Cordel: Uma proposta para o ensino de História
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Cordel: Uma proposta para o ensino de História
Adriana de Carvalho Mazuchini1
Resumo:
Este artigo tem como objetivo uma proposta para o ensino de Historia. A literatura de
cordel surge como fonte historiográfica e como representação cultural, sendo parte do
enredo proposto, as questões sociais e a História do cotidiano, na virada do século XIX
para o século XX. A temática da literatura de cordel e seus derivados temas são
possibilidades para o ensino da cultura afro-brasileira e nordestina, de forma que permite
estudar sujeitos sociais de um determinado espaço em um tempo histórico construindo
uma relação entre a literatura e as transformações da sociedade. Serão analisados
folhetos levando em conta representação do sujeito afro brasileiro e as histórias contadas
e cantadas com o tema da marginalização do negro e do pobre, exemplificando a
literatura de cordel como recurso didático no ensino de História.
Palavras chave: Ensino de História, Cordel, Material didático, História e cultura Afro
brasileira.
Aluna do curso de História da Universidade Nove de Julho. Artigo apresentado como exigência da disciplina de
Trabalho de Conclusão de Curso II, no ano de 2015, sob orientação do professor Juliano Custodio Sobrinho.
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Cordel: Uma proposta para o ensino de História
Adriana de Carvalho Mazuchini
Introdução
A relevância desta pesquisa consiste em, além de informar, permitir que o cordel se
torne uma fonte de pesquisa prazerosa, associada a uma vertente de conhecimento que amplie
visões de mundo em pró de uma transformação, auxiliando no processo de ensino
aprendizagem em história. Na expectativa do professor, uma forma mais crítica e clara de como
é possível ensinar História, já a dos alunos, uma forma agradável de aprender. Na mesma
perspectiva, os cordéis podem ser tomados como um excelente espaço de cultivo sobre os
conflitos sociais, por registrarem uma grande quantidade de temas, dentre os diversos possíveis,
concernirmos aqui ao sujeito afro brasileiro, em seus lugares sociais e sua realidade histórica
em nosso país.
A literatura de cordel esteve sempre ligada aos contos tradicionais e fatos importantes
de cultura e cotidiano. Deslocando dos livros didáticos, que pouco abordam os problemas
enfrentados pelas populações nordestinas, tais como a seca a pobreza, a questão da terra, a
busca por emprego, a saída de sua terra, as disparidades sociais e dentre outros, tentamos
introduzir a literatura de cordel enquanto registro cultural para preencher esta lacuna que trata
dessas questões, como recurso didático. Lembrando que a literatura de cordel está passando por
um processo de adequação a novas perspectivas e que é preciso analisar o histórico de fatos não
somente a partir das transcrições oficiais, da fala dos vitoriosos e tendenciosos, mas também
através das feições dadas pelos cordelistas que mostram outros momentos históricos
vivenciados e testemunhados. Este é um rico material de estudo histórico social que pode ser
significativo para avaliar as versões que cercam em diferentes meios sociais, permitindo o
resgate de atitudes críticas entre as chamadas esferas populares.
Na esfera nordeste, as histórias dos cordéis sempre foram e continuam sendo mantidas
não apenas pelo imaginário e fantasioso, mas, especialmente, por acontecimentos e eventos que
ocorrem no cotidiano. Desde sua introdução ganharam contornos devido à maneira como os
poetas narram às histórias de homens e mulheres nordestinos. O saber literário deu significados
através da explanação social de escritores que utilizaram esse desenho de produção do co-
nhecimento, para demonstrar no cotidiano como a vida social brasileira era, e assim podendo
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tricotar não só narrativas sobre nordestinos, mas também sobre as questões de afro brasilidade,
e as visões construídas no domínio literário sobre suas histórias.
Os acontecimentos da realidade histórica que fizeram parte do social brasileiro mostram
como, do século XIX até o XX, a literatura popular em verso e impressa em folhetos falou do
Brasil e de sua gente. Os poetas cordelistas ajustando o que acontecia no mundo vivido,
representava de maneira versada, o contexto social. Com cada variedade de interpretação dos
acontecimentos, era consumido por um público muito amplo.
A literatura de cordel produziu traço e significados da ação humana no tempo. Obrando
na vida cultural brasileira, o poeta de cordel, proclama sua sensibilidade diante do mundo. A
resistência negra e a vida nordestina parecem ser o palco e a fonte dos folhetos. Através da
leitura do social, o poeta estuda sobre, e imprime em seu fazer poético, um sentido que
notabiliza histórias, muitas vezes esquecidas pela historiografia oficial. Transitando no meio
informativo, entre comunidades rurais, e até mesmo no meio educacional pelo caráter
alfabetizador, o cordel subsiste porque se reinventa e adapta às metamorfoses pelas quais
passam as sociedades e as culturas de cada época.
A literatura de cordel como recurso didático no ensino de História é um desafio aos
professores em sala de aula, é o colocar em prática o conhecimento adquirido na universidade,
estimulando a pesquisa e não apenas a mera transmissão de conhecimento Fazendo do aluno
sujeito participativo, uma vez que, trabalhar os fatos é de suma importância, mas garantir uma
conscientização social a partir desses fatos é o que dá sentido ao fazer História. Assim, várias
práticas educativas são adotadas pelos professores, que também devem considerar as propostas
expressas nos currículos da disciplina. Desse modo, a literatura de cordel se insere nas práticas
educativas. O cordel permite uma maior participação dos alunos nas aulas e o estímulo à
pesquisa, analisando os discursos dos poetas diante dos acontecimentos, representando assim
uma nova linguagem para o ensino de História.
1. História do Cordel
A literatura de Cordel tem seu princípio na região da península Ibérica quando ainda era
conhecida e denominada como “folheto” ou “livro de feira” impressa em papel barato vendido
em mercados, praças e também nas feiras, tinha como público alvo a classe média entre suas
principais temáticas estavam romances, contos fantásticos, sátiras, teatro e até mesmo notícia.
O cordel chega até o Brasil em meados dos séculos XVI e XVII com os portugueses. Envolta
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de forte tradição oral, a literatura de cordel ganha um amplo espaço, onde sua principal função
fica a cargo de informar e transmitir a cultura popular.
Chegando ao Brasil a literatura de cordel sofreu impactos transformadores,
diferenciando- se da matriz lusa cuja métrica não era uníssona, já em terras brasileiras ela toma
forma e padrões para a sua confecção. Acolhida no nordeste do Brasil2, a literatura de cordel
será disseminada em maior parte entre os poucos letrados trabalhadores rurais, o reflexo sobre
o homem do campo devido à dificuldade econômica, foi à busca por novos meios de
subsistência nas cidades. O cordel ganha forte poder formativo e de informação, já que o país
na virada do século XIX sofrera imensa transformação que afetou os interesses comerciais
urbanos3. Assim como (GALVÃO, 2001 p.312) diz, a Literatura de Cordel vem, desde sua
concepção, a estimular o pensamento crítico e reflexivo de seus fruidores, haja vista que
contribuiu sobremaneira para sua inserção na cultura letrada passando da comunicação oral
apenas para a comunicação escrita.
Os primeiros escritores de folhetos que saíram do campo procurando subsistência nas
cidades traziam consigo as influências da tradição, histórias e contos, junto a isso caminhavam
com uma esperança de dias melhores. Vivendo nas cidades, os poetas começaram a transpor
para o papel todo esse universo de experiências. Além dos contos e cantorias de viola que
estavam guardados na memória, o som dos maracatus, dos reisados, do coco, da embolada. É
essa cultura, influenciada pelos ritmos afro-brasileiros, pela mistura entre rituais sagrados e
profanos, que faz do cordel uma produção cultural distinta das outras. (MARINHO, 2012 p.18).
O Nordeste do Brasil é considerado um local privilegiado em se tratando de
narradores: cantadores, poetas de cordel, contadores de histórias, são todos
considerados grandes narradores que estabeleceram fortes vínculos com a
experiência de narrar, constituindo um rico fabulário de contos, poemas,
histórias de vida comum de todos, em todos os dias, histórias de heróis e
histórias de trabalho. (GUILLEN, 1999 p. 148).
2 Para Tavares Júnior (1980) o Nordeste (e também o Norte) teria sido a região brasileira em que mais os valores
trazidos pelos colonizadores teriam sido aceitos. Por essa razão, a literatura de cordel aí teria se desenvolvido com
maior vigor: “Sua aclimatação no Norte e Nordeste, a aceitação de sua mensagem decorrem do fato de que se vive
nessas regiões uma ambiência social, que endossa e cultua a axiologia recebida com a colonização.” TAVARES
JÚNIOR, Luiz. O mito na literatura de cordel. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1980. 3 Mudança econômica ocorrida pela implantação da lei de abolição da escravatura.
“A região nordestina brasileira enfrentava, na época, um grave problema social, resultante do fim da escravidão.
(...) A aristocracia local, sacudida pela perda de uma força de trabalho certa, enfraquecia-se cedendo aos poucos
seu lugar poderoso e dominante na política regional”. CURRAN, Mark. Historia do Brasil em cordel. São Paulo:
Edusp, 2001.p.41.
5
Leandro Gomes de Barros é um dos primeiros cordelistas a se assumir como tal, e inicia
a produção em tipografia própria, é reconhecido por ser o maior produtor de cordel na virada
do século XIX para o XX. Em 1893 ele é acompanhado nessa produção por Francisco das
Chagas Batista e João Martins Athayde que seguem até hoje como sendo os nomes mais
renomados e considerados os grandes mestres da literatura de cordel, neste mesmo período são
definidas as regras de produção e venda dos cordéis. (MARINHO, 2012 p.22)
Após muitos problemas de autoria e edição ficaram definidas regras básicas para a
confecção dos livretos, uma delas a introdução de acrósticos nos últimos versos dos folhetos
para identificação do autor, seria como uma marca d’água autenticatória. Outras regras
implantadas foram à delimitação de páginas de acordo com a classificação dos folhetos.
Poemas de circunstancia faziam parte do cotidiano e pelejas eram batalhas entre os repentistas
ou cantadores, geralmente versadas em sete silabas que apresentavam de 8 a 16 páginas, já os
romances traçavam um enredo, como uma espécie de conto, eram escritos em sextilhas4 de 24 a
56 páginas, pois eram mais elaborados e prolixos. A venda dos folhetos se fazia nas ruas ou
através do correio e a partir de 1920, os livrinhos começam a ser encontrados nos mercados
públicos. No inicio, o próprio autor se encarregava da venda, mas com o tempo, passaram a
existir os agentes revendedores. (MARINHO, 2012 p.23).
O que não podemos esquecer é a forma com que o cordel era passado, os folhetos eram
lidos e cantados em praças de forma coletiva, uma pessoa letrada ficava responsável por
interpretar os folhetos para a comunidade, assim unindo os em um mesmo espírito e claramente
difundindo de forma coesa a informação, diversão e o encantamento.
Interessante notar que numa época e numa região em que a maioria da
população era constituída de analfabetos, estes folhetos impressos
encontravam um grande público de auditores, pois as poesias eram
apresentadas por cantadores em saraus, reuniões e feiras, e por serem escritas
em versos 4, havia certa facilidade de serem memorizadas pelos ouvintes.
(GRILLO, 2008 p.2).
O imaginário criado pelo cordel culminava em um maior interesse desse tipo de
literatura, o que acarretava aos não letrados uma vontade e iniciativa de aprender a ler, assim
não precisando de alguém que os interpretava, não mais preso a oralidade, mas, dependendo de
sua própria interpretação para que se obtivesse maior número de informações possíveis. A
4 Cordel romance escrito comumente em seis linhas que possui regras de rimas alternadas entre a primeira linha
com a segunda, terceira com a segunda e quarta com a segunda, usualmente chamado de rima ABCBDB.
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partir da relação estreita com as cartas de ABC amplamente divulgadas, se iniciava um
processo de alfabetização de forma autônoma.
Além de utilizada em processos formais e informais de ensino, é comum a
referência, nas fontes analisadas, aos processos autodidatas de decodificação
da leitura através das cartas. Em um processo solitário de reflexão
metalinguística, de construção de hipóteses, na tentativa de conferir
significados para um novo código, adultos analfabetos se alfabetizavam.
(GALVÃO, 2001 p.334)
Um dos exemplos de autodidatismo é próprio editor e cordelista João Martins de
Athayde, que superou o analfabetismo inspirado pelos cordéis e pela vontade de criar seus
próprios versos.
“O que aprendi de leitura foi quase por minha conta e pela minha força de
vontade. Sentindo desejo de escrever as minhas glosas, comprei uma carta de
ABC de Landelino Rocha e andava com ela dentro do chapéu para toda parte.
Eu ia tratar do gado e me sentava, às vezes, debaixo dos pés de pau só para
estudar as lições. Quando cheguei na parte que diz: ‘É meu pai...’não precisei
mais de ajuda de ninguém e por mim mesmo continuei a aprender. Acontece,
porém, que eu aprendi a escrever com a mão esquerda e por isso minhas
palavras apareciam escritas pelo avesso (...) Depois endireitei e fui pelo
caminho dos outros.” (TERRA,1983, p.45- 46).
Dentro da sociedade desprovida textos a literatura de cordel veio a convir como meio
para transmissão de notícias. Antes dos jornais, eram seus folhetos que ocupavam o lugar de
transmitir informação. Tal episódio pode ser validado quando houve decaimento desta literatura
com a divulgação do jornal. As tipografias se instalaram e os jornais passaram a se alastrar
enquanto que o cordel logo ficou sem parte ou quase todo seu espaço.
O cordel e a música sempre muito próximos se entrelaçam com facilidade, folhetos
recebem melodias e os cantadores entoam nas praças assim como as canções são recitadas,
lembrando que cantadores, repentistas ou violeiros não devem ser confundidos com outras
categorias de poetas populares no caso emboladores5, estes são influenciados pelo momento em
que a criação ocorre, ou seja, uma versão de acordo com um tema exposto no ato, já os
cantadores se delimitam aos cordéis existentes, expressam uma melhor organização para com o
tipo de apresentação selecionando um local e assunto pré-determinados.
Possivelmente uma das canções mais conhecidas, feita por um poeta popular,
de valor artístico reconhecidamente grande e de forte apelo social, é “A triste
partida”, de Patativa do Assaré. Interpretada inicialmente por Luiz Gonzaga,
5 Autores contribuem para o entendimento do processo de identificação e formação do cordel e de sua
musicalidade. AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina. São Paulo:
Ática, 1988. P. 15.
7
esta canção é a saga do sofrimento do nordestino que foge da seca e busca
salvação em São Paulo. (MARINHO, 2012 p.83).
Ao longo de sua trajetória, o cordel, tem sido instrumento de informação, de lazer, de
vindicações de cunho social muitas vezes não explicita. Na literatura de cordel aponta-se uma
expressão do caráter de denuncia de injustiças sociais, presentes na sociedade há séculos.
O Cordel que através de sua narrativa conta os acontecimentos de um dado
período e de um dado lugar se transforma em memória, documento e registro
da história brasileira. Tais acontecimentos recordados e reportados pelo
cordelista, que além de autor se coloca como conselheiro do povo e
historiador popular dá origem a uma crônica de sua época. (GRILLO, 2008
p.2).
Atentando-se a literatura de cordel, observa-se o modo como o cordelista vai relatando a
degradação da sociedade, o aumento de sua dor e abandono, contribuindo para uma noção mais
apurada de sua riqueza literária, fazendo dos males sociais uma inspiração que de certo
auxiliará na compreensão em desmitificar diversos preconceitos relativos à cultura popular.
Trata se, então, de crônica popular porque expressa a cosmovisão das massas
de origem nordestina e as raízes do Nordeste na linguagem do povo. É
história popular porque relata os eventos que fizeram a história a partir de
uma perspectiva popular. Seus poetas são do povo e o representam nos seus
versos. Nesse sentido, o cordel pode ser considerado o documento popular
mais completo do Nordeste brasileiro. (CURRAN, 1998: 1920 p.20).
Segundo Marco Haurélio, muitos estudiosos esboçaram classificações em tentativas,
quase sempre insuficientes, de fixar os principais temas abordados. Essas tentativas de
classificação, por vezes, confundiam o cordel com a literatura oral. A maioria, num esforço
bem intencionado, mas mal dirigido, acabou ratificando o preconceito dos que sempre
enxergaram no cordel uma expressão literária menor, a margem da literatura “oficial”. Essas
discussões a respeito da classificação do cordel, se não chegaram a um consenso final, no
mínimo abriram as portas para que a literatura de cordel mostrasse sua abrangência, que
perpassa os limites da literatura tradicional, fazendo parte da vida de milhares de nordestinos.
1.1. A Literatura para a historiografia e o ensino de História
A relação entre historia e literatura faz parte de uma das vertentes da História Cultural,
cuja aproximação se dá no plano epistemológico. Partindo do pressuposto cabe discutir o
conceito de representação e a utilização do imaginário e da ficcionalidade na escrita do texto
literário e histórico.
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Os estudos históricos vêm sofrendo consideráveis transformações paradigmáticas na
interpretação da realidade social e na investigação do passado. As explicações da realidade
histórica trouxeram uma nova agitação nas discussões sobre o oficio do historiador e uma
renovação epistemológica de cunho cultural e social. Essa renovação na historiografia inicia no
campo da pesquisa e em seguida alcança o ensino de História. Trata-se de uma contribuição, ao
mesmo tempo em que exige, estima qualquer tipo de linguagem em sala de aula e ao fato de
não se ater ao livro didático e à aula simplesmente expositiva. Os Parâmetros Curriculares
Nacionais assinalam essa necessidade no que se refere à Educação Básica, com o desígnio de
que os discentes sejam capazes de interpretar diversos tipos de linguagens, como citado no
nível do Ensino Médio. Trabalhar com documentos requer uma cautela específica por parte do
docente. Ler e reler o documento, seja qual for a sua origem, é requerimento essencial, para
que assegure ao professor como um apoio, de modo que, o docente sinta segurança em discuti-
lo com seus alunos.
De fato nos tempos atuais um dos meios mais utilizados pelos historiadores como objeto
de estudo é a literatura na sua estreita competência no conceito de representação. Segundo
Chartier em sua obra A História Cultural, o conceito de representação se define como
“instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da
substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar como ele
é”(CHARTIER,1990 p.20).
Segundo Certeau (1975 p. 111 apud CHARTIER, 2009 p.15) “A História como
escritura desdobrada tem, então, a tripla tarefa de convocar o passado, que já não esta num
discurso no presente; e convencer o leitor:” Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do
discurso funciona à maneira de uma maquinaria que extrai da citação uma verossimilhança do
relato e uma validade do saber. Ela produz credibilidade”.
A literatura aparece na história como caminho para resegnificação de um tempo, ou
seja, a literatura é um documento histórico, não uma fonte fidedigna do fato ocorrido, mas um
produto do tempo da mentalidade dos que viveram no momento histórico.
História e literatura correspondem a narrativas explicativas do real que se
renovam no tempo e no espaço, mas que são dotadas de um traço de
permanência ancestral: os homens, desde sempre, expressaram pela linguagem
o mundo do visto e do não visto, através das suas diferentes formas: a
oralidade, a escrita, a imagem, a música. (PESAVENTO, 2006 p.3).
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O cordel é uma representação de um momento histórico, uma narrativa intertextual,
com isso nos leva a um afunilamento de pensamento em que o contexto literário do cordel que
é lúdico, mas ao mesmo tempo concreto, se baseia em contos que representam a vivência de
uma sociedade, mesmo não sendo uma literatura erudita, logo pode ser utilizada para
compreensão de contextos históricos. O cordel caminha entre o ficcional e o real. Entende-se
por ficção aquilo que é imaginado e o imaginário faz parte de uma construção social que
segundo Le Goff é, portanto, histórica e datada, e guarda as suas especificidades assumindo
sentidos diferentes e configurações diferentes ao longo do tempo e através do espaço.
Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para
confirmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda
para ultrapassá-lo. Com narrativas, são representações que se referem à vida e
que a explicam. (PESAVENTO, 2006 p.6)
É importante pensar no significado de documento literário não só como vestígios do
passado, mas também como representações do olhar do autor para com seu mundo, como uma
concepção cognitiva intencional, capaz de imortalizar memórias selecionadas para manter-se na
história. Nilda Teves (2002) em seu trabalho intitulado: Imaginário social, identidade e
memória, referem-se à necessidade de refletir “documento enquanto monumento”. Mas
devemos considerar que as fontes tornam-se instrumento de mediação entre presente e passado.
Cabe aos estudiosos da História, compreender e selecionar as múltiplas faces do cordel,
pois estudar o que é produzido por estas, é estar aberto às possibilidades, separando os
conceitos e preconceitos privilegiando os acontecimentos reais partilhados entre sujeitos de um
mesmo espaço geográfico e de um mesmo tempo histórico. História e literatura têm como
objetivo registrar as experiências do homem na sua passagem pelo tempo.
O uso da literatura de cordel no estudo da História é tema que envolve não somente os
acontecimentos e influências da história em um período para um melhor aprendizado, mas
também a própria história em si, para o entendimento do pensamento e atitude de uma
sociedade em seu tempo, uma vez que basicamente todo o desenvolvimento da história como
ciência se baseou em observações da sociedade.
É comum ouvir se que a História do Brasil precisa ser recontada. Se a
historiografia se dispõe a tal empreendimento, não pode desprezar o cotejo da
versão oficial com a popular, porquanto esse confronto ajudará a reescrever a
História do povo brasileiro. (SANTOS: 1987 p. 23).
10
Dessa forma podemos dizer que o cordel possibilita a correlação entre os conteúdos da
historia e o cotidiano, atualidade e passado, contribuindo para a formação do aluno. Estas
atividades apontam um importante fator, além de ensinar conceitos relacionados aos conteúdos
teóricos, podem chamar e retomar a atenção dos alunos para o ensino de historia, onde serão
unidos os conceitos teóricos e a literatura para uma aprendizagem significativa.
É evidente que na atualidade os professores devem se munir de múltiplas ferramentas
para trabalhar os conceitos e a História em sala de aula, cada vez mais é preciso que sejam
efetivadas aulas atraentes para que o aluno encontre a história em seu cotidiano, desta forma
apreendendo e de maneira completa o conhecimento. Sabe-se que os recursos como livros
didáticos, filmes, imagens, são muito utilizados pelos professores e certamente auxiliam nessa
aproximação do aluno com a ciência histórica. A literatura também tem sido parte integradora
nesse campo, de forma que abrange a interdisciplinaridade e torna a construção do saber mais
completa.
A prática lecionaria imposta em sala de aula mantém professor e aluno como reféns de
uma realidade estabelecida pelo maior recurso disponível em sala. No caso o livro didático é
utilizado como única fonte de conhecimento histórico valendo-se da memorização dos
conceitos e dos temas, fazendo das informações meras reproduções o que gera um comodismo
por parte do professor, ato que se transfere para o aluno.
Segundo Circe Bittencourt (2004), este método de ensino tem sido alvo de criticas de
vários pesquisadores, já que o método tradicional se baseia em transcrever textos, memorizar
datas, nomes de autoridades e grandes heróis, e ainda se encontra muito presente em sala de
aula. Para vencer este comodismo do conhecimento histórico, a pesquisa em sala de aula é
substancial.
Para tanto, a minha proposta sustenta-se na convicção da necessidade de
superar a cadeia normatizadora do conhecimento, pronto, acabado e
localizado, desabsolutizando as formas de conhecimento, mesmo o cientifico.
Nessa cadeia de inserem como sujeitos passivos professores e alunos,
sustentados pelo elo do livro didático – contribuindo para reprodução de
estruturas de pensamentos dominantes de maneira acrítica, confundindo o
obvil com o saber. Trata-se, assim de fazer da construção do conhecimento
uma produção humana, a partir de bases racionais e cientificas. (KNAUSS,
2007 p.33)
Circe Bittencourt ainda na mesma linha de pensamento sugere a utilização de outros
documentos, de forma que o conhecimento do aluno possa ser considerado no processo de
construção da aprendizagem histórica. O senso comum é parte agregadora nesse processo, cabe
11
à estrutura intelectual já inserida ser modificada. A autora ainda sugere que o professor seja
mediador entre senso comum e o conhecimento científico, fazendo do aluno parte integrante do
ensino- aprendizagem, explicitando conceitos a partir da realidade do discente. O estimulo é
papel do docente, utilizar outras fontes como pesquisa é parte fundamental, cujo intuito é
demonstrar que não existe uma única verdade absoluta na história. Salientando que “é
necessário lembrar que eles devem ser motivadores e não podem constituir em texto de leitura
que produza mais dificuldades do que interesse e curiosidade.” (BITTENCOURT, 2004 p.).
O cordel pode conceber uma nova linguagem para o ensino de História, representando
uma fonte de natureza caracterizada daquela encontrada nos materiais didáticos habitualmente
usados em sala de aula. Diante desses embates a literatura de cordel aparece como uma
proposta didática que possibilita maior envolvimento dos alunos nas aulas, analisando os
discursos dos poetas diante dos acontecimentos e os comparando com as temáticas do livro
didático.
1.2 Cordéis como recurso didático.
Os folhetos de cordel são um ótimo recurso interdisciplinar. O objetivo aqui é analisar a
viabilidade do cordel como recurso didático no ensino de História. Atualmente o cordel não
tem nas escolas de São Paulo, um grande espaço, porém no nordeste seu fator alfabetizador é
muito forte para o melhor entendimento dos conteúdos escolares, não esquecendo também que
é utilizado em momentos de descontração. Durante anos o cordel foi um dos meios de
autoinstrução dos setores populares no interior do Brasil. Hoje os docentes podem encontrar na
literatura de cordel um precioso auxílio para suas empreitadas na sala de aula.
Segundo GRILLO, os folhetos principalmente os de época são os mais excitantes para
história em sala de aula. Diversos são os eventos do século XX, contidos nos folhetos que
relatam o cotidiano, desde casamentos até vitorias eleitorais, que possuem representações
diversas contidas nos livros didáticos de história. A autora ainda destaca o caráter jornalístico
do cordel, que informava sobre os acontecimentos do cotidiano e apesar desta característica o
cordel tinha uma especificidade poética que o tornava mais atrativo para a leitura e que era seu
diferencial. Desta forma além de prover a falta de noticia, hoje ele se torna uma rica fonte de
pesquisa para a história, para a sociologia, para a antropologia e para a literatura. (GRILLO,
2009, p. 117).
12
Antes de usar os folhetos é necessária uma introdução do conteúdo nas aulas. É certo
dizer aqui que a sugestão de utilização do cordel no ensino de História não rejeita o livro
didático. Os conhecimentos prévios viriam da introdução do conteúdo pelo professor a partir de
documentos previamente selecionados. Assim, durante a leitura dos cordeis, os alunos irão
reconhecer o assunto tratado. Nessa proposta, o professor deve inicialmente ensinar o conteúdo
com o auxilio do livro didático, para depois fazer uso dos folhetos, o cordel apareceria como
uma alternativa para comparar pontos de vistas em relação à História. É importante evidenciar
aos alunos as finalidades da atividade, é preciso que os discentes saibam para qual sentido irão
ler os folhetos.
Destacando que o professor deve estar seguro de alguns pontos:
“Que o texto selecionado de fato ofereça condições para se alcançar os
objetivos propostos”, e que “tanto o objetivo como o texto ofereçam
motivação para a realização da tarefa”. Por motivação, entende-se que é “a
garantia de que os alunos possuem os conhecimentos prévios que viabilizem a
atividade, e que a definição do problema a ser resolvido por meio da leitura
lhes seja significativa”. (SILVA, 2004, p. 80).
Como ponto de partida para trabalhar o cordel em sala de aula, é preciso que haja um
levantamento dos folhetos que serão utilizados e sua pertinência em relação ao tema da aula.
Para exemplificar aqui, utilizaremos dois folhetos com a mesma temática, a trajetória do negro
na sociedade entre a escravização e os processos de abolição. A partir da analise desses folhetos
é perceptível pontos de vista diversos, cada autor retrata o tema de acordo com sua visão e
influências sociais. O cordel, assim como os documentos oficiais também é carregado de
ideologia, com as quais é necessário redobrar a atenção.
É importante levar em conta que o cordel e o cordelista recebem e receberam
inúmeras influencias oriundas dos gostos das cidades ou dos hábitos de outros
segmentos sociais (...). Em outro sentido o texto do cordel pode possuir
variados e diferentes significados para seu autor, seus ouvintes e leitores.
Todas essas considerações, entretanto, não invalidam a sua utilização como
uma fonte possível para se tentar compreender as visões de mundo, os valores,
e as expectativas dos cordelistas, sempre em dialogo aberto com um publico
majoritariamente formado por trabalhadores pobres e despossuídos (GRILLO,
2009 p. 120).
Muitos cordelistas versaram sobre os negros nas suas obras, caso de Varneci
Nascimento, Manoel Monteiro, Hélvia Calou, Antônio Heliton de Santana, dentre outros, que
13
se utiliza de suas escritas para fazer notar a condição social dos negros6. Lembrando que, ao ser
construído, o cordel envolve nítidas filtrações que podem ser conferidas quando o poeta faz sua
própria leitura do social a partir dos meios de informação e comunicação, que dão sentido ao
que desejam explanar. Após essa etapa é tecida a compreensão e interpretações para depositar
na confecção do cordel a sua visão sobre os acontecimentos supostamente inspiradores e
importantes.
Nas redes de relações sociais e culturais, elaboradas no dia a dia, os saberes e as práticas
produzidas apresentam no cordel sua viabilidade e visibilidade, já que essa forma de poesia
quase sempre relata os indivíduos em suas vivências e atividades cotidianas, fazem com que
sua obra e seu conhecimento sobre uma tipologia diferenciada de temas, encontrem uma forma
de subsistir. Nesse sentido, o poeta de cordel capta e interpreta em prestígio os sujeitos sociais,
históricos ou ficcionais nos folhetos. Nos textos poéticos, mulheres e homens negros, são
retratados em lugares sociais de seu pertencimento.
Desta maneira os poetas de cordel estabeleceram uma conexão com seu tempo histórico
e demarcaram outras maneiras de ver e vivificar a luta e a resistência quando versam sobre
esses sujeitos sociais, excluídos da historiografia oficial, e certificam o seu papel social.
Observa se essa representação de resistência do negro a sua escravização e
posicionamento social no cordel “Quilombo Manoel Congo, a saga de um guerreiro”, de
autoria de Medeiros Braga.
Manoel Congo é o primeiro
No tapete a se mexer,
A sua insatisfação
Dava bem pra perceber,
Sendo da África arrancado
Se mostrou inconformado
Com as elites no poder
(2010, p. 5)
O poeta não abdica em colocar sobre salto o fato de o protagonista não se sentir
conformado com o modo como era tratado. Nota se no verso, o lugar social de Manoel Congo
6 Ver ALMEIDA, Átila Augusto F. de; ALVES SOBRINHO, José. Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e
poetas de bancada, 2 vols. João Pessoa: Editora Universitária-UFPB / Campina Grande: Centro de Ciências e
Tecnologia-UFPB, 1978.
14
demarcado, colocando em ordem sua mente diante de uma realidade sofrida e castigadora à
qual estava sendo submetido, na condição de escravizado.
No trecho abaixo o autor Medeiros Braga expos uma inquietação, definindo a posição
social de Manoel do Congo, chamando a atenção no sentido de notabilizar o seu lugar na
sociedade:
Exercia Manoel Congo
O ofício de ferreiro,
Era menos maltratado
Pelo senhor fazendeiro,
Mas, nem por isso, deixou
De levar a sua dor
Às vitimas do cativeiro
Na África livre, e hoje
Entre a senzala e a morte
Manoel Congo sofria
Essa mudança de sorte...
Mais, ainda, em hora dada
Quando era acompanhada
De canga, tronco e chicote
(2010, p. 6)
A narrativa expressa à maneira como a vida do protagonista vai sofrendo mudanças: de
homem livre a escravo, de escravizado a líder de uma revolta. A vida marcada pelo
deslocamento espacial e social que teve início após a saída dele da África e culminou com a
modificação nos rumos de sua condição de ferreiro para trabalhador escravo em fazenda de
café.
O cordel sobre o Quilombo de Manoel Congo é uma útil ferramenta para o ensino de
História e cultura afro-brasileira, porque os quilombos se constituíram em espaços de luta, de
organização coletiva dos negros que tinham um ideal de liberdade. Voltamos nossos olhares
para os quilombos para perceber as táticas e as astúcias construídas por escravizados contra as
relações de domino, burlando preceitos opressores a que estavam submetidos.
15
A igreja tudo via
Mas, indiferente à dor
Fazia como o ditado:
“Ouvidos de mercador”,
E entre risos e prantos
Ficava com os encantos
Das moedas do opressor.
Por isso que Castro Alves
Desejou do fato atroz
Ter um raio em cada verso
Deixar marcada a maldade
Pela frase, com vontade,
De “ Maldição sobre vós”.
Também se deu esse clima
Na região de Vassouras
Lá no Rio de Janeiro
De terras tão promissoras
Onde, tirados dos lares,
Os escravos aos milhares
Foram postos nas lavouras
(2010, p. 7)
O cordelista aponta ao leitor as crueldades cometidas pelos senhores de escravo, dá
visibilidade para o que, muitas vezes na história, fica invisível. Fica claro nos versos a condição
de vida a qual eram submetidos os negros:
Era comum o mau uso
Da chibata e do grilhão
Da prisão no tronco e canga
Que levava à exaustão;
16
Da arma própria de corte,
Da pancada até a morte
Que servisse de lição.
Cabia ao escravocrata
A escolha dos casais
Para que filhos nascessem
Das relações sexuais,
Sadios, fortes, dispostos
Quando assumissem seus postos
Na luta dos cafezais.
(2010, p.12-13)
No decorrer dos versos, o poeta vai discorrendo sobre a História de Manoel, seu
personagem principal, e de como se formou o quilombo que leva seu nome, um dos mais
importantes do século XIX. Este fator atraiu a atenção da elite local, que prontamente se
incomodou com o poder que os quilombos exerciam, temiam por uma possível desorganização
nas formas de relações sociais. Na visão dos fazendeiros e da elite branca, escravo não podia
ganhar espaço. O autor conta como Manoel se articulou, e de forma sagaz reuniu forças para
sustentar sua idealização:
Manoel Congo com cuidado
Muitos escravos juntou,
Recolhidas várias armas
Mantimento e cobertor,
Passaram, seguindo a trilha,
Na Fazenda Maravilha
E já outros libertou.
Outros escravos sabendo
D´outras fazendas fugiam
17
Pegavam mulher e filhos
E o mesmo rumo seguiam
Era tão grande a vontade
De viver em liberdade
Que de nada eles temiam.
(2010, p.16)
Destaca-se também a figura feminina de Maria Crioula, companheira de luta de Manoel:
Manoel Congo, a essa altura
Como rei foi coroado
E Mariana Crioula
Rainha de muito agrado,
Ela dizia à classe:
“Morrer sim, nunca entregar-se”
Para ser escravizado.
(2010, p.18)
Fica claro que diante de tão feroz exploração, os escravos não se mantinham inerentes
àquela condição, a força e o poder de resistência é tema central para o poeta. O objetivo da
análise do cordel de Medeiros Braga é anunciar como a sociedade da época e suas instituições
como a igreja, por exemplo, que criaram formas de violência contra os negros escravizados.
Muito além, o cordelista não deixa de registrar as formas de organização e de rebelião
cultivadas pelos negros diante da escravidão da qual eles se tornaram vítimas. Na realidade, as
revoltas escravas não apresentavam apenas o início do caminho do negro africano no Brasil
durante o século XIX, mas demostravam a ascensão de movimentos importantes na formação
de um método de luta em prol da liberdade.
Se o racismo não diz respeito apenas à intolerância cultural, mas a
preconceitos ainda mais profundos, o aprendizado do respeito às diferenças
18
está na base de qualquer possibilidade de superação de sua recorrência na
sociedade. (MATTOS, 2009 p. 127).
A escola é parte fundamental no processo de quebra de paradigmas e preconceitos, é no
espaço escolar que o aluno encontra possibilidade de superação de conceitos formados pela
sociedade. É essencial relembrar no ensino de História, as personagens esquecidas que
esclarecem e explicam sobre o passado, e como transformam a sociedade com base nos fatos
que transcendem o tempo e transformam os citados preconceitos.
(...) o ensino de História, desenvolvido por meio de atividades específicas com
as diferentes temporalidades, especialmente da conjuntura e da longa duração,
pode favorecer a reavaliação dos valores do mundo de hoje, a distinção de
diferentes ritmos de transformações históricas, o redimensionamento do
presente na continuidade com os processos que o formaram e a construção de
identidades com as gerações passadas. (Parâmetros curriculares nacionais do
ensino médio, 2008, p. 27).
O cordel pode assumir essa característica de recordar, para que posteriormente possa ser
base para o estudo e para a mudança. Em alguns cordéis o poeta assume a função apenas de
registrar o momento, assume o papel de coautor, como é o caso da Peleja de Inácio da
Catingueira com Romano da Mãe d’agua. Esta ficou conhecida como a primeira peleja que se
tem registro. Os dois protagonistas não sabiam ler nem escrever, portanto a história foi
difundida por livretos de outros cordelistas. A data em que ocorreu a peleja é motivo de
discordância entre pesquisadores7, porém a que mais se acredita é entre os anos de 1874 ou 75.
Pesquisadores contemporâneos põem em dúvida a historicidade do encontro
legendário entre Inácio da Catingueira e Romano do Teixeira, apoiando-se em
uma análise das relações sociais no sertão dessa época, que torna pouco
provável um confronto entre um homem branco conhecido, proprietário de
bens, e um escravo negro. No entanto, tal argumento não permite negar
qualquer autenticidade à peleja: as relações entre cantadores não podem,
decerto, abstrair-se da sociedade na qual evoluem, mas é possível que o
talento excepcional de Inácio tenha lhe permitido ser reconhecido pelos outros
cantadores como um de seus pares. Romano era incontestavelmente um
cantador preparado, mestre em ciência da cantoria, e esse encontro talvez
tenha se tornado possível graças à admiração de Romano por Inácio da
Catingueira, cuja “promoção” ele assim facilitava (SANTOS, 2006, p. 32).
Uma das questões abarcadas pelo cordel À peleja de Inácio e Romano é a de raça. Com
base na diferença racial se ergue uma relação, transformada em diretriz de todas as discussões
que dão volume à contenda. Para sustentar essa relação, o primeiro critério estabelece-se na cor
7 LESSA, Orígenes. Inácio da Catingueira e Luís Gama: dois poetas negros contra o racismo dos mestiços. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982. Um dos cordéis mais reproduzidos, porém sem referencias
temporal e de quem é o seu autor real.
19
da pele do individuo, em decorrência da cor firma-se a categorização social dos personagens e a
classe social a qual pertencem. Assim fixada à classe social, constrói-se a certeza de
incapacidade de mudanças das condições de vida dos sujeitos nelas dispostos, e mais adiante as
afeições morais a que estão voltados.
A necessidade de organização social fortaleceu do Brasil uma postura. Um país que
possuía uma independência recente, com enorme número de escravos, necessitava de critérios
hierárquicos para estabelecer grupos sociais. Ao considerar o final do século XIX como palco
de realização dessa peleja que continua na memoria do povo, ela solicita levar em conta o
alastramento das ideias cientificistas naquele contexto, assim como o determinismo racial que
detratou o negro, o índio e o mestiço.
O Brasil, tornado nação independente no século XIX, precisou forjar sua
comunidade imaginada a partir de uma população étnica, linguística e
culturalmente heterogenia. Nascidos no Brasil, escravos e livres- de
ascendência europeia, indígena e africana- somavam-se a multidões de
imigrantes europeus de diferentes nacionalidades, em especial portugueses,
africanos de diferentes origens e línguas, indígenas de diferentes nações,
descidos como administrados ou escravizados em guerras justas, que
disputaram desde então os significados do tornar-se brasileiro. Esta disputa foi
precocemente transformada num processo hierarquizado de racialização, no
qual ser reconhecido como negro ou pardo equivalia a estar próximo da
condição escrava. Datam desde época as praticas, depois tornadas recorrentes
no país, de silenciar sobre a cor dos indivíduos em situações formais de
igualdade (MATTOS, 2009 p.130)
Inácio era um negro escravo no meio rural da serra dos Teixeira, lá na Paraíba. Cantava
com acompanhamento de pandeiro, já Romano era mulato e tocava viola. Nos seus versos, se
vangloriava de ser livre vergastava Inácio por ser inferior, devido a sua condição de negro e de
escravo.
Inaço, eu estou ciente
Que tu és um negro ativo;
Mas não estou satisfeito,
Devo te ser positivo:
Me abate hoje em cantar
Com um negro que é cativo.
Na verdade, seu Romano,
Eu sou negro confiado!
Eu negro e o sinhô branco
20
Da cor de café torrado!
Seu avô vei ao Brasil
Para ser negociado.
(1979)
A peleja é lendaria. Dizem que durou oito dias e noites, em 1875. Uns alardearam que
Inacio é quem havia ganhado. O certo é que essa peleja deu as bases tecnicas das cantorias
posteriores.Muitas versoes dessa peleja foram publicadas porém a versão mais estudada e
popularizada foi a de Luiz Nunes “A peleja que idealizei”, publicada em Inácio da Catingueira:
o gênio escravo. João Pessoa: A União, 1979 a qual se utiliza como base aqui.
Neste cordel em estudo, percebe-se que o imaginário do período mencionado se
encontrada baseado no contexto social em formação, neste, temos de um lado um escravo
Inácio que possuiu dom do versamento e cantoria o que lhe dava lugar de destaque entre os
outros escravos e de outro lado Romano, um mulato que não se reconhecia como descendente
de uma miscigenação e que valorizava sua posição social, dono de terras e de um escravo, e
para tanto reafirmava sua superioridade em verso.
Romano: Negro, me diga o seu nome
Que eu quero ser sabedor,
Se é solteiro ou casado
Aonde é morador,
Se acaso for cativo,
Diga quem é seu senhor
(1979, p. 39)
(...)
Romano: Inácio, vieste a Patos
Procurando quem te forre
Volta pra trás, meu negrinho,
Que aqui ninguém te socorre;
E quem cai nas minhas unhas
Apanha, deserta ou morre
(...)
21
Romano: Inaço, que andas fazendo
Aqui nesta freguesia,
Cadê o teu passaporte,
A tua carta de guia
Aonde tá teu sinhô
Cadê a tua famia
(1979, p.40)
A condição de negro e escravo são temas para os versos de Romano, em todas as suas
colocações a questão racial se sobressai como forma de colocar o negro, por seu tom de pele,
como inferior. Romano ressalta a todo instante a condição de escravo em que Inácio se
encontra, coloca em ênfase que escravo não havia de ter direito nesta sociedade que se
formava, o lugar social do negro está claramente demarcado: “Estou ouvindo as tuas loas,/ Não
te possa acreditar./ Que eu também tenho escravo/ Mas não mando vadiar,/ Que eu saio pra
divertir/ Os negros vão trabalhar” (1979, p.42).
Inácio por sua vez, não se mantinha calado, e respondia com destreza as afrontas de
Romano:
Na verdade, seu Romano,
Eu sou negro confiado!
Eu negro e o sinhô branco
Da cor de café torrado!
Seu avô vei ao Brasil
Para ser negociado (1979, p.59).
Nota se aqui os descrições fenotípicas referidas por Inácio, para marcar com precisão as
marcas de miscigenação do oponente. Nas pelejas, é comum a confrontação das características
físicas do indivíduo negro aos padrões de feiura e de malignidade, assim como as de um
demônio. Ao contrario das literaturas tradicionais (ou eruditas) que colocam o negro como
refém da sua condição, como exemplo, O Cortiço (1890) de Aluísio de Azevedo e o Bom
crioulo (1895) de Adolfo Caminha, no cordel, Inácio mostra esperteza e consegue batalhar em
22
igualdade com seu adversário. Do mesmo modo, nos atenta para a condição do brasileiro de ser
parte de uma sociedade mestiça desde a sua formação, correspondendo, portanto, as teorias
cientificistas cultivadas no Brasil.
A ciência contribuía para a naturalização das diferenças socioculturais,
estabelecendo correlações rígidas entre as leis da natureza- formuladas
com base na biologia- e a sociedade. Características físicas eram
associadas a atributos morais e serviam como justificativa para o atraso
social de algumas populações e para a afirmação da inviabilidade de
progresso de determinados países, entre as quais o Brasil.(GONTIJO,
2009 p 56).
Na América o mais observável dos fatos a respeito das relações raciais é a constância da
desigualdade racial em geral nos lugares com populações expressivas de brancos e negros, com
os negros em quase totalidade, em posição de desvantagem. O prolongamento de diferenças em
longo prazo implica fortemente na discriminação racial de algum tipo, mas não podemos previr
que toda ou qualquer desigualdade racial é consequência do racismo.
[...] o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se transforma em um
novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças sociais.
Mas a adoção dessas teorias não podia ser tão imediata nesse contexto. De um
lado, esses modelos pareciam justificar cientificamente organizações e
hierarquias tradicionais, que pela primeira vez - com o final da escravidão -
começavam a ser publicamente colocadas em questão. De outro lado, porém,
devido a sua interpretação pessimista da mestiçagem, tais teorias acabavam
por inviabilizar um projeto nacional que mal começara a se montar.
(SCHWARCZ, 2001, p.17-18).
Para discutir este problema, na natureza da dominação racial no Brasil, o momento da
abolição da escravidão é período indispensável para ser abordado em sala de aula, examinando
como o racismo se perpetua, muitas vezes tomando novas formas, apesar de alterações
institucionais e a conquista de novos direitos pelos negros. Para o professor é importante o uso
de diferentes fontes no momento da abordagem deste tema, de forma que leve o aluno a
compreender essa continuidade histórica que permeia a nossa sociedade atual. O cordel neste
caso, não se limita apenas em transcorrer o fato (a peleja) ele nos leva a refletir sobre outros
fatores como a resistência e a questão do mito da democracia racial ainda tão discutido pela
historiografia.
O mito da democracia racial, que afirma que “todos são iguais perante a
lei”, mas trata desigualmente, faz com que as desigualdades
socioeconômicas sofridas pela população negra sejam vistas como de
sua inteira responsabilidade, bastando se esforçar para conseguir
“chegar lá”. (SANTOS, 1998 p 99).
23
Estes são alguns exemplos de como o cordel pode ser utilizado como recurso didático
no ensino de historia. Além dos temas de cultura Afro-brasileira, outros temas podem ser
discutidos utilizando-se dos folhetos. Embora aqui o cordel tenha sido trabalhado como uma
fonte histórica para a compreensão do passado equivoca-se quem imagina que tal fonte não tem
importância no mundo atual, na verdade a tradição do cordel continua relevante até hoje apesar
de todos os avanços dos meios comunicacionais.
Considerações Finais
Através da presente pesquisa se faz possível compreender um pouco do pensamento
social e cultural do período histórico em questão e nos faz refletir e problematizar acerca do
ensino de história na atualidade. Lembrando que as problematizações e discussões contidas no
presente artigo não finalizam os diálogos, mas direcionam o professor sobre o caráter didático
do cordel para o ensino de História.
O objetivo principal é o de contribuir um pouco mais para uma reflexão e entendimento
acerca do cordel em sala de aula. Cabe destacar a importância do uso das atividades de leitura e
desta forma sugerir que essas atividades sejam introduzidas no planejamento do professor como
forma de aumentar o aprendizado do ensino de História, aproximando a ciência histórica de
forma lúdica e objetiva para os alunos do ensino básico em geral.
Fazer uso somente de técnicas tradicionais de ensino, onde o aluno recebe informações,
mas não interage, questiona ou reflete, faz com que haja uma grande perda no aprendizado, as
aulas de História são comumente ministradas treinando os alunos para memorização do
conteúdo e sua reprodução no momento da avaliação, o aluno tem que saber o que foi imposto
a ele pelo docente.
Uma proposta para resolver essa questão sem uma especifica abordagem, é propor que o
incentivo parta da gestão escolar para os professores, de forma que incluam em suas praticas
docentes a leitura de documentos extras como cordel, além do livro didático, mesmo que de
forma simples, sem o uso de locais específicos como sala de leitura, pois o incentivo destas
atividades pode proporcionar ao aluno um maior conhecimento sobre as transformações sociais,
dando sentido para as aulas de História.
No ensino de forma geral hoje, não se valoriza o poder de imaginação, de criação, de
crítica e de ponderação do educando, que justamente o cordel como literatura atinge. Tem se
discutido muito sob métodos que se apresentam como aliados ao processo de ensino-
24
aprendizagem, mas será que todo esse discurso está realmente em prática nas aulas de História?
Será que enquanto educadores, realmente estão abertos a considerar os discentes como
pensantes, com potencial para além de aulas que possuem apenas quadro e livro didático?
Logo, o cordel é uma relevante linguagem alternativa que necessita ser usada em sala de
aula, com o objetivo de auxiliar o livro didático na construção do conhecimento. De tal modo, é
preciso dar a esta literatura mais possibilidade de ser uma fonte de construção da História.
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