia apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial

    para obteno do grau de Mestre em Sociologia e Antropologia.

    Orientadora: Prof. Dr. Regina Clia Reyes Novaes

    Banca examinadora:

    Prof.___________________________________

    Regina Clia Reyes Novaes (orientadora) - UFRJ Dr. Universidade de So Paulo - USP

    Prof. __________________________________

    Mrcia Leite

    Dr. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

    Prof. __________________________________ Luiz Antnio Machado da Silva

    Ph.D. Rutgers University

    Prof. __________________________________

    Rosilene Alvim (suplente)

    Prof. ___________________________________

    Patrcia Birman (suplente)

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    FARIA, Cristina Pedroza de

    Corpos no ringue: Encontros de discursos e prticas, representaes e imagens na experincia de participao em um projeto social, entre jovens moradores da Mar (RJ).

    PPGSA/IFCS/UFRJ, 2005, p. 175

    Tese: Mestre em Cincias (Sociologia e Antropologia)

    1. Juventude 2. Favela 3. Corpo e boxe 4. Antropologia e imagem 5. Participao social 6. Tese

    I. Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFCS II.Ttulo

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    Ao Bruno, com todo o meu amor. Por fazer parte da minha histria,

    compartilhando presente, passado e futuro

    em um processo de crescimento mtuo.

    A Rivan e Juca

    (In memorian).

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    Desde os primeiros contatos com moradores do Parque Unio (Mar), em 2001, at a aproximao maior do cotidiano de jovens praticantes de boxe da academia Luta Pela Paz (ento situada na mesma localidade), durante os quatro anos seguintes, muitas pessoas foram importantes na caminhada que agora resulta neste trabalho.

    Regina Novaes, sou grata pela preciosa orientao, tanto em momentos de entusiasmo quanto de angstia, pelo incentivo ao estudo junto aos jovens da Mar, mesmo antes de iniciar o curso do PPGSA, e, finalmente, pela compreenso durante o processo de elaborao desta dissertao.

    Sempre serei profundamente agradecida a dezenas de jovens residentes da Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque Unio e adjacncias, a maioria freqentadores da academia LPP que colaboraram direta e/ou indiretamente para a construo de um olhar diferenciado sobre favelas, juventudes, participao em projetos sociais e prtica de boxe. Vitor, Rivan, Daniel, Luciano, Rafael, Rafaela, Carol, Manuela, Tamires, Juliana, Daiana, Sinval, Ninho, Adailton, Waldir, Bruno, Roberto, Juca e tantos outros formam os pilares desta pesquisa. Entre os moradores locais com os quais mantive dilogos interminveis sobre a Mar de hoje e de tempos passados, no poderia deixar de citar a contribuio valiosa de Bira e de Seu Amaro, ambos da Nova Holanda. Com formas prprias de atuao na vida comunitria, conhecem a Mar como poucos.

    No poderia deixar de agradecer tambm a toda a equipe do Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, por quem fui acolhida, sempre com generosidade, desde o

    primeiro dia em que fui apresentada, por seu coordenador, ao grupo de jovens participantes dos treinos de boxe. Agradeo aos seus integrantes e, em especial, queles com quem tive maior contato, por poder acompanhar o dia a dia de suas atividades e pelas reflexes conjuntas: Luke Dowdney, Leriana Figueiredo, Luiz Otvio, e D. Miriam.

    Agradeo, ainda, ao Viva Rio e a Rubem Csar Fernandes pelo aprendizado adquirido em dilogos francos e abertos, pela liberdade de acessos e de atuao em projetos da instituio; tambm colaborou Marcelo, da rea de estatstica do Viva Rio e ISER. Alm deles, no posso deixar de lembrar de todos da equipe do projeto Viva Favela, de quem precisei me distanciar, para me dedicar a este trabalho.

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    valiosa amiga Patrcia Rivero, agradeo pela escuta sempre atenciosa e interessada, pela interlocuo freqente, ajudando-me a compreender melhor o olhar sociolgico, e pelo companheirismo - das aulas de boxe s caminhadas pela Mar. Chris Vital queria expressar meu reconhecimento pelo afeto, pela pronta disposio ajuda desde o incio do curso e pela possibilidade de compartilhar experincias relacionadas ao trabalho de campo. Sou grata tambm Marilena Cunha, pela cuidadosa e competente conduo dos grupos focais, pelo interesse e ateno destinados a este trabalho. Claudinha Linhares pela grande fora e estmulo. Aos companheiros do mestrado, pelas idias compartilhadas e o aprendizado

    conjunto; em especial, as conversas com Carla renderam inspiraes, ousadias, incansveis questionamentos e inquietaes; com Jonas, o contato foi sempre importante pela afinidade temtica. A todos os professores do PPGSA e, principalmente, a Luiz Antonio Machado e Mrcia Leite (UERJ) agradeo muito pelas preciosas observaes que ajudaram a conduzir os parmetros deste trabalho. Ana Quiroga, agradeo pelo incentivo e carinho desde os passos iniciais da pesquisa de campo; a Milton Guran pelos ensinamentos no campo dos estudos da imagem na antropologia e pela escuta generosa e esclarecimento de minhas dvidas, alm de

    compartilhar a paixo pela fotografia.

    minha me, querida, serei sempre agradecida pelo apoio permanente que incluiu, literalmente, casa e comida durante o percurso do mestrado. irm Silvia e ao pai Jorge, pelo incentivo, mesmo que distncia. querida Ingrid, pela cumplicidade, por compartilhar dvidas e compreenses durante o curso; Gisela pela preocupao e afeto; aos amigos (mesmo os no citados) de quem me distanciei no decorrer deste trabalho, mas estiveram e estaro sempre presentes em minhas lembranas.

    Finalmente, agradeo a Claudia e Denise, da secretaria do PPGSA, e Capes pelo financiamento desta pesquisa.

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    Jovens moradores de favelas situadas na rea da Mar, zona norte do Rio de Janeiro, aprendem a praticar boxe e se tornam lutadores (amadores) desta modalidade esportiva. O presente trabalho aborda motivaes que levaram alguns destes adolescentes a optar pelo boxe e identifica significados adquiridos pelo esporte no

    contexto de um espao especfico de treinos, o Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, que integra os programas sociais da organizao no governamental Viva Rio. O foco central do estudo se volta para o encontro entre dois universos: um constitudo pela experincia de vida - fundamentada em formas de pensar, representaes e prticas prprias - de jovens moradores locais; outro caracterizado pela experincia coletiva construda quando estes jovens passam a freqentar o ambiente da academia de boxe LPP. A partir deste encontro, ocorrem interaes entre propostas de mediadores externos (no caso, objetivadas no discurso que acompanha a prtica de esportes na mesma academia) e representaes de jovens participantes dos treinos, estimulando a (re) elaborao de noes sobre temas que vo alm da esfera esportiva, como juventude, violncia, programas sociais e favela. No contexto estudado, o corpo lugar onde a interseco entre os dois universos citados se torna possvel. Esta perspectiva

    leva em conta, por um lado, o fato de a adolescncia ser um perodo de intensas transformaes corporais e, por outro, o fato de a prtica do boxe tambm provocar, inevitavelmente, modificaes fsicas inerentes tal atividade esportiva. Tomada como espao de sociabilidade, a academia onde se realizou a pesquisa de campo tambm um local onde os participantes constroem diferentes formas de classificao para as expresses luta e briga. Tais categorias indicam, no contexto, possibilidades como a de obteno de prestgio social, porm, ao mesmo tempo, demonstram a existncia de posies no consensuais em relao questo do controle da violncia. A anlise deste

    estudo se fundamenta em dados qualitativos, a saber, em representaes de jovens lutadores de boxe da academia LPP, articuladas com observaes de campo e pontos de vista de outros atores presentes no ambiente de pesquisa. Junto aos registros textuais, a imagem fotogrfica se constituiu em um rico instrumento de pesquisa, facilitando o

    acesso ao contexto estudado e se tornando uma ferramenta de anlise metodolgica complementar.

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    Young people, residents of favelas located in the Mar region (a low-income neighbourhood at north of Rio de Janeiro), are introduced in boxing and some of them become amateur boxers. This work aims at approaching motivations which led those adolescents to choose boxing; it also identifies meanings acquired by the sport considering the context of a particular boxing club called Fight for Peace, that is part of the non-governmental organization Viva Rio social programs. Therefore, this study is

    focused on the encounter between two aspects: on one hand, life experiences of those local youth, based in ways of thinking, representations and practices of their own; on another hand, the colective experience built up after the same boys and girls joined the boxing club. The encounter mentioned brings the possibility of interaction between external mediators proposals (which, in this case, gets the form of the non local based NGO social proposal related to sports practice) and representations of young people who participate in boxing trannings, stimulating the elaboration of notions about themes such as youth, violence, project and favela. In the context studied, the body is where these aspects converge. This perspective considers that adolescence is a period of intense body modifications and the fact that boxing also brings fisical changes. Considered as a sociability space, the boxing club where the field research was made is also a place where participants develop diferent forms of classification for words like fight/struggle and boxing match. In the context studied, these categories are

    related with social prestige but also show that there are no consensual opinions on the issue of violence control. The work analisys is based on qualitative data, field observation and view points of other people envolved with the field research. Photographic image was also used as a research method, complementing other

    instruments of collecting data.

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    Este trabalho se baseia em narrativas de adolescentes cariocas de classes

    populares que decidiram entrar para o boxe e tem o intuito de analisar o contato entre experincias, prticas e representaes vivenciadas no espao de um centro esportivo, que constitui simultaneamente um projeto social 1, localizado na regio de favelas da Mar (30 Regio Administrativa, zona norte do Rio de Janeiro, na rea conhecida como zona da Leopoldina). O estudo deste contato, ao qual nos referimos como encontro, permitiu refletir sobre elementos presentes no universo de pesquisa, que fazem parte do debate contemporneo sobre juventudes, favelas, o campo de atuao das chamadas organizaes no governamentais, a idia de esporte vinculada ao controle social da violncia e a proposta de articular tais universos atravs de um programa social

    fundamentado em discurso scio-educativo. Realizada entre 2001 e 2005, a pesquisa de campo que originou este estudo se restringe ao contexto de uma academia de boxe, com caractersticas particulares. Como mencionado, trata-se de um programa social, desenvolvido pela organizao no

    governamental Viva Rio a partir do incio de 20002. Batizada de Luta Pela Paz por seus fundadores e, inicialmente, direcionada apenas para a prtica de boxe, a academia comeou a funcionar em uma pequena sala da Associao de Moradores do Parque Unio, favela que foi um dos primeiros ncleos de habitao na Mar (originado na dcada de 1950), hoje situada entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, importantes vias de acesso rodovirio cidade.

    1 Projeto, ou programa, social um termo de uso corrente no campo caracterizado pela atuao de

    instituies de carter privado e sem fins lucrativos, alm de ser j amplamente adotado pela imprensa brasileira. Trata-se de uma categoria coletiva de linguagem que se tornou mais conhecida a partir da dcada de 1980, poca em que se iniciou uma fase de grande expanso e diversificao das aes das chamadas ONGs por todo o pas. Os projetos sociais so formas de interveno no meio social (seja ele urbano ou rural) por meio de aes, em geral, propostas por organizaes, formalmente, desvinculadas de instncias governamentais e voltadas para reas e pblicos diversos. Esta expresso faz parte de um vocabulrio amplo originado no campo de atuao das ONGs, difundido por outros setores da sociedade, influenciando formas de pensar, condutas e prticas voltadas para a ao social. 2 Fundado em 1993, o Viva Rio se define como uma organizao no governamental, sem fins lucrativos

    e apartidria. Desenvolve projetos diversas em regies de baixa renda na rea metropolitana do estado do Rio de Janeiro, formando parcerias com entidades locais (associaes de moradores, rdios comunitrias, igrejas, escolas etc) e, em alguns casos, convnios com instncias governamentais. A ONG aciona o conceito de Segurana Humana para fundamentar suas aes, organizadas em torno de trs reas principais: Incluso Social, Segurana e Direitos e Comunicao. O projeto Luta Pela Paz integra a rea de Segurana e Direitos, como parte do programa do COAV (Children in organizaed armed violence, ou Crianas em situao de violncia armada organizada). Fonte: site www.vivario.org.br e Viva Rio/ Relatrio - 2004.

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    Segundo seus realizadores, a iniciativa do projeto esportivo em questo se baseia na proposta de aliar a prtica de esportes a uma dimenso social, a qual tem o objetivo de contribuir para a preveno do envolvimento de jovens, na faixa etria entre 13 e 24 anos, em atividades criminosas e violentas. Para tanto, buscam-se criar condies para que a prtica de boxe3 - junto a outras atividades incorporadas ao programa posteriormente venha a se configurar como atrativo para jovens de baixa renda, residentes nas proximidades desta academia, visando afast-los de escolhas que os levem a integrar carreiras criminosas em uma rea urbana de forte presena da estrutura organizada do comrcio de drogas ilcitas4.

    A pesquisa de campo do presente trabalho foi desenvolvida no ambiente desta academia de boxe e no seu entorno, onde iniciei a construo de um objeto de pesquisa. Compreender, simplesmente, o que motivava jovens residentes em uma rea pobre e de caractersticas singulares da cidade a optar pela prtica de boxe e, ainda, por participar

    de competies amadoras desta modalidade de esporte - que passaram a ser inseridas no calendrio de lutas do pugilismo carioca e brasileiro5 - foram as primeiras indagaes levantadas na origem deste estudo. A partir da, intensificou-se o interesse por investigar como os adolescentes6 vivenciavam a experincia do contato com essa modalidade

    esportiva especfica e como se dava a interao com o discurso do projeto LPP. Uma das particularidades da rede de relaes no mais amplo onde a academia se

    insere, so as tenses trazidas, de um lado, pela presena de integrantes de faces do crime organizado que disputam o controle do mercado de varejo do narcotrfico em favelas da Mar; de outro, a presena da polcia, a qual, segundo dados desta pesquisa objeto dos maiores medos expressos nas narrativas de jovens moradores locais. Outro

    3 Durante os trs primeiros anos de funcionamento da academia Luta Pela Paz, o boxe era a nica

    modalidade esportiva ali existente. A partir de outubro de 2003, aulas de capoeira, maculel e luta livre tambm passaram a ser oferecidas pelo mesmo projeto. Entretanto, o boxe continuou a desempenhar um papel central na rotina da academia, concentrando o maior nmero de jovens em relao a outras atividades. Esta pesquisa est voltada, especificamente, para o universo de jovens que escolheram se dedicar aos treinos de boxe da Luta Pela Paz, em algum momento de suas vidas. 4 Em seu estudo Crianas do trfico, DOWDNEY (2003) aponta pelo menos quinze funes,

    remuneradas, dentro da estrutura interna das faces que dominam o comrcio da droga em favelas do Rio de Janeiro. 5 No Brasil, a prtica de boxe amador e profissional regulamentada pela Confederao Brasileira de

    Boxe, entidade majoritria do esporte no pas. No Rio de Janeiro, as competies de boxe so, via de regra, organizadas por uma das instituies locais legalmente reconhecidas - a Liga de Boxe do Estado do Rio de Janeiro ou a Federao de Boxe do Estado do Rio de Janeiro - em conjunto com as academias. O termo pugilismo, a rigor, designa a prtica de lutas em geral em todo o ocidente. 6 Neste estudo de caso, importante lembrar o fato de existirem jovens que participam de lutas e outros

    que apenas treinam, mas no competem. Portanto, para ser lutador necessrio estar praticando boxe assiduamente, porm, nem todos os que praticam participam de competies.

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    elemento importante percebido durante o perodo de campo, que uma infinidade de

    fatores marca, de maneira diversificada, o cotidiano de milhares de moradores que vivem no interior da Mar, em localidades cujo perfil no se restringe descrio de um cenrio homogneo. A geografia prpria de cada favela, os usos criativos dos ambientes pblicos pelos habitantes, as adaptaes para lidar com problemas crnicos ou passageiros, as distintas formas de moradia existentes, os servios (pblicos ou no) disponveis, a organizao das atividades comerciais (a maioria informais) e as formas de lazer inventadas que estruturam as mltiplas rotinas de vida dos habitantes so alguns dos fatores que conferem a este universo de cerca de vinte favelas um carter

    essencialmente diversificado. No entanto, as favelas reunidas neste grande recorte do tecido urbano do Rio de

    Janeiro, do qual fazem parte cerca de 130.000 habitantes, configuram-se como objeto de representaes frequentemente fundamentadas em um imaginrio social que projeta a representao de violncia para classificar tudo o que se refere a este ambiente da cidade. A existncia de concepes contrastantes, assim como de disputas em torno da criao de parmetros para definir e classificar a Mar, encontra espao no presente trabalho a partir de uma breve apresentao comparativa de referenciais externos (aqui exemplificados atravs de reportagens veiculadas na imprensa carioca sobre o lugar) e internos (nas vozes de jovens e antigos moradores da rea) de percepo desta regio particular.

    Para analisar os principais elementos relacionados aos encontros entre

    representaes, prticas e experincias no mbito do projeto Luta Pela Paz, foi importante estabelecer um dilogo com temas j desenvolvidos pela literatura na rea de Cincias Sociais. Estudos sobre favelas, violncias e a atuao de instituies chamadas no governamentais, assim como anlises sobre juventudes e esporte, constituram fontes de reflexo terica, junto aos dados etnogrficos reunidos a partir do campo pesquisado. Dada a amplitude e complexidade de alguns dos temas abordados nesta dissertao, direta ou indiretamente relacionados ao universo de estudo, este trabalho buscou apenas mapear um campo de investigao temtico que pode ser retomado em pesquisas futuras.

    Nas falas de alguns dos lutadores, foram identificadas referncias a formas de sociabilidade presentes no seu dia a dia, assim como representaes que os freqentadores deste centro esportivo constroem sobre seu passado, presente e futuro acionando identidades e pertencimentos ao lugar onde residem e academia qual

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    estavam vinculados. Portanto, buscou-se analisar, a partir destas representaes,

    experincias relativas prtica de boxe, atravs da percepo que os jovens constroem de si mesmos em suas inter-relaes com o contexto social no qual esto inseridos. Para melhor situar o objeto de estudo deste trabalho, apresento, a seguir, algumas caractersticas dos atores presentes neste cenrio social, assim como o contexto da academia em questo.7 Em fevereiro de 2001, Deco, Rivan e seu irmo, Renivaldo, estrearam no mundo do boxe. Os jovens tinham entre 15 e 16 anos de idade e passaram grande parte da adolescncia juntos, compartilhando amizades, trocando experincias e perambulando pelas ruas e becos nas imediaes das comunidades8 onde foram criados, ou seja, Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque Unio e adjacncias, localizadas na poro territorial da Mar mais afastada do centro da cidade, nas proximidades do aeroporto internacional e do Fundo (campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro). A partir da entrada para os treinos de boxe, um novo ambiente de convvio social foi acrescentado s rotinas de vida desses e de outros jovens moradores da regio. O evento esportivo que reuniu, pela primeira vez, os trs rapazes em um torneio de boxe olmpico9 ocorreu em outro extremo da cidade mais precisamente no morro

    do Cantagalo, situado na zona sul distante dos principais eixos de circulao cotidiana destes jovens. O forte calor daquela noite de sbado no abateu os lutadores baianos Rivan e Renivaldo e menos ainda o carioca Deco, acostumados ao vero do Rio de Janeiro, que leva moradores da Mar a buscarem solues criativas para suportar os dias

    mais abafados, como instalar chuveiros improvisados beira das ruas de asfalto pelando. Todos vestiam o uniforme da mesma academia, pela qual lutaram e onde iniciaram a aprendizagem do boxe. Alguns meses antes, esta academia havia comeado a funcionar no Parque Unio, a poucos minutos de caminhada das casas de Deco, Rivan e Juca (apelido de Renivaldo), e, durante os quatro anos seguintes, viria a se consolidar como ponto de encontro de um nmero crescente de jovens da regio. Naquela ocasio

    7 As identidades dos jovens foram preservadas. Apenas os nomes de pessoas publicamente conhecidas, ou

    que j faleceram, foram mantidos. 8 Os usos dos termos comunidade e favela foram objeto de escuta e registros durante o

    desenvolvimento da pesquisa. Embora no sejam temas centrais em relao ao estudo aqui proposto, ambos so referentes ao local de moradia dos jovens aqui enfocados e freqentemente citados em suas falas. Portanto, busquei perceber, no captulo 2, os principais contextos de emprego destas expresses, assim como as representaes sobre elas presentes nos discursos destes jovens. Por ora, importante apenas salientar que se trata de duas categorias, de uso coletivo, histrica e socialmente construdas (MACHADO, 2004:104). Neste trabalho, procuro utilizar tais termos buscando uma aproximao com a escuta do campo. 9 Atualmente, a denominao olmpico, substitui a categoria esportiva mais conhecida como amador.

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    de estrias, o saldo dos combates (jargo usado no meio do boxe) foi positivo para a academia da Mar: apesar da derrota de Deco, Juca e Rivan venceram, no ringue, as lutas contra seus oponentes. Em agosto de 2004, mais uma vez juntos, os irmos perderam as vidas, em circunstncias ainda pouco esclarecidas10, prximo ao lugar onde moraram e passaram grande parte da infncia e da adolescncia.

    A mesma academia levou aos ringues de competio de boxe amador dezenas de outros jovens residentes na Mar e, em 2005, j havia ampliado o nmero de atividades esportivas oferecidas. A partir da observao de grande parte destas competies, da dinmica caracterstica das lutas de boxe (percebendo, por exemplo, quem eram os torcedores, quando compareciam, comportamentos e reaes diante dos desempenhos dos lutadores), de incontveis conversas no ambiente da academia e, inclusive, da participao nos treinos, percebi que as trajetrias individuais dos participantes da Luta Pela Paz, longe de seguirem caminhos lineares, tomavam rumos diversos dentro de um

    campo de possibilidades socialmente determinado11. Freqentemente marcadas por perodos de instabilidade, algumas trajetrias se distanciavam dos objetivos esperados pelos organizadores do projeto (nos planos esportivo e scio-educativo), porm, tambm se tornavam notrios casos de dedicao extrema ao boxe e, ainda, de jovens que, embora participassem ativamente de eventos e atividades no diretamente vinculadas ao boxe promovidos pela equipe da academia como a articulao de redes de comunicao juvenis, afastavam-se da prtica esportiva propriamente dita.

    Outra reflexo introduzida neste trabalho sobre o emprego da categoria de

    risco, freqentemente acionada em discursos da imprensa, de projetos sociais, ONGs e outras instncias formadoras de opinio, as quais vm desempenhando um papel de crescente importncia na elaborao de polticas pblicas no Brasil, sobretudo, voltadas para o universo juvenil. Afinal, quem so estes jovens que figuram como pblico alvo de inmeros e diversificados projetos, ou programas, scio-educativos desenvolvidos em todo o pas? O que ser jovem em situao de risco? Algumas caractersticas que contribuem para a construo desta noo, no caso estudado, sero abordadas. importante salientar que esta uma forma no consensual de classificao de determinados segmentos da populao, onde as crticas ao uso de tal terminologia

    apontam para a identificao destes com uma imagem estereotipada de perigo para a

    10 Sobre o jovem Rivan, ver captulo 4.

    11 Sobre a noo de campo de possibilidades, ver Gilberto Velho (1994), Projeto e metamorfose:

    antropologia das sociedades complexas.

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    sociedade, podendo contribuir para a construo de um novo rtulo acusatrio, que

    enquadra nele os que se inserem em uma condio de suscetibilidade ao envolvimento com o crime e a violncia.

    Esta pesquisa analisa relatos e contextos de vida de alguns jovens que escolheram participar de uma proposta singular, sem a inteno de generalizar os resultados aqui encontrados para outros contextos. De acordo com a idia da existncia de juventudes, no plural (Novaes, 2003) - segundo a qual preciso reconhecer variaes de interesses, estilos de vida, classe social, expectativas, maneiras de lidar com o corpo, enfim, formas de estar no mundo, que tornam a concepo de juventude cada vez mais distante de uma definio acabada e presa a rtulos reducionistas -, acreditamos ser prioritrio escutar estes jovens para melhor conhec-los e saber como se auto-definem.

    O interesse pelo estudo das relaes sociais que se demarcavam a partir do ambiente da academia de boxe comeou a surgir em 2001, quando tive oportunidade de

    fotografar as primeiras lutas promovidas pela academia, entre elas, a nica realizada na Mar, local de origem dos lutadores. Esta foi a terceira participao em lutas de boxe nas histrias dos adolescentes Rivan, Deco e Juca, apresentados acima. To apreensivos com o fato de estarem competindo ao lado de suas casas, quanto seus vizinhos e

    familiares presentes, os lutadores subiram no ringue, montado em praa pblica, ouvindo seus nomes pronunciados pela pequena multido que compareceu ao Parque Unio naquela noite.

    A liberdade de poder acompanhar a rotina de treinos e lutas com participantes da

    LPP - devido a um conjunto de fatores, explicitados ao longo deste trabalho - contribuiu decisivamente para que o foco desta dissertao se voltasse para o recorte especfico da academia de boxe citada e do contexto social no qual ela se insere. A necessidade de uma insero cautelosa, lenta e respeitosa dos limites colocados pelos informantes determinou a escolha pelo ambiente esportivo de um nico local da cidade. Alm disso,

    tambm se optou por um s universo de pesquisa, buscando um maior aprofundamento na percepo de espaos de sociabilidade no entorno da academia. As trajetrias dos freqentadores do centro esportivo, com nfase nas representaes - percepes, classificaes, smbolos - que informam as prticas sociais locais e se fazem presentes

    em suas falas, foram elementos que tornaram possvel uma melhor compreenso do objeto deste estudo. Alm disso, a eventual ampliao do campo de pesquisa para uma abrangncia maior, tanto no que se refere ao meio do boxe, quanto de programas sociais

  • 19

    voltados para esta e outras atividades esportivas, exigiria prazos mais longos e um novo

    planejamento de trabalho. Registros fotogrficos produzidos durante o perodo de insero no campo de

    pesquisa (e descritos no captulo 1) foram incorporados metodologia deste trabalho, de modo a complementar a reflexo sobre o universo de estudo. Alm de constiturem um corpus fotogrfico (GURAN, 1997) importante em relao temtica da pesquisa, documentando boa parte da histria da academia, as imagens produzidas entre 2001 e 2005 foram usadas como suportes de contedo, introduzindo discusses em dois grupos focais realizados com praticantes de boxe. Utilizada como ferramenta de pesquisa nas

    cincias sociais, a fotografia se coloca como fonte complementar de coleta e anlise de dados qualitativos; portanto, este instrumento metodolgico no busca contraposio ou substituio linguagem textual e sim o dilogo com essa e outras fontes de obteno de informaes nos campos da antropologia e da sociologia.

    As percepes iniciais do universo de pesquisa, registradas em dirio de campo, junto s primeiras histrias de vida relatadas pelos jovens e ao material fotogrfico produzido pela pesquisadora durante o acompanhamento das atividades da academia deram origem, em 2002, monografia de concluso do curso de Ps-Graduao

    Fotografia Como Instrumento de Pesquisa nas Cincias Sociais (Universidade Cndido Mendes), intitulada Documentrio Fotogrfico: Luta Pela Paz no Parque Unio. Neste trabalho, foram sistematizados alguns relatos que expressavam representaes dos jovens boxeadores sobre temas como violncia, luta, briga, boxe e esporte. Uma primeira aproximao analtica deste contedo demonstrou que estas e outras classificaes adquiriam significados diferentes dependendo do contexto em que eram empregadas (a rua, a favela, a casa, a escola, o ringue etc). Com o objetivo de dar seqncia a este trabalho e aprofundar o conhecimento sobre as experincias dos jovens lutadores, esta temtica foi retomada no Programa de Ps Graduao em Sociologia e

    Antropologia da UFRJ, em 2003. Durante o curso de mestrado, tambm tive oportunidade de realizar alguns

    trabalhos enfocando o universo dos jovens boxeadores. Entre eles, o trabalho final da disciplina Noes de corpo e pessoa na literatura antropolgica trouxe elementos para

    a abordagem dos usos do corpo, a partir do estudo de caso dos lutadores de boxe, considerando especificamente a noo de corpo como meio de representao social. A temtica da corporalidade s recentemente vem recebendo maior ateno, deixando de ser considerada uma questo superficial nos campos da antropologia e sociologia, no

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    que se refere a fenmenos sociais que caracterizam as sociedades contemporneas12. No

    caso estudado, a ateno ao uso social do corpo ganhou importncia uma vez que o boxe um tipo de atividade onde a atuao corporal, na forma singular deste esporte, imprescindvel.

    O presente estudo est dividido em duas partes. A primeira parte diz respeito aos os procedimentos metodolgicos sobre os quais o trabalho se estruturou e contextualizao do campo e do objeto de pesquisa: no captulo 1, esto descritos os limites e acessos que compuseram o recorte especfico do quadro social pesquisado; alm dos suportes empricos utilizados, incluindo a fotografia como instrumento de

    coleta de dados; no captulo 2, apresento a Mar e os contrastes entre representaes existentes sobre o local, lanando mo de uma perspectiva histrica, alm de memrias de antigos moradores, pontos de vista de jovens residentes e de instituies locais, fontes da imprensa e dados da prefeitura; no captulo 3, descrevo a academia de boxe

    Luta Pela Paz, incluindo notas etnogrficas e trechos do dirio de campo referentes a treinos e lutas, alm de abordar dados gerais sobre a composio do campo de atuao de ONGs e de projetos sociais no Brasil. Na segunda parte, desenvolvo uma anlise sobre o encontro, propriamente dito, entre experincias, discursos e prticas presentes

    no espao de sociabilidade da academia de boxe; no captulo 4, abordo a interao entre representaes e vivncias no ambiente desta academia de boxe, dando nfase temtica do corpo a partir do recorte da adolescncia e da funo de mediao de relaes no meio social; alguns perfis de jovens envolvidos nesta pesquisa tambm so apresentados neste captulo. Regras e conceitos que do especificidade academia como espao de sociabilidade so abordados no captulo 5, assim como significados adquiridos pelo boxe e pelas categorias luta e briga neste contexto particular, sob o ponto de vista de jovens participantes da rotina de treinos, competies e demais atividades da LPP.

    12 Em relao ao tema dos estudos sobre o corpo, formas corporais de expresso simblica e outros

    assuntos correlatos, importante lembrar a existncia de um vasto campo de estudos j institudo na antropologia, no que tange especialmente etnologia, onde um grande nmero de autores j se debruou sobre a problemtica da representao corporal. Este trabalho leva em conta a perspectiva de padres de uso do corpo, em um meio urbano, no contexto da sociedade ocidental contempornea.

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    analisada se volta para o encontro entre experincias e pontos de vista de jovens locais e experincias e perspectivas trazidas no mbito do projeto Luta Pela Paz. Esta troca de idias e aes se realiza, em grande parte, a partir do eixo central da prtica de boxe. No espao de treinos, entram em contato propostas de atuao de mediadores externos14 - relacionadas, por exemplo, ao que se consideram direitos humanos, cidadania, e violncia - e a recepo destas propostas (levando em conta a sua apropriao e / ou resignificao) por jovens da Mar, participantes deste projeto. Para compreender tais encontros preciso conhecer, em maior profundidade, alm das narrativas dos freqentadores dos treinos de boxe, pontos de vista de fundadores do projeto LPP, assim como da equipe de trabalho da academia (treinadores, assistentes sociais e jovens que passaram a integrar o Conselho Gestor do centro esportivo), atravs de seus discursos e representaes. As razes que determinaram a escolha por este objeto de pesquisa basicamente se traduzem no interesse em conhecer como se d a experincia de

    participao de jovens de classes populares no que comumente referido como projeto social, sob o ponto de vista destes jovens. J que eles so o alvo de programas sociais inseridos em uma imensa gama de aes no mbito das polticas pblicas para a criana e o adolescente no Brasil, compreende-se que seja importante escut-los frequentemente, conhecendo cada vez melhor seus mltiplos universos. Ao acompanhar experincias como as citadas acima durante alguns anos, ter tido oportunidade de participar da implantao e da dinmica de trabalho de outras iniciativas no campo da ao social, deparei-me com a necessidade de se formular reflexes crticas,

    fundamentadas em trabalhos cientficos de pesquisa, que possam dar suporte a estas iniciativas. Alm disso, considerando o caso especfico estudado, buscou-se compreender particularidades relacionadas prtica de boxe, considerando esse contexto especifico.

    14 O centro de esportes LPP se constitui em uma das aes do Viva Rio na Mar. Tanto o centro quanto a

    instituio a qual est vinculado sero considerados neste estudo como mediadores externos levando em conta alguns aspectos: suas aes foram implantadas de fora para dentro das favelas e no foram concebidas por moradores locais; a mediao se d na medida em que proporcionam formas de comunicao com ambientes e idias provenientes de outros locais (sem entrar no mrito de sua eficcia). A mesma terminologia tambm se refere a outros atores sociais neste contexto, sejam eles provenientes da iniciativa pblica ou privada, desde que observadas as caractersticas anteriores.

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    hij klm`noqprost

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    estrangeira16, o fato de ser algum de dentro do campo de interveno das ONGs

    permitiu conhecer esta outra rea mais a fundo, particularmente, no que diz respeito percepo de diferentes formas de atuao da chamada sociedade civil organizada junto ao pblico jovem. Portanto, ocupar simultaneamente lugares de dentro e de fora, dependendo do referencial, exigiu duplo cuidado com a relao de tica e confiana construda com cada grupo. O envolvimento com os dois lados (o universo dos jovens participantes da pesquisa e da ONG Viva Rio) foi intenso e, certamente, influenciado pela grande generosidade com que fui recebida em ambos os casos.

    Portanto, o quadro (ou o contexto) sobre o qual se estabeleceu a estrutura de trabalho da pesquisa foi delimitado, em parte, por relaes sociais formadas a partir da academia de boxe (considerando a articulao prvia da entidade responsvel pelo projeto LPP com a regio da Mar) e estendidas para um universo maior de favelas circunvizinhas ao espao de treinos, atravs da atuao dos jovens freqentadores das atividades deste centro esportivo. Sendo assim, tais adolescentes passaram a ocupar uma posio de interseco entre o contexto micro do projeto e o contexto macro das favelas onde moram, desempenhando um papel de mediadores na interao entre os universos citados. Esta mediao caracterizou a aproximao da pesquisadora junto a algumas favelas especficas da Mar, levando em conta o acesso a espaos pblicos e privados de convivncia entre esses jovens.

    Durante a pesquisa, os deslocamentos no campo no cobriram toda a extenso da rea da Mar, composta por cerca de dezesseis localidades17. A pesquisadora se deixou

    guiar, basicamente, por trajetos feitos pelos jovens em suas rotinas de vida, visitando suas casas e percorrendo caminhos que levavam ao Projeto LPP. A partir deste recorte, as favelas onde se concentraram as observaes foram Parque Unio, Rubens Vaz e Nova Holanda. Alm de serem locais de moradia da grande maioria dos jovens freqentadores do boxe, os dois primeiros foram, ainda, onde a academia Luta Pela Paz

    manteve sua sede durante o perodo de realizao deste trabalho (entre 2000 e 2003, a LPP esteve situada no Parque Unio; no fim de 2003, mudou-se para a Nova Holanda). Incurses por outras localidades como Parque Mar, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau e Ramos embora fossem freqentes, no fizeram parte de uma observao mais

    16 Expresso usada literalmente pela me de um dos participantes dos treinos de boxe, ao indagar se a

    pesquisadora era estrangeira? 17Fonte: Censo Mar-2000 (www.ceasm.org.br).

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    cautelosa, j que a inteno do estudo era elaborar uma percepo mais apurada sobre as favelas mais prximas academia de boxe.

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    pugilismo, a interpretao de um aprendizado cotidiano que se d atravs do corpo se

    torna ainda mais importante. O autor ressalta:

    (...) a fecundidade de uma abordagem que leva a srio, tanto no plano terico quanto metodolgico e retrico, o fato de que o agente social , antes de mais nada, um

    ser de carne de nervos, e de sentidos (no duplo sentido de sensual e de significante), um ser que sofre (... ) e que participa do universo que o faz e que, em contrapartida, ele contribui para fazer, com todas as fibras de seu corpo e de seu corao. (2002:11)

    De volta aos jovens da academia LPP, perceber aqueles lutadores como pessoas detentoras de trajetrias singulares passou a significar uma forma de acessar a prtica do boxe por outro vis, a saber, o das histrias de vida (dando nfase dimenso carnal da existncia). Foi movida pela vontade inicial de conhec-las que comecei a freqentar a academia Luta Pela Paz, com autorizao da sua equipe de coordenao. Aos poucos, desenvolvi uma relao de confiana e amizade com alguns aprendizes de boxe, a partir da qual se tornou vivel a proposta de documentao fotogrfica do ambiente de treinos e das lutas das quais participavam. Com o passar do tempo, a convivncia com os

    jovens lutadores tornou possvel perceber semelhanas e diferenas entre eles; para quem no conhecia suas histrias, os adolescentes daquele universo tinham em comum apenas o local de moradia, a faixa etria, determinados aspectos de cunho scio-econmico e o fato de terem escolhido entrar para o boxe. Estas so, em linhas gerais,

    algumas das caractersticas que os aproximam, porm, alm dos aspectos citados, muitos outros se sobressaram a partir da anlise de suas representaes sobre si prprios, suas prticas e experincias. Na academia, logo conheci Deco e Rivan, ambos com 16 anos, moradores da Nova Holanda e da Rubens Vaz, localidades vizinhas situadas na Mar (zona norte do Rio de Janeiro), prximas ao Parque Unio, onde ficava a sede do projeto LPP. Jovens, residentes nesta rea de baixa renda denominada de Faixa de Gaza carioca18 em reportagens de televiso de projeo nacional e nos principais jornais da imprensa local, que classificam toda a regio, indistintamente, como uma zona de guerra - eles se conheceram nos treinos de boxe, onde se tornaram amigos. A relao que se estabeleceu entre ambos na academia foi descrita da seguinte forma:

    18 Exemplos de reportagens: Na Mar, a Faixa de Gaza carioca (Jornal do Brasil, 31 de agosto 2001);

    Violncia de volta Faixa de Gaza (O Globo, 25 de maio de 2005).

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    O Rivan, conheci ele no ringue; a gente foi ganhando intimidade fazendo

    luva, um batendo no outro. (...) A gente fazia brincando e foi pegando amizade atravs do boxe. (Deco, 16 anos)

    Chegava l, fazia uma luva com o Deco; me amarrava em fazer luva com ele, porque eu fecho com ele e pensava no vou deixar ele me bater no. A ele

    pensava que no ia me deixar bater. Ficava aquela disputa: eu dava soco, ele dava

    risada, eu ficava fazendo careta pra ele e o treinador nem se ligava. (Rivan, 16 anos)

    Formalmente, a pesquisa ainda no havia se iniciado e ambos viriam a se tornar

    importantes interlocutores, assim como suas histrias de vida inspiradoras de questes que se colocam neste trabalho. Na noite de suas estrias no boxe, fotografei a vitria de Rivan e a derrota de Deco. O objetivo da produo das imagens era, em primeiro lugar, desenvolver um projeto de documentao fotogrfica sobre trajetrias de vida de jovens como Rivan e Deco, movida por interesse pessoal em me aproximar, como moradora do Rio de Janeiro, de um lugar da cidade que seguramente tinha nuances e uma riqueza de situaes que ia muito alm do senso comum e de rotulaes que chegam, principalmente pelo canal da mdia, aos cariocas, visitantes e residentes, em geral, desta

    mesma cidade. J tendo realizado trabalhos de documentao fotogrfica rea qual tenho me dedicado com maior freqncia - sobre outros temas (tais como: modos de vida de moradores s margens do Rio So Francisco; memrias de imigrantes que se

    estabeleceram desde as primeiras dcadas do sculo XX em reas especficas do centro do Rio de Janeiro; refugiados em busca de asilo poltico no Reino Unido), percebi que a fotografia, mais do que uma tcnica de registro por si s, constitua-se em uma forma de estabelecer relao com a alteridade. E, como tal, os princpios fundamentais norteadores desta relao com o outro deveriam incluir o respeito e a confiana. A partir deles, iniciei a aproximao do campo de pesquisa. Em troca, ofereci aos jovens e academia a possibilidade de uso das imagens, fosse para colocar em lbuns de famlia ou para divulgar as atividades da Luta Pela Paz. Inmeras vezes, presenteei os jovens com suas prprias imagens em situaes de competio ou de lazer. Esta prtica passou a ser muito valorizada por eles, principalmente no caso dos vencedores de lutas, que solicitavam insistentemente seus retratos no momento da vitria. Colocadas em porta retratos ou em pequenas molduras, tais fotografias passaram a ocupar lugar de destaque

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    nas casas dos jovens, fato corriqueiramente relatado na academia por colegas de treinos que freqentavam mutuamente seus ambientes familiares. Lenta e gradual, a aproximao do universo dos jovens foi se delineando a partir da convivncia no espao de treinos de boxe. Passei a visitar a academia uma vez por semana, aps obter autorizao da coordenao da LPP. As primeiras fotografias eram de longe, gerais, enquadrando todo o grupo durante o treino, e realizadas somente aps pedir permisso para os fotografados, ou seja, as imagens nunca eram roubadas ou tiradas sem consentimento; s passei a fazer fotografias individuais dos jovens e curta distncia depois de cerca de dois meses, perodo em que a maioria deles j tinha tomado conhecimento dos meus objetivos. Com o tempo, acabei por me tornar a fotgrafa da academia, para os alunos, papel que de fato acabei desempenhando por cerca de trs anos, regularmente, j que fotografava todas as competies e as imagens produzidas tambm eram utilizadas para divulgar o projeto Luta Pela Paz junto imprensa nacional e internacional.

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    posicionamento protestos e proibies contra confrontos brbaros realizados, poca,

    sem nenhum tipo de limite onde, no raro, o fim era decretado pela morte de um dos participantes. Muitos desdobramentos ocorreram at se chegar a um formato padronizado de regras, hoje reconhecido como esporte, com adeptos por todo o mundo, e regulamentado por entidades nos nveis regional, nacional e internacional. Atendo-nos aqui sociedade contempornea, se percebemos que o boxe desperta sentimento de reprovao, preciso reconhecer tambm a existncia do reverso da moeda. Ou seja, junto quele olhar marcadamente preconceituoso convive o olhar entusiasta dos que lotam os grandes shows de boxe (nos locais onde h investimento financeiro e, entre outros aspectos, promoo do esporte junto mdia) e dos aficionados que comparecem mesmo aos menores eventos, sempre na esperana de poder apreciar uma boa luta. Neste sentido, basta lembrar, ainda, alguns nomes de lutadores clebres como George Foreman, Muhammed Ali, Mike Tyson, e, para o pblico brasileiro, der Jofre, Maguila e Pop, em tempos mais recentes - transformados em heris nacionais ou mundiais aps conquistarem ttulos de campees de boxe. Por ora, importa perceber que esses olhares representam duas posies bem demarcadas e contrastantes em relao temtica anterior. Diante destas perspectivas dicotmicas - reprovao ou adorao, dio ou

    amor , a proposta aqui colocada buscar ir alm de vises extremas, evitando as oposies e dicotomias geralmente acionadas para expressar posicionamentos a respeito da prtica do boxe. Para tanto, um dos principais aspectos deste trabalho se volta para o ponto de vista de jovens lutadores da Mar sobre a prtica de boxe na academia onde aprenderam a lutar.

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    longo do processo de pesquisa. Como nos mostra Howard Becker, citado por

    GOLDENBERG (2003)20, ressaltando a vantagem da utilizao de fontes de informaes complementares, cada pea acrescentada num mosaico contribui para a compreenso do quadro como um todo.

    Outro aspecto relevante em relao coleta de dados junto aos jovens neste trabalho foi o fato de que, tanto quanto o objeto de pesquisa, os procedimentos metodolgicos foram sendo construdos aos poucos, de acordo com a aceitao, a adequao e os limites colocados pela situao do campo. Um exemplo claro disso foi o silncio instalado entre a maioria dos entrevistados aps a morte de Rivan (junto ao irmo), um dos principais informantes e o primeiro a relatar, com riqueza de detalhes, sua histria de vida para esta pesquisa. Passaram-se o enterro, as missas e os meses, sem que as poucas e desencontradas verses existentes para os motivos e as circunstncias do episdio, ocorrido em 05 de agosto de 2004, fossem abordadas no campo de pesquisa. As condies foram respeitadas pela pesquisadora. Alguns meses aps o ocorrido, ao buscar saber a verso oficial sobre o assunto fora do campo, consultando o boletim de ocorrncia policial, a pesquisadora foi aconselhada na delegacia a no mexer no caso, j que havia envolvimento de policiais. Mais uma vez o silncio se imps e o significado do no dito se tornou suficientemente claro: havia fortes razes para que o rgo competente no tivesse interesse em esclarecer o caso, ainda em aberto. No fui adiante. Portanto, a difcil tarefa de perceber e buscar adaptao aos limites do campo esteve sempre presente, assim como a de buscar mtodos de pesquisa

    complementares, que pudessem contribuir para a anlise final. J a partir de 2001, ano seguinte ao da inaugurao da Luta Pela Paz, treinos de

    boxe e competies promovidas por este centro esportivo passaram a ser acompanhados, com regularidade. Com as visitas semanais academia em horrios de treino (sextas noite), estabeleceu-se uma rotina de observao de campo em que as anotaes de campo eram complementadas pelo trabalho de documentao fotogrfica; registros de histrias de vida de jovens que participavam daquele ambiente. Junto a isso, somou-se a observao de campo participante, realizada, em perodos intermitentes, entre 2001 e 2005.21 Neste trabalho, foram includos trechos do dirio e imagens utilizadas no contexto dos grupos focais (abordados adianto).

    20 GOLDENBERG, Miriam. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Cincias Sociais.

    Rio e Janeiro: Record, 2003. 21

    Detalhes sobre a freqncia ao campo de pesquisa em anexo.

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    Aps o primeiro ano de pesquisa de campo, iniciou-se uma reflexo sobre

    categorias e formas de classificao utilizadas pelos jovens no cotidiano das favelas onde moravam. As representaes - percepes, classificaes, smbolos - que informavam as prticas sociais e se faziam presentes nas falas, gestos e corpos destes jovens, constituram-se em importantes suportes empricos neste trabalho. Das narrativas dos alunos sobressaam, em particular, interpretaes sobre a prtica do boxe, vnculos afetivos estabelecidos no espao da academia, resultados de lutas e sensaes experimentadas durante treinos e competies, dificuldades e prazeres da vida de adolescente onde residiam, o ambiente familiar, o contato com o narcotrfico e com a

    polcia e, ainda, expresses acerca do que entendiam como favela, comunidade, briga e luta. Alm das histrias de vida de jovens da LPP, foram feitas entrevistas individuais com diferentes atores sociais presentes no campo de pesquisa e no meio do boxe

    carioca, somando um total de 28 depoimentos. Estruturadas em formato aberto e com roteiro pr-definido, as entrevistas da pesquisa foram estendidas a diferentes vozes presentes no campo, com o intuito de ampliar, na medida do possvel, o espectro de percepo do contexto para nveis mais abrangentes de sociabilidade local partindo do

    ambiente de treinos (treinador e equipe da academia), para o ambiente familiar dos jovens, situaes de interao em espaos pblicos das favelas Parque Unio, Nova Holanda e Rubens Vaz etc. Para melhor compreender o panorama regional do boxe amador foram feitas entrevistas com profissionais deste meio esportivo; por outro lado,

    dirigentes de ONGs que desenvolvem projetos sociais relacionados prtica de esportes tambm foram entrevistados.

    J no perodo final do trabalho de campo, em dezembro de 2004, propus aos praticantes de boxe da LPP a realizao da tcnica de grupo focal. Prioritariamente, a inteno que motivou o convite foi abordar temas especficos, como a experincia da

    prtica de boxe, pouco explorados em algumas das narrativas de histrias de vida. Divididos em novatos (com menos de um ano de prtica de boxe) e veteranos (com mais de um ano), dois grupos foram conduzidos separadamente, tendo como eixo de discusso o mesmo roteiro de trabalho pr-definido (em anexo). Sobre a relevncia da varivel do tempo de participao na academia, a premissa levantada foi a de que alunos com mais de um ano de prtica de boxe teriam um acmulo de experincia neste oficio, que proporcionaria diferentes percepes desta prtica em relao aos novatos, com poucos meses de boxe. Conhecer ambas as representaes foi importante para

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    compreender diferentes parmetros e critrios de escolha pelo boxe, fornecer elementos

    de comparao entre os pontos de vista de adolescentes que estavam comeando a aprender esta atividade corporal e as vises de jovens j experientes no boxe sobre os mesmos aspectos.

    A participao total foi de 12 jovens freqentadores da academia, sendo cinco novatos e sete veteranos, respectivamente. A conduo dos grupos focais levou em conta aspectos observados no cotidiano na Mar, na rotina da academia e das competies de boxe a exemplo, por um lado, do reconhecimento no meio social da favela trazido pelas vitrias em lutas, e por outro, das dificuldades enfrentadas pelos

    jovens para obterem bons desempenhos no dia a dia da disciplina dos treinos de boxe. Como tcnica de pesquisa qualitativa, nas Cincias Sociais os grupos focais

    tiveram origem com os trabalhos de Merton e Kendall (MORGAN, 1988) e j vem sendo utilizados amplamente nas Cincias Sociais. Seu objetivo no chegar a uma mdia das opinies, nem tampouco a uma opinio representativa de determinado grupo, mas detectar sentimentos, contradies, dvidas, diferenas, controvrsias e consensos sobre a experincia de participao em um projeto social (cuja peculiaridade o fato de se voltar para a prtica de boxe), que dificilmente seriam apreendidos atravs da aplicao de questionrios ou entrevistas individuais em profundidade. Os grupos focais evidenciam percepes dos indivduos em um processo reflexivo e discursivo conjunto, sendo assim, o mais importante nesta tcnica a interao estabelecida entre os participantes. Como ressalta Nahyda von der Weid (2000:5), a tcnica dos grupos focais oferece uma fonte para a percepo das questes mobilizadoras, dos consensos, dos conflitos e do poder de argumentao da populao envolvida.

    A interpretao da dinmica que se estabelece em torno de discordncias, acordos e contradies traz elementos que podem subsidiar pesquisas qualitativas, alm de tambm buscar dados mais objetivos sobre determinadas situaes. Observando-se estes elementos, nos dois grupos focais foram estimuladas discusses entre os jovens direcionadas para algumas questes centrais. So elas: conhecer expresses de seus prprios vocabulrios usadas para explicar a experincia da prtica de boxe e da participao no centro esportivo Luta Pela Paz (aproximando o debate do objeto de pesquisa); perceber o lugar que o esporte e o projeto passaram a ocupar em suas histrias individuais e em formas de sociabilidade presentes em seu cotidiano (haveria desdobramentos em outros aspectos da vida social?); motivaes e expectativas em relao opo por esta atividade.

  • 33

    A partir deste foco temtico principal, buscou-se identificar, nas falas,

    significados conferidos pelos participantes dos grupos focais ao boxe, levando em conta discursos e prticas existentes no ambiente especfico onde praticam este esporte. As questes secundrias apresentadas para o debate incluram a vivncia da prtica do boxe propriamente dita - as primeiras impresses, os primeiros socos na cara, a vingana ou a canalizao da agressividade, razes para abandonar e continuar, sensaes durante lutas e treinos (medo, dor, raiva etc) e estratgias para lidar com eles, a descoberta de potencialidades e fragilidades, alm de representaes sobre temas como juventude, favela e oportunidades. A verbalizao de sensaes e sentimentos experimentados durante a rotina de treinos e lutas ajudou-os a refletir, por exemplo, sobre suas escolhas, sobre a influncia do boxe nas expectativas de reconhecimento pessoal de cada jovem e sobre a imagem criada por pessoas de seus crculos sociais em relao a ser lutador de boxe.

    As narrativas dos jovens resultantes destes debates esto expressas no corpo deste estudo. Algumas temticas foram mais frutferas em um grupo do que no outro, em funo dos vnculos mais estreitos ou frouxos estabelecidos com a academia. Por exemplo, assuntos como as regras de conduta da academia e a experincia de

    participao em lutas foram mais desenvolvidos pelos participantes mais antigos da academia; j entre os novatos, as relaes com a famlia, com os vizinhos, a convivncia em outros espaos das favelas onde moram e a participao em cursos extra curriculares ganharam maior destaque do que atividades promovidas pela academia.

    Entre os aspectos que sobressaram da discusso do grupo focal dos alunos mais antigos, pode-se destacar uma possvel relao de identidade construda com o projeto/academia Luta Pela Paz no decorrer do tempo de permanncia dos jovens em suas atividades. Um ponto que leva a crer nesta hiptese advm da forma como os participantes se apresentaram no incio do trabalho; convidados pela coordenadora a

    falarem o que achassem conveniente sobre si, as apresentaes de todos seguiram um padro, apenas com nome, idade e tempo de academia; nenhuma outra caracterstica pessoal (como estudo, famlia, ocupao ou trabalho) foi citada, apesar do estmulo da coordenadora do grupo. Junto aos novatos, duas caractersticas em relao vida

    pessoal se manifestaram claramente em suas auto-apresentaes: o estudo - todos os participantes, exceto um, citaram o fato de estarem estudando e o nvel de escolaridade - e a prtica de esportes trs, dos cinco, citaram o gosto por outras modalidades de esporte que tambm estavam praticando. Outro ponto o fato de, para os mais antigos,

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    o desempenho no ringue no ser to valorizado quanto para os novatos; entre os

    primeiros, dos sete jovens, apenas um participava de competies; os demais ressaltaram outros pontos que os aproximavam da academia como as amizades, as comemoraes de aniversrios que os faziam se sentir lembrados, a busca por relaes de afeto pouco manifestadas no ambiente familiar etc. J o grupo dos novatos demonstrou entusiasmo com a perspectiva de competir, mesmo em torneios internos, quando estivessem aptos, conseguissem se adaptar disciplina de treinos e s exigncias do instrutor; ao invs das amizades na academia, entre estes, foram ressaltadas as rivalidades. Ou seja, o vnculo estabelecido entre os mais antigos com o projeto vai alm do interesse pela atividade esportiva. As relaes afetivas (namoros, casamentos e filhos) tambm contribuem para a manuteno desse vnculo.

    Outro vis da observao de campo, que incluiu registros textuais e visuais, foi a participao, durante cerca de quatro meses, nos treinos femininos de boxe da LPP. Este

    procedimento no se baseou em qualquer expectativa (equivocada) de me colocar na posio do outro para entrar em contato com sensaes pretensamente anlogas s dos jovens moradores da Mar. Acredito no ser necessrio estender explicaes acerca do fato de que cada indivduo experimenta sensaes e prticas com toda a carga de um

    histrico de vida pessoal e coletivo particular, tornando a passagem de cada jovem pela academia de boxe uma experincia nica. O intuito de participar dos treinos surgiu, na verdade, a partir de um movimento individual muito simples: senti-me francamente atrada pelo aprendizado do boxe. Alm disso, considerei a participao nos treinos uma

    boa desculpa para acompanhar de forma mais eficiente as experincias dos jovens nos exerccios prticos, no ringue etc. A partir de um certo momento de convivncia no campo, senti necessidade de encontrar algo diferente que justificasse minha presena ali. Colocar-me sempre na posio de observadora das atividades, causou certo incmodo particularmente a mim, principalmente em relao aos novatos, os quais, por

    vezes, desconcentravam-se puxando assunto, prejudicando o treino. Ciente de problemas que poderiam decorrer desta aproximao radical, compartilhei com o instrutor, que conhece os alunos como ningum, outros membros da equipe da academia e mesmo com alguns jovens, minha vontade de participar das aulas. Todos me incentivaram. No perodo em que freqentei os treinos, pude identificar algumas alteraes corporais decorrentes da prtica deste esporte. Dentre as principais, poderia citar o aumento da rapidez de movimentos de reflexo (respostas corporais imediatas a estmulos externos), enrijecimento dos msculos dos braos (que, conseqentemente,

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    ganharam mais fora), alm da sensao de maior flego e disposio fsica. Descrevi meu primeiro dia de treino no dirio de campo e reproduzo um trecho a seguir.

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    Dirio de campo - 19/05/2004 Subo a escada que leva academia, ao lado da entrada do mercado Barateiro. O centro esportivo se localiza no andar de cima, ou na laje, deste pequeno mercado na Rua Teixeira Ribeiro (Nova Holanda - Mar). Os exaustores do andar de baixo jogam o calor diretamente para a sala de treino. Passo pela sala de musculao em meio aos aparelhos e observo a mesma cena que sempre encontro na entrada do ambiente de exerccios esportivos: junto a uma pequena mesa, D. Miriam confere as presenas e ausncias dos alunos inscritos no boxe. Ali todos se detm: jovens que participam dos treinos, curiosos que chegam s para olhar ou pedir informao, ex-alunos que saram por algum motivo, mas continuam a freqentar o espao. Quem j conhecido, cumprimenta D. Miriam, quem no se apresenta e diz ao que veio. Finalmente consegui chegar a tempo para treinar com as meninas, j vou dizendo ao ver que todas esto a postos para comear. Ela sorri e me apressa para entrar. Dirijo-me a Luiz, treinador da academia, que tambm j est preparado para a aula. Discretamente, digo que vim para treinar, j pensando no que enfrentaria naquele meu primeiro dia de prtica de boxe. Ele tambm sorri e diz logo J ! Entro no pequeno banheiro para trocar de roupa e l de dentro ouo Luiz avisar s outras meninas que vou participar do treino. Neste momento, uma delas pergunta quem exatamente ele est esperando, pois todas se conhecem e muitas tambm me conheciam. Ele diz, a Kita e ela se surpreende: U, mas ela veio treinar tambm?. Fico atenta para escutar a reao; ela responde Poxa, legal. Saio e j encontro dois colchonetes, um em cima do outro, e dois pesinhos de meio kg no cho para mim. Luiz puxa pesos e colches para frente e diz para eu ficar ali, num lugar bem central, frente das alunas antigas. Digo que sou iniciante e pergunto se no seria melhor alguma das outras meninas mais experientes ficarem ali. Ele titubeia e eu puxo os colches um pouco mais para trs, abrindo espao para as outras. Elas logo ocupam seus lugares frente e o treino comea. Somos oito mulheres; as meninas tm entre 14 e 17 anos (eu, certamente sou a mais velha ali). Juliana, Carol, Tamires e Rafaela so as alunas com mais tempo de academia uma mdia de 9 meses; as outras duas haviam entrado h pouco tempo. Madalena, esposa de Deco, tambm da turma, mas tem treinado mais tarde com os meninos por problemas com o horrio das 16 hs. Descalas, a maioria das meninas treina com roupas bem simples, que parecem seguir um certo padro. A combinao short jeans do tipo colante, com lycra, e top sem manga adotada por quase todas no treino. Entre elas, praticamente no h roupas de marcas conhecidas. A sala ampla e, por sermos poucas, sobra espao entre ns, ao contrrio da atual situao dos treinos masculinos, bem mais cheios, como pude perceber na

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    aula aps a nossa. Treinamos no cho, ao lado do ringue que ocupa um tero da rea total. No h msica, s as instrues do treinador. Cada dia da semana tem uma estrutura de treino um pouco diferente, sendo a primeira parte sempre composta por exerccios aerbicos e de musculao no tcnicos e a segunda variando entre a prtica de golpes no saco, treinos individuais de golpes, treino com adversrio e luva no ringue para os mais adiantados. Comeamos fazendo exerccios para esquentar: rodando os braos, depois a cabea. Em seguida, passamos para os exerccios aerbicos. Uma seqncia de pulos, polichinelos e outros. Comeo a me cansar. Passamos para flexes e abdominais. Atrs de mim h duas outras meninas tambm iniciantes; as mais antigas Carol, Tamires, Juliana, Rafaela e mais uma que no sei o nome reclamam um pouco, mas com bom humor, principalmente das flexes. Tamires se dirige Juliana (ambas participaram de uma apresentao de boxe feminino na ltima rodada de lutas promovida pela academia em outubro do ano passado), comentando sobre sua barriga, em tom de brincadeira, ou sacanagem, dizendo que ela deveria se esforar para perder a barriga e voltar a ficar em forma. Todas riem, inclusive Luiz, que aproveita a deixa para exigir mais das alunas. Continuo firme e forte, mas tambm dou minhas paradinhas durante os exerccios. Noto que alguns meninos observam o treino. Lembro que o meu lugar habitual nos treinos era aquele, de observadora, e me surpreendo olhando para mim no espelho treinando. No sinto constrangimento, mas uma sensao estranha, mas natural para quem passa a ocupar um lugar diferente do que est acostumado. Em seguida, passamos para os exerccios com os pesos nas mos. Os primeiros so tpicos de musculao (de p, flexionando os braos para frente, para trs e para os lados, de modo a exercitar os msculos bceps e trceps), logo depois passamos para os movimentos especficos do boxe. Partimos de uma posio de base para todos os golpes, onde o p esquerdo est um pouco frente do direito, os braos flexionados para cima, os cotovelos perto do umbigo e as mos fechadas na altura dos olhos, fechando a guarda, no jargo do esporte, que significa proteger o rosto dos golpes do adversrio. Sinto o desconforto de quem nunca experimentou aquela posio; custo a encontrar a forma correta de posicionar os punhos e esqueo de proteger o rosto quando retorno a mo depois de ensaiar um soco e sou corrigida vrias vezes por Luiz... O primeiro golpe a exercitar o jab: para os destros, dado com a mo esquerda para frente, no com intuito de acertar o adversrio, mas de medir a distncia certa em relao a este, para desferir, imediatamente aps, com a outra mo, o direto (a tradicional direita ou a menos comum esquerda, no caso dos canhotos, que tanto ouvimos durante as narraes das lutas), este sim para acertar o oponente em cheio. O jab uma preparao para o golpe pra valer que vem rapidamente em seguida. O corpo oscila como um pndulo para um lado e para o outro, tendo sempre o equilbrio no centro de gravidade. Comeo a tentar meus

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    primeiros jabs e, a sim, percebo que no tenho a menor intimidade com aqueles movimentos, ou melhor, que preciso mesmo muita prtica, preparo fsico e coordenao motora para aprender a dar um golpe. Nada que j no tenha escutado antes em minhas entrevistas e, em particular, quando conversei com Luke, mas tive a sensao corporal disso. Senti que minhas mos no tinham fora nem firmeza suficientes para descarregar toda a energia no ponto culminante que parece se concentrar na ponta da mo. Aos poucos, os movimentos foram sendo encaixados uns nos outros sob o comando do treinador. Jabs, diretos, giros de corpo e passos para frente e para trs eram encadeados por ns, todas de p, em frente ao espelho. Da metade do treino para o final, Luiz passou a dar exerccios diferentes para as alunas mais antigas, acrescentando outros tipos de golpes movimentao do corpo. Uma das outras meninas iniciantes teve ainda mais dificuldade de concatenar movimentos como giros de corpo e golpes quase simultneos. Dava pra notar que as mais adiantadas realmente davam um banho de tcnica em relao a ns.

    Como foi salientado anteriormente, o dilogo estabelecido entre os instrumentos

    de captao de dados qualitativos teve o intuito de agregar novas possibilidades de obteno e de interpretao de informaes a este trabalho. O mesmo raciocnio pode ser invocado para pensar o tipo de articulao que se procurou estabelecer entre imagens e texto neste trabalho. Tal perspectiva est presente no item a seguir.

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    A contribuio mais importante que a fotografia pode trazer pesquisa e ao

    discurso antropolgico, a meu ver, reside no fato de que, pela sua prpria natureza, ela

    obriga a uma percepo do mundo diferente daquela exigida pelos outros mtodos de

    pesquisa, dando assim acesso a informaes que dificilmente poderiam ser obtidas por outros meios. Estas informaes definidas por Maresca (1996:113) como as trocas que passam pelo silncio, pelos olhares, expresses faciais, mmicas, gestos, distncia, etc - podem ser teis mesmo quando no nos possvel enquadr-las no contexto lgico

    do discurso cientfico. Milton Guran (1997)

    22 Guran, Milton. Fotografar para descobrir, fotografar para contar. Tema de palestra apresentada na II

    Reunio de Antropologia do Mercosul, Uruguai, 1997.

  • 39

    No campo da antropologia, a linguagem visual no s tem sido crescentemente utilizada, como tambm passou a constituir um objeto de reflexo com caractersticas prprias. A imagem, independentemente de seu formato de captao (seja ele em vdeo, cinema, fotografia e outras meios visuais), fruto da extenso do olhar de quem a produz sobre determinada situao e, portanto, de escolhas visuais como o enquadramento, o foco, o momento etc. Trata-se de uma construo, a partir de um recorte preciso do mundo observvel e, como tal, deve fazer parte do processo de anlise no mbito de uma pesquisa antropolgica, caso a inteno do uso de imagens v

    alm do seu aspecto ilustrativo. Tambm participam deste processo de construo social de significados, alm do fotgrafo, os interesses de quem utiliza as imagens e a interpretao dos observadores.

    Por ora, necessrio ater-nos apenas aos registros fotogrficos que foram feitos

    partindo do ponto de vista da pesquisadora sobre o universo da academia de boxe Luta Pela Paz. Neste caso, optou-se por trabalhar com uma entre muitas possibilidades de uso da fotografia como ferramenta metodolgica. Como observa, ainda, Milton Guran (1997), a fotografia como instrumento de pesquisa pode ter duas funes especficas, ou seja, enquanto fonte de descobertas em relao ao objeto de estudo e como suporte de narrativas de suas caractersticas, complementando as informaes textuais e observaes de campo. Um primeiro momento da pesquisa foi caracterizado pelo uso da fotografia na

    fase de familiarizao com os jovens praticantes de boxe, constituindo uma forma de descoberta das particularidades do ambiente do projeto Luta Pela Paz. Cada tipo de fotografia tem uma especificidade dependendo do seu contexto de produo; como as imagens que compem o corpus fotogrfico desta pesquisa foram produzidas pela pesquisadora, o ponto de vista de um observador de fora do contexto analisado. Esta

    natureza etique do olhar, ou seja, a partir de uma perspectiva externa, tem suas implicaes e limitaes. Se tivessem sido produzidas por uma perspectiva de dentro do contexto (um morador local, por exemplo), constituir-se-iam em representaes de um grupo sobre si mesmo, pressupondo a possibilidade de identificao social com aquela

    imagem. No caso de um olhar externo, em geral, necessrio submeter a imagem interpretao do grupo retratado (ou representado) para aprender com ele sobre sua prpria cultura e realidade. Este foi o procedimento adotado no presente trabalho.

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    Partindo das sries de fotografias de autoria da pesquisadora, algumas imagens

    foram incorporadas metodologia de pesquisa, na medida em que um conjunto de fotografias foi levado aos participantes dos grupos focais para que fossem interpretadas por eles. Tal procedimento trouxe a peculiaridade de transformar a imagem em gatilho mental para a discusso de temas que se pretendia abordar. Essa caracterstica pode ser apontada como uma das vantagens de uso da fotografia neste trabalho, j que se buscavam maneiras de evitar, na medida do possvel, o direcionamento de argumentos e falas dos jovens.

    As imagens escolhidas para serem comentadas pelos jovens foram inseridas ao longo do texto e integradas s temticas levantadas por eles23. Desta maneira, colocaram-se tambm como recurso para construir a narrativa do trabalho. Outro intuito importante do uso das fotos nos grupos focais foi de buscar a reconstruo de significados visuais, a partir dos diferentes pontos de vista dos jovens lutadores sobre imagens de treinos e lutas - produzidas pela pesquisadora , onde os sujeitos das imagens eram os prprios jovens e seus colegas de academia. A importncia desse procedimento explicada pelo mesmo autor:

    As entrevistas feitas com fotografias permitem, por exemplo, que aspectos

    apenas percebidos ou intudos pelo pesquisador sejam vistos - e se transformem em dados - a partir dos comentrios do informante sobre a imagem (Guran, 1997).

    Como as seqncias de imagens tiradas ao longo dos ltimos anos j constituem uma leitura visual de diversos momentos da histria da academia, sentimentos de nostalgia, recordao e emoo ao reconhecer amigos que abandonaram a academia ou morreram vieram tona. A identificao dos jovens com uma parte de suas histrias pessoais e coletivas foi estimulada pela visualizao das imagens.

    As informaes provenientes da anlise do discurso visual no substituem a palavra oral e escrita, apenas agregam outras informaes, baseadas na apreenso do processo de significao que a imagem traz em si. A proposta de incorporar uma narrativa a partir de imagens fotogrficas a este trabalho tem como objetivo acrescentar o recurso da interpretao visual s representaes sociais que se fazem presentes no

    23 As imagens que constam neste estudo e no so acompanhadas por um memorial descritivo, composto

    pela narrativa de um jovem freqentador do projeto LPP e a anlise desta narrativa, possuem carter apenas ilustrativo.

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    campo de pesquisa, criando um ponto de vista particular sobre as mesmas. Esta

    abordagem se insere na perspectiva exposta por Mrcia Pereira Leite (1997), segundo a qual colocada a possibilidade de se utilizar/analisar a imagem pressupondo a sua construo interna, capaz de produzir sentidos diferentes de acordo com os contextos e as formas com que se apresentam.24 Esta construo interna leva em conta a existncia

    de elementos que expressam cdigos culturais e simbologias retratando a (in)visibilidade de representaes sociais (LEITE: 1997).

    Quanto ao uso da fotografia durante a experincia de campo, algumas observaes sobre a receptividade a esta atividade demonstram significados adquiridos pela cmera e pelo ato de fotografar, conseqentemente, no ambiente de pesquisa. Nesse caso especifico, o ato fotogrfico assume uma condio ambgua: instrumento de valorizao e reconhecimento, em alguns momentos, e representao de ameaa em

    outros (situaes descritas a seguir). Uma regra local comentada por moradores da Nova Holanda e favelas prximas era de que os objetivos de quem portasse algum tipo de cmera pelas ruas deveriam ser conhecidos pelo grupo de integrantes do narcotrfico presente no lugar. Durante cerca de quatro anos fotografei as atividades da academia,

    sem qualquer problema, porm, evitando tirar fotos em ambientes externos - quando o fiz foi em companhia de fotgrafos cujos trabalhos j eram localmente conhecidos. A seguir, um trecho do dirio de campo.

    Dirio de campo - 13/05/2004 Fui academia com o objetivo de encontrar o aluno Adalberto, 16 anos,

    para conhecer sua casa e fazer um retrato junto sua famlia. J era noite quando sa com o adolescente da academia de boxe, na Nova Holanda, em direo sua casa no Parque Unio. Pela primeira vez, traficantes locais pediram para eu parar de fotografar enquanto caminhvamos pela regio. Foi na volta do trajeto.

    Na ida, por volta de 17h30, andamos uns dez minutos, passando pela rua Principal (que corta algumas favelas), depois pegamos atalhos por vielas e ruas escuras at chegar casa de Adalberto, no Parque Unio. Algumas lojas, mercados e a maioria dos bares ainda estavam abertos. No caminho, tambm vi crianas jogando videogame em pequenas casas de jogos eletrnicos, barbeiros cortando cabelo, gente nas caladas conversando, vrios tipos de barraquinhas nas ruas - de churrasco, de venda de CDs etc. Na casa de Adalberto, fui muito

    24 A autora analisou a multiplicidade de sentidos e representaes expressas em discursos imagticos,

    gerados por ocasio da mobilizao Reage Rio, em 1995, no Rio de Janeiro.

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    bem recebida por seus parentes, considerando o fato de que a famlia no havia sido avisada previamente pelo jovem sobre a visita. Me, um irmo e uma irm, de 14 anos e grvida, moram em uma pequena casa de alvenaria de dois andares.

    Todos foram literalmente pegos de surpresa com a nossa entrada, o que no impediu que o irmo de Adalberto, viesse nos receber com um sorriso, ainda com uniforme de escola. Passado o pequeno susto inicial, a me e a irm vieram falar conosco. Expliquei o motivo da minha visita, os objetivos da pesquisa e pedi permisso para fazer fotos. D. Marta pareceu orgulhosa do filho, disse amavelmente que no se importava em tirar fotos, fez elogios ao projeto Luta Pela Paz, mas no escondeu que, no incio, no gostou muito daquela histria de o filho fazer boxe. Adalberto sorriu (ele estava com camisa da academia e uma atadura no brao). O tom da conversa era bastante informal e continuou da mesma forma quando D. Marta narrou histrias tristes de sua vida (espontaneamente), como o fato de o marido t-la abandonado e no dar nenhum tipo de ajuda para criar os filhos.

    Num momento de pausa, Adalberto perguntou se eu no queria tirar as fotos. Concordei e chamamos os outros irmos para se sentarem na sala. Fotografei a famlia todos se abraaram sem que eu pedisse; antes eu j havia fotografado Adalberto sozinho no mesmo local. Pedi para fotograf-los tambm na fachada da casa. Como estava tudo escuro, perguntei se havia luz. D. Marta prontamente foi acender. Fiz mais algumas fotos de Adalberto junto com a me e o irmo. Todos nos despedimos, entrei para pegar minha mochila e a irm veio mostrar um filhote de cachorro que nascera fazia pouco tempo. D. Marta me pediu para fotografar e o fiz. Muito gentil, ela chamou para tomar um caf. Depois disso tudo, j na sada, a me do jovem perguntou, com simpatia: Voc estrangeira? Fiquei meio surpresa, mas nem tanto, pois era a segunda vez que me faziam a mesma pergunta na Mar. Respondi que no, que era carioca mesmo e quis saber porque eu parecia estrangeira. No sei, pelo seu jeito de falar, sei l, disse ela.

    Depois fomos at a esquina onde Adalberto comeu um churrasco no espeto. Pedi para fotograf-lo ali j que estvamos bem prximos a sua casa. Autorizao concedida, fiz a foto e fomos caminhando de volta. A poucos metros dali tirei mais uma foto de Adalberto caminhando. Neste momento, uma voz surgiu de longe, em tom de imposio, vinda de um grupo de homens que estava numa esquina prxima: foto aqui no. Logo abaixei a mquina acatando o pedido e continuamos o nosso caminho. Em seguida, Adalberto comeou a falar sobre o ocorrido.

    Adalberto - Eles no gostam mesmo que tire foto. Pesquisadora - Eu achava que, mais dia menos dia, isso poderia

    acontecer.

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    Adalberto No precisa se preocupar, eu conheo eles, tenho um amigo que j foi envolvido...

    (silncio) Pesquisadora Na verdade, no estou preocupada por mim, mas por

    voc. Ser que eles vo vir tirar satisfao com voc depois? Adalberto No, eles no me importunam. Se a gente no mexe com

    eles, eles no mexem com a gente. Voc ficou com medo? Pesquisadora Um pouco; sei que vou ter que pensar em algum tipo de

    atitude para lidar com isso de agora em diante, pois gostaria de fotografar um pouco mais do lado de fora da academia. H trs anos ando por aqui, mas fotografo s no interior da academia, justamente por saber que fazer isso na rua um passo difcil. Durante todo esse tempo respeitei a regra de que o trfico no gosta que tirem fotos. O que eu queria mesmo era saber o que vocs pensam disso, sugestes de como devo agir. Talvez seja o caso de avisar a eles o que estou fazendo.

    Adalberto , talvez eles tenham que ficar sabendo, porque se no pra denunciar nada, no tem problema. Eles sabem que ns da comunidade no estamos nem a pra isso.

    Pesquisadora Esse exatamente o meu problema: eu sou de fora e eles no sabem as minhas intenes; talvez seja melhor que eles fiquem sabendo. Mas precisamos conversar sobre isso com calma.

    Adalberto Pode me procurar a hora que voc quiser. Pesquisadora Valeu.

    A partir deste trecho do dirio de campo, evidencia-se a necessidade de tornar

    claras as intenes da pesquisadora, em certas ocasies, no s para os entrevistados e para aqueles diretamente envolvidos com a academia de boxe, mas tambm para outros atores sociais importantes no contexto de pesquisa. O conhecimento apenas tcito de que o grupo de traficantes local estabelece regras - e, como detentores de poder, autoriza ou no atividades que julgam convenientes em sua rea de atuao -, ganhou contornos explcitos por ocasio de uma incurso fotogrfica ao Parque Unio. importante lembrar que em nenhum outro momento houve qualquer interferncia na atividade de pesquisa. Por outro lado, a pesquisadora acabou por experimentar um dilema tambm presente no cotidiano de projetos atuantes no local: como proceder em relao ao poder do narcotrfico na rea? Entrar em contato direto para esclarecer suas intenes; fazer chegar a eles (de alguma forma) informaes sobre sua atividade; ou simplesmente desempenhar sua atividade, correndo o risco de uma abordagem para tirar satisfao, mas valendo-se de outras relaes sociais que possam advogar a seu

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    favor em conversas e comentrios na localidade. A ltima hiptese entre as que se

    apresentavam no campo, pareceu ser a mais adequada (e segura), portanto, foi o procedimento adotado nesta pesquisa.25

    Como enfatizado anteriormente, os instrumentos metodolgicos adotados nesta pesquisa tiveram a inteno de acrescentar e articular informaes sobre o contexto de estudo. Uma entrevista pode ser lida de forma diversa quando complementada por um trecho do dirio de campo, por exemplo. No que se refere especificamente s anlises qualitativas, as vrias aproximaes permitem uma viso do caso estudado sob

    diferentes ngulos, alm de revelar com maior clareza a posio do pesquisador, dos riscos de bias nos quais pode incorrer e contribuir para minimiz-los. Sobre esta questo, BECKER (1999) acredita que a melhor forma de evitar a tomada de partido inconscientemente de um ou outro lado envolvido na pesquisa tornar conhecidos todos

    os passos da pesquisa. O autor acrescenta: Na medida em que sabemos o que estamos fazendo, em vez de faz-lo ao acaso, podemos dizer que temos como evitar o problema. Portanto, a forma como me inseri no campo trouxe vantagens como o livre acesso academia de boxe e sua equipe, a permisso para fotografar e realizar

    entrevistas com os freqentadores etc; entre as desvantagens, poderia citar o risco de contaminao pelo ponto de vista do projeto LPP, o que busquei neutralizar a partir do mergulho no universo dos jovens e da organizao dos grupos focais, onde se torna mais difcil controlar as narrativas ou apresentar discursos prontos. No h

    dvidas quanto ao fato de que a aproximao do contexto de pesquisa poderia ter se dado de outra forma, porm, acredito que os ganhos obtidos a forma de acesso obtida tenham sido compensatrios.

    25 Moradores locais desenvolvem maneiras de lidar com a presena do narcotrfico no cotidiano, o que

    no significa conivncia com esta atividade criminosa. Manter distncia uma das formas mais comuns, traduzida na seguinte afirmao proveniente dos grupos focais: Se voc no mexe com eles, eles no mexem com voc. Este um tema amplo (no abordado especificamente neste trabalho), objeto de polmicas e debates, alm de ter ocupado o noticirio da imprensa em 2004, sob o enfoque das controversas relaes entre associaes de moradores e o trfico de drogas.

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    EFHGJILK3MONQPSR

    TVU:WXY%ZATVU\[L]A^`_)U:_abdceUAW>f?^g]%Z:h

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    antigo morador. Desta forma, procuro estabelecer um dilogo entre dois tipos de

    vivncias diferentes, que se realizam no mesmo recorte do meio urbano carioca, porm, de maneiras distintas e em tempos que passaram a se encontrar a somente a partir das ltimas duas dcadas. Como foi descrito na introduo deste trabalho, a participao no campo de pesquisa permitiu a ampliao da escuta a vozes de moradores da Mar de perfis e faixas etrias distintas. Dessa forma, narrativas de personagens que residem nesse ambiente h mais tempo cumprem, em relao ao caso analisado, o papel de permitir a compreenso de aspectos sociais que contriburam para fazer do contexto da Mar o que hoje em dia. No que diz respeito ao objeto de estudo, as distintas representaes sobre a Mar constituem o pano de fundo do encontro entre experincias que se constroem coletivamente no mbito do projeto esportivo Luta Pela Paz, a partir dos momentos em que jovens locais passam a freqentar este lugar. As trocas que acontecem neste ambiente de sociabilidade ocorrem em meio a um fluxo de vida social, sempre contnuo, onde as pessoas que dele fazem parte nunca so vazios sociais, trazendo consigo, inevitavelmente, suas histrias pregressas e origens diversificadas.

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    i jlk:monqprsutAv4rVwxJyAz*rv){|>}~tAv4|e

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    Atualmente, os limites de toda a sua rea territorial se estendem at os bairros do Caju, Bonsucesso, Penha e Ilha do Governador, ocupando cerca de 800 mil m2. O aeroporto internacional e a baa de Guanabara tambm so outros importantes acessos cidade situados bem prximos ao local. Para os observadores de fora (em geral, moradores de outras localidades da cidade que precisam utilizar as vias expressas nos trajetos dirios de ida e volta do trabalho ou do local de estudo), predominante a impresso de homogeneidade em relao a este recorte do tecido social carioca, prximo ao Fundo, principal campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Se, de longe, a totalidade da Mar parece indistinta, de perto, descobre-se que as peas desta imensa rea de solo

    urbano - ou seja, as favelas que a vieram a se instalar - tm histrias diferentes, marcadas por aspectos polticos e socioeconmicos que guardam fortes conexes com as formas variadas de ocupao populacional de toda a regio ao longo de, pelo menos, cinqenta anos e ganham expresses concretas nas distintas rotinas de vida existentes

    nestes locais.

    Em relao ao universo total da cidade do Rio de Janeiro, a rea territorial da Mar superior a da Rocinha, do conjunto de favelas do Alemo, da Mangueira, da Cidade de Deus, de Vigrio Geral e de Parada de Lucas, entre muitas outras localidades.

    Classificada como bairro pela prefeitur