Construção da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker
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8/3/2019 Construo da ciencia politica brasileira_Marcelo_Sevaybricker
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XV Congresso Brasileiro de Sociologia
26 a 29 de julho de 2011, Curitiba (PR)
GT 18: Pensamento Social no Brasil
Autoritarismo e democracia: a formao da moderna cincia poltica
brasileira vista a partir das obras de Fbio Wanderley Reis e Wanderley
Guilherme dos Santos.
Marcelo Sevaybricker Moreira
Universidade Federal de Minas Gerais
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Data do final dos anos 60 a formao inaugural, no Brasil, de ncleos
especializados de ensino e pesquisa em cincia poltica. Em 1966 funda-se o
Departamento de Cincia Poltica (DCP) e dois anos depois, cria-se o Instituto
Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). No primeiro caso,
destaca-se o nome de Fbio Wanderley Reis, intelectual que exerceu notvel
influncia nesse departamento e no segundo se sobressai o de Wanderley
Guilherme dos Santos, formador de outro centro e gerao de cientistas
polticos brasileiros. Mais justo pensar que ambos fizeram parte, como
protagonistas, de uma gerao de cientistas que procurou fundar no pas uma
comunidade acadmica que se dedicasse integralmente ao estudo da poltica e
que estivesse adequadamente treinada para tal tarefa.
O presente artigo procurar acompanhar a trajetria intelectual desses
dois pensadores brasileiros, levando em considerao no apenas o contexto
histrico e lingstico em que se formaram, como tambm parte de sua extensa
produo intelectual.1 O propsito fundamental que anima este trabalho
tentar argumentar que emergncia da democracia como tema de estudo e
valor central no pensamento poltico-social brasileiro esteve associada
consolidao institucional e cultural da cincia poltica brasileira, ainda que no
houvesse uma concordncia irrestrita entre os cientistas polticos do que
deveria ser essa democracia. Antes de passar anlise desse contexto e da
obra dos autores supracitados, necessrio ter uma noo mnima de quais
eram os antecedentes da reflexo sobre poltica no pas.
Em Os intelectuais e a poltica no Brasil, Daniel Pcaut diferencia duas
grandes geraes de pensadores polticos brasileiros. A primeira gerao, dos
anos 1920-40, , segundo ele, composta de um conjunto de intelectuais
preocupados com o problema da nao e do povo que, na concepo deles,permaneciam apenas latentes, informes e, alm disso, com as instituies da
Primeira Repblica que no se adaptavam realidade nacional. Para
solucionar essas deficincias, eles propunham o fortalecimento do Estado a fim
de organizar de cima para baixo a nao, e, conseqentemente, rejeitavam
ou suspeitavam da eficcia da democracia representativa. Parafraseando o
1 Nesse sentido, seguimos algumas proposies propostas por Skinner (2002) e por Pocock(2003) de investigao da histria das idias, segundo o qual o entendimento do significado daobra de um autor demanda a compreenso de seu universo histrico e lingstico.
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autor, o tema da democracia, at ento, no apenas estava subordinado aos
temas da nao e do povo brasileiro, como era, em geral, desvalorizado. J a
segunda gerao (de 1954 a 1964), no entendia que a identidade nacional
fosse um problema, mas sim a influncia externa que obstrua o
desenvolvimento econmico nacional e a emancipao das classes populares.
Para concluir o que se disse at agora preciso destacar que, ainda que
existam diferenas significativas entre os autores dessas duas primeiras
geraes (e ainda que se possa mesmo discordar da adequao desse
panorama geral feito por Pcaut em relao a pensadores especficos), deve-
se destacar, a partir da sua anlise duas semelhanas entre essas geraes
que contrastam com a dos novos cientistas sociais e polticos que comea a
despontar no pas na segunda metade do sculo XX. Em primeiro lugar, o fato
de que a reflexo sobre a poltica, academicamente falando, no partia de um
campo especfico. Boa parte, seno a totalidade dos pensadores polticos
brasileiros at ento, no tinham sequer uma formao em cincias sociais.
Essa situao comea a ser revertida, em 1947, com a fundao do
Departamento de Sociologia e Antropologia na Faculdade de Filosofia,
Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (USP). Ao se destacar esse
ponto no se presume que a informalidade desses escritos signifique menor
qualidade terico-metodolgica; o que se intenta destacar que com a
institucionalizao das cincias sociais, a investigao cientfica sobre a
poltica ganha um espao novo, cada vez mais consolidado, com um ethos de
pesquisa distinto daquele adotado pelas geraes anteriores, pois novas
metodologias e conceitos so empregados, diferenciando essa reflexo das
abordagens at ento existentes. Ainda que economistas, juristas, socilogos,
etc., viessem a produzir interpretaes da poltica brasileira, gradualmente, acincia poltica vai sendo percebida como o discurso mais adequado
investigao da poltica, obviamente segundo uma lgica da especializao do
saber cientfico. Em segundo lugar, importa salientar que h claramente uma
inflexo temtica: se antes a nao ou o povo brasileiro (na primeira gerao) e
o imperialismo e o desenvolvimento do pas (na segunda gerao) eram os
temas dominantes do pensamento brasileiro, a democracia e assuntos
correlatos (como sociedade civil, partidos polticos, eleies, etc.), antes
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negligenciados, tomam gradativamente conta da agenda dessa rea de
estudos. a partir dos novos cientistas polticos que as instituies polticas,
como as eleies, comeam a ser sistematicamente investigadas, uma vez que
se assume a premissa de que elas mesmas tm alto poder explicativo. Nesse
sentido, Reis e Santos so pensadores de transio entre dois momentos da
inteligncia brasileira no sculo XX. Dessarte, ao mesmo tempo em que os
paradigmas tradicionais de compreenso da realidade brasileira so
contestados ao longo das dcadas de 60 e 70, como o marxismo e o nacional-
desenvolvimentismo, a prpria figura do intelectual comea a ser
reconfigurada.
Outro aspecto interessante de se observar que a institucionalizao da
cincia poltica no Brasil coincidiu, em primeiro lugar, com o perodo de
ditadura militar do pas (1964-85) e, em segundo lugar, com um momento de
expanso da estrutura universitria, entre outros fatores, resultante da Reforma
Universitria de 1968 e da criao de agncias de fomento pesquisa. Falar
no surgimento da cincia poltica no Brasil, inevitavelmente, falar da relao
incmoda e conflituosa entre intelectuais e os detentores do poder autocrtico.
Destarte, verifica-se um aumento significativo no nmero de estudantes, a
criao de novas universidades e de centros ou sociedades de pesquisa
cientfica, um incremento no financiamento das pesquisas nessa rea; tudo
isso possibilitando em pleno regime militar, um maior debate pblico, inclusive
sobre as opes de abertura poltica. O mesmo regime poltico que era capaz
de censurar, perseguir e cassar professores e pesquisadores consentia e
financiava, por outro lado, seminrios e pesquisas, em especial na rea de
cincias sociais, uma das que mais cresceu no perodo. De um modo geral,
possvel afirmar que Santos e Reis fazem parte de uma gerao na qual ainteligncia acadmica brasileira vai ganhando espao e influncia na opinio
pblica no pas.
Se a expanso das cincias sociais e, em particular da cincia poltica,
se explica pelo prprio incremento das universidades e associaes
acadmicas, ela tambm deve ser entendida como resultado do fato de que
nesse contexto a poltica torna-se o assunto por excelncia a ser discutido. A
poltica, enquanto dimenso do real, ganha mais notoriedade, no apenas
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como prtica, mas como campo de conhecimento. Contra o discurso at ento
existente sobre a poltica brasileira, novos padres cientficos (de base mais
emprica e com formalizaes lgico-matemticos) so invocados, apoiados na
cincia poltica norte-americana.
Indica-se aqui outro aspecto que no pode ser negligenciado na anlise
do processo de institucionalizao da cincia poltica no pas: a forte influncia
cultural estrangeira, especialmente norte-americana. Cumpre destacar que,
naturalmente, nem sempre essa influncia significa ou possa ser identificada
com subservincia intelectual, como se os intelectuais brasileiros simplesmente
replicassem acriticamente modelos tericos e mtodos de pesquisa criados no
exterior, dependendo esse julgamento de uma anlise concreta de cada autor
em especfico. Ela se deu mediante a convivncia com tcnicas e mtodos
provenientes de sistemas universitrios mais especializados e o j referido
financiamento de instituies de pesquisa brasileiras por rgos como a
agncia Rockfeller e, principalmente, a Fundao Ford. O apoio dado por
esses rgos tido como decisivo na autonomizao da cincia poltica em
relao s demais cincias sociais, formando um grupo de cientistas polticos
altamente profissionalizados.
Importa agora discutir um ltimo aspecto destacado por Pcaut que tem
particular importncia para o presente estudo, tese de que a maioria dos
intelectuais no Brasil demonstrou sentir pouca ou nenhuma atrao pela
democracia. Para o autor, a intelectualidade brasileira, at a dcada de setenta
do sculo XX, teria dado clara evidncia de que rechaava, ou pelo menos
desconfiava da democracia, alm de ter dado pouqussima ateno ao tema
em seus escritos. Somente a partir de 1975 que se pode notar uma clara
inverso no discurso dos intelectuais brasileiros. Enquanto palavra-chavecontra o regime autoritrio, a democracia comea a ser valorizada na suas
dimenses partidrio-eleitoral e da sociedade civil, simbolizando a ruptura com
a crena tradicional dos intelectuais no Estado, enquanto principal agente
centralizador e formador da sociedade brasileira. Tratar-se-ia de um processo
gradual, que se deu na medida em que as esperanas na curta durao do
regime militar caram por terra e que os antigos sistemas de compreenso da
realidade brasileira tornaram-se inadequados, uma vez que garantiam pouco
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espao ao poltica, to em destaque nos anos de chumbo. Quanto ao
apoio dos intelectuais brasileiros democracia, embora ele se torne expressivo
a partir da segunda metade do sculo XX, a forma como essa democracia
deveria ser restabelecida no Brasil estava longe de ser consensual. So vrias
as clivagens que permeiam a discusso: haviam os que depositavam suas
esperanas nos movimentos de base, outros que viam os partidos como atores
centrais na redemocratizao e na democracia a ser criada; os que defendiam
uma soluo pela via revolucionria (como o caso, de Florestan Fernandes a
partir dos anos 60) e outros que defendiam uma soluo de descompresso
poltica incrementalista (como Santos). Assim, ainda que a democracia tenha
se tornado lugar comum no discurso dos intelectuais brasileiros, dois desafios
centrais permaneceram: estabelecer qual democracia se fazia necessria e
delinear as estratgias para sua consecuo (para alguns, diante da decepo
em relao aos instrumentos institucionais democrticos). Em nossa avaliao,
se verdade, como observa Pcaut, que antes de 1975, em geral, a
democracia no debatida metodicamente, incorreto, todavia, assumir que
nesse perodo ela seja, necessariamente, objeto de repdio de todos
intelectuais brasileiros. A anlise da obra de Santos, por exemplo, revela que
esse autor somente na primeira fase de sua trajetria intelectual (1962-63) no
discute pormenorizadamente a democracia, mas, de qualquer modo, longe
esteve de desconfiar ou menosprezar as instituies democrticas (Moreira,
2008). Sobre a obra de outros autores o mesmo pode ser dito , como Reis e
mesmo de geraes anteriores, como Srgio Buarque de Holanda e Raymundo
Faoro. De qualquer modo, possvel afirmar que, como quadro amplo do
pensamento poltico brasileiro, a idia de Pcaut vlida e indica
transformaes profundas ocorridas nesse campo no sculo passado. Emborano possa ser identificada como fator determinante nesse processo ( preciso
considerar a "converso" democracia no socialismo brasileiro, alm de outras
matrizes do pensamento brasileiro), a moderna cincia poltica brasileira
certamente ajudou a retirar a democracia do ostracismo de nosso imaginrio
social e poltico na medida em que constitui uma nova linguagem poltica.
A seguir discutiremos mais propriamente as obras de Santos e Reis.
Para organizar os argumentos concentraremos nossa ateno em trs pontos:
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o diagnstico sobre o autoritarismo brasileiro iniciado em 1964, as estratgias
para redemocratizao do Brasil e a concepo de democracia. Cabe adiantar
que no h um acordo pleno entre esses dois autores em relao a esses
pontos. Entretanto, apesar de existirem diversas divergncias, acreditamos que
Santos e Reis coadunam, em linhas gerais, de uma mesma concepo de
democracia a qual chamaremos de democrtico-liberal, entendendo por essa
rubrica o sistema em que os direitos civis, polticos e sociais so assegurados
ao maior nmero da populao, em que a competio pelo poder, via partidos
e eleies, est institucionalizada em uma sociedade de mercado no qual o
valor fundamental o indivduo. Nossa linha de interpretao que, apesar de
diferenas pontuais e significantes, eles pensam a democracia dentro de um
mesmo marco terico, qual seja, o do liberalismo democrtico. Nesse sentido,
a instaurao pela via revolucionria de uma sociedade igualitria, nos moldes
em que se expressa na tradio marxista, bem como a defesa de um regime
poltico caracterizado por intensa participao poltica de cidados virtuosos em
busca do bem comum, tal como figura hoje no debate da democracia
participativa ou na tradio republicana, esto longe do horizonte normativo
desses intelectuais.
Fbio Wanderley Reis
Partindo da noo de desenvolvimento poltico, o regime militar
brasileiro, na tica de Reis, deve ser entendido como resultado da poltica
ideolgica em que se encontrava o pas em meados dos anos 60. Em
Mercado e utopia, Reis procura defender a noo de desenvolvimento poltico
que teria sido abandonada pela literatura especializada. e, para ele, essa
noo pode auxiliar na compreenso dos dilemas envolvidos no processo de
construo democrtica (como no processo de redemocratizao do pas). Oprocesso de desenvolvimento poltico de um Estado-nao pode ser entendido
como um processo de constituio de um mercado poltico, quer dizer, uma
situao de equilbrio de poder, na qual uma dada comunidade de base
territorial tem de enfrentar e equacionar o problema da cooperao social no
violenta, da existncia de uma comunidade de atores que interagem numa
situao de competio mtua sem excluses a priori alheias lgica de
interesses (Reis, 2000, p. 132). A concepo de democracia de Reis
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identifica-se, descritiva e normativamente, com o modelo de mercado poltico.
Uma sociedade democrtica seria, assim, anloga ao funcionamento do
mercado convencional: indivduos auto-interessados estabeleceriam relaes
de aliana, disputa e negociao a fim de satisfazer os interesses individuais
ou coletivos dentro dos limites previamente estabelecidos, que o autor chama
de relaes de solidariedade. Sendo a poltica, na concepo do autor,
inevitavelmente uma atividade de barganha entre atores com interesses
distintos, a soluo-ideal de equacionamento dessa situao seria a que, a
partir de um substrato comum, o mbito da solidariedade, os contendores
pudessem disputar em p de igualdade. Destarte, se sociedade democrticas
funcionam como mercados polticos ampliados (marcados pela orientao
pragmtica dos atores em ao estratgica, pela permanente disposio
negociao por parte desses atores) qualquer tipo de desigualdade que impea
a livre disputa de interesses deve ser eliminada.
So essas barreiras constituio do mercado poltico que so,
gradualmente, superadas por meio do desenvolvimento poltico de uma
sociedade. Ele distingue trs estdios desse desenvolvimento. O primeiro
estgio chamado pelo autor de pr-ideolgico: marcado por ncleos de
solidariedade territorial limitada e fortemente particularsticos (como as relaes
clientelsticas), esse estgio corresponde ao momento de state-building, isto ,
a construo do Estado-nao, situao esta em que o poder ainda algo a
ser institucionalizado, em que o aparato estatal efetivo no foi plenamente
construdo. Tal seria a situao da Colnia at o incio do sculo XX, quando
pela prpria precariedade da administrao pblica, dos transportes e da
comunicao, em nvel nacional, o poder estatal ainda era algo a ser
plenamente institucionalizado. O segundo estdio de desenvolvimento polticoseria o ideolgico: numa fase de relativa institucionalizao do poder do
Estado, verificar-se-ia avanadas integrao territorial e mobilizao social.
Nesse caso, os laos de natureza universalista se sobrepem aos laos
particularistas, tpicos da fase anterior. Ao invs da institucionalizao do
poder, nessa fase a sociedade teria que lidar mais com os problemas relativos
institucionalizao da autoridade (maior ou menor aceitao consensual da
populao em relao ao governo), o que implica ter de dar uma soluo aos
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problemas da igualdade poltica e da legitimidade do sistema. Evidencia-se,
aqui a disputa entre democracia e autoritarismo.
Por seu turno, o problema do autoritarismo ou democraciacoloca-se no momento em que o desenrolar do processo de
desenvolvimento propicia as condies para emergncia dapoltica ideolgica (Reis, 2000, p. 240).Assim sendo, temos aqui um esclarecimento geral acerca do regime
militar brasileiro inaugurado em 1964, feito a partir do marco terico do
desenvolvimento poltico:
Os eventos de 1964, nessa perspectiva, surgem no como amera reafirmao de uma tradio poltica secular ou areiterao de um certo padro de relacionamento entreEstado e sociedade, mas antes como vicissitude do gradualdesdobramento, no pas, da poltica ideolgica, envolvendo a
reao de determinados focos de interesses aos riscos que, adespeito de corporativismo e populismo atravs dele, acontinuidade do processo de mobilizao sociopoltica passacrescentemente a representar (Reis, 2000, p. 255-256).
Um ltimo estgio, denominado de ps-ideolgico caracterizado pelo
autor como dotado de solidariedade territorial plena (total cumprimento dos
processos de integrao territorial e de mobilizao social) e pela inexistncia
de focos internos de solidariedade que pudessem competir com a solidariedade
referente sociedade como um todo. Trata-se, em suma, da consolidao do
modelo de mercado poltico.
Vistos conjuntamente esses trs estdios revelam um certo padro,
segundo o qual num primeiro momento h um esforo de centralizao do
poder e de integrao territorial que, inevitavelmente, geram obstculos
igualdade e intensificam os princpios de diferenciao e estratificao, mas
que num segundo momento permitem que surja um impulso igualitrio e anti-
adscritcio como condio para o florescimento de organizaes em larga
escala, nas quais, num terceiro momento, constatar-se-ia a irrelevncia dequalquer princpio adscritcio. Nesse sentido, a construo do mercado poltico
pressupe, paradoxalmente, a existncia, em fases iniciais, de foras
antimercado (como as prprias foras que deram origem ao regime militar de
1964), quer dizer, de relaes adscritcias que impedem o livre e igualitrio jogo
de interesses.
Interessante ao menos mencionar que Reis procura distinguir-se de
parte da tradio de pensamento poltico brasileiro, representada por
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Raymundo Faoro, Simon Schwartzman e Nestor Duarte, entre outros, segundo
os quais haveria uma espcie de essncia patrimonialista, no caso dos dois
autores mencionados, e privatista, na opinio de Duarte, que teria se
estabelecido desde o perodo colonial e seria capaz de sobreviver, no
transcorrer dos sculos, de um modo misterioso. A cultura poltica ou o
carter nacional brasileiro seriam, nessa perspectiva, responsveis pelas
dificuldades de consolidao de uma ordem democrtica no pas. Ora, o que o
autor prope ver as dificuldades pelas quais passou e passa a sociedade
brasileira atravs de uma perspectiva que considere as diversas etapas do
desenvolvimento poltico. Nesse sentido, problemas tais como patrimonialismo
e do privatismo seriam tpicos apenas de uma fase de desenvolvimento da
sociedade brasileira, no um padro perene.
A consolidao desse mercado poltico ideal democrtico poltico-
normativo do autor tem, entretanto, que conviver com duas dificuldades
permanentes que dizem respeito existncia de grupos multifuncionais
vigorosos. Grupos multifuncionais, ao contrrio dos grupos funcionais
(marcados pela dedicao a objetivos especficos e pela participao voluntria
e fragmentada de seus membros) so caracterizados por criar focos de
solidariedade que podem se apresentar como alternativa solidariedade
territorial que os abrange. So eles: etnias e classes sociais. A primeira
dificuldade, portanto, diz respeito existncia de clivagens tnicas que podem,
evidentemente, opor-se consolidao de uma solidariedade ampla,
necessria ao jogo democrtico. No entanto, esse no parece ser um problema
muito grave na concepo do autor, pois no implica forosamente a existncia
de desigualdades objetivas:
Do ponto de vista da solidariedade territorial, portanto, oproblema posto pela existncia de vnculos tnicos pode serconsiderado como consistindo, em grande medida, numproblema de identidade ou de assimilao, no sentidousualmente atribudo ao termo pela literatura dedicada ao temada integrao nacional, ou seja, um problema para o qual cabeesperar soluo em grande parte por meio da simplesintensificao do processo de comunicao social (Reis, 2000,p. 143).
A segunda dificuldade, de acordo com o autor, mais sria do que a
primeira, refere-se existncia de classes sociais, quer dizer, ao fato de que as
democracias existirem na atualidade em sociedades capitalistas. Trata-se, em
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suma, da polmica bastante revisitada sobre a incompatibilidade entre
democracia e capitalismo.
J com as classes sociais, porm, trata-se, por definio, deagrupamentos que no s representam focos potenciais ou
reais de solidariedade, mas com respeito aos quais o processopsicolgico de separao e identificao que a solidariedadenecessariamente envolve tem inevitvel contrapartida emtermos de desigualdades objetivas nas chances vitais dosindivduos, correspondendo sempre a efetivas relaes dedomnio e subordinao (Reis, 2000, p. 143).
Na realidade, as classes sugerem a potencial consolidao de ideologias
antagnicas que oporiam resistncia vigncia de uma cultura cvica ampla,
isto , um contexto no qual os indivduos a despeito de suas discordncias
no abrem mo da solidariedade territorial. Assim, para Reis, se a
maximizao do mbito da solidariedade condio para a maximizao do
puro confronto de interesses preciso que o Estado aja a fim de garantir que
impedir a predeterminao das chances vitais dos indivduos em funo do
pertencimento a uma classe. Destarte:
Desenvolver-se politicamente, nesta perspectiva significar,para uma sociedade dada, avanar no processo de eliminaoda relevncia social de qualquer condio exceo darepresentada pela prpria sociedade de que o indivduoparticipe revelia de sua prpria vontade e deliberao e
possa apresentar-se aos seus olhos como objeto dado enatural de lealdade ou solidariedade. Para diz-lorotundamente: a plena vigncia da solidariedade territorial, e domercado poltico tal como o contemplamos, requeria asociedade sem classes (Reis, 2000, p. 144).
A expanso da solidariedade territorial, condio para a constituio de
um mercado poltico ampliado, no pode ser, como pondera o autor, resultado
da mera manipulao ideolgica, isto , preciso que o consenso gerador de
solidariedade se d por um efetivo aumento da igualdade nas chances de se
fazerem valer os diversos interesses em jogo (Reis, 2000, p. 146).O tema das desigualdades sociais e o papel do Estado frente a elas
remete a um aspecto importante na concepo democrtica de Fbio
Wanderley Reis, que contrasta com o pensamento de Santos. O autor afirma
que quando se fala em democracia comum abordar a polmica entre aqueles
que defendem uma concepo meramente poltica de democracia (concepo
minimalista) daqueles que acreditam em uma democracia social ou substantiva
(concepo maximalista). A concepo minimalista defende que por
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democracia se deve entender a vigncia de um Estado de direito, que garanta
a todos os cidados os direitos civis. A democracia social, segundo a definio
maximalista, supe a erradicao de qualquer forma de desigualdade que
comprometa o exerccio da liberdade poltica. Sobre essa polmica, o autor
esclarece que
difcil pretender que a democracia poltica, em que segarantam plenamente os direitos civis e polticos de todos,possa se afirmar e consolidar em condies de grandedesigualdade social, nas quais os diversos recursos de poderestaro por definio distribudos de maneira desigual (Reis,2004, p. 393).
O autor critica, ento, as proposies de autores como Przeworski,
segundo as quais a esfera da poltica, autnoma em relao esfera social,
corresponderia dimenso do Estado, das instituies; logo, democracia selimitaria a exigir instituies democrticas. Para ele, inaceitvel separar a
dimenso institucional (Estado) da dimenso social, o que significa dizer que
democracia tem tanto um aspecto poltico, quanto social. Assim, em relao
sociedade brasileira, Reis enftico ao afirmar que a superao das
aberrantes desigualdades sociais (que fazem com que ela se assemelhe a uma
estrutura de castas, de submundos mais ou menos estanques) condio
necessria para o estabelecimento da democracia no pas. Como o autorcomenta, a existncia e permanncia dessas desigualdades remete ao
passado escravagista do pas que, alm de ter produzido uma degradao do
trabalho manual e uma atitude conformista e passiva em relao ao Estado
(que, numa sociedade maada pela utilizao do trabalho compulsrio,
representava, por meio da aparelhagem estatal, a nica forma de emprego
digno), explica a tardia emergncia do tema da igualdade no pas.
Ora, se essas desigualdades persistem, impedindo a criao de umamplo mercado poltico, preciso, conclui o autor, que o Estado atue no
sentido de atenu-las ou elimin-las definitivamente. Nesse sentido, Reis
defende abertamente a idia de que preciso um paternalismo do Estado
como, por exemplo, no caso da eliminao das desigualdades existentes entre
negros e brancos no Brasil no sentido de agirpedagogicamente contra o
preconceito (2000, p. 412), atuando sobre as instituies formativas e
socializadoras, como a escola e os meios de comunicao, pois:
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Uma sociedade no ser democrtica na medida em que asoportunidades dos indivduos estejam condicionadas por suainsero nesta ou naquela categoria social: sejam quais foremos critrios com base nos quais tais categorias se constituam(raa, classe, etnia, religio, gnero...), a sociedade assimcaracterizada ser fatalmente hierrquica e autoritria, e asoportunidades diferenciais por categorias de expressaro, aocabo, o desequilbrio nas relaes de poder entre elas e asubordinao umas s outras (Reis, 2000, p. 405).
Para o autor, no que tange a relao entre Estado e sociedade
possvel discernir trs posies: a primeira, liberal, entende o Estado como um
sujeito que deve ter seu poder limitado a fim de no ameaar a sociedade; a
segunda, marxista, encara o Estado como instrumento de dominao a partir
de relaes extra-estatais; uma terceira e ltima posio a esse respeito (mais
prxima da viso pessoal do autor) entender o Estado como um instrumentode conteno das relaes de poder advindas de outras esferas da vida, ou
como instrumento potencial de todos indivduos envolvidos. Nesse sentido,
seria necessrio que esse Estado contivesse em si um princpio igualitrio.
Para garantir que o Estado fosse instrumento de todos (e no de poucos, como
acusam os marxistas), seria preciso garantir mais do que simplesmente a
igualdade perante a lei, isto , seria preciso assegurar um substrato social
democracia. Assim, o autor prope uma viso da poltica em que esta sejacompreendida como uma dimenso indissocivel estrutura social e
caracterizada pela necessidade de acomodao dos interesses conflitantes.
III Wanderley Guilherme dos Santos
Ao contrrio do primeiro autor avaliado, no caso de Santos existem
muitos dados sobre os trs aspectos aqui estudados: autoritarismo,
redemocratizao e modelo de democracia.
A transio democracia-autoritarismo pensada por ele a partir das
variveis polticas (tratadas como variveis explicativas), bem como uma
resultante da relao entre atores que calculam os custos e os benefcios de
obedecer o jogo de competio partidria, ou de deflagrar a violncia poltica.
Segundo ele, uma vez que a dinmica social no corresponde forosamente
dinmica poltica, e que quanto mais autoritrio for o regime, mais distante ele
estar da dinmica societria, o sistema autoritrio acaba por se colocar em
um dilema, chamado por ele de lei de ferro do autoritarismo: "Tornar-se cada
vez mais autoritrio, se pode, ou cedo ou tarde ter de abrir mo de partes do
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poder e at desaparecer por completo, eventualmente" (Santos, 1982, p. 159).
Assim, os regimes autoritrios so intrinsecamente instveis, o que pode
verificar-se pela anlise dos regimes autoritrios em geral. De acordo com ele,
existem trs padres de derrubadas de regimes autoritrios: por meio de um
golpe palaciano executado por uma frao dos militares que, posteriormente,
transferem o poder aos civis; por meio de uma revoluo generalizada; ou, o
que para ele era mais provvel de ocorrer no Brasil, por meio da adoo de
uma estratgia de liberalizao negociada, isto , uma situao na qual uma
parte importante das Foras Armadas persuade o setor mais resistente a
estender a liberalizao. Santos defendeu abertamente o que ele chama de
processo de descompresso poltica de tipo incremental. Essa estratgia
consistiria em liberalizar gradualmente o sistema autoritrio brasileiro por meio
de polticas pontuais (como o restabelecimento do habeas corpus) enquanto o
resto do sistema fosse mantido intacto a fim de preservar a estabilidade e evitar
uma nova compresso poltica que poderia ser causada se todo o sistema
fosse abruptamente liberalizado.
Em relao s conseqncias do regime autoritrio, Santos procura
demonstrar que as polticas sociais do regime vigente no apenas aumentaram
as desigualdades sociais existentes, como tambm reforaram a tradio
brasileira em combinar esforos de uma distribuio mais equitativa da riqueza
disponvel com restrio participao poltica. Santos afirma que no sculo
XIX reinava a total ausncia de leis sobre proteo social, combinada, em
compensao, a um princpio laissez-fairiano de no-regulamentao das
profisses. O Estado brasileiro mantinha-se reticente no tocante interveno
do poder pblico nos processos acumulativos at o sculo XX. Isso
importante porque, para o autor, a partir da Revoluo de 1930 inaugura-seuma nova ordem na poltica brasileira que permaneceria vigorante at a
dcada de oitenta: a cidadania regulada. Doravante, o Estado brasileiro
comea a interferir diretamente na esfera da produo e na questo social. Se
isso significou um avano em comparao com a ausncia institucional
anterior, com a criao de vrios direitos para os trabalhadores que coibiam os
excessos do processo de produo, representou, por outro lado tambm, a
possibilidade para o Estado em conter as presses do operariado e, assim,
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domesticar os atores envolvidos. Aliada represso dos trabalhadores, o
governo de Vargas, segundo Santos, cria uma legislao trabalhista que pune
aqueles que no esto regularizados, como o caso de vrios sindicatos, e
premia aqueles que se inserem na ordem regulada por meio dos benefcios
sociais. O impacto mais significativo da cidadania regulada consistiu na
produo de barreiras entrada na arena poltica, assim como repercutiria a
longo prazo na cultura cvica nacional, estimulando um comportamento de
submisso poltica frente ao Estado.
Santos avalia, ento, negativamente as polticas sociais ps-64 e o faz
contrastando-as ao que ele chama de quadro diferencial de carncias
existentes no contexto nacional. O autor constata que, a despeito do montante
brasileiro despendido sob a rubrica bem-estar social ser maior do que pases
como os Estados Unidos, as polticas sociais durante o regime militar esto
muito aqum das necessidades do pas. Ele demonstra empiricamente que as
desigualdades sociais entre regies e reas do pas no apenas aumentaram
substantivamente no perodo posterior a 1964, mas revelaram ser tambm
muitas vezes cumulativas, haja vista que uma regio carente de um recurso
normalmente carente dos demais. Apesar de alguns avanos em polticas
sociais , o autor categrico em afirmar que a poltica social desenvolvida pelo
regime autoritrio no consegue alterar a ordem da cidadania regulada, sendo
a cidadania sempre tratada como destituda de qualquer carter pblico e
universal. Como estratgia poltica, o regime militar de 64 repetia a poltica
varguista de conceder direitos sociais como compensao pela restrio dos
direitos polticos e como meio de aquiescncia das massas insatisfeitas.
Avaliando os vinte e um anos de militarismo no Brasil, o autor afirma que
os chefes de governo do perodo foram responsveis por um processo demodernizao conservadora, sendo que vrias conseqncias desse processo
no eram esperadas. O autor afirma que prprio da poltica que a expectativa
dos reformadores no corresponda aos efeitos obtidos, podendo gerar, como
foi o caso, mudanas contrrias s desejadas. Embora no possa ser atribudo
apenas aos militares, o fato que, at 1984, o pas havia passado por um
processo de urbanizao, industrializao e crescimento econmico tornando-
se, em suma, mais complexo, diversificado. Ele avalia o autoritarismo brasileiro
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a partir de uma perspectiva no-ideolgica, ou seja, no atribuindo a ele todos
os bnus da modernizao, nem todos os nus, ao contrrio do que o autor
julga comum na literatura a respeito da poltica autoritria.
Deixando de lado as questes do autoritarismo e da redemocratizao,
passemos agora exposio do que acreditamos ser o modelo de democracia
adotado por esse autor. Pode-se dizer que o tema da democracia o tema por
excelncia do pensamento poltico de Santos, como o tambm de Reis.
Como se verificar, essa temtica emerge no pensamento desse autor: 1)
como opo poltica mais desejvel, ainda que imperfeita; 2) como um
processo poltico associado s transformaes da estrutura social do pas a
partir dos anos 80; 3) como uma forma de organizao caracterizada pelas
amplas participao e competio pelo poder poltico e que, exatamente por
isso, afronta e compromete o poder das oligarquias. Alguns elementos que
constituem, doravante, uma marca de seu pensamento: a defesa da
democracia representativa como regime que mais expressa as clivagens de
opinio da sociedade; do sistema eleitoral proporcional como uma forma de
representao poltica mais justa do que o sistema majoritrio; da ampliao da
participao poltica, por meio do direito do voto e da elegibilidade no sentido
forte, como condio para realizao dos outros direitos; do sistema partidrio,
como forma de condensao da soberania civil, bem como a defesa da
alternncia partidria no poder. Em Regresso, por exemplo,ele argumenta a
favor da consolidao da democracia no Brasil e contra as ameaas de re-
oligarquizao do pas. Partindo de um contexto de relativa institucionalizao
democrtica do pas, conforme explica a longa, mas esclarecedora passagem,
o autor conclui:
Sustento que ser mais democrtico o sistema que oferecermaior competio eleitoral e maior competio partidria; demaneira oposta, so oligrquicas as propostas que redundemem subtrair graus de liberdade ao eleitor, em sua escolha departidos e candidatos. (...) o Brasil encontra-se em crucialmomento de sua histria como nao. Finalmente, apsprolongado e tortuoso percurso, a sociedade brasileira comeaa desarmar os caixilhos do sistema oligrquico, e conhecer aefetiva dinmica de uma vida poltica democrtica, comoresultado de alterao nos nveis de competio partidria eeleitoral e da decisiva incorporao das regies Norte e Centro-Oeste aos determinantes da poltica nacional (Santos, 1994a,p. 41-42).
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Assim, o autor considera que o intervalo entre 1985-94 representava a
superao do sistema oligrquico brasileiro, inclusive enquanto um processo
de integrao nacional. Contrastando o perodo de 1945-64 com aquele
momento, ele afirma que as mscaras da oligarquia haviam, finalmente, sido
destrudas. Diante da discusso pblica que se instalava naquele momento,
Santos encara as propostas de reforma (como adoo do sistema puramente
majoritrio, limitao no nmero de partidos, etc.) como mais uma reao das
oligarquias resistentes em democratizar o poder no pas. Num embate entre as
oligarquias, desejosas de manter o status quo, e as foras polticas que
demandam a democratizao nacional, o autor indentifica mais uma ofensiva
oligrquica. Embora no se assuma como um advogado da mumificao
institucional, Wanderley Guilherme defende que no se sabe, de fato, como
esses mecanismos funcionam: sendo a poltica o espao da incerteza,
raramente o efeito produzido pelas instituies implantadas corresponde
inteno dos reformadores, visto que tudo isso depende da interao entre os
agentes, sempre reflexiva e mediada pelas diferentes subjetividades.
No livro Razes da desordem, Santos apresenta tambm algumas idias
que so esclarecedoras quanto sua concepo de democracia. No primeiro
captulo, o autor procura analisar, em comparao com a experincia inglesa,
como se formou a ordem brasileira, enfatizando duas questes comuns s
sociedades modernas, a saber, o alargamento da participao e a
institucionalizao da competio poltica e a questo da integrao
institucional. Por volta de 1840, a Inglaterra teria terminado o seu primeiro surto
de industrializao e se preparava para adoo do livre comrcio e do
imperialismo, que auxiliariam o pas a passar de forma muito menos instvel
que seus vizinhos europeus pelos sculos XIX e XX. Esse processo econmicofoi fundamental, pois teria permitido, de acordo com o autor, a integrao
nacional. Alm dos ndices econmicos favorveis estabilidade inglesa, outro
fator de estabilizao consistiu no fato de que o pas contou com um sistema
poltico aceito por boa parte das lideranas operrias. Mesmo que restrito s
oligarquias, o sistema de competio poltica pde, assim, se institucionalizar,
constituindo o que Robert Dahl chama de sistema de segurana mtua. Uma
vez consolidado esse eixo, esse sistema foi se ampliando mediante a extino
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de barreiras ao jogo poltico (renda e sexo). Entretanto, Santos afirma que
houve um terceiro momento desse processo de constituio da ordem,
igualmente importante, e no avaliado por Dahl. Somente depois de
liberalizado e com alta participao poltica, quer dizer, com as identidades
polticas dos atores j consolidadas por meio dos partidos, que o sistema
poltico ingls comea a solucionar a questo social, o processo de construo
do Estado de bem-estar moderno, atravs de uma legislao provendo auxlio
aos pobres, seguro-desemprego, seguro-sade, etc. A partir da contraposio
da histria poltica inglesa com a histria brasileira, percebe-se que Santos
quer ressaltar um aspecto omitido pela teoria de Dahl: seria possvel pensar em
outras possibilidades do processo de democratizao no antevistas por Dahl,
se o problema distributivo fosse levado em considerao. Em um contexto no
qual as identidades polticas foram formadas sem a mediao dos partidos e
antes da constituio da ordem poltica e da ideologia liberal, os atores
envolvidos no conflito entre capital e trabalho procuraram vocalizar suas
demandas no por meio da participao ou da competio partidria, mas sim
atravs da influncia direta e privilegiada com parte da burocracia estatal que,
numa situao favorvel, funcionava como rbitro dessa disputa social
(corporativismo subdesenvolvido).
No terceiro captulo da obra mencionada, Santos avalia como funciona
o que existe de poliarquia no Brasil contemporneo (1994b, p. 72). Tendo em
vista a herana corporativa e a perversa seqncia de democratizao
nacional, pode-se tomar o Brasil como uma poliarquia? Avaliando cada um dos
requisitos da poliarquias (desenvolvimento econmico, modernizao,
pluralismo societal) Santos conclui que o Brasil j , na dcada de noventa,
uma poliarquia. Todavia,o autor questiona esse diagnstico.A sua anlise relaciona-se aos diagnsticos que anunciavam uma crise
de governabilidade no incio dos anos noventa causada por uma suposta crise
de excesso de demandas sociais. Santos, ao contrrio, defende que o dilema
da ordem brasileira consiste no hbrido institucional aqui instaurado: por um
lado, uma morfologia polirquica, excessivamente legisladora e regulatria e,
por outro lado, um hobbesianismo social pr-participatrio e estatofbico. A
dificuldade governativa brasileira no resulta de uma assimetria entre elevada
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demanda social e ineficincia estatal, mas sim entre a esfera institucional, de
natureza polirquica, e a esfera social, de natureza hobbesiana. O resultado
ulterior desse estado de natureza da sociedade brasileira uma cultura cvica
predatria, de soma zero quando bem sucedida, e de soma negativa, quando
fracassa. Sem uma cultura cvica capaz de dar sustentao efetiva s
instituies polirquicas j existentes, o autor v com descrena, como
defendeu tambm no mencionado texto, qualquer reforma institucional. Para
ele, era imprescindvel expandir o Estado Mnimo a fim de garantir eficcia
ao estatal. Distante tambm dos diagnsticos que criticavam um suposto
gigantismo do Estado brasileiro, Santos defende que o este um ano quando
comparado a outros pases: excessivamente regulador, com uma estrutura
deficiente para atender a magnitude das demandas, corporativo, e no
assentado sobre um contrato social, mas sim convivendo com uma sociedade
que vive temerosa.
Para concluir, cumpre enfatizar que tanto Reis, quanto Santos tem a
democracia como objeto central de anlise e como ideal poltico maior. Como
se viu, ambos tambm desempenharam historicamente a funo de ajudar a
consolidar uma comunidade acadmica pautada por critrios internacionais de
excelncia e voltada para o estudo da poltica. Os dois atuaram, outrossim,
como intelectuais pblicos no apenas nos estreitos crculos de convivncia e
divulgao das universidades, mas tambm nos meios de comunicao de
massa e em outros espao pblicos. Por outro lado, seria exagero
desconsiderar as diferenas entre eles (nem todas, obviamente mencionadas e
exploradas aqui). No caso de Reis fica patente uma maior abertura para
inovaes institucionais e a nfase na dimenso social da democracia,
pressupondo a eliminao de qualquer trao adscritcio, ao passo que no casode Santos salta aos olhos a defesa da ampla competio pelo poder (tpica das
poliarquias) e certo otimismo em relao evoluo da sociedade e da
democracia brasileira nos ltimos decnios. Entretanto, se as diferenas so
inegveis, tambm o o fato de que, apesar delas, os autores partem de uma
mesma matriz de pensamento, qual seja, a liberal-democrtica, na qual a
sociedade ideal caracterizada em termos de valores e direitos (civis, polticos
e sociais) dos indivduos, sendo esses portadores de interesses o esteio e o
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telos da organizao social, assim como h uma postura comum dos dois de
questionamento e ceticismo quanto aos recentes debates em torno da
democracia participativa e do chamado republicanismo.
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