Contextos contemporâneos e demandas populares
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CONTEXTOS CONTEMPORÂNEOS E DEMANDAS POPULARES
Lílian do Valle
Gostaria de começar dizendo da minha alegria de estar aqui,
inaugurando um ano que espero seja muito fecundo e muito feliz
para todos vocês, e para o seu Programa, também.
Mas, em seguida, devo lhes fazer uma confissão: é que, ao ser tão
gentilmente convocada para aqui estar, eu me assustei quando
soube da temática: «Contextos Contemporâneos e Demandas
Populares». «Meu Deus, eu pensei, mas que sei eu sobre as
demandas populares?» Mas, ato contínuo, me dei conta de que esta
não era uma questão. Porque o ofício intelectual que é o meu – que
é o de todo nós – significa, exatamente, esta liberdade, de não
saber, de poder interrogar-se; e mais ainda, em nossa área, que
tem o humano como centro, nosso ofício implica em estar-se o
tempo todo na obrigação de construir sentido. Poder interrogar-se:
para isto, a filosofia é uma arma muito, muito poderosa, que nunca
nos deixa na mão, vem sempre em socorro de nossa inteligência, de
nosso espanto, oferecendo-nos instrumentos e procedimentos para
pensar além, para ir mais longe. Quanto à construção de sentido,
ela sem dúvida nasce desta interrogação, mas ela é, para quem
trava o doce combate da formação humana, mais do que um
privilégio, uma necessidade. Eu gosto de dizer que educar é
construir os sentidos de educar.
Assim – neste momento introdutório em que eu estou ainda
tentando acertar minhas contas com esta demanda tão especial que
me foi feita – eu vou me permitir uma pequena digressão e,
abusando da paciência de vocês, vou dizer o que me aflige no
cenário intelectual da educação, hoje: é a volta de uma concepção
que eu julgava ultrapassada, que pensava havia ficado para sempre
enterrada naqueles tempos pré-históricos em que eu era estudante.
Doce ilusão! Nos idos dos anos… hum, não vou dizer setenta, não,
vou parecer ainda mais velha, e eram bem os dois últimos anos da
década… sim, nos idos dos anos oitenta, a luta travada contra a
concepção tecnicista da educação parecia ter chegado a bom porto.
Sim, sabíamos que a educação era uma atividade eminentemente
política, e que a ciência, ou as chamas «ciências da educação»
entravam aí como saberes auxiliares, e nunca, jamais, como poder
normatizador; sim, sabíamos que não há «milagres» educacionais, e
que as tecnologias não iam nos isentar de nosso dever de
deliberação e escolha; tanto quanto sabíamos, ademais, que a boa
teoria é aquela que critica nossas certezas, e não a doutrina de que
nos servimos a cada vez que estamos embaraçados em explicar os
automatismos que acabamos inconscientemente por adquirir.
E, antes de voltar à nossa temática, eu queria compartilhar com
vocês este sentimento, esta convicção profunda: a beleza de nossa
área, a grandeza da educação está justamente no fato de que nada,
nesta atividade, se deixa aprisionar em receitas, em fórmulas, em
teorias, por melhores que sejam; a grandeza da área está no fato de
2
ela nos forçar a ser criativos. Eu me lembro das palavras de um
grande helenista, Moses Finley. Ele disse um dia que, criando a
democracia, os atenienses passaram a estar condenados à
inventividade. Eles passaram a estar obrigados a criar
continuamente seu regime. É um pouco como eu vejo a educação. E
é isto, exatamente, que está implicado na ideia de que a educação
é eminentemente política: isto não quer dizer que ela é um assunto
de leis, de governo, de poder – decerto ela também é isto. Mas ela
só é isto porque ela deriva de uma atividade instituinte que é diária,
que é coletiva, que é anônima – e é isto, mais que tudo, que define
sua dimensão política.
Aristóteles dividia o conhecimento entre as ciências que cuidavam
das coisas determinadas e «que não podiam ser de outra forma»,
isto é, que eram sujeitas às leis e ao conhecimento preciso (acribia);
e as ciências das coisas que comportavam indeterminação, isto é,
que podiam ser, ou não de uma certa forma. No caso destas
últimas, do saber que deve lidar com a indeterminação, duas
situações são possíveis. A primeira delas é aquela em que a
indeterminação é absoluta: estamos, aqui, diante do que
denominamos de «simples acaso» – que não permite,
evidentemente, nenhuma forma de saber ou especulação, porque
nada do que ocorre está submetido a uma regularidade a partir da
qual possamos construir alguma forma de expectativa; mas há uma
segunda situação, que é aquela que pode, ou não, ser regulada por
uma determinação, isto é, nos termos aristotélicos, que é objeto de
3
uma determinação que não é necessária, mas apenas frequente.
Neste segundo caso, a reflexão lida com um conhecimento que
nada tem de exato, que não está seguro de servir para cada caso
particular, mas que deve se limitar a definir algumas probabilidades.
Ora, na filosofia aristotélica, o comportamento humano não se
conta, evidentemente, entre as coisas completamente
determinadas: se assim o fosse, nada sobraria para a liberdade
humana, e toda ciência do humano estaria reduzida a uma física ou
a uma teologia. Mas tampouco o comportamento humano é dado
como inteiramente aleatório, o que significaria a total
impossibilidade não só do conhecimento sobre o humano, mas de
qualquer sociedade ou instituição humana permanente. Assim,
Aristóteles nos diz que é possível, e é preciso buscar aí certas
regularidades – isto é, aquilo que se realiza «mais frequentemente»,
e que hoje chamaríamos de «tendências». P\E é neste sentido que
ele diz que, no caso do humano, o conhecimento que podemos
buscar é estocástico, isto é, relativo ao que não é nem necessário
nem radicalmente aleatório, mas submetido a probabilidades1.
Entendamo-nos bem: é evidente que, no que se refere à dimensão
biológica de sua existência, o humano se submete, como tudo que
goza de existência material, às leis físicas – tanto a leis gerais
quanto àquelas específicas da anatomia e da fisiologia humanas.
1 Cf. Carlo Natali, L’action efficace. Etudes sur la philosophie de l’action d’Aristote. Louvain-la-Neuve : Ed. Peeters, 2004 p. 19.
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Mas este modo de conhecimento que acabamos de reconhecer pelo
pomposo nome de «estocástico», isto é, que trabalha, não com
certezas, mas com possibilidades é o mais perto se poderia chegar
de alguma precisão, e é particularmente apropriado para o exame
do agir humano, que nunca pode ser inteiramente determinado. O
que não é pouco importante, já que é nisto que consiste,
precisamente, nossa liberdade, toda nossa possibilidade de
deliberação : «Delibera-se, diz Aristóteles, em seu estudo sobre a
ética, sobre coisas que ocorrem com frequência e cujo resultado é
claro; e sobre o que é [ainda] indeterminado»2 – isto é, a ser
determinado.
Pois uma decisão que não se apoia sobre nada, que é totalmente
aleatória, não é uma deliberação! Nós queremos colocar em relevo
a liberdade da ação humana. Mas, em nosso ofício, é igualmente
importante poder distinguir aí algumas constâncias, sem as quais
tampouco seria possível realizar qualquer deliberação, já que, por
este nome, estaríamos apenas jogando com o acaso – como em
uma loteria, quando contamos apenas com a sorte.
Mas, no que se apoiaria um conhecimento voltado, não para
identificar regularidades indiscutíveis – tais, por exemplo, como a lei
da gravidade, um modo limitado de conhecimento que, em cada
caso que se apresente, pode ou não ser válido? No que apoiaria um
conhecimento do qual se sabe por antecipação que ele não nos dá
previamente nenhuma certeza, que não trabalha com o
2 Aristóteles, Ética a Nicômaco, III, 1112 b 8-9.
5
estabelecimento de regularidades infalíveis, com o cálculo? Este
conhecimento que afirmamos ser próprio das questões humanas e
que, contrariamente àquilo que entendemos por ciência, não pode
resultar de uma decisão teórica que nada deve à experiência, este
conhecimento, digo eu, tudo deve à possibilidade de observação. (E
esta, evidentemente, ao contínuo questionamento, ao espanto). É
assim que este conceito tão desprezado pela educação, o modelo, o
exemplo, enfim, a identificação e formalização de regularidades
comportamentais encontra seu lugar na reflexão sobre o humano:
O uso do paradigma é ligado, em
Aristóteles, a esta característica do agir
humano: a falta de necessidade em
nossas ações torna útil o uso de exemplos
e, por outro lado, a relativa constância dos
comportamentos humanos torna provável
a repetição dos mesmos comportamentos
em circunstâncias análogas (…) Portanto,
a relativa constância das ações humanas
é a base antropológica sobre a qual
Aristóteles pode construir sua
interpretação sobre o uso dos exemplos…3
A constância do comportamento humano deita raízes nas leis
psicológicas que, como relembra Castoriadis4, Aristóteles foi o
3 Carlo Natali, op. cit., p. 20.4 Cornelius Castoriadis,
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primeiro a descobrir. Além disto, grande parte do que somos, da
forma como pensamos e nos comportamos deriva de determinações
que são a cada vez instituídas pela sociedade. Estas influências
tornam-se, sem dúvida, extremamente fortes em sociedades que
não preparam os indivíduos para o questionamento de seus valores.
Nestes casos, dizia H. Arendt, o poder de inciativa humana, que ela
denominava simplesmente de «ação» é substituída pelo
comportamento estereotipado, e é sob as bases desse fenômeno
que as estatísticas podem obter tanto sucesso: a liberdade
transforma-se previsibilidade mais precisa e estatística na medida
em que a alienação substitui a deliberação. Por outro lado, está
claro que a alienação também é responsável, em certa medida, pelo
caráter justamente imprevisível de ações que já não são fixadas,
nem pela deliberação, nem pelo costume social, mas seguem
devidas a impulsos. Por isto, a conduta ética deve ser dita uma ação
que delibera segundo a livre adoção de um princípio, em vista de
um resultado que nunca é mais do que uma possibilidade…
Tudo isto tem a ver, penso eu, com esta noção de «demandas
populares» que é objeto de nossa reflexão hoje.
Seria de fato muito ingênuo supor que há demandas «espontâneas»
– ao menos se, por «espontâneas» entendemos comportamentos,
expectativas, intenções que simplesmente “brotariam” na
sociedade, e que retirariam força e legitimidade do fato de não
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podermos, justamente, atribuir a elas nenhuma autoria
determinada: demandas, enfim, que não poderiam ser
questionadas, simplesmente por estarem instaladas no seio da
sociedade como se fossem exigências naturais.
Ora, valores, modos de ser e de se comportar, de esperar e de
desejar nunca são naturais, isto é, não podem jamais ser
simplesmente deduzidos da natureza humana. Não resta dúvida de
que muitos deles se apoiam, mais ou menos intensamente, em
exigências de nossa constituição física, biológica; mas isto não
dispensa o fato de que devem ser ressignificados pela cultura, e que
somente assim eles aparecem, eles existem para nós. (Esta
exigência de representação está presente na fase mais primitiva de
nossa vida psíquica, mas não é assunto para nós, hoje). Em outras
palavras, estes valores, modos de ser e de se comportar, de esperar
e de desejar de que falamos, como tudo que se refere à cultura e à
formação humana, são criações humanas, frutos de uma instituição
que é, em grande parte, coletiva e anônima, mas nem por isto
menos artificial.
É que o poder de criação humana vai muito além do que dispõe a
natureza, e chega mesmo a criar novas disposições que a natureza
não havia previsto: é o que os filósofos costumam chamar de
«segunda natureza», já que, como formula Hannah Arendt5, elas
5 «…as coisas que devem sua existência exclusivamente aos homens também condicionam os seus autores humanos…os homens constantemente criam as suas próprias condições que,…possuem a mesma força condicionante das coisas naturais.»Hannah Arendt, A Condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 17.
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têm «a mesma força condicionante das coisas naturais». E é sobre
esta força que opera a educação. A educação só existe porque,
rompendo com as disposições que são suas ao nascer, o humano
adquire, cria outras determinações para si.
De modo que, chegados a este ponto, podemos já refletir sobre o
caráter inegavelmente instituído das demandas sociais, que está
presente inclusive quando a demanda assenta-se claramente sobre
uma exigência vital – como é o caso, por exemplo, da nutrição.
Nenhum humano sobrevive sem se alimentar, mas basta olhar a
variedade de hábitos alimentares para reconhecer que, se todos os
humanos se alimentam, eles nunca o fazem da mesma forma.
A sociedade, diz-nos Castoriadis, precisa, a cada vez, dar uma forma
cultural ao que, no resto dos viventes, tende a variar apenas de
acordo com as condições do ambiente. Assim, algumas espécies são
obrigadas a abandonar certos hábitos alimentares por razões
pragmáticas (escassez de certos víveres, dificuldades de acesso),
mas só os humanos se dão razões religiosas, ou estéticas, de
etiqueta, ou afetivas que moldam inteiramente os modos
alimentares de uma civilização.
A tal ponto natureza e cultura se misturam, que nos seria impossível
isolar hoje o que seriam as «necessidades vitais» dos humanos. É
bem conhecido o fracasso da tentativa de Marx em determinar com
precisão este mínimo vital, de modo a poder calcular a mais valia
sobre os salários dos operários.
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Assim, as demandas populares – todas as demandas sociais,
ousamos dizer, têm uma origem situada e datada, que é a da
sociedade no seio da qual emergem. Seria ingenuidade, dizíamos,
supor uma espontaneidade das demandas: mas, na verdade, seria
mais do que uma simples ingenuidade, seria naturalizar
indevidamente uma instituição social, ocultando que ela se deve a
seu poder de criação humana.
Esta naturalização foi, diga-se de passagem, o movimento
amplamente realizado na Modernidade, que buscou dissolver o
caráter polêmico e decididamente político de algumas de suas
proposições, fazendo-as integrar um suposto direito natural. A ideia
de direito natural não é, evidentemente, moderna; mas os
modernos, por assim dizer, a reinventaram e a reintroduziram em
defesa de suas causas. E se, do ponto de vista estratégico, a
operação se mostrou eficaz, a longo prazo ela é uma herança difícil
de combater até hoje – e isto particularmente para a educação, mas
não só aí.
Eu gostaria de ressaltar duas consequências terríveis e
complementares do sucesso de que o direito natural gozou, a partir
da Modernidade: a primeira, refere-se à ilusão de que certos valores
humanos e sociais se explicariam por si sós, adviriam de um
mandamento supra-humano e extra-social; a segunda, que já
mencionei, é relativa ao ocultamento da ação humana, assim
atribuída a forças exteriores a ela, e sua total desmobilização.
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A Modernidade repetiu, por exemplo, que «todos os homens nascem
livre e iguais»: os antigos, mais cuidadosos com estas coisas, jamais
afirmaram que a igualdade era um princípio natural. Pelo contrário,
buscaram entender a desigualdade, a profunda diversidade
presente na Natureza e buscaram inventar leis e um regime político
como artifício capazes de engendrar, ao menos no espaço público,
uma igualdade que, de outra forma, jamais existiria. E as reflexões
de Aristóteles na Política nos fazem ver os enormes desafios que
foram assim colocados àquela sociedade.
Não, nós não nascemos livres e iguais, porque não nascemos
«indivíduos» isolados de um contexto social específico; ao nascer,
nós recebemos em partilha um lugar no mundo, expectativas,
modos de ser, de sentir, de pensar. A possibilidade de questionar
esta herança é, ela própria, uma conquista social; liberdade e
igualdade são valores a serem conquistados, a serem criados, mas
esta criação tem limites, encontra inúmeros resistências que
parecem insuperáveis, mas também limites que se devem,
justamente, à nossa natureza. Estes limites introduzem também a
distinção entre a esfera social e a esfera política.
No caso da educação, inventou-se, no auge do período moderno,
uma falácia que até hoje é sustentada: a de que haveria um «direito
à educação» natural e genérico, isto é, aplicável a todos os
humanos simplesmente por sua condição de humanos.
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Nada mais distante da realidade, nada, a meu ver, mais prejudicial
à causa da universalização do direito à educação – que, para existir,
ainda deve ser objeto de uma construção social lenta e bastante
complexa: a dificuldade é que o direito natural responde
imediatamente, ainda que de forma ilusória e equivocada, à
questão do fundamento, isto é, do porquê da igualdade, da
liberdade, do direito à educação: «porque é assim que está inscrito
na natureza humana». Que resposta confortável! Mas, deste ponto
de vista, ela nada é senão uma variante de outra resposta
dogmática: «porque Deus assim o quis, porque assim Ele nos criou».
Convenhamos que é muitíssimo mais difícil e impactante afirmar
que isto o é somente e por tanto tempo quanto persistirmos
julgando que assim deve ser, que são estes valores que elegemos e
que queremos colocar como fundamento e como fim último de
nossa existência coletiva.
Em outras palavras, a grande dificuldade é que estes valores
fundamentais, estes princípios sobre os quais todo o resto deveria
se basear em sociedade, eles não podem ser explicados, eles não
derivam de uma razão anterior à iniciativa, à vontade, à
deliberação, à criação humanas.
Esta longa volta sobre o tema das demandas tinha, assim, de minha
parte, um objetivo: a de nos levar, por nossa vez, a nos
interrogarmos o que estamos dispostos, o que achamos que
devemos reconhecer como demandas sociais legítimas. Não
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podemos evitar este questionamento. Porém, com isto não estou
conclamando ninguém a adotar uma atitude autoritária, a usar a
reflexão como pretexto para atitudes dogmáticas, a pretender
pensar pelos outros o que melhor lhes convém, longe de lá!
Gostaria, sim, de chamar a sua atenção para o fato de que não é
prudente, nem muito útil ou honesto tratar como realidades divinas,
ou naturais, aquilo que chamamos de necessidades, exigências, ou
demandas populares, isentando-nos de qualquer julgamento.
É inevitável, neste ponto, que falemos do capitalismo, e da
formidável galáxia de demandas por ele continuamente impostas,
que faz mover sua maquinaria, engendrando as importantes
novidades e avanços que conhecemos, tanto quanto os conflitos e
guerras, desigualdades e injustiças com as quais parcelas enormes
da população mundial devem se afrontar quotidianamente.
Mencionei, contra a tendência de naturalização das demandas
populares, a exigência de julgamento – temática à qual H. Arendt
dedicou belíssimas páginas, ao examinar o que denominou de
«banalidade do mal». Contudo, consistira em equívoco supor que
nos caberia, e que poderíamos assim distinguir as «demandas
legítimas», de outras que proclamaríamos como ilegítimas: se
estamos falando de instituições humanas, onde então enraizar este
conceito de “legitimidade”? Melhor seria, pois, que começássemos
cada uma de nossas dissertações e teses sobre as «demandas
populares» simplesmente nos interrogando sobre os reais
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fundamentos de nosso trabalho: que valores, que princípios,
adotaremos na definição deste objeto de estudo? Alguns dirão: o
respeito incondicional ao que o povo manifesta (através de que
canais, perguntaria eu); outros: o compromisso com a autonomia,
com a democracia, com o direito ao prazer estético, ao conforto, à
segurança… Em outras palavras, não há, a meu ver, outra maneira
de lidar com a temática, além de definir, a cada vez, o que
pretendemos chamar de «demandas populares», definição esta que
servirá para evidenciar o arsenal conceitual e teórico de que
lançaremos mão em nossas análises. Será preciso, pois, que
questionemos nossos próprios princípios, e de que forma
pretendemos implica-los em nosso estudo de forma aberta e
expositiva.
Contudo – e chego aqui finalmente ao cerne do que gostaria de lhes
dizer sobre este tema, hoje – no campo da formação humana, uma
constatação me aflige, que nasce de minha própria prática docente:
é que está cada vez mais difícil identificar a educação a uma
demanda popular.
Há, é claro, uma série de explicações, de causas para este
fenômeno. O primeiríssimo, evidentemente, é o perverso efeito
retroativo de um descaso social com a educação: menos se valoriza
a educação, menos no futuro ela será valorizada, se nada for feito
para reverter o processo.
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Em segundo lugar, o desenvolvimento e a difusão em larga escala
do que se convencionou denominar de «tecnologias da informação e
comunicação» acabou por solapar um monopólio que a escola,
desde a Modernidade, vinha conseguindo manter sobre as práticas
coletivas de formação humana. (E outras causas poderiam, ainda,
ser enunciadas. Mas deixo a tarefa para vocês…)
O risco, porém, é mergulharmos ainda mais na ilusória mas
conveniente valorização da «espontaneidade» da cultura popular,
que ajuda a vender música e programas de televisão, mas pouco
nos compromete com a aquisição de um poder de crítica e de
deliberação sem os quais não há de fato autonomia.
Penso que a palavra «cultura» envolve mais do que a criação
artística, por mais valiosa que ela possa ser: desde suas raízes
etimológicas, a palavra refere-se a um processo de construção que
é longo e coletivo, que envolve intencionalidade, reflexão,
constantes questionamentos, finalidades compartilhadas.
Nós somos profissionais da educação, este é um título; mas se
somos, verdadeiramente, militantes da causa da educação pública,
se estamos comprometidos com a formação humana, então não
podemos nos dar ao luxo de esperar que a sociedade se transforme
milagrosamente e descubra a importância da educação. Mas, diria
eu, de que educação?
Por isto, a grande questão que deve nos desafiar, hoje, é: como
contribuir para que a educação comum continue sendo, ou volte a
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ser, mais do que uma demanda social entre tantas, uma prioridade?
Como contribuir para fazer da educação um valor evidente, como
anunciar a todos e a cada um de nossos concidadãos, alunos,
colegas, familiares, a importância vital das exigências da formação
humana?
Uma parte deste desafio depende de nossa capacidade de reflexão
– e eu volto aqui aos instrumentos que a filosofia da educação nos
pode fornecer. Mas todo o resto depende da força de nossa própria
convicção, que só se mantém se diariamente alimentada pela
criação dos sentidos desta formação humana. Eu termino, assim,
pelo que comecei, enunciando a grandiosidade de nossa tarefa: que
é daquelas que não podemos empreender sós, apenas em uma
coletividade.
Rio de Janeiro, UFRRJ, 16 de março de 2015
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