CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO … · abordagem do conhecimento relacionado às...
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CLÁUDIA VALENTINA ASSUMPÇÃO GALLIAN
CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE
PUC/SP 2005
CLÁUDIA VALENTINA ASSUMPÇÃO GALLIAN
CONHECIMENTO ESCOLAR EM CIÊNCIAS NATURAIS NO ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Educação: História, Política, Sociedade, sob orientação da Profa. Dra. Maria das Mercês Ferreira Sampaio.
PUC/SP 2005
BANCA EXAMINADORA
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Já não basta ser gente pra encanecer de dor? Ainda têm as escolas que se aplicar neste esmero de esvaziar dos meninos seu desejo de bois, grama e pequenos córregos?
Adélia Prado
À minha mãe, pela inabalável confiança e total apoio. Ao meu pai, a quem devo o fascínio pelas palavras. À Júlia e Pedro, pela alegria. Ao Zé, meu companheiro, pela torcida e pelo amor.
Aos meus irmãos, em especial ao Alípio, por me lembrarem
quem eu sou.
AGRADECIMENTOS
À Mercês, referência e carinho ao longo deste trecho da minha história.
À Fátima, minha fiel colaboradora, cujo apoio me permitiu completar a tarefa.
À Stella e Fernanda, pela certeza reconfortante da amizade.
À Taciana, pela alegria e vibração a cada vitória.
Aos colegas da PUC/SP, Ana Maria, Márcia, Renata, Hildebrando, Arlindo e Alex, pela
cumplicidade.
Aos meus professores, Alda, Bruno, Mercês, Luciana, Maíta, Leon e José Geraldo, pela
disponibilidade para ensinar.
Ao Professor Doutor Manoel Oriosvaldo de Moura e ao Professor Doutor Odair Sass, membros
da Banca Examinadora a que se submeteu este trabalho, pelas valiosas contribuições, frutos de
cuidadosa leitura.
RESUMO
Esta pesquisa pretendeu caracterizar o conhecimento escolar de ciências, através de uma
investigação de base empírica, cujo principal procedimento foi a observação direta das aulas de
duas professoras, na 5a e na 7a série do Ensino Fundamental, em uma escola da rede pública
estadual de Campinas, São Paulo. As contribuições teóricas relativas à forma escolar, à cultura da
prática acumulada, ao processo de constituição do conhecimento escolar nas relações com o
conhecimento científico, sustentam as análises aqui apresentadas, tendo como principais
referências os seguintes autores: J. Gimeno Sacristán; Jean-Pierre Astolfi e Michel Develay; Guy
Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin; Lucíola L. C. P. Santos; Alice Ribeiro C. Lopes e Júlia
Varela. Ao longo do texto, a descrição e a análise das ações docentes explicitam os fatores que
orientam, facilitam e/ou limitam as escolhas dos professores em relação ao conteúdo e à forma de
abordagem do conhecimento relacionado às ciências e o impacto destas escolhas sobre a
qualidade da aproximação dos alunos em relação ao conhecimento científico. Constatou-se que
uma das atuações observadas reproduziu o padrão já descrito em outras pesquisas sobre o ensino
de ciências, de fragmentação e simplificação do conhecimento e centralização do processo de
ensino no professor e no livro didático, enquanto a outra revelou maior ênfase no
desenvolvimento da autonomia dos alunos e maior abertura para o conhecimento oriundo de
fontes externas à escola. Entretanto, em ambas as situações observadas, explicitam-se lacunas e
restrições no processo de conhecimento das ciências naturais, em função dos limites da própria
forma escolar. Nesses parâmetros, o conhecimento escolar evidencia suas características e
peculiaridades.
Palavras-chave: Conhecimento escolar; Ensino de ciências; Prática docente.
ABSTRACT
This research intended to characterize the school knowledge of science through
observation and research into two teachers’ classes in the 5th and 7th grades in a public school in
Campinas, São Paulo. The theoretical contributions related to the school, the accumulation of
practice, the process of constitution of school knowledge on the scientific bases, give support to
the analyses presented on this research and have the following authors as the main references: J.
Gimeno Sacristán; Jean-Pierre Astolfi and Michel Develay; Guy Vincent, Bernard Lahire and
Daniel Thin; Lucíola L. C. P. Santos; Alice Ribeiro C. Lopes and Júlia Varela. Throughout the
text, the description and analysis of the teachers’ actions can be found with the aim of showing
the facts that guide, make easier and/or limit the teachers’ choices related to the contents and to
the way of dealing with the knowledge related to the sciences and the impact of these choices on
the quality of the students’ approximation to the scientific bases. One of the actions observed
reproduced the standard already related in other researches about the teaching of science, the
fragment and the simplicity of knowledge and that the teaching process was centred on the
teacher and the textbook. The other one showed more emphasis on the development of the
students’ autonomy and the knowledge from other sources out of school. However, blanks and
restrictions on the process of natural sciences knowledge can be found in both of the situations
observed because of the limits of the school system. Thus, the school knowledge shows its
characteristics and particularity.
Key words: School knowledge; Teaching of science; Teaching practice.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................01
CAPÍTULO I
O ENSINO DE CIÊNCIAS
Notas históricas relativas ao ensino de ciências no Brasil..................................................15
Notas teóricas relativas ao ensino de ciências....................................................................23
CAPÍTULO II
A PRÁTICA DOCENTE OBSERVADA
A escola...............................................................................................................................32
As aulas de ciências: atividades desenvolvidas por professoras e
alunos..................................................................................................................................33
Professora 1.......................................................................................................................35
1. Organização da classe e controle dos alunos..................................................................38
2. Abordagem dos conteúdos..............................................................................................45
3. Tarefas e atividades dos alunos......................................................................................55
4. Uso dos recursos didáticos..............................................................................................62
5. Avaliação........................................................................................................................66
Professora 2.......................................................................................................................73
1. Organização da classe e controle dos alunos..................................................................74
2. Abordagem dos conteúdos.............................................................................................77
3. Tarefas e atividades dos alunos......................................................................................85
4. Uso dos recursos didáticos.............................................................................................91
5. Avaliação........................................................................................................................92
Professora 1 e Professora 2.............................................................................................99
1. Diferentes ações educativas, diferentes formas de aproximação do
conhecimento.....................................................................................................................99
2. Informações sobre as professoras acompanhadas........................................................103
CAPÍTULO III
REFLEXÕES SOBRE OS DADOS APRESENTADOS........................................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................133
ANEXOS
ANEXO A.........................................................................................................................137
ANEXO B.........................................................................................................................139
ANEXO C.........................................................................................................................147
1
A escola, no seu trabalho de educação e formação dos alunos, atua na transmissão e
divulgação de um conhecimento sistematizado, o que lhe confere o importante papel de tornar
públicos certos conhecimentos socialmente legitimados, dentre os quais, os gerados pela
comunidade científica. Evidentemente, nem tudo o que constitui uma área de conhecimento
comporá o conteúdo a ser transmitido nas escolas. Ocorrem seleções desde a produção do
conhecimento nas universidades e centros de pesquisa, nas agências reguladoras da política
educacional, na composição dos livros didáticos e, também, na sala de aula, pelo professor em
interação com seus alunos.
Além de selecionar os conteúdos, a educação escolar deve ser capaz de torná-los
transmissíveis, através de uma reestruturação dos saberes, lançando mão de dispositivos
mediadores que permitam a aproximação do erudito, que não é perfeitamente comunicável ao
aluno (Forquin, 1992, p. 32).
Santos (1995), fazendo referência às concepções de Bernstein, ressalta que esse
deslocamento, ou recontextualização de um saber, de seu lugar de origem para a escola, se dá de
acordo com os princípios de reordenação seletiva dessa instituição, produzindo o discurso
pedagógico. Assim, para essa autora, “o discurso pedagógico não poderia ser confundido com os
discursos que ele recontextualizou” (p. 32-33).
Neste processo produz-se o conhecimento escolar, que representa a adequação dos
conhecimentos selecionados das diferentes áreas às condições de ensino e aprendizagem que se
estabelecem no espaço e no tempo escolar. Um dos meios utilizados neste processo de adequação
é a organização dos conhecimentos em disciplinas escolares. Como uma dessas disciplinas, a de
Ciências Naturais destaca-se por se relacionar muito diretamente ao processo de construção do
conhecimento científico, uma vez que em diferentes circunstâncias sua proposta de ensino se
refere ao método científico.
A esse respeito sugerem-se muitas indagações, tais como: o que é esse saber escolar
produzido nessa disciplina? Quais conteúdos o professor seleciona para transmitir e como ele
aborda esses conteúdos na tentativa de garantir sua aprendizagem?
Admitindo-se, então, que o conhecimento escolar na disciplina de ciências naturais não é
a Ciência produzida nas diferentes áreas – Biologia, Física, Química, Geologia...—, que se
denominará doravante de Ciências de Referência, e que, como um saber escolar, ele tem
características que o diferenciam destas, questiona-se quais relações estão presentes entre esses
2
saberes escolares e as Ciências de Referência. É possível que essas relações se expressem de
alguma forma, mas não exclusivamente, na concepção de Ciência do professor. Essa concepção
pode se inserir, como elemento importante, no processo de decisões que tem lugar na escola, no
que se refere à seleção de conteúdos e formas de transmissão dos conhecimentos. Mas outros
fatores devem exercer influência sobre as decisões do professor a respeito dos conteúdos que
privilegiará e da forma que utilizará na sua transmissão. Que fatores, então, exercem alguma
influência nas decisões do professor a esse respeito? Quais desses fatores atuam como agentes
limitadores de sua prática?
Como exemplo de um estudo que levanta características da prática do professor, cita-se o
de Zancul (2002) que, focalizando a região de Araraquara (SP), apresenta as possibilidades e os
limites para a efetivação do ensino de ciências naturais nas quatro séries finais do Ensino
Fundamental (p. 93). Trabalhando com escolas particulares e públicas, a autora aponta algumas
tendências no que diz respeito ao conteúdo e à forma assumidos na prática do ensino de ciências
nesse segmento do Ensino Fundamental. Nesse estudo, a autora utiliza como instrumento de
pesquisa os relatórios de estágio de alunos de Licenciatura, resultado de observações de aulas de
professores de várias escolas da região, e, como outra fonte, as aulas de duas professoras de uma
escola pública da cidade de Araraquara, acompanhadas durante um período de quatro anos.
Com relação aos conteúdos, Zancul (2002) aponta para “sinais de fragmentação e
justaposição dos conteúdos trabalhados” (p. 107). A autora indica a diversidade na seleção e
ordenação dos conteúdos na mesma série, na mesma cidade, em escolas diferentes (idem, p. 108).
O livro didático aparece em seu estudo como um norteador da seleção e da ordenação dos
conteúdos, apontando para uma distribuição tradicional destes conteúdos por série1 (idem, p.106-
107).
A forma mais usual de transmissão dos conteúdos, segundo a autora, é a exposição oral
pelo professor. No geral, ela se segue à leitura do livro didático ou à cópia do resumo elaborado
pelo professor e transcrito na lousa. Quase inexistem as atividades experimentais, e quando
ocorrem, geralmente são demonstrações realizadas pelo professor (idem, p. 109-110).
A autora menciona que em relação às práticas observadas, algumas tentativas de
diversificação, ainda que nem sempre diretamente relacionadas aos temas trabalhados nas aulas,
5 A distribuição tradicional dos conteúdos, segundo Zancul (2002) é: ar, água, solo e ecologia, na quinta série; seres vivos, na sexta; corpo humano, na sétima; física e química, na oitava série (p. 104-105).
3
como a exibição de vídeos ou a realização de experimentos diferenciados são encontradas, mas,
de maneira geral, as aulas são expositivas e fundamentadas em conteúdos extraídos dos livros
didáticos (Zancul, 2002, p. 113).
Ainda sobre a produção acadêmica referente ao ensino de ciências naturais, Megid Neto
(2001), traz um levantamento das tendências da pesquisa sobre o ensino desta disciplina. De
acordo com esse autor, do total de teses e dissertações relacionadas ao ensino de ciências naturais
que analisou (572 pesquisas – produção referente ao período de 1972 a 1995), 20% (cerca de 114
trabalhos) se referem a questões exclusivas ou preferenciais do Ensino Fundamental (p. 93).
Em relação aos temas privilegiados nesses estudos, este autor afirma que há um
predomínio nas investigações sobre elementos diretamente vinculados ao processo ensino-
aprendizagem escolar e de sala de aula. O autor observa o predomínio dos seguintes focos
temáticos: Currículos e Programas (28,3%); Formação de Professores (18,4%); Conteúdo-
Método (17,5%); Recursos Didáticos (12,3%); Formação de Conceitos (10,8%); Características
do Professor (9,0%) e Características do Aluno (7,1%) (idem, p. 100).
Do levantamento realizado por Megid Neto (2001), destacam-se 137 teses e dissertações
referentes ao ensino de ciências naturais no Ensino Fundamental II. Destas, 14 se referem à
prática do professor nesse segmento (Anexo A).
O procedimento de pesquisa mais utilizado nesses 14 trabalhos foi a entrevista com
professores, seguido de observações de aula e análise documental. Os questionários aparecem
logo a seguir.
As conclusões dos pesquisadores acerca dos fatores limitantes da prática do professor
apontam para os seguintes problemas: concepções errôneas do professor em relação ao processo
de produção e legitimação do conhecimento científico; dependência em relação ao livro didático;
escassez ou inadequação de recursos didáticos; contradições entre as concepções do professor e a
sua prática; deficiências conceituais na formação do professor; metodologia excessivamente
centrada no professor e distribuição desigual do conhecimento em relação à classe social de
origem dos alunos.
Entre as referências teóricas citadas pelos pesquisadores em seus resumos, encontram-se
os seguintes autores: Weber; Descartes; Bacon; D’Alembert; Rousseau; Bernstein; Althusser,
Baudelot & Establet e Bourdieu & Passeron.
4
Em outro levantamento ainda não finalizado e gentilmente cedido pelo autor, Professor
Dr. Jorge Megid Neto, encontra-se a análise de 362 teses e dissertações sobre o ensino de
ciências naturais no Brasil, no período de 1996 a 2002. Desse levantamento, destacam-se 15
trabalhos acerca da prática do professor dessa disciplina no Ensino Fundamental II.
Nessas 15 investigações, encontra-se como procedimento de pesquisa mais utilizado a
entrevista, seguido pela observação de aula e análise documental e, por último, o questionário.
Como principais limitadores da prática do professor de ciências, os pesquisadores
apontam essencialmente para os mesmos problemas levantados por Megid Neto (2001).
Como referenciais teóricos citados nos resumos desses 15 trabalhos encontram-se os
seguintes autores: Heller, Gramsci, Kosik, Bachelard, Vygotsky, Bakhtin e Wertsch.
Pode-se perceber na descrição apontada que algumas características descritas por Zancul
(2002) como a relação de dependência do professor em relação ao livro didático, a centralidade
da metodologia no professor e a pouca ou nenhuma realização de atividades práticas, também
aparecem em outras pesquisas dessa natureza, compondo um retrato do que é mais comum
acontecer nas salas de aula, no ensino de ciências naturais de 5ª a 8ª série do Ensino
Fundamental.
Esse contorno comum, entretanto, pode ser problematizado e escolhido como ponto de
partida para novas indagações que possibilitem o aprofundamento da discussão sobre algumas
dimensões do ensino de ciências naturais em seu desenvolvimento na escola. Ou seja, os estudos
citados, especialmente o de Zancul (2002), deixam algumas perguntas, o que estimula a busca por
outras possibilidades de relação conteúdo-forma que se concretizem em aulas de ciências naturais
no Ensino Fundamental II.
Esta pesquisa buscou, então, contribuir no sentido de trazer mais informações sobre o que
efetivamente está sendo oferecido aos alunos em termos de conhecimento de ciências e de
valores inscritos na prática do professor, de forma implícita ou explícita. Admitindo-se que na
prática de sala de aula desenvolve-se o currículo real2 de uma disciplina, há que se destacar que a
prática do professor é condicionada por fatores externos à escola (como as regulações políticas e
administrativas, as influências sociais e econômicas, a produção de meios didáticos e os âmbitos
de elaboração do conhecimento), e o que se decide externamente em relação ao ensino também é
2 Gimeno Sacristán (1998) define o currículo real como sendo o resultado da interação entre o currículo manifesto — o que se diz que se ensina — e o currículo oculto — conjunto de intervenções, explícitas ou não, que visam formar os hábitos desejáveis para a socialização do indivíduo (p. 132-133).
5
reformulado no âmbito interno da escola (na estrutura organizativa da escola, no ambiente e nos
tipos de atividade que configuram o processo de ensino-aprendizagem, na disposição do espaço,
na ordenação do tempo, etc.) (Gimeno Sacristán, 1998, p. 130-131). Portanto, indicar o que de
fato resulta dessa complexa rede de fatores condicionantes pode aproximar nossa compreensão
daquilo que efetivamente ocorre, e do que poderia ser modificado em termos de ensino de
ciências naturais, de acordo com as expectativas sociais e educacionais que recaem sobre essa
disciplina. Segundo Gimeno Sacristán (1999), “esclarecer quais são as finalidades assumidas para
a escolarização, explicitar quais são os seus conteúdos, descobrir como são assumidas e
colocadas em prática pelos professores é penetrar nas razões mais profundas da ação e das
instituições” (p. 148). Nesse sentido, é pertinente, também, a indagação sobre o que devem
aprender os professores para que suas ações educativas permitam a constituição de um
conhecimento escolar de ciências que de fato favoreça a formação de cidadãos mais autônomos e
capazes de estabelecer um posicionamento crítico em relação aos produtos do desenvolvimento
da Ciência.
A este respeito, Carvalho e Gil-Pérez (2003) indicam o que as pesquisas em Didática do
Ensino de Ciências apontam como o conhecimento necessário aos professores desta disciplina.
Trata-se de um corpo de conhecimentos profissionais muito diversos e não só dos conteúdos
específicos de sua área de formação, ainda que, em relação a estes últimos, os autores ressaltem
que “todos os trabalhos existentes mostram a gravidade de uma carência de conhecimentos da
matéria, o que transforma o professor em um transmissor mecânico dos conteúdos do livro de
texto” (p. 20-21).
Assim, com base nas indicações de Carvalho e Gil-Pérez (2003, p. 23-24), pode-se derivar
o que a ação educativa deve permitir aos alunos – em outras palavras, o que o professor deve
conhecer para que possa, então, por meio de suas ações, favorecer uma melhor forma de
aproximação do conhecimento científico:
1. Conhecer a história das Ciências para poder associar os conhecimentos científicos com
os problemas que originaram a sua produção e compreender como esses conhecimentos
evoluíram e como se articularam em corpos coerentes. Sem isso, tais conhecimentos
apresentam-se como construções arbitrárias e é passada uma visão estática e dogmática
que deforma a natureza do trabalho científico;
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2. Conhecer a forma pela qual os cientistas abordam os problemas, as características mais
notáveis de sua atividade, os critérios de validação das teorias científicas;
3. Conhecer as interações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, ressaltando o papel social
da Ciência ao apontar que os cientistas não têm lugar à margem da sociedade em que
vivem, que são diretamente afetados por problemas e circunstâncias do momento
histórico em que vivem, do mesmo modo que sua ação tem clara influência sobre o meio
físico e social em que se insere;
4. Adquirir uma visão dinâmica e aberta da Ciência através do contato com os
desenvolvimentos científicos recentes e suas perspectivas, bem como pela abordagem
das interações entre os diferentes campos do saber e dos processos de unificação destes.
O que se pretende ao apontar estes conhecimentos como relevantes para instrumentalizar as
decisões dos professores é destacar a necessidade de se avaliar os processos de formação inicial
e permanente destes agentes. Faz-se crucial que as contribuições das pesquisas relacionadas ao
ensino e à aprendizagem de ciências de fato atinjam as discussões acerca do processo de
formação dos professores desta disciplina podendo, assim, garantir que novas idéias não sejam
anuladas na sua aplicação concreta em sala de aula.
Questões de pesquisa, hipóteses e opções metodológicas:
Elegeu-se como tema desta pesquisa o currículo e o conhecimento escolar em ciências
naturais no Ensino Fundamental. A este respeito, sugeriram-se indagações como: quais são os
conteúdos e, especialmente, os conceitos focalizados e como são desenvolvidos na prática de sala
de aula, que possibilidades de interferência o professor abre para seus alunos, se e como ele
aborda aspectos históricos da produção do conhecimento científico3, como ele avalia se a
transmissão de conhecimentos garantiu a aprendizagem.
O que se buscou descobrir foram diferentes possibilidades de relação conteúdo-forma que
se concretizassem em aulas de ciências naturais no Ensino Fundamental. Assim, diante das
possibilidades e limitações no estabelecimento de suas práticas, que escolhas faz o professor na
3 A respeito da relevância de se manter uma preocupação com a perspectiva histórica de construção do conhecimento científico no ensino de ciências, Carvalho e Gil-Pérez (2003) indicam que compreender como evoluíram tais conhecimentos evita uma visão estática e dogmática da Ciência, uma vez que, dessa forma, relaciona-se a produção científica de uma época com os problemas enfrentados pela sociedade no mesmo período (p. 23).
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constituição do conhecimento escolar nessa disciplina, além das já apontadas na produção
acadêmica sobre o ensino de ciências naturais? Quais são os determinantes que a escola, em suas
condições de organização e funcionamento, impõe ao ensino de ciências naturais?
Em resumo, esta pesquisa partiu da indagação sobre o que é esse conhecimento escolar
que se constitui na prática. Como produção singular, que guarda relações com as Ciências de
Referência, e organizado segundo os contornos que definem a escola como instituição, esse saber
pode ser destrinçado e analisado.
Uma vez que se considere a Ciência como construto social e que se admita que o ensino
de ciências lida com uma parcela desse conhecimento científico, recontextualizada na realidade
escolar, considerou-se fundamental investigar o que compõe esse conhecimento escolar, tanto no
que se refere aos conteúdos escolhidos quanto à forma privilegiada para a sua transmissão.
Caracterizar o conhecimento escolar nessa disciplina pode revelar o tipo de representação que a
escola constrói sobre a Ciência, tanto no que se refere aos seus produtos quanto ao seu processo
de elaboração. Essa caracterização pode auxiliar na compreensão sobre a formação do aluno em
sala de aula, indicando possíveis valores que mediarão suas relações sociais, com o meio
ambiente e com o próprio conhecimento científico.
Os resultados desta investigação pretenderam, portanto, contribuir para o esclarecimento
do que ocorre com o currículo oficial de ciências naturais quando é incorporado à escola e do que
significa o trabalho dessa disciplina no currículo e no processo de escolarização e formação dos
alunos. Admitiu-se a possibilidade de que a relação entre Escola, Ciência e Sociedade que,
segundo Megid Neto (2001, p. 102), é escassamente discutida na produção acadêmica sobre o
ensino de ciências naturais no Brasil, fosse melhor compreendida a partir dos resultados de uma
investigação desta natureza. Além disso, se a combinação dos resultados do presente estudo com
os de pesquisas da mesma natureza indicarem algo a ser modificado, somente pode-se esperar
mudança real se for planejada de acordo com as informações sobre o currículo real dessa
disciplina. Na mesma direção, afirmam Giroux e Penna (apud Gimeno Sacristán, 1998, p. 133):
Só tratando de entender o currículo manifesto ou oficial dentro das condições escolares, e estas e aquele dentro do contexto político, social e econômico exterior à escola, entende-se a escolarização e os educadores podem desenvolver esquemas de pensamento mais apropriados para compreender o ensino e elaborar com mais realismo propostas de modificação da mesma.
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A partir dos resultados obtidos por Zancul (2002) e pela análise dos resumos das teses e
dissertações destacadas dos trabalhos de Megid Neto (2001) configuraram-se hipóteses, ou
possíveis indicações do que se poderia encontrar em termos de conteúdo e forma assumidos pelo
ensino de ciências naturais no Ensino Fundamental II.
No que dizia respeito ao conteúdo, esperou-se a confirmação do papel proeminente do
livro didático como fonte para a determinação dos temas a serem abordados durante o ano, bem
como da seqüência estabelecida para essa abordagem. Em relação a esta última, considerou-se a
possibilidade de ser comum o não cumprimento dos capítulos finais dos livros e, portanto, dos
temas deixados para o final do período letivo, uma vez que as dificuldades encontradas pelo
professor durante o ano, ou mesmo a realização de alguma atividade não prevista, poderiam gerar
atraso no andamento do plano do professor. Não se esperava que as atividades não planejadas ou
muito independentes do que propõe o livro didático fossem comuns, pelo grande volume de
conteúdo proposto para ser abordado em um restrito intervalo de tempo.
Admitiu-se que a escolha pelas indicações do livro didático em termos de conteúdo e
mesmo de forma talvez gerasse uma despreocupação em relação ao encadeamento dos temas de
aulas, fruto da confiança do professor na organização e na seqüência estabelecidas entre eles em
um livro legitimado pelo uso ou pelas instâncias governamentais; um instrumento que associa os
conteúdos apontados como necessários à formação do aluno e sugestões de métodos para a sua
abordagem – como o livro didático — poderia trazer a segurança que a própria formação do
professor talvez não lhe conferisse.
Mais especificamente com relação à forma, esperou-se o predomínio da abordagem dos
conteúdos centrada no professor, através de exposições orais e da realização de exercícios e
atividades propostas no livro didático. A ocorrência de atividades que fizessem uso de outros
recursos didáticos ou mesmo de atividades de experimentação não foi considerada muito
provável, seja pela falta de recursos materiais, por problemas de adequação do conteúdo ao
tempo disponível para a sua abordagem, pelo número elevado de alunos por sala ou até pelo
receio do professor em propor essas atividades e não conseguir cumprí-las ao se deparar com os
problemas de indisciplina ou com a sua própria inexperiência nessas atividades.
Nesse quadro já confirmado por inúmeros estudos, no entanto, algumas lacunas se
apresentaram. O próprio quadro, na verdade, serviu de padrão a ser questionado na relação entre
os focos priorizados e seus vários determinantes. Foi preciso considerar as determinações
9
escolares sobre a atividade docente e os demais fatores que orientam as escolhas do professor, o
uso que faz do livro didático, o teor de suas explicações, o modelo pedagógico
predominantemente assumido em suas aulas, as suas criações pessoais para acompanhar os
alunos na aprendizagem, o que mais valoriza em sua prática, a interferência dos alunos na
equação conteúdo-forma na organização da atividade docente, e os aspectos que se referem à
formação e utilização de conceitos.
Levando em conta essas questões, a pesquisa se organizou considerando que, diante do
quadro complexo de fatores que condicionam a prática do professor, existe um restrito espaço de
autonomia relativa não desprezado por esse agente e que suas escolhas delimitam o conhecimento
de ciências oferecido aos alunos. Nessas atividades de selecionar e contextualizar o
conhecimento, de acolher os alunos em seus questionamentos, de encadear conceitos e temas,
entre outras, é que o professor exerce seu papel fundamental na definição prática do
conhecimento escolar de ciências naturais. Conseqüentemente, indicou-se como hipótese inicial
de investigação, que os detalhes da prática docente e dos modos de organização do trabalho da
escola imprimem os traços centrais do conhecimento escolar constituído nessa disciplina.
Admitiu-se que esse tipo de investigação exigiria partir do acompanhamento sistemático
de situações de sala de aula, um dos espaços onde se explicitam as escolhas do professor.
Considerou-se que é nesse espaço que devem se estabelecer os confrontos entre essas escolhas e
as possíveis limitações para a sua implementação, o que resulta, finalmente, na constituição do
conhecimento escolar.
Optou-se por acompanhar aulas de ciências naturais – disciplina que doravante será
denominada, como usualmente acontece na escola, simplesmente como ciências – em uma escola
pública, no segundo segmento do Ensino Fundamental (5a e 7a séries). A escolha em relação à
escola pública deveu-se ao fato de ser essa a escola que atende à maioria da população e onde as
condições de trabalho do professor são mais comuns, sem grandes diferenciais como os que
podem ser encontrados em escolas particulares, tais como laboratórios bem equipados, outros
recursos materiais ou classes com número reduzido de alunos. No entanto, considerou-se que
uma escola pública estável em sua organização e condições de trabalho poderia revelar surpresas,
ou seja, possibilitar o acesso a dados ainda não conhecidos no que se refere à busca de um ensino
de qualidade e a desempenhos diferenciados na atividade docente. Daí a escolha por uma escola
pública comum, mas que apresenta condições estáveis de organização e funcionamento.
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Quanto à definição das séries, a escolha inicial residiu na tendência a se concentrarem na
5a série conhecimentos de diferentes áreas científicas, conforme a distribuição tradicional dos
conteúdos citada por Zancul (2002), com enfoque preferencial das condições existentes na Terra
para a manutenção da vida. Assim, conhecimentos de diversas Ciências de Referência são
abordados pelo professor, o que poderia enriquecer as observações. Nas séries finais do Ensino
Fundamental os conteúdos tendem a ser específicos de uma ou, no máximo, duas determinadas
Ciências de Referência — Biologia, na 6ª e 7ª séries e Física e Química, na 8ª. Observar, ou não,
o trabalho em uma destas séries, seria uma decisão decorrente da suficiência dos resultados dessa
primeira escolha para a discussão pretendida.
A investigação da relação entre conteúdo e forma no ensino dessa disciplina exigiu
diversos tipos de levantamentos, incluindo informações sobre o material preparado pelo
professor, os conteúdos e as formas de abordagem presentes no livro didático adotado, os
instrumentos de avaliação de aprendizagem e também informações sobre a organização do ensino
no que se refere à seleção de conteúdos, o ritmo de desenvolvimento e os focos temáticos
privilegiados.
A partir do estabelecimento das questões de pesquisa, traçou-se o detalhamento das
informações necessárias para posterior análise, bem como de suas fontes, procedimentos de
pesquisa e dos instrumentos escolhidos para esse fim. Ainda que as questões fossem muito
relacionadas entre si, o seu desmembramento serviu ao propósito de detalhar as informações a
serem levantadas.
Para tentar responder à primeira questão — que conteúdos e conceitos o professor
seleciona para a transmissão? —, buscou-se obter informações sobre: os temas escolhidos, as
ênfases conceituais que encadeiam as aulas, os tipos de exercícios realizados pelos alunos, os
conteúdos destacados nas sínteses de aula ou em roteiros de estudo para as avaliações, os
destaques ou trechos do livro didático indicados para cópia no caderno dos alunos e os conteúdos
priorizados nas questões de avaliação. As fontes para a obtenção dessas informações foram o
desenvolvimento das aulas, o livro didático adotado e os instrumentos de avaliação. Os
procedimentos de pesquisa consistiram em observação de aulas e análise documental e o
instrumento utilizado foi o roteiro de observação de aula (Anexo B).
A segunda questão — como o professor aborda os conteúdos selecionados? — referiu-se à
forma de transmissão do conhecimento e permitiu o levantamento de informações sobre: o
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percurso realizado na aproximação dos conceitos científicos, os exemplos utilizados nas
explicações do professor, a forma de correção de tarefas, o tipo de questionamento dirigido aos
alunos durante as explicações do conteúdo, a forma de organização das sínteses do professor e o
tipo de uso que se faz dos recursos didáticos. Essas informações foram obtidas nas aulas do
professor. Como procedimento de pesquisa realizou-se a observação direta das aulas. Para tal,
foram utilizados roteiros de observação de aula.
Da seguinte pergunta — que possibilidades de interferência o professor abre para os
alunos em suas aulas? — esperou-se obter informações sobre: as respostas do professor às
interferências dos alunos durante suas explicações, a forma de aproveitamento – se houvesse –
das informações trazidas pelos alunos em suas intervenções e o tratamento dispensado pelo
professor à produção escrita dos alunos. Essas informações puderam ser obtidas nas seguintes
fontes: aulas e instrumentos de avaliação. Através do procedimento de observação direta das
aulas as informações acima foram registradas em relatórios de observação de aulas.
A última questão — que fatores exercem influência nas decisões do professor a
respeito do conteúdo e da forma que escolhe em sua prática? — apontou para informações
sobre: a opinião do professor acerca da quantidade, relevância e acessibilidade dos conceitos
abordados em ciências, as dificuldades que o professor aponta para a realização de atividades
programadas, ou desejadas, e não realizadas e as aberturas e os limites impostos pela escola à
prática docente. A fonte para a obtenção dessas respostas foi o professor. Como procedimento de
pesquisa adotou-se a entrevista e o questionário. Para tal, os seguintes instrumentos de pesquisa
foram utilizados: roteiros de entrevistas e de questionários (Anexo C).
As indicações anteriores mostram que o principal procedimento de pesquisa utilizado foi a
observação direta de aulas. Esta escolha justifica-se pela própria natureza da questão fundamental
de pesquisa. Ao pretender caracterizar o conhecimento escolar de ciências foi preciso observar o
que acontece de fato na sala de aula, onde a mediação entre o currículo oficial, o currículo
manifesto e o currículo oculto constitui o currículo real, ou seja, aquilo que acontece de fato em
termos de produção e aquisição de conhecimento. Para essa compreensão há que se considerar
aquilo que é prescrito oficialmente como conhecimento mínimo que o aluno deve adquirir nessa
área (o currículo oficial), traduzido, por exemplo, nos livros didáticos (o currículo planejado);
aquilo que não é revelado nem nos currículos oficiais nem nos manifestos mas que direciona o
olhar, a atenção dos alunos e determina valores relativos ao conhecimento e à formação moral (o
12
currículo oculto) e o que realmente se expressa nas práticas de sala de aula (o currículo real)
(Gimeno Sacristán, 1998, p. 132-133). Somente nas situações de aula seria possível a
aproximação do que de fato acontece em termos de produção do conhecimento escolar uma vez
que nessa situação revelam-se relações entre os currículos prescritos nos planos e planejamentos
do professor e nos materiais didáticos, as formas escolhidas para a transmissão de conceitos e os
padrões de relações que se estabelecem entre os alunos, o professor e o conhecimento.
Os demais procedimentos utilizados revelaram mais acerca do que o professor deseja
constituir em termos de conhecimento de ciências, da relevância que ele atribui a essa disciplina e
conseqüentemente aos conceitos que aborda, das dificuldades que identifica em sua prática e
daquilo que efetivamente ele consegue produzir.
Utilizando recomendações de Brandão (2002, p. 29) sobre escolha de instrumentos e rigor
na pesquisa, os instrumentos escolhidos para a investigação foram cuidadosamente selecionados
no intuito de garantir a devida consonância com o problema a ser investigado e de permitir
análise e interpretação abrangentes e rigorosas.
No Anexo B encontram-se o modelo de relatório de observação de aula e o roteiro de
descrição da escola e de seu entorno.
Algumas questões conduziram ao uso de questionários e roteiros de entrevistas,
elaborados após o início do trabalho de campo, uma vez que as primeiras observações trouxeram
maior clareza em relação às categorias centrais que poderiam agregar informações a serem
buscadas por meio desses procedimentos. O roteiro do questionário e as transcrições das
entrevistas encontram-se no Anexo C.
A consideração até agora exposta acerca da complexa interação de fatores determinantes
da prática do professor apontou para a adoção de uma perspectiva relacional de análise das
informações obtidas, que não deveria desprezar nenhum desses fatores, inclusive os relativos à
natureza histórica de aspectos dessa prática.
A prática do cotidiano foi o fio norteador da reflexão, à luz dos referenciais da Sociologia
da Educação. Teorias e conceitos de Gimeno Sacristán sustentaram as análises das informações
sobre as práticas observadas na realidade escolar. Além deste autor, as reflexões se apoiaram em
alguns estudos de Bernstein e de autores que investigaram a história da escola e da forma escolar
(Vincent, Lahire & Thin), os padrões pedagógicos e modelos didáticos (Varela; Astolfi &
Develay), assim como a especificidade do conhecimento escolar (Lopes; Santos).
13
Nesse sentido, as análises buscaram referência nas discussões teóricas que seguem
essencialmente três direções: a da prática educativa, a do conhecimento escolar e a da forma
escolar.
A apresentação da pesquisa está disposta de acordo com a seguinte seqüência: o Capítulo
I traz informações preliminares para que se possa estabelecer uma análise da forma como se
apresenta o ensino de ciências no Brasil hoje, traçando o seu histórico, indicando algumas idéias
sobre a relevância da formação de conceitos no ambiente escolar e descrevendo modelos
pedagógicos sob os quais o ensino desta disciplina pode se desenvolver. No Capítulo II, delineia-
se uma descrição da escola em que se deu a pesquisa e das práticas docentes observadas, bem
como uma apresentação de informações acerca das professoras acompanhadas. No Capítulo III,
compõem-se as reflexões sobre os dados apresentados, de acordo com o referencial teórico
adotado. A seguir traçam-se algumas considerações finais.
15
Notas históricas relativas ao ensino de ciências no Brasil:
É possível traçar um breve histórico do que tem sido valorizado no ensino de ciências,
focalizando alguns marcos da história da escola no Brasil, no período referente ao último século.
Convém lembrar que, segundo Cury (1996), pode-se dizer que a questão do currículo adotado nas
escolas brasileiras “tem história junto à história das políticas educacionais no Brasil, sempre
sendo reposto como instrumento de coesão nacional” (p. 6-7). Assim, a análise da presença ou
não de determinada disciplina nas prescrições legais, bem como as determinações dos métodos
que devem garantir seu aprendizado, pode sugerir a sua relevância na formação do cidadão
“ideal” em cada contexto histórico. No mesmo sentido, situar diversas orientações para o ensino
de ciências pode favorecer a compreensão de sua atual configuração no Ensino Fundamental.
A primeira lei de ensino do Brasil, publicada a 15 de outubro de 1826, prescrevia a oferta
obrigatória de língua portuguesa, aritmética, história do Brasil e religião católica. Porém, ela não
trazia programas previamente definidos. Tal orientação surgiu a partir de 1837, quando as
disciplinas do ensino secundário passaram a contar com uma referência: os currículos e mesmo
os livros didáticos adotados pelo Colégio Pedro II (Cury, 1996, p. 7).
O autor complementa:
Excetuada, porém, a presença paradigmática do Colégio Pedro II, as competências relativas ao ensino primário (e em certa medida relativas ao ensino secundário) ficaram com os estados ou municípios, os quais poderiam exercitar sua autonomia no âmbito dos currículos (p. 7).
No final do século XIX, no Estado de São Paulo, a instituição das Escolas Primárias
Graduadas foi alardeada como uma maneira de, através da educação popular, se atingir os
objetivos de progresso da nação, pela adoção de “um modelo que, guardadas as peculiaridades de
cada país, estava se difundindo por todo o mundo” (Souza, 1998, p. 31). Esse modelo indicava a
necessidade de uma reestruturação do espaço escolar, dos materiais didáticos, do tempo escolar,
dos métodos de ensino e dos processos de formação dos professores.
Em 1890, segundo Abreu (2002), instituiu-se o método intuitivo no ensino público
paulista (p. 62). As orientações para o ensino e a aplicação do método intuitivo passaram a ser
mais específicas em 1894 (idem, p. 65).
16
Para a transmissão de conhecimentos, o método intuitivo foi considerado como a melhor
forma de abordagem dos saberes, sendo considerado como símbolo da renovação e da
modernização do ensino (Souza, 1998, p.159). Inspirado nas lições de coisas — criação da
Inglaterra e dos Estados Unidos, no século XIX –, esse método consistia em exercitar a criança
no uso dos sentidos para apreender com ordem e rigor as qualidades dos objetos que a cercam.
Não havia a preocupação em apresentar às crianças o processo de produção de conhecimentos
científicos. Assim, como observa Hébrard (2000) no seu estudo sobre o ensino de ciências na
França, o método intuitivo não tinha como objetivo o “fazer ciência”, apenas acumular
observações que pudessem proporcionar um saber empírico que, mais tarde, poderia ou não se
tornar Ciência (p. 116-117).
No decreto nº 1217, de 1904, encontra-se o encaminhamento do ensino de ciências com
regras do método intuitivo. No decreto nº 2005, de 1911, a orientação para o ensino de ciências
aponta essencialmente para o desenvolvimento da observação e experiência direta e pessoal dos
alunos (Abreu, 2002, p. 66-69).
No ano de 1931, foi criado o Conselho Nacional de Educação, responsável por indicar as
diretrizes gerais do ensino primário, secundário e superior. Além disso, como determinação do
Conselho Nacional de Educação, passa a existir a possibilidade de oficialização dos
estabelecimentos de ensino secundário por meio da aceitação do regimento e currículos do
Colégio Pedro II (Cury, 1996, p. 8). No Programa do Curso Secundário do Colégio Pedro II
(1933), que servia de referência para os demais estabelecimentos de ensino secundário,
encontram-se os seguintes objetivos para o ensino da disciplina Ciências Físicas e Naturais, nas
duas primeiras séries ginasiais: “dar uma noção geral dos fenômenos da natureza e das suas
aplicações mais comuns à vida quotidiana, nas cidades e nos campos, de acordo com o
desenvolvimento da civilização da nossa época” (p. 14). Com relação aos métodos, a disciplina
de Ciências Físicas e Naturais deveria seguir os métodos “rigorosamente científicos” da Física,
da Química e da História Natural, compreendendo mais os aspectos de conjunto do que as
minúcias, que deveriam ser reservadas aos estudos técnicos e profissionais (idem, p. 15). O
ensino deveria sempre ser feito “pela apresentação direta dos fatos, pela indução e demonstração
experimental das leis e pela verificação das propriedades e dos resultados previamente descritos e
assinalados, em aula, pelo professor e, nos exercícios práticos, pelos alunos” (idem, p. 15).
17
No Programa do Colégio Pedro II (1933), inclui-se, a partir da terceira série ginasial, além
das disciplinas Física e Química, também a de História Natural. Esta última tinha como objetivo:
Proporcionar aos alunos o conhecimento das formas vivas e inertes do mundo objetivo, atuais e passadas, nas suas incessantes transformações e em suas relações mútuas e, ao mesmo tempo, iniciá-los na prática do método de observação, educando-lhes o poder de atenção reflexiva, a perspicácia do raciocínio, a faculdade das generalizações e o senso crítico e estético, indispensáveis à apreciação consciente das belezas e da harmonia da natureza (p. 29).
Quanto aos métodos, o Programa do Colégio Pedro II (1933) prescrevia:
A iniciação no estudo da História Natural, na 3ª série, atendendo às exigências pedagógicas do método indutivo, deverá ser feita por meio de ensaios descritivos das espécies naturais, em colóquio entre o professor e alunos, insistindo-se mais, de começo, nos caracteres específicos do que nos do conjunto a que pertence o espécime considerado. Os conhecimentos assim adquiridos, de modo visual e em contato com a realidade, serão reproduzidos sob a forma de esquemas, aos quais, pela exclusão das variações individuais, se procurará fixar o caráter natural em apreço, transformando-o em conceito científico, o que é a aquisição útil a ser conservada pelos alunos, dessa maneira, sem esforço algum de memória (p. 30).
Fica nítido no trecho acima o entendimento presente nesse momento sobre a formação de
conceitos. A orientação era para que, a partir de exemplos singulares, se desenvolvessem
esquemas que reproduzissem os conhecimentos adquiridos no contato direto com as espécies; em
seguida, a eliminação de variações individuais levaria à generalização e à formação do conceito.
Enfim, nas prescrições para o ensino de ciências do Colégio Pedro II, o que se observa é a
ênfase no desenvolvimento da observação, na indução e na demonstração experimental pelo
professor, com a valorização do contato direto do aluno com o material estudado para chegar à
formação de conceitos.
Em 1942, a reforma do ensino secundário, conduzida pelo ministro Gustavo Capanema,
enfatizou uma formação humanística do tipo clássico, em detrimento de uma formação mais
técnica. Nesse sentido, as ciências não foram de todo retiradas dos programas, mas agregadas sob
uma única disciplina, as ciências naturais, para se diferenciarem no segundo ciclo. Essa reforma
consagrava a divisão do ensino secundário, já definida na Reforma Francisco Campos, em 1931,
entre o ginásio, agora de quatro anos, e um segundo ciclo de três anos, com a opção de clássico e
18
científico. A concepção de inspeção e reconhecimento das escolas secundárias de acordo com a
equiparação com o Colégio Pedro II se manteve na legislação de 1942 (Schwartzman, Bomeny &
Costa, 2000, p. 207).
Krasilchik (1987), analisa a evolução do ensino de ciências no período que vai de 1950 a
19854. Segundo essa autora, no período entre 1950 e 1960, o Brasil vivia uma fase de
industrialização crescente. Nesse contexto social, econômico e político, o ensino secundário
mantinha como finalidade a formação de futuros universitários. O latim ainda prevalecia sobre as
disciplinas científicas e as aulas de Física, Química e História Natural só eram ministradas no
curso colegial (idem, p. 6). De acordo com a autora,
O grande objetivo do programa oficial e dos textos básicos era transmitir informações, apresentando conceitos, fenômenos, descrevendo espécimes e objetos, enfim, o que se chama o produto da Ciência. Não se discutia a relação da Ciência com o contexto econômico, social e político e tampouco os aspectos tecnológicos e as aplicações práticas (Krasilchik, 1987, p. 9).
Nesse período, as aulas de disciplinas científicas ficavam a cargo de profissionais como
médicos, farmacêuticos e engenheiros5 (idem, p. 9), o que não contribuía para superar o ensino
livresco, teórico e memorístico que caracterizava esse período. As orientações da época, contudo,
enfatizavam a necessidade de se atualizar os currículos de disciplinas científicas com os
conhecimentos mais modernos da Ciência e com o uso do laboratório. Este último era visto como
um fator de motivação que poderia auxiliar a compreensão dos conceitos científicos (idem, p. 7).
Entre os anos de 1960 e 1970, a preocupação não era com a formação de futuros cientistas ou
universitários. A idéia era “garantir a democratização do ensino para o homem comum que
convive com o produto da Ciência e da Tecnologia, dando-lhe conhecimento necessário para o
futuro político, profissional liberal, operário, cidadão, enfim” (idem, p. 9-10). Nesse período,
procurava-se permitir a experimentação por meio do cumprimento das etapas do método
científico, para a formação do cidadão, vinculando o processo intelectual à investigação
científica. Isso significava a valorização da participação do aluno na elaboração de hipóteses, 4 As considerações sobre esse período apresentadas no texto baseiam-se no estudo indicado acima (Krasilchik, 1987). 5 Bontempi Júnior (2001) explica que no final da década de 1930, em discursos oficiais na Faculdade de Filosofia da USP, já se apontava para a falta de um corpo de professores secundários de carreira devido ao fato de não terem existido Escolas Superiores ou Faculdade de Ciências e Letras que visassem esse fim e também devido à remuneração irrisória que inviabilizava a atualização e a aperfeiçoamento técnico desses profissionais: “os professores para esse grau de ensino vinham sendo recrutados entre os falidos das profissões liberais, e legitimados mediante simples registro” (p. 154-155).
19
análise de variáveis, planificação de experimentos e aplicação dos resultados obtidos (Krasilchik,
1987, p. 10).
A Lei nº 4024, de 1961, ampliara o escopo do currículo de ciências, aumentando a carga
horária das disciplinas científicas e incluindo a disciplina Iniciação à Ciência desde a primeira
série do curso ginasial. A partir de 1964, o regime militar enfatizava a modernização e o
desenvolvimento do país, e, nesse contexto, acabou por conferir ao ensino de ciências a função de
contribuir para a formação de mão-de-obra qualificada, o que foi sistematizado na Lei nº 5692, de
1971. A escola secundária não mais deveria se preocupar com a formação do futuro cientista ou
profissional liberal, mas com a do trabalhador (idem, p. 16-18).
Nesse processo, especialmente no 2º grau, o currículo foi acrescido de disciplinas
instrumentais ou profissionalizantes, com prejuízo do tempo de aula para outras disciplinas. Isso
resultou em maior fragmentação do ensino de ciências. Segundo a autora, estava também
presente um precário processo de formação de professores, que acabou trazendo conseqüências
negativas para o ensino desta disciplina, entre elas, a centralização do processo ensino-
aprendizagem no livro didático, com ênfase no estudo dirigido6 (Krasilchik, 1987, p. 18).
Por outro lado, as agressões causadas ao meio ambiente pelo desenvolvimento industrial
desenfreado trouxeram ao ensino de ciências mais uma preocupação no decorrer do período que
vai de 1970 a 1980: a discussão das implicações sociais e ambientais do desenvolvimento
científico. Assim, segundo o estudo consultado, “o que agora se visava era incorporar, ao
racionalismo subjacente ao processo científico, a análise de valores e o reconhecimento de que a
ciência não era neutra” (idem, p. 17). Porém, foi marcante nesse período a incoerência entre o
que a lei, na sua letra, e os profissionais da área de educação afirmavam ser importante, ou seja,
formar o indivíduo com espírito crítico e capacidade de refletir sobre o que vê, e o sistema
educacional que, na realidade da sala de aula, não conseguia desenvolver as qualidades aceitas
como válidas e desejáveis. Isso graças a uma deficiente formação de professores, entre outros
problemas que acompanharam a expansão do atendimento escolar ocorrida no período. Nesse
sentido, o recrutamento de um número muito grande de professores assentou-se em parâmetros
mais ligeiros de formação docente. Pode-se citar, por exemplo, a nova modalidade de licenciatura
regulamentada pela Resolução do Conselho Federal de Educação no 30, de 11/07/74. Tal
6 Krasilchik (1987) assim define estudo dirigido: “exercícios, em geral compostos por questões de múltipla escolha que dependiam apenas da leitura ou, mais raramente, questões dissertativas que requeriam transcrição literal do texto” (p. 18).
20
resolução, segundo a autora, “prescrevia um período comum para a formação de professores de
todas as Ciências e de Matemática e que poderia, posteriormente, ser complementado por novos
cursos para os professores que desejassem especializar-se em Física, Química, Biologia e
Matemática” (Krasilchik, 1987, p. 19).
Entre 1980 e 1985, fica patente a importância dada à Tecnologia no currículo escolar,
“tanto visando o desenvolvimento da indústria como a familiarização do indivíduo,
principalmente com o instrumental da informática”. É também marcante nesse período o
desenvolvimento de materiais como jogos e o uso de computadores nas escolas (idem, 1987, p.
23-24).
Já nas atuais diretrizes do ensino de ciências naturais, especialmente nos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Ciências Naturais, que incorporam discussões acadêmicas mais
recentes ligadas à educação e às Ciências, encontra-se a concepção de Ciência hoje defendida
como a que deve ser transmitida no Ensino Fundamental, bem como a importância conferida a
essa disciplina na formação dos alunos:
Mostrar a Ciência como elaboração humana para uma compreensão do mundo é uma meta para o ensino da área na escola fundamental. Seus conceitos e procedimentos contribuem para o questionamento do que se vê e se ouve, para interpretar os fenômenos da natureza, para compreender como a sociedade nela intervém utilizando recursos e criando um novo meio social e tecnológico. É necessário favorecer o desenvolvimento de postura reflexiva e investigativa, de não-aceitação a priori de idéias e informações, assim como a percepção dos limites das explicações, inclusive dos modelos científicos, colaborando para a construção da autonomia de pensamento e de ação (Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais, p. 9).
Destaca-se nessa proposição a importância conferida à Ciência como elaboração humana,
bem como a relevância dessa disciplina para o desenvolvimento nos alunos da autonomia de
pensamento e de ação.
Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, fica patente a
preocupação com a garantia da “igualdade de acesso a uma Base Nacional Comum”, que,
associada a uma Parte Diversificada, deve estabelecer a relação entre a educação fundamental e a
Vida Cidadã (DCN - IV, 1998, p. 7). A Base Nacional Comum se refere aos conteúdos mínimos
das áreas de conhecimento (a dimensão obrigatória dos currículos). A Parte Diversificada refere-
se aos conteúdos complementares escolhidos por cada sistema de ensino. Essas duas partes
21
devem se articular em torno do conceito de Vida Cidadã que, por sua vez, diz respeito a aspectos
tais como: saúde, sexualidade, vida familiar e social, meio ambiente, trabalho, ciência e
tecnologia, cultura e linguagens (DCN, p. 7-8).
Pode-se identificar, na linha de análise que vimos desenvolvendo, o destaque assumido
pela disciplina ciências naturais nesse projeto cultural e formativo indicado para a escolarização.
Diversos aspectos presentes na definição de Vida Cidadã referem-se a temas freqüentemente
abordados por essa disciplina.
Também nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental pode-se ter
uma visão da concepção de Ciência que perpassa as atuais prescrições oficiais, inclusive
destacando o caráter social e histórico da construção do conhecimento, bem como a
transitoriedade do saber:
A produção e a constituição do conhecimento no processo de aprendizagem dão muitas vezes a ilusão de que podemos seguir sozinhos com o saber que acumulamos. A natureza coletiva do conhecimento termina sendo ocultada ou dissimulada, negando-se o fazer social. Nada mais significativo e importante para a construção da cidadania do que a compreensão de que a cultura não existiria sem a socialização das conquistas humanas. Além disso, a existência dos saberes associados aos conhecimentos científicos e tecnológicos nos ajuda a caminhar pelos percursos da história, mas sua existência não significa que o real é esgotável e transparente (DCN, 1998, p. 8-9).
Em resumo, as orientações para o ensino de ciências no Brasil mostram em sua evolução
certos aspectos recorrentes especialmente no que se refere ao método, como, por exemplo, a
ênfase na importância da observação, indução e experimentação. Outro exemplo é o destaque
conferido à repetição das etapas de investigação do método científico como forma de abordagem
dos conhecimentos científicos na escola. A importância atribuída historicamente ao espaço do
laboratório e às atividades práticas que ali se desenvolvem também parecem conferir maior
legitimidade a essa forma de investigar “cientificamente” o mundo.
Goodson (1996), ao traçar a história da evolução do ensino de biologia no currículo da
escola secundária na Grã-Bretanha, indica que essa disciplina, na luta por legitimidade, perseguiu
um status acadêmico que se efetivou com o estabelecimento universitário dos conteúdos a serem
ensinados. Atingiu-se status através da promoção do que o autor chamou de “ciência dura”,
experimental e rigorosa (p. 151-152). O autor afirma que outros estudos revelam esse mesmo
padrão de evolução do ensino de ciências em outros países (idem, p. 132-134). No Brasil, essa
22
luta por legitimação da disciplina de ciências através da promoção de uma visão de ciência neutra
e infalível também parece ter acontecido em alguns momentos, embora hoje se encontre nos
Parâmetros Curriculares Nacionais a visão de ciência como construção social, passível de erros e
transformações.
No sistema educacional brasileiro, em diferentes períodos, as prescrições para o ensino
dessa disciplina foram se caracterizando pelo enfoque enciclopédico, pela visão utilitária de seus
saberes e, mais recentemente, pela preocupação com a relação entre desenvolvimento científico e
tecnológico e a preservação dos recursos naturais do planeta como meio de garantir a manutenção
da vida.
Por outro lado, mesmo considerando as prescrições legais e diretrizes oficiais como um
referencial para situar e compreender o ensino de ciências, é preciso pontuar que o seu
desenvolvimento na prática pedagógica não significa a mera aplicação de orientações externas à
escola ou a transmissão dos conhecimentos e métodos próprios das ciências. Além disso, como
afirma Gimeno Sacristán (1998):
O que importa não é o que se diz que se faz, mas o que verdadeiramente se faz; o significado real do currículo não é o plano ordenado, seqüenciado, nem que se definam as intenções, os objetivos concretos, os tópicos, as habilidades, valores, etc., que dizemos que os alunos/as aprenderão, mas a prática real que determina a experiência de aprendizagem dos mesmos (p. 133).
Ou seja, entender o que realmente afeta os conteúdos do ensino, supõe também ir além das
práticas estritamente didáticas, esquadrinhar os fatores que condicionam aquilo que é transmitido
aos alunos como conhecimento legítimo.
No caso da concepção de Ciência, por exemplo, o que se defende nos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Ciências Naturais é uma visão de Ciência como uma atividade humana
que permite a intervenção sobre o meio e que é limitada nos modelos explicativos que constrói.
No entanto, assim como no caso das orientações anteriores, essa visão, presente nas orientações
oficiais, adentra a escola e atravessa as práticas, introduzindo juízos de valor e desafios ao já
instituído. Ainda que essa seja a concepção declarada nas atuais orientações para o ensino de
ciências naturais, não se pode afirmar que também esteja presente, norteando ou interferindo
diretamente sobre a prática: é preciso investigar a compreensão de ciências presente nos
conteúdos e na forma de abordá-los. Muitos devem ser os fatores que interferem nas escolhas que
23
o professor faz acerca dos aspectos relativos aos conteúdos que enfatizará e às formas como serão
desenvolvidos. Essas escolhas compõem um corpo de práticas sedimentadas e também de
conhecimentos relativos a essa área, que necessitam ser melhor caracterizados para que se possa
avaliar o papel dessa disciplina na formação cultural oferecida pela escola.
Notas teóricas relativas ao ensino de ciências:
Para compreender a disciplina de ciências no Ensino Fundamental, faz-se necessário
discutir algumas questões relevantes, tais como a formação de conceitos e mesmo as
características do processo de ensino e aprendizagem de ciências. Nessa direção, mostram-se
relevantes algumas indagações, tais como: a formação de conceitos cumpre que papel no
desenvolvimento dos indivíduos? Qual é a importância da escolarização, nesse sentido? Para
iniciar uma discussão a esse respeito é pertinente o estudo de Sforni (2003), que, ao justificar a
importância da educação escolar, pensa no “acesso a conteúdos, defendendo-os como via de
formação para entender o mundo, adquirir método de conhecimento e ampliar recursos
cognitivos” (p. 23). Portanto, a escolarização seria importante para conferir domínio de símbolos
e instrumentos culturais que possibilitassem a mediação da criança com os outros e com o meio.
Isto garantiria a o acesso à produção cultural que, para a autora, é condição de interação social
plena (idem, p. 18).
Segundo a psicologia histórico-cultural7, a escolarização tem papel fundamental na
constituição do psiquismo e essa constituição depende do desenvolvimento do sistema nervoso e
da qualidade das trocas que se dão entre os indivíduos. Ou seja, o desenvolvimento da estrutura
cognitiva de uma pessoa depende de um fator interno, sua maturação biológica, e de fatores
externos, as relações que estabelece com os demais indivíduos em seu meio. Os processos
psicológicos superiores respondem tanto à maturação quanto à qualidade das relações
estabelecidas pelo indivíduo com seu meio e com os demais membros de seu grupo. Assim, o
processo geral de desenvolvimento cognitivo envolve o desenvolvimento de processos
elementares, de origem biológica e o desenvolvimento de processos superiores, de origem sócio-
7 Sforni (2003) afirma que a “psicologia histórico cultural”, representada pelos trabalhos de Vygotsky e seus colaboradores, considera o psiquismo como um fenômeno histórico cultural: “apoiando-se em pressupostos do Materialismo Dialético, Vygotsky procura elaborar uma teoria que compreende a natureza do comportamento humano como parte do desenvolvimento histórico” (p. 27).
24
cultural. De acordo com a autora, Vygotsky considerava que as raízes destas duas linhas de
desenvolvimento surgem na infância, por meio do uso dos instrumentos e da fala (Sforni, 2003, p.
30).
Do exposto, pode-se concluir sobre a importância da interação social e da relação que os
indivíduos estabelecem com os conteúdos para o seu desenvolvimento cognitivo. A aceitação
desta importância confere à escola papel fundamental uma vez que contribuiria para o domínio
dos elementos culturais que permitiriam uma interação adequada com os outros indivíduos e com
a natureza:
Se a organização social é complexa, se conta com níveis de divisão de trabalho, se as relações com a natureza são indiretas, maiores são as necessidades de situações específicas de ensino e de ambientes especiais – escolas — que coloquem à disposição dos indivíduos os signos e instrumentos produzidos socialmente (Sforni, 2003, p. 19).
A autora aponta que, para Vygotsky, as atividades coletivas desencadeiam o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, entre elas a atenção voluntária, a memória
lógica e a formação de conceitos. Estas atividades passam a ser orientadoras da atividade
individual, ou seja, as funções psicointelectuais que se faziam presentes no meio externo pelos
instrumentos e signos utilizados, são internalizadas pela criança como propriedades de seu
próprio pensamento. Assim, “a apropriação do conhecimento e, com ele, o desenvolvimento
cognitivo vai da dimensão social à individual” (idem, p. 33).
Trazendo essa forma de entender o processo de aprendizagem, a autora põe em relevo a
interação social que se estabelece na escola:
Na interação social não são transmitidos apenas conteúdos, mas também elementos que propiciam o desenvolvimento de capacidades de memória, atenção, abstração, generalização, dentre outras, ou seja, a forma de pensamento também é construída na atividade mediada (p. 34).
Conclui-se do exposto que a interação que se dá na escola é fundamental tanto para que se
estabeleça o contato e a apropriação dos elementos culturais quanto para possibilitar o
desenvolvimento de formas superiores de pensamento.
Quanto ao processo de ensino e aprendizagem de ciências naturais, segundo o estudo de
Lopes (1995), ele pode ser conduzido de acordo com duas concepções acerca da produção do
25
conhecimento (p. 48-49). Na primeira, o conhecimento científico é encarado como uma
reelaboração do conhecimento comum, numa visão continuísta: “passa-se de um saber a outro
por reformulações contínuas, como se passa do diamante bruto para o lapidado: a construção
ocorre apenas na aparência, pois a essência já se encontrava na pedra bruta para ser descoberta”.
Nessa perspectiva, a elaboração do conhecimento é vista como conversão da pedra bruta em
lapidada, porém, a essência da explicação para os fenômenos naturais já se encontra no
conhecimento comum. Essa visão, no ensino de ciências naturais, se converte em uma
aproximação forçada entre os dois tipos de conhecimento, muitas vezes resultando no
reducionismo do conhecimento científico e na concepção de Ciência como um processo de
construção de uma única razão explicativa, não resultante de conflitos de idéias. Para a autora,
nessa concepção, o conhecimento científico é visto como um conhecimento comum “melhorado”,
e só se admite uma razão que justifique todo e qualquer conhecimento. Essa razão única implica,
por conseguinte, o método e a conduta de conhecer (Lopes, 1995, p. 43).
A outra abordagem, admite uma ruptura entre os dois tipos de conhecimento e considera
que “as informações científicas não são acumuladas no processo lento e constante de gestação de
novos conceitos. Ao contrário, novos conhecimentos contradizem conhecimentos anteriores”
(idem, p.46).
Esta perspectiva concebe a coexistência de mais de uma explicação para um mesmo
fenômeno, com a construção de novos conceitos, o que ocorre com a desestruturação dos
anteriores e não pela tentativa de se reduzir todos a uma única razão explicativa. Entende-se que,
nesta perspectiva, a pluralidade de idéias e conflitos presentes na produção do conhecimento
científico traz conseqüências para a orientação do ensino, como observam Astolfi e Develay
(1990):
A abordagem histórica dos conceitos científicos nos revela a não linearidade de um certo progresso do pensamento científico, mas um desenvolvimento progressivo com avanços e recuos durante o qual é possível pontuar obstáculos, tanto é verdade que as teorias não se constituem por uma adição sucessiva de fatos novos, mas por rupturas (p. 19).
Essa abordagem não nega a existência de relações entre o conhecimento científico e o
comum, mas questiona a validade de se tentar reduzir uma forma à outra para a transmissão do
conhecimento no processo ensino-aprendizagem. No ensino de ciências, não se pode assegurar a
26
continuidade, mas o conhecimento comum pode ser negado para que o conhecimento científico
seja compreendido.
Ainda no que se refere à transmissão do conhecimento, pode-se ensinar ciências
considerando seu conteúdo como um conjunto de resultados ou de informações produzidas e
acabadas, sob uma concepção da Ciência como um produto, cujo passado não interessa, uma vez
que os conceitos atuais são aprimoramentos dos anteriores, ou como um processo de construção
que não define verdades absolutas e que se dá por avanços e recuos, admitindo a possibilidade do
erro8.
Daí que, se a concepção acerca da produção do conhecimento científico que norteia o
processo de ensino-aprendizagem é a continuísta, sob a justificativa de valorização dos
conhecimentos dos alunos e de maior acessibilidade às informações científicas, faz-se um
movimento no sentido de ajustar o conteúdo às explicações do senso comum, terminando sempre
com a afirmação da superioridade do científico em relação ao comum. Nesse sentido, livros
didáticos, filmes, experimentos e outras estratégias são utilizadas para confirmar essa
superioridade e declarar qual é a verdade absoluta que a Ciência proclamou em relação aos
fenômenos estudados. Se por um lado, isso pode tornar aparentemente mais fácil a transmissão
dos conhecimentos, pode também trazer a noção de que o conhecimento científico não é passível
de mudança ou de questionamento. Nesse sentido, toda e qualquer explicação que venha dos
alunos seria útil apenas para servir de ponto de partida para a confirmação da verdade científica,
enquanto que na Ciência, ao contrário, os conflitos são comuns e as verdades são sempre
questionáveis.
Na medida em que defende a ruptura entre conhecimento comum e científico no ensino de
ciências, Lopes (1995) acredita que a visão descontinuísta sobre a produção do conhecimento
científico enriquece o processo de ensino-aprendizagem desta disciplina (p.50). O ensino de
ciências baseado na perspectiva continuísta de construção dos conhecimentos científicos passa,
segundo essa mesma autora “a visão de uma ciência fácil, acessível, próxima do saber cotidiano,
cujas teorias podem ser construídas com base em breves conjecturas e reduzido trabalho
laboratorial” (idem, p. 48).
8 A esse respeito, em Leite (1995) encontra-se relevante discussão sobre conhecimento-produto e conhecimento-processo.
27
Mas, deve-se lembrar que a escola não trata apenas dos saberes “em estado puro”. Na
verdade, ela trabalha com conteúdos de ensino que resultam de cruzamentos complexos entre
uma lógica conceitual, um projeto de formação e exigências didáticas (Astolfi & Develay, 1990,
p. 51). Todos esses fatores definem um conteúdo e uma forma de transmissão, numa relação em
que esses dois componentes, a forma e o conteúdo, afetam-se mutuamente.
A forma de transmissão que o professor adota consiste num conjunto de procedimentos
pedagógicos. De acordo com Astolfi e Develay (1990), estes procedimentos se fundamentam em
três fatores: na escolha das hipóteses de aprendizagem, na escolha dos valores e das finalidades.
A maneira como esses três fatores se combinam, bem como a natureza dessas escolhas, resulta
em diferentes modelos pedagógicos. Esses modelos se materializam em métodos, técnicas e
ferramentas utilizadas pelo professor, ou seja, na forma de transmissão que ele privilegia (idem,
p. 109).
Os autores apontam e descrevem três modelos pedagógicos que podem ser observados no
ensino de ciências. No primeiro, o da aprendizagem por investigação, a ênfase do professor é na
percepção das necessidades das crianças e na livre expressão destas. As atividades não fazem
referência explícita a aprendizagens e a maior relevância é dada ao desenvolvimento de um
espírito crítico. Nesse modelo, os objetivos das atividades não são estabelecidos anteriormente e a
sua finalidade é desenvolver atitudes mais do que transmitir conhecimentos (Astolfi & Develay,
1990, p. 117).
No modelo de aprendizagem por transmissão-recepção, considerado como o mais
próximo da pedagogia tradicional, o diálogo é essencialmente comandado pelo professor que
segue a programação baseada na sucessão de aquisições de conhecimento pelos alunos. O
professor utiliza diversas técnicas (experimentação, trabalhos em grupo, audiovisuais...) para
compor exemplos prototípicos, simples e não-ambíguos, que confirmem a sua exposição e
“neutralizem” as representações espontâneas dos alunos (idem, p. 120). Esse modelo parece estar
estreitamente ligado a uma concepção continuísta da produção do conhecimento científico, uma
vez que os conteúdos são expostos num encadeamento que traz em si uma noção de Ciência
como uma série contínua de sucessos, aproximações mais e mais perfeitas da realidade.
O terceiro modelo descrito por esses autores, o da aprendizagem por investigação-
estruturação, integra e dá coerência aos dois anteriores. As suas hipóteses de aprendizagem são: a
importância das representações prévias dos alunos, a necessidade da aprendizagem significativa e
28
a valorização do estabelecimento de diálogo dos alunos com os objetos e com os colegas, assim
como da realização de atividades de simbolização (Astolfi & Develay, 1990, p. 120). Entende-se,
assim, que a escolha pelo diálogo com os alunos e os materiais a serem investigados parece
refletir uma admissão por parte do professor da existência de divergências na maneira de se
entender os fenômenos, o que talvez revele uma concepção de Ciência como um processo que
envolve rupturas e que lida com “verdades” temporárias.
Mas, há outros fatores a serem analisados para compreender a prática do professor, que,
como ressalta Gimeno Sacristán (1999), não se restringe a um “saber fazer”, nem tampouco é
definida somente pelo conhecimento a ser transmitido. Para sua compreensão, é necessário
considerar a atuação concomitante de diversos fatores que a condicionam:
A prática não é, ou não é somente, uma técnica derivada de um conhecimento sobre uma forma de fazer; não é só o exercício de destrezas individuais, nem se circunscreve, exclusivamente às salas de aula; ela vai além das ações dos professores e dos estudantes. Ela não pode ser compreendida, nem explicada, se ficarmos limitados à sua expressão atual, pois ela tem sua história, é uma cultura. Ela não é motivada ou dirigida somente, nem talvez fundamentalmente, pelo conhecimento ou pela ciência; em sua complexidade, existem pressupostos, motivos que a dirigem e formas de fazer que não são exclusivas dela, mas variados e nem sempre coerentes entre si (Gimeno Sacristán, 1999, p. 95).
No que diz respeito ao currículo, esta discussão tem enfatizado a questão dos
conhecimentos, dos saberes selecionados para compor o projeto educativo das escolas. Convém
ressaltar que esse é apenas um dos aspectos que compõem o currículo. Gimeno Sacristán, (1998),
aponta que essa ênfase nos conhecimentos não tem sido comum nem mesmo na linguagem
especializada sobre educação. O autor aponta que na compreensão do que é o ensino chegou-se a
uma divisão entre a atividade de ensinar e o conteúdo a ser ensinado (idem, p. 119-120). Em um
processo que contou com a legitimação do discurso cientificista, com a preocupação em produzir
métodos eficientes de transmissão e com uma abordagem psicológica enfatizando os processos de
autodesenvolvimento, foi-se gerando um desprezo pelo conteúdo culturalizador da educação.
Gimeno Sacristán (1998), em contrapartida, defende uma visão integrada da educação, que
possibilite a compreensão de sua “atividade, seus agentes e seu contexto” (p. 120).
De acordo com esse autor, na perspectiva mais atual do pensamento curricular, o ensino é
considerado como a prática na qual ocorre a transformação dos componentes do currículo para
29
que seu significado real se torne concreto para o aluno (Gimeno Sacristán, 1998, p. 126). Assim,
qualquer que seja a conceitualização que se adote em relação ao currículo, deve-se considerar que
ele oferece uma visão do que se dá na escola (na sua dimensão oculta e na manifesta), que é
historicamente condicionado e determinado por uma sociedade sobre a qual também imprime
reação, que é resultado de interações entre idéias e práticas e que condiciona a profissionalização
docente (idem, p. 148).
Na sua busca pela ampliação do conceito de currículo, o autor considera a dimensão
oculta do currículo, aquela parte da aprendizagem que se estabelece na experiência prática dos
alunos na situação de escolarização e que se relaciona com a sua socialização: “o currículo oculto
das práticas escolares tem uma dimensão sócio-política inegável que se relaciona com as funções
de socialização que a escola tem dentro da sociedade” (idem, p. 132).
Para esse autor, o que realmente importa é o currículo real, a combinação de ideais e
intenções (currículo manifesto) e dessa dimensão oculta (idem, p. 131-132). Essa consideração
leva a um entendimento do currículo como algo muito mais complexo que um plano do que se
quer alcançar com a educação:
O significado da escolaridade para os alunos/as, o dos conteúdos reais, não pode ser separado do contexto em que eles aprendem, porque este é um marco de socialização intelectual e pessoal em geral. Na experiência escolar, “o oculto” é muito mais amplo e sutil que o manifesto (Gimeno Sacristán, 1998, p. 133-134).
Na perspectiva do autor, o currículo adquire sentido real na prática, o que chamou de
dimensão processual do currículo. Nessa dimensão, ele é considerado como o resultado da
interação de diferentes aspectos, tais como: as prescrições oficiais, os materiais planejados e
apresentados aos professores e alunos, os planos realizados pela escola, as atividades
desenvolvidas em aula e as avaliações externas à escola (idem, p. 139).
Ao analisar cada uma dessas fases, pode-se obter uma aproximação do que é a prática
curricular, embora isoladamente nenhuma delas possa ser considerada como o próprio currículo
real (idem, p. 138). Essa abordagem processual do currículo permite avaliar que para que
aconteçam mudanças reais na prática do currículo é preciso investigar todos os fatos e
condicionantes que também devem mudar, caso contrário se estaria desprezando o valor das
30
interações entre as fases do currículo em processo na construção do currículo real (Gimeno
Sacristán, 1998, p. 140-141).
O enfoque proposto por este autor concebe a existência de alguma autonomia para os
agentes envolvidos em cada uma das fases que compõem a dimensão processual do currículo
(idem, p. 138). Segundo Gimeno Sacristán (1998), uma das idéias que dificulta a abordagem do
currículo nessa perspectiva é a dificuldade em conceber esses espaços de autonomia relativa dos
agentes na prática curricular, especialmente do professor, que é entendido muitas vezes como um
sujeito que intervém em problemas técnicos (relacionados à atividade de ensinar) mais do que na
decisão dos conteúdos do ensino (p. 142-143).
Das questões históricas e teóricas trazidas a esta discussão, entende-se que as interações
que se estabelecem na escola – com o conhecimento e com outros indivíduos – têm o potencial
para favorecer o desenvolvimento cognitivo dos alunos e que, o que se estabelece na sala de aula,
o currículo real, é marcado pelas determinações oficiais, mas pode não responder fielmente às
suas expectativas. O que se defende nesta investigação é que as escolhas do professor em termos
de conteúdo e forma – marcadas pelos aspectos ligados à forma de trabalho escolar com o
conhecimento –, interferem diretamente sobre o conhecimento escolar constituído na sala de aula.
32
Para situar e esclarecer os diversos aspectos das práticas docentes observadas,
apresentam-se inicialmente algumas informações acerca da escola em que se desenvolveu esta
pesquisa. Os dados registrados no roteiro de descrição da escola e de seu entorno (Anexo B),
embasaram esta apresentação.
A escola:
A escola localiza-se no município de Campinas, em um bairro em que predominam os
edifícios de alto padrão e estabelecimentos comerciais destinados à parcela mais abastada da
população. São diversas lojas de roupas finas, restaurantes, bares, lojas de decoração, centros
médicos e odontológicos, etc. Os alunos que freqüentam esta escola vêm, na sua maioria de
outros bairros, alguns da periferia do município.
O prédio foi construído em 1943 e ampliado em 1993. Encontra-se em boas condições de
uso, com as paredes pintadas, banheiros limpos e funcionando adequadamente e carteiras e lousas
em bom estado. A área construída em 1993 abriga cinco salas de aula e o laboratório de ciências.
A parte mais antiga possui sete salas de aula, banheiros e a secretaria, a diretoria, a biblioteca,
etc. Atrás dos blocos que abrigam as salas de aula, há uma quadra coberta em que se
desenvolvem as aulas de Educação Física.
As informações a seguir foram fornecidas pela coordenadora pedagógica da escola. Em
relação à última avaliação oficial da escola, no Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do
Estado de São Paulo (SARESP), ela informa que foram obtidas notas superiores quando
comparadas à média apontada para outras escolas da mesma Delegacia de Ensino, da
Coordenadoria ou mesmo do Estado de São Paulo. Apesar disto, ela enfatiza que somente duas
séries obtiveram percentual ideal de acerto nas provas, ambas do Ensino Médio, período da
manhã. A coordenadora verifica um resultado progressivamente melhor quanto menos tempo os
alunos foram submetidos ao regime de progressão continuada. É também à progressão continuada
que ela atribui a não existência de evasão escolar.
Não há atividades de recuperação paralela no período contrário ao das aulas porque, como
os alunos vêm de muito longe, não comparecem às aulas de recuperação – devido ao custo com o
transporte e com a alimentação. A coordenadora se refere a um processo que denomina de
“descaracterização da clientela” para explicar este fato. Esta escola é, segundo ela, uma “mosca
33
branca”, algo muito especial na visão de professores, alunos e pais. Assim, a clientela que antes
se limitava à população dos bairros mais próximos, agora vem de todos os outros bairros,
inclusive os mais distantes, porque esta escola é considerada uma das melhores da rede pública
estadual de ensino do município. Ela comenta que de 20 alunos convocados para estas aulas,
somente um ou dois compareciam. Entretanto, a recuperação contínua, aplicada pelo próprio
professor da disciplina, em aula, ocorre usualmente.
A escola funciona nos três períodos, manhã, tarde e noite, atendendo alunos do Ensino
Fundamental II, Ensino Médio Regular e Ensino Médio Supletivo. Possuía 43 professores em
atividade no momento da pesquisa, com quatro afastamentos por motivos ligados à saúde. A alta
rotatividade de professores é atribuída ao fato de muitos terem vínculo do tipo Ocupante de
Função Atividade (OFA), ou seja, não são efetivos, por isto, acontecem mudanças a cada ano.
As atividades de planejamento são previstas em calendário da escola, tendo ocorrido, em
2004, três destas reuniões – em fevereiro, no final de julho e em outubro. Quando acontecem, têm
a participação de todos os professores e não há uma pauta específica.
Os projetos desenvolvidos em 2004 na escola estão descritos no roteiro de descrição da
escola e de seu entorno, no Anexo B. A coordenadora registra que, também devido à
“descaracterização da clientela”, já mencionada, a participação da comunidade nas atividades
escolares é tímida.
As aulas de ciências: atividades desenvolvidas por professores e alunos:
Foram acompanhadas aulas de ciências em duas séries do Ensino Fundamental II – 5ª e 7ª.
As aulas foram ministradas por duas professoras, em uma mesma escola da rede estadual do
município de Campinas.
Em um momento inicial da investigação, foram observadas as aulas de 5ª série, com uma
professora designada doravante Professora 1. Diante de sua prática, cujas características
confirmavam o que as pesquisas citadas anteriormente já revelavam em termos do processo
pedagógico vigente no ensino de ciências, optou-se por uma reorientação dos procedimentos de
pesquisa para outra situação, ou seja, em outra turma e com outro professor.
Considerou-se a possibilidade de que, por exemplo, alunos das séries finais do segundo
segmento do Ensino Fundamental pudessem apresentar comportamentos considerados pelo
34
professor como mais adequados e disciplinados para acompanhar as aulas, o que talvez facilitasse
a realização de outras escolhas no que se refere a conteúdo e formas de ensino. Partiu-se, então,
para uma segunda fase da investigação realizando observações nas aulas de uma outra professora,
denominada Professora 2. Ainda que a escola fosse a mesma, e, portanto, as facilidades ou
limitações que impunha ao professor fossem fundamentalmente iguais, talvez a mudança de
outras condições, que dizem respeito à sala de aula, permitisse uma diferenciação na qualidade
do processo observado.
Para caracterizar as atividades desenvolvidas, optou-se por compor inicialmente um
quadro descritivo do padrão de desenvolvimento das aulas das duas professoras para, em seguida,
detalhar as escolhas de cada uma delas. Tais detalhamentos são necessários para que se possa
refletir sobre os fatores que determinam suas escolhas em relação à forma e ao conteúdo
desenvolvido em suas aulas.
No intuito de facilitar a compreensão e o acompanhamento das peculiaridades do
desenvolvimento das aulas de ambas, organizou-se no Quadro 1 um roteiro do que ocorre em três
momentos claramente delimitados nas aulas da Professora 1: o de organização inicial da aula, o
de situações de abordagem dos conteúdos e o de realização de tarefas dos alunos e controle da
classe. No caso da Professora 2, a distribuição das atividades ao longo das aulas apresentou maior
variação. Mantiveram-se as linhas verticais do Quadro 1 para explicitar esta demarcação do
tempo da aula. As linhas pontilhadas indicam que tais atividades podem ocorrer, e efetivamente
ocorrem, em qualquer momento das aulas da Professora 2 e, não, exclusivamente da forma
exposta no quadro:
35
Quadro 1: Atividades desenvolvidas nas aulas.
Minutos iniciais: organização e controle dos alunos
Minutos centrais: abordagem dos conteúdos
Minutos finais: tarefas dos alunos e controle da classe
Professora 1
Conversas da professora com a classe:
• Reclamações; • Comparações; • Desvalorização
dos alunos; • Valorização da
escola.
• Explicações; • Registros
escritos; • Leituras; • Uso dos
recursos didáticos.
• Tarefas para casa;
• Tarefas em classe (trabalhos individuais e em grupo);
• Correções; • Provas.
Professora 2
• Produção de resumos e resolução de exercícios;
• Atividades individuais;
• Atividades em grupo
• Explicações; • Uso dos
recursos didáticos;
• Correções; • Registros
(escrita da professora e dos alunos)
• Provas; • Atribuição de
pontos positivos.
O quadro acima permite reconhecer quais atividades se repetem nas aulas das duas
professoras e, ao mesmo tempo, indica um padrão mais rígido de desenvolvimento nas aulas da
Professora 1. Os detalhes de como são apresentadas, conduzidas e avaliadas as atividades serão
apresentados a seguir.
Professora 1:
Foram observadas 28 aulas no período de março/2004 a junho/2004. O horário semanal de
aulas da escola passou por várias alterações até se estabelecer no mês de maio. Assim, as aulas
duplas foram divididas pelo intervalo num primeiro momento e, em seguida, foram unidas nas
duas primeiras aulas do dia.
Trata-se de uma turma de 5ª série, composta por 38 alunos dispostos em fileiras, com
lugar definido pelo mapeamento de sala realizado pela professora acompanhada nesta pesquisa.
36
Os alunos conversam muito entre si, sendo comum o seu envolvimento, durante as aulas, em
atividades não propostas pela professora (como “bater” figurinhas — os “TAZOs”).
A prática de mapeamento consiste em escolher a posição que cada aluno ocupará na sala
de aula. Para fazer essas escolhas, a professora tem como principal critério o controle da classe,
de modo a evitar que os alunos conversem ou se envolvam em qualquer atividade que não tenha
sido por ela solicitada.
A descrição da observação dessa atividade de mapeamento revela uma preocupação com
o controle da sala, embora sua finalização sugira que se trata mais de uma estratégia que pertence
à escola, do que o reflexo de uma escolha da professora.
Ela inicia dizendo:
Quero saber se alguém aqui não enxerga sentado no fundo da sala.
Três alunos erguem os braços. A professora olha para os três, passeia o olhar pela sala,
como que identificando as possibilidades de alterações e, ao se incomodar com a conversa de um
outro grupo de alunos, abandona esse critério e comenta:
Quem vai ter que sair do fundo é todo esse pessoal aqui, ó! [Referindo-se ao grupo que a
incomodava].
A professora indica mudanças para alguns alunos. Estranhamente, quase não altera as
posições dos alunos que mais pareciam incomodá-la. Diante da conversa que se generalizou pela
classe, conclui:
É difícil fazer o mapeamento dessa sala porque tem gente conversando demais.
Sua conclusão manifesta um desencanto com a estratégia adotada para controlar os
alunos. O objetivo era controlar a conversa entre eles, mas, aparentemente, todos conversam com
todos e a professora desiste de sua intenção original. Na verdade, essa estratégia não é uma ação
isolada da professora, é um consenso na escola; sua adequação parece não ser sequer discutida.
De fato, esse procedimento de regular a distribuição dos alunos no espaço escolar remete ao
37
modelo pedagógico disciplinar, discutido por Varela (2000), como organizador das relações
escolares desde o século XVIII9.
A sala é, segundo a professora, a maior da escola; possui janelas do tipo basculante em
toda a extensão de uma das paredes, a lousa em quase toda a extensão de outra, ficando o canto
dessa parede ocupado por mais uma janela do mesmo tipo. A parede onde se localiza a porta da
sala não possui janelas e é ocupada parcialmente por um mural que abriga um único cartaz sobre
a necessidade do cuidado com a água (material produzido pelo Departamento de Água e Esgoto
do município). As janelas estão parcialmente abertas e emperradas, o que faz com que o som
proveniente da quadra (para onde a parede com janelas está virada) crie um “som de fundo” que,
somado às vozes das crianças, configura um ambiente usualmente barulhento.
No andar em que se localiza essa sala de aula, ficam mais duas salas de 5ª série. O bloco
em que elas se encontram está anexado ao corpo principal do prédio por uma passarela coberta,
sendo de construção mais recente. Por essa razão, a sala em questão está na posição mais distante
em relação à entrada principal da escola, onde se localiza a diretoria, a secretaria, a coordenação e
a biblioteca. No andar de baixo, exatamente sob esta sala, se encontra o laboratório de ciências.
De maneira geral, as aulas se desenvolvem de acordo com o seguinte padrão: nos
primeiros 15 minutos prevalecem as orientações da professora em termos do comportamento que
considera adequado ou não que os alunos adotem em sua aula, em relação ao estudo ou em
relação à escola. Esses minutos iniciais são seguidos por uma etapa que dura, em média, 25
minutos e se caracteriza como a que concentra as explicações da professora. Nos dez minutos
finais é mais comum encontrar os alunos ocupados com a resolução de questões referentes ao
assunto apresentado, enquanto a professora controla a disciplina e aguarda o final da aula. A
Tabela 1 mostra como as atividades desenvolvidas pela professora se distribuíram nos três
momentos em que foram divididas as aulas, para efeito de análise:
9 Segundo Foucault (apud Varela, 2000, p. 83), “neste conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno, segundo sua idade, seus resultados, sua conduta, ocupa um posto ou outro; desloca-se sem cessar em uma série de compartimentos, alguns ideais, que indicam hierarquias do saber ou das capacidades, e outros que traduzem materialmente, no espaço da classe ou do colégio, esta divisão dos valores ou dos méritos”.
38
Tabela 1: Número de aulas em que se repetem as atividades desenvolvidas pela professora nos
três momentos das aulas.
1. Organização da classe e controle dos alunos:
Os minutos iniciais de oito das aulas observadas foram marcados por uma grande agitação
à qual se seguiu uma série de reclamações da professora que giraram em torno de questões como
a inadequação do comportamento dos alunos e o conseqüente atraso no início das atividades.
Esse atraso por vezes chegou a representar dez minutos do tempo total de aula (50 minutos).
Cinco das aulas foram iniciadas com uma leitura do livro didático ou com a análise de
fotos, esquemas ou figuras que ele apresenta. Em seis aulas iniciou-se com um pequeno texto ou
desenho na lousa, seguido de explicações da professora e, finalmente, da leitura de trechos do
livro. Duas aulas começaram diretamente com a correção de exercícios do livro didático ou
outros passados na lousa e outras duas com a verificação das tarefas nos cadernos dos alunos.
Quatro aulas começaram com atividades de verificação de aprendizagem, individuais ou em
grupo. Uma aula começou com a realização de exercícios de revisão.
Atividades Minutos iniciais Minutos centrais Minutos finais
8 3 5
6 0 1
4 7 7
2 0 0
5 6 2
2 3 5
0 9 2
1 0 6
Conversas com a classe Textos ou desenhos na lousa Avaliação da aprendizagem (provas e trabalhos em grupo) Verificação da realização das tarefas de casa Leitura ou verificação de desenhos no livro didático Correções de tarefas (de casa ou de classe) Explicações da professora Tarefas em classe (resolução individual de exercícios do livro)
Total de aulas
28
28
28
39
Em nenhum início de aula foi verificada a preocupação em explicitar a relação com o
assunto ou com questões referentes às aulas anteriores, tampouco em expor qual seria o tema
daquela aula que começava.
1.1) As conversas da professora com os alunos:
A professora geralmente utiliza os minutos iniciais de suas aulas para estabelecer
conversas com a classe, relacionadas a formas de proceder e ao controle da indisciplina. Como a
observação se deu desde o começo do ano letivo e sendo todos os alunos oriundos de outras
escolas, essa concentração das conversas no início das aulas parece indicar a necessidade da
professora de estabelecer prontamente os parâmetros para o comportamento adequado de seus
alunos.
As três primeiras aulas observadas, por exemplo, tiveram o início marcado por conversas
em que a professora apontou limites em relação ao comportamento dos alunos na escola e, em
particular, em suas aulas:
Conhecer a escola não é o mesmo que entender seu funcionamento. Os professores entendem que
há um período de adaptação, mas aqui na escola as coisas vão ser diferentes (ao se referir ao
fato dos alunos estarem chegando à escola neste ano).
Pessoal, é isso que a gente está combinando, esta bagunça?
Após dizer que alguém na classe está anotando o nome de quem está falando, avisa:
Todas as anotações serão mostradas aos pais na reunião.
Conclui esta conversa dizendo que a escola tem que ensinar conteúdo, que educação vem de casa.
As reclamações da professora nessa situação de começo de aula sugerem uma
caracterização negativa da turma, tanto para ela quanto para os demais professores, como indicam
as declarações abaixo:
40
Eu continuo não gostando dessa classe (usa o termo “continuo” porque já havia apontado para os
alunos, em outra aula, sua insatisfação com o comportamento da turma).
Os professores estão reclamando da 5ª C, com um mês e meio de aula.
Pessoal, é tão chato dar aula nesta classe... (dito em um momento muito conturbado de
determinada aula).
Em diversas situações, a professora manifesta preferência por outra turma de 5ª série,
estabelecendo comparações como:
A 5ª B é uma tranqüilidade.
A 5ª B logo vai para o laboratório, essa aqui não vai. Eu saio daqui com a garganta ardendo.
É também recorrente na fala da professora, ao iniciar as aulas, o fato de a estrutura física
da escola como um todo e da sala em particular ser muito boa. Isso tornaria os alunos
privilegiados em relação aos demais alunos da escola e da rede pública em geral, o que, portanto,
conferiria aos alunos a responsabilidade pelo melhor aproveitamento das condições favoráveis de
aprendizagem:
Esta é a melhor sala da escola, há um rodízio para uso desta sala.
Tem escola do Estado que não tem nem um prédio pintado. Vocês estão numa escola que oferece
tudo (...) Tem professor que vai começar a usar o computador. Eu não vou levar no laboratório...
Eu não fiquei contente com esse número de notas vermelhas, nesta escola é pouco [seria um mau
resultado para quem estuda nesta escola, tão privilegiada]: ninguém trabalha, dorme até a hora
que quiser, vê televisão e aí vem para a escola para conversar, bater TAZO...
41
Em algumas falas, invoca a autoridade de mais duas instâncias além dela mesma: a
direção da escola e os pais:
Há uma pasta de ocorrências onde o professor anota todo dia o que acontece de errado. No final
do bimestre, o professor responsável pela classe passa as anotações em um caderninho que será
mostrado aos pais e a mãe terá que assinar embaixo para que vocês possam aprender direitinho.
Quando o pai não vem, a diretora liga para a casa do aluno.
A diretora aparece de repente na porta e ela tem tanta sorte que sempre pega alguém fazendo
algo que não deve ser feito. Nestas situações, os alunos são levados para a diretoria e aí...
Em muitas ocasiões a professora manifesta o seu entendimento sobre qual deve ser a
postura dos alunos para que aprendam melhor:
É impossível responder um texto neste barulho.
Tem uma coisa que não dá certo: copiar e conversar. Quem conversa enquanto copia, aprende
menos.
Em relação a estas duas falas, é curioso que a professora, apesar destas declarações que
sugerem sua preocupação com a manutenção de um ambiente tranqüilo, que favoreça a
concentração, por muitas vezes, inclusive em situações de avaliação de aprendizagem ou durante
suas explicações, manifesta uma grande permissividade em relação à conversa e ao barulho que
se instala em suas aulas.
A professora ressalta sempre que os alunos devem estudar em casa. E sugere como deve
ser este estudo:
Tem que estudar, fazer tarefa de casa.
Decorado, esquece. Se estudar, não esquece.
42
Outra coisa [que atrapalha a aprendizagem]: aluno lê a questão, acha palavra-chave no texto.
Pega um pedaço de texto e copia na resposta.
Em relação a esta última fala, é interessante destacar que a maioria das questões
solicitadas pela professora, tanto nas tarefas de casa quanto nos exercícios a serem realizados
durante a aula, exigem exatamente este tipo de habilidade dos alunos (a de identificar o trecho do
texto que responde a questão e transcrevê-lo para o caderno). No entanto, ao falar sobre qual é o
comportamento que considera adequado para lidar com os textos e as questões, contradiz sua
prática usual.
As falas abaixo merecem especial atenção. Nelas, a professora indica que é possível não
participar da sua aula, ou fazê-lo de forma inadequada, e mesmo assim, ter um bom resultado nas
provas. Aliás, este resultado parece ser considerado pela professora como o indicador por
excelência de que houve realmente aprendizagem. Por exemplo, ao reclamar da bagunça em certa
aula, ela declara:
Se todo mundo tirar 10,0 na prova, eu não reclamo mais.
Além disso, as seguintes declarações revelam sua crença na possibilidade de que
capacidades inatas sirvam como privilégios de algumas pessoas enquanto outras, por não as
possuírem, ficam para trás. Esta concepção é preocupante porque sugere que não existe reflexão
sobre outros fatores que influenciam os diferentes resultados da aprendizagem dos alunos,
inclusive os que se referem à sua própria prática. É como se as possibilidades oferecidas pela
educação fossem igualmente adequadas para todos e que somente as questões individuais
explicassem os insucessos escolares:
Senti que quem não é da turma da bagunça, foi bem [refere-se ao resultado de uma “provinha”].
Tirou até 8,5. Da turma da bagunça, alguns foram bem. Na aula, brinca, não presta atenção.
Atrapalha todo mundo que está perto. Ele é esperto, consegue pegar a matéria. Nem todos têm a
mesma facilidade, os amigos vão mal.
43
O problema não é não saber [refere-se a um aluno que se recusa a responder uma pergunta,
ficando em silêncio por vários minutos]. O que ele não tem? Vontade.
Quando se refere às notas dos alunos, a professora revela que este é de fato o indicador
que utiliza para saber se seus alunos estão ou não aprendendo a matéria. Nos momentos de
entrega das provas corrigidas, seus comentários indicam sua insatisfação com os resultados da
turma. É importante ressaltar que, ao entregar este material, a professora o organiza seguindo
uma ordem decrescente das notas (a professora inclusive avisa a classe quando acabaram as notas
“azuis” e começam as “vermelhas” – Ó, agora começa o vermelhão!). Assim, todos ficam
sabendo quem tirou notas “vermelhas” e inclusive é comum a brincadeira generalizada em
relação a estes resultados, mesmo por parte de alguns alunos mal sucedidos em termos de nota.
Mais uma vez, fica evidente que os maus resultados são imputados apenas aos alunos e que o
processo de transmissão dos conteúdos não é questionado pela professora:
Comecei a corrigir as provas. O que tem de nota baixa e é sempre aquele pessoal que não faz
nada.
Quem estudou tirou nota. As outras pessoas não prestam atenção, brincam, não fazem tarefa...
Se continuar deste jeito, vai reprovar ou vai passar daquele jeito.
É o cúmulo tirar 5,0. São pessoas privilegiadas, vem para a escola fazer bagunça. É falta de
vergonha tirar nota baixa numa prova fácil assim.
Olha cada beleza de nota que saiu agora [ironicamente]. Olha a turma da bagunça agora.
Assim, o que se percebe nas conversas da professora com a classe é um forte apelo à
conscientização dos alunos sobre o privilégio de estarem naquela escola e de não precisarem
trabalhar, somente estudar, ainda que estes sejam direitos de toda e qualquer criança. Além disso,
é recorrente a culpabilização dos alunos pelos maus resultados obtidos nas situações de
verificação de aprendizagem. Não se percebe, nem nas falas da professora para a classe nem nas
declarações espontâneas que fez à pesquisadora durante as aulas observadas, qualquer indício de
44
necessidade de adequação de sua prática para melhorar a qualidade da aprendizagem, exceto no
que diz respeito às idéias que busca para conseguir ocupar os alunos durante as aulas, reduzindo
assim o barulho. Como exemplo desta preocupação, em declaração à pesquisadora, afirmou que
decidiu, com esta turma, trazer sempre atividades extras para a classe se ocupar, referindo-se à
bagunça que eles normalmente fazem nas aulas.
Muitos dos fatores que a professora parece identificar como importantes para a
aprendizagem como o ambiente mais silencioso, o tratamento mais reflexivo ao lidar com os
textos, a importância do entendimento das questões discutidas e não da sua simples memorização
não são favorecidos por ela no desenvolvimento de suas aulas. Entretanto, as declarações abaixo
indicam como ela julga serem suas aulas:
Por que na aula da professora X esta classe é um silêncio? Por que ela é brava? Então, vou ser
brava também. Eu estou tentando fazer uma aula diferente, que eu possa conversar com vocês.
Vou passar um monte de matéria na lousa para vocês copiarem.
Eu explico primeiro o assunto porque às vezes é difícil entender o livro.
Quando o professor é um pouco mais legal [refere-se a si mesma], vocês abusam.
Em declaração espontânea à pesquisadora, indica que:
Nesta classe não dá para fazer muitos questionamentos [como gostaria], porque vira bagunça.
Na 5ª B, dá.
A professora parece entender que sua prática diferencia-se da dos demais professores (ao
menos de uma professora citada por ela durante as aulas como aquela que dá uma “aula chata”
por exigir que seus alunos copiem e decorem informações em demasia). Sua inserção na escola
parece estar tão impregnada daquilo que caracteriza a forma escolar10, que não consegue perceber
10 VINCENT, LAHIRE & THIN (2001), se referem a forma escolar como sendo a unidade de uma configuração histórica particular,surgida em determinadas formações sociais, em certa época. O que faz a unidade da forma escolar, segundo os autores é o seu princípio de inteligibilidade, que se relaciona com a submissão do professor e dos alunos a regras impessoais, além de uma peculiar organização de tempos, espaços e saberes (p. 9-10).
45
as incoerências que existem entre suas intenções declaradas e sua prática propriamente dita.
Entretanto, é curioso que durante a entrevista aplicada pela pesquisadora, a professora tenha se
referido de forma negativa em relação a suas aulas, ainda que esse julgamento estivesse atrelado
a uma responsabilização de aspectos relativos à organização da escola ou às determinações
oficiais que gerariam o mau resultado de seu trabalho em sala de aula:
Fico angustiada porque sei que meu trabalho tem falhas, que eu poderia ser melhor como
professora, mas esta forma da escola de esconder suas deficiências contribui para que eu seja
menos do que poderia ser.
Dou aulas há 13 anos. Antes, no começo, ia mais ao laboratório, conseguia prender a atenção
dos alunos, eles valorizavam a escola. Depois dessa história de progressão continuada, a escola
virou uma área de lazer para os alunos (...) isso gera indisciplina que dificulta o trabalho.
2. Abordagem dos conteúdos:
Nos 25 minutos centrais das aulas prevaleceram as explicações da professora sobre os
conteúdos abordados nas aulas. Elas aconteceram nessa fase da aula, em nove ocasiões.
Considerando que elas ocorrem também mescladas às leituras e/ou verificações de desenhos no
livro texto, que aconteceram em seis aulas, percebe-se que as explicações ocuparam o tempo
central das aulas por 15 vezes. Outras atividades bastante utilizadas nessa fase são as atividades
de verificação de aprendizagem, em grupo ou individuais (as provas). Somando-se todas,
ocorreram em sete das aulas observadas. As correções de tarefas ocuparam estes minutos centrais
das aulas por três vezes. Este é também o número de vezes em que a professora utilizou esse
período para “conversar” com a turma.
Enfim, os minutos centrais das aulas concentram as situações de abordagem dos
conteúdos da disciplina, com a maior parte delas centrada na professora e no livro didático. Vale
ressaltar a freqüente aplicação das atividades de verificação citadas acima, constituídas por
exercícios não constantes do livro didático, realizados em duplas ou em grupos maiores.
2.1) Explicações:
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As explicações, no geral, ocorreram nos 25 minutos centrais das aulas e, em nove delas,
foram feitas após a cópia na lousa de trechos do livro didático, a verificação de seus desenhos,
fotos ou esquemas ou a leitura do mesmo trecho copiado.
O que a prática dessa professora sugere é a idéia de que, ao copiar um pequeno trecho do
texto do livro, antes de fazer a sua explicação, os alunos já serão introduzidos ao tema da aula
(seja pelo conteúdo do que copiam, seja pelo efeito tranqüilizador da própria cópia), que, assim,
não é nunca inicialmente apresentado (tampouco os seus vínculos com os temas das aulas
anteriores ou vindouras). Suas explicações repetem o trecho copiado, de forma que o
conhecimento parece encontrar seu começo e seu fim no próprio livro didático. Professora e livro
assumem uma relação de legitimação recíproca, restando aos alunos receber e memorizar
informações que deverão ser prontamente devolvidas em situações de avaliação.
A descrição que segue tem o objetivo de ilustrar como são construídas as explicações da
professora:
Em determinada situação, a professora pediu que, com uma força de mesma intensidade,
os alunos pressionassem o lápis sobre a palma da mão, uma vez com a ponta, outra, com a parte
de trás. Em seguida, perguntou:
Por que a ponta afunda mais?
A força é a mesma?
A pressão é maior na ponta ou atrás [do lápis]?
Uma aluna responde:
Atrás.
A professora, então, diz para a classe:
Como a gente vai convencer ela? Vamos abrir o livro.
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Segue com a leitura do livro; depois, confirma o que já havia dito. Um aluno conclui:
Força num espaço menor, mais pressão.
A professora vibra:
Tá certo!
Alguns alunos comentam:
Lógico, ele leu no livro.
A professora ignora esse comentário e repete a explicação, desenhando na lousa (desenho
idêntico ao do livro).
Alguns alunos não parecem convencidos. Ela diz:
Vamos ler o que está escrito aqui, pessoal?
Após a leitura, solicita que os alunos, juntos, leiam a definição. Volta ao desenho da lousa e
resume, oralmente:
Quanto maior a área, menor a pressão. Quanto menor a área, maior a pressão.
Rapidamente passa para um exercício do livro que pede que os alunos repitam as mesmas
definições.
Em outra situação, a professora copia na lousa um desenho que consta do livro didático.
Ela vai contando o que está desenhando como se realmente tivesse feito o que aparece no
desenho (uma lata cheia de água, com quatros furos alinhados verticalmente, vedados com fita
adesiva).
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Ela diz que fez uma experiência para saber em qual dos furos a água, quando retirada a
fita adesiva, alcançaria uma marca X, distante da lata e sobre a mesma superfície em que ela se
apóia.
Analisando o desenho, os alunos respondem de formas diversas. A professora questiona:
Quem acha que é o primeiro furo? (O que está mais próximo da extremidade superior da lata)
E o segundo? E o terceiro? E o quarto?
Os alunos vão respondendo. A cada resposta, ela desenha na lousa o que estaria acontecendo se o
aluno estivesse correto. Diante das divergências, ela parece se divertir. Então, apaga os últimos
desenhos e mostra o que aconteceria de fato (apenas a água que sai do quarto furo alcançaria a
marca).
Então, diz:
Meio minuto para pensar. É para pensar!
Passados alguns minutos de bastante discussão entre os alunos, ela pergunta novamente:
Levanta a mão quem acha que é o primeiro. Depois segue, o segundo, terceiro e quarto?
E conclui:
Pelo o que eu percebi, o último [o quarto furo] ganhou.
Apesar de alguns alunos ainda não estarem “convencidos”, parte para outro exemplo:
Na piscina, onde é mais gostoso nadar?
Os alunos respondem:
No fundo.
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Se for piscina muito funda, é gostoso nadar? [Faz uma expressão de dor enquanto pergunta]
Os alunos respondem:
Não!
Um aluno fala que dá dor de ouvido. Algum aluno fala sobre a pressão. A professora pergunta:
Vocês falaram em pressão. O que é essa pressão?
Depois de mais um exemplo, também presente no livro didático, como os demais, confere seus
desenhos da lousa e lê novamente a definição:
Resultado de uma força [mostra a representação dessa força em seu desenho] sobre uma
superfície.
Então, volta ao exemplo da lata:
Qual é o furo, então?
Quase toda a classe responde:
O último.
As situações acima mostram que não parece importar se os alunos compreendem ou não
os conceitos, dos quais de fato sequer se aproximam. O que importa é ressaltar a legitimidade dos
discursos da professora e do livro didático. Não são comentadas as opiniões divergentes e nem
tampouco o conceito que confere sentido à explicação dada. Assim, a pergunta que a própria
professora propõe (O que é essa pressão?) é respondida com desenhos e definições que indicam a
ação de uma força sobre uma superfície. Mas, em nenhum momento se discutiu o que é força
50
(não se pôde sequer verificar a preocupação em conhecer o que os alunos entendem por força).
Esse não parece ser o foco, basta que os alunos memorizem a relação dada: maior força, em
menor superfície, maior pressão.
Em certo momento de sua explicação, a professora ressalta que é necessário pensar.
Entretanto, o que a explicação da professora sugere é que esse pensar significa se convencer do
que já está estabelecido, aceitar uma verdade que já estava dada desde o início da explicação.
Os conteúdos tratados nas aulas foram de alguma forma derivados dos temas centrais das
Unidade 2 e 3 do livro didático, a Água e o Ar.
Em três das aulas, o ciclo da água foi o assunto principal. Ligado a este assunto, em
quatro das aulas, a discussão girou em torno das mudanças de estado físico da água. Em seis
aulas foram descritas propriedades da água, tais como: a pressão exercida, a capacidade de
dissolver e transportar substâncias e o empuxo.
As alterações provocadas pelo homem nos ambientes aquáticos ocuparam duas das aulas e
ressaltaram aspectos como a poluição e a contaminação de corpos d’água. Ao tratar dos
ambientes aquáticos, os conceitos relativos às cadeias alimentares foram abordados em uma das
aulas. Também o tratamento da água para consumo humano foi apresentado em uma das aulas
observadas.
Em uma aula tratou-se de fenômenos atmosféricos e em outras duas, da pressão exercida
pelo ar e da formação dos ventos.
A seqüência dos conteúdos se refere fielmente àquela estabelecida no livro didático.
Apenas se alterou quando a professora trouxe atividades extras (exercícios em grupo e leitura de
paradidático), em quatro aulas. Nesses momentos, a questões recorrentes foram o ciclo da água e
as mudanças de estado físico nele envolvidas (presente em uma das atividades de avaliação, uma
atividade experimental solicitada para ser realizada em casa, no livro paradidático lido, em uma
atividade em duplas). Essa recorrência sugere que estas podem ser questões consideradas
essencialmente importantes pela professora.
A relação entre os conceitos abordados e o tema central (água) parece ficar a cargo da
seqüência estabelecida pelo livro didático. Não houve, em nenhum momento, referência da
professora a esse nexo existente entre os temas das aulas.
Mesmo em relação às questões mais insistentemente abordadas — ciclo da água e
mudanças de estado físico —, as explicações não exploram conceitos que estão na base dos
51
processos descritos. Assim, ao falar em mudanças de estado físico não foi tratada a questão da
energia que provoca agitação das moléculas. Por diversas vezes foi confirmada com a classe a
influência da temperatura na mudança de estado físico (quando passa de gasoso para líquido...
perde calor), mas não se discutem os conceitos de moléculas, calor e temperatura. Assim, impõe-
se a pergunta: afinal, o que se está ensinando? Para que se está ensinando? Fica nítido que essa
forma de lidar com o conteúdo privilegia a apresentação da manifestação imediata dos fenômenos
(como, por exemplo, que o gelo “vira” água líquida), já conhecida pelos alunos, e não procura
identificar o que os alunos sabem ou não sobre os termos utilizados no movimento de
aproximação dos conceitos científicos. Tampouco se busca estruturar uma base sólida em que se
possam apoiar as futuras aprendizagens dos alunos nessa área do conhecimento. Portanto, o
ensino não visa a gradual compreensão dos fenômenos, mas, sim, a obtenção de bons resultados
nas situações de avaliação.
Essa abordagem, portanto, define uma ausência de desenvolvimento dos conceitos, o que
talvez explique o fato de este aspecto, ligado à temperatura, por exemplo, não ser abordado em
nenhuma questão das atividades individuais de verificação de aprendizagem (as provas). É
possível que o próprio professor evite tocar, nestas situações de avaliação, em conceitos cujo
desenvolvimento não foi realizado. No entanto, as atividades extras trazidas pela professora para
serem feitas em grupo estavam invariavelmente ligadas a esses conceitos, como forma de garantir
a sua memorização, ainda que desvinculada do seu entendimento. Questões como as que seguem,
destacadas de uma atividade em grupo, indicam essa forma de abordagem:
O que as moléculas de um corpo perdem quando passam de vapor a líquido e de líquido a
sólido?
Comparativamente, em que estado físico do corpo suas moléculas possuem mais energia?
O livro também parece, em alguns capítulos, deixar essas lacunas de informação na base
dos conceitos abordados. Por exemplo, o conceito de molécula só aparece quatro capítulos à
frente do que trata das mudanças de estado físico. A questão que parece não ser enfrentada é: por
que a matéria muda de estado físico? Passa-se todo o capítulo falando que ela muda, que o calor
se relaciona com isso, qual é o nome de cada mudança, mas não se fala sobre o por quê desse
52
fenômeno (as moléculas, ao perder ou ganhar energia – calor –, aproximam-se ou afastam-se,
mudando o estado físico da matéria). Mas, por diversas vezes, o aluno será convidado a descrever
e nomear esses processos sobre os quais não se exploram as causas. Por exemplo, em uma das
atividades extras, encontram-se questões como as que seguem:
Como se denomina a passagem do estado de vapor para o líquido?
Quando a água ferve e muda de estado, que fenômeno acontece?
Como se denomina a passagem do estado sólido para o líquido?
Quando a água passa lentamente ao estado de vapor, que fenômeno acontece?
Quando o conceito de moléculas é discutido no livro, não é feita qualquer relação com
esses primeiros fenômenos estudados (as mudanças de estado físico e a influência do calor).
Em nenhum momento foram abordados os aspectos ligados a história da ciência para se
chegar aos conceitos trabalhados hoje na escola. Apesar da transitoriedade característica dessa
atividade humana, os conceitos são apresentados como se sempre tivessem sido inquestionáveis,
o que sugere que, para a sua aprendizagem, são mais eficientes a aceitação e a memorização do
que a reflexão crítica. A repetição das definições e a exigência de sua memorização, evidente
tanto nas atividades de verificação de aprendizagem e nos exercícios de fixação quanto no hábito
da professora de esperar que os alunos completem suas frases durante a explicação, afastam
qualquer possibilidade de problematização dos conceitos abordados. Ao menor sinal de
questionamento por parte dos alunos em relação às formas de explicação dos conceitos
abordados, primeiro aparece a autoridade da professora e, como maior sinal da legitimidade das
informações, a verificação das definições escritas no livro didático. Em determinada aula, por
exemplo, a professora perguntou se alguém não concordava com a sua explicação.
Imediatamente, um aluno virou-se para a classe e disse:
Quem é o burro que não concorda? É um burro!
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Ou seja, o que se ensina é que discordar da professora é burrice, porque ela é uma autoridade. Se,
além da declaração da professora, o livro trouxer a mesma informação, é sinal de que só pode
haver esta explicação para a questão discutida.
2.2) Registros escritos:
2.2.1) Escrita da professora:
A professora utiliza a lousa para fazer registros. Esses textos, na maior parte das vezes,
não são de sua autoria, são transcrições do livro didático. Suas explicações não geram sínteses
escritas na lousa. Portanto, sua produção escrita não aparece, exceto nas provas que elabora;
praticamente só a sua fala é utilizada na comunicação com os alunos.
Em relação à cópia, as falas da professora parecem contraditórias. Por vezes, parecem
afirmar que a simples cópia já garante o aprendizado. Em outras ocasiões, refere-se à cópia como
sendo uma prática que acontece em aulas “chatas”, com professores “chatos”, fazendo referência
a algo antiquado em matéria de educação:
No tempo da minha avó, o professor escrevia na lousa e os alunos copiavam. Hoje, o professor
tenta fazer pensar. Só que chega uma hora que cansa.
Aula de cópia seria a solução? Não, isto não acrescenta nada.
Um monte [de alunos] não fez, não porque não consegue, mas nem tentou. Então, o que
acontece? Copia. Quem copia, não aprende. Depois na prova não consegue fazer.
No entanto, a própria professora freqüentemente faz cópias de trechos do texto do livro
didático na lousa, assim como solicita que os alunos copiem estes trechos, embora eles constem
do livro. A escolha pelas questões que buscam a identificação direta das respostas no livro, que
também são preferidas pela professora ao solicitar as tarefas de casa, também parece se basear na
valorização da cópia como forma de garantir a aprendizagem.
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O hábito da professora de primeiro escrever na lousa, esperar que os alunos copiem e,
então, explicar, também sugere uma crença no poder da cópia para o entendimento do que se está
abordando, assim como para criar um clima favorável para o momento em que fará suas
explicações, ou seja, que os alunos se mantenham em silêncio e prestando atenção em sua fala. É
como se o simples fato de copiar, ainda que em um ambiente tumultuado, não favorável à
concentração, já garantisse, ou ao menos facilitasse o entendimento.
2.2.2) Escrita dos alunos:
Em relação aos alunos, a escrita parece ser valorizada apenas para copiar textos transcritos
na lousa ou para responder questões que não serão lidas para a professora.
Para responder aos questionamentos da professora durante as aulas, os alunos usam
apenas o registro oral, sendo as atividades de verificação de aprendizagem os únicos instrumentos
que exigem que a professora lide com a sua produção escrita. Assim, é ao ler o que os alunos
escrevem nas provas que a professora vai estabelecer de fato uma relação com a escrita desses
alunos. Mas, nesse momento, sua preocupação é verificar a aprendizagem do conteúdo de
ciências. Portanto, também aí a escrita não é o principal foco de análise da professora. Não
deveria ser surpreendente, então, a constatação usual, tanto no ambiente escolar como fora dele,
de que os alunos não sabem escrever. É como se os alunos estivessem sozinhos nesta tarefa de
aprender a escrever. A este respeito, Sampaio (1998), ao analisar os instrumentos de verificação
de aprendizagem utilizados em diferentes disciplinas, afirma:
A elaboração escrita, que assume importância central no momento da avaliação, contraditoriamente, não parece ter sido objeto de trabalho em sala de aula, deixando supor que esse é mais um dos aspectos incluídos no conjunto de aprendizagens esperadas do desenvolvimento dos alunos e que deveriam surgir espontaneamente (p. 115).
Assim, a escrita faz parte do ensino — é da tradição escolar. Faz parte por esse “poder” da
cópia e como instrumento de controle, que ocupa e acalma. Serve também como um regulador da
indisciplina, sendo por vezes utilizada como castigo:
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O que está acontecendo? Eu vou ter que fazer que nem ontem, encher a lousa? Vocês vão
fazer cópia.
Também em declarações à pesquisadora, a professora por vezes manifestou a importância
de manter esta turma ocupada, “trabalhando”, para que as aulas transcorressem com mais
tranqüilidade. Este “trabalhar”, na maior parte das vezes se refere a responder questões que
envolvem transcrição de trechos do livro.
3. Tarefas e atividades dos alunos:
A forma mais utilizada para a finalização das aulas foi a realização de trabalhos em grupo
ou provas que, geralmente, se iniciam no meio da aula e se estendem até o seu final. Foi o que
ocorreu em sete aulas observadas. Também marcaram esses momentos os pedidos de tarefas a
serem realizadas naquela aula, por seis vezes, e a correção destes exercícios, que também ocorreu
em cinco aulas. A leitura ou verificação de desenhos no livro didático ocorreu no final de duas
aulas. Apenas em duas aulas aconteceu da finalização se dar com uma explicação pela professora,
e, em outra, com a transcrição de um texto na lousa.
É possível perceber que os finais das aulas usualmente são os momentos em que mais a
professora se preocupa em manter os alunos em atividades que não demandem sua participação
direta (em 13 aulas, os alunos ficaram envolvidos na resolução de exercícios, sem que a
professora fosse constantemente solicitada a ajudar: nas aulas em que fizeram trabalhos em
grupo, provas ou exercícios de fixação). Esse é o momento em que a professora parece “relaxar”
após ter cumprido seu papel de transmissão de conteúdos em suas explicações, que geralmente
ocupam os minutos centrais das aulas. No geral, sua tolerância em relação às conversas alheias ao
assunto abordado também é maior nestes momentos assim como sua preocupação em ouvir o
sinal que indica o fim da aula. O tempo-aula, de trabalho efetivo com ensino e aprendizagem fica,
portanto, em torno de trinta minutos.
3.1) Tarefas para casa:
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Nas aulas em que foram solicitadas tarefas para casa, a professora anotou, no canto direito
da lousa, a “Agenda”. Aí foram marcados os exercícios que deveriam ser feitos em casa.
No livro existem dois tipos de exercícios que podem ser solicitados para casa: os que
fazem parte da seção Faça seu próprio resumo (em quadros de cor roxa), que traz questões de
relação mais direta com o texto e o Pensando e Pesquisando (laranja), que faz relações menos
diretas com o texto e que, por vezes, exige pesquisa. Por exemplo:
Faça seu próprio resumo, p. 59, solicitado no dia 13/04/2004:
1) Quais são os componentes de uma solução?
Resposta: Numa solução, sempre há dois componentes: o solvente (...), e o soluto (p. 54).
2) Por que se costuma dizer que a água é um bom solvente?
Resposta: Ela [a água] dissolve substâncias sólidas, líquidas e gasosas. Por esse motivo é
chamada solvente universal (p. 54).
Pensando e Pesquisando, p. 59:
1) A água do mar é uma solução? Justifique sua resposta. Pesquise sua composição em
enciclopédias.
8) Refrigerantes, como o guaraná, contém gás carbônico dissolvido. Um refrigerante não
gelado, quando aberto, forma muito mais espuma do que quando bem gelado. A espuma
nada mais é do que bolhas de gás carbônico sendo liberadas. Levando em consideração essa
explicação, você diria que o gás carbônico se dissolve mais facilmente em água fria ou em
água quente? Pense a respeito e, se necessário, peça orientação a seu professor.
Em sete das aulas observadas (1/4 do total) foi solicitada tarefa de casa. Em seis delas, as
tarefas solicitadas foram da seção Faça seu próprio resumo, o que sugere, pelo tipo de questão
mais utilizado nessa seção, uma ênfase no desenvolvimento da habilidade de identificar no texto
do livro os trechos que respondem diretamente ao que se está perguntando. Não há a exigência de
identificação de informações que possam ser relacionadas para compor uma resposta de autoria
do aluno e nem a preocupação em associar o tema das aulas a questões externas à escola. O
assunto começa e termina no próprio livro didático.
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A correção das tarefas de casa foi acompanhada em quatro aulas. O tipo de correção mais
usual é a oral: a professora ouve algumas respostas, questiona o que o aluno diz, não indica se se
trata de um acerto ou de um erro e, no final, aponta quem mais se aproximou da resposta correta,
que, então, é declarada. Em uma única aula, foi solicitado a um aluno que transcrevesse sua
resposta na lousa e, em seguida, a professora acrescentou algo a essa resposta, finalizando com a
seguinte declaração para este aluno:
Corrige aí, como está no livro.
Em uma outra aula, a professora entregou seu livro para uma aluna e pediu que ela transcrevesse
a resposta para a lousa.
É interessante verificar que a professora não estabelece durante a correção uma única
resposta como sendo a verdadeira, ao contrário, ela parece classificar as respostas em mais ou
menos plausíveis, não descartando totalmente nenhuma delas. Ao ouvir as respostas dos alunos
com essa atitude, ela parece estabelecer em relação à Ciência uma postura que admite a
existência de diferentes explicações para um fenômeno. Porém, considerando algumas
particularidades do processo de correção, a elaboração da resposta parece acontecer durante a fala
do aluno. Observa-se que poucos são os alunos que lêem suas respostas e que a professora não os
escolhe; a tendência é de serem sempre aqueles mais desinibidos que o fazem. Mesmo os que
falam nessas ocasiões de correção não parecem ler integralmente o que escreveram e é possível
que muitos alunos não façam, ou façam incompletamente, a correção de suas tarefas.
Em um experimento, solicitado para ser feito em casa, o aluno deveria acompanhar a
germinação de sementes de feijão em diferentes condições de hidratação. As observações
deveriam ser feitas durante sete dias e registradas em uma tabela. A tabela e as respostas das
questões propostas no livro deveriam, então, ser entregues à professora. As questões, como se
pode perceber abaixo, encaminham a conclusão a que deve chegar o aluno em relação à
necessidade da quantidade adequada de água para que ocorra a germinação:
Tente responder às perguntas seguintes:
1. Que conclusões podemos tirar a partir dos resultados do pires nº 4?
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2. No seu experimento, qual foi a quantidade ideal de água para a germinação? E para o
crescimento?
3. Se você fizesse o mesmo tipo de experimento com outro tipo de semente (alpiste, por
exemplo), a quantidade ideal de água seria a mesma? Qual é seu palpite? Tente justificá-
lo.
Essa atividade trazia a exigência da montagem de um experimento e do registro de
informações coletadas a partir dessa montagem, apontando para o desenvolvimento de alguma
autonomia e da capacidade de seguir orientações escritas para a confecção da montagem e para os
relatos das observações.
Embora pudessem trazer à tona as idéias dos alunos acerca dos fenômenos observados, os
resultados do experimento não foram discutidos em nenhuma das aulas. Os alunos receberam
seus relatórios, com notas sobre as quais não se discutiu o critério de avaliação. Além do não-
aproveitamento da experiência vivida pelos alunos, a própria professora indica na entrevista que
poucos alunos entregaram seus trabalhos, fato que ela atribui, em parte, à desvalorização da
escola pelos pais dos alunos:
Alguns pais não permitem ou não estimulam seus filhos a fazerem os seus trabalhos de casa. Por
isso, recebi poucos retornos dos trabalhos solicitados.
Mas, quando o aluno não tem interesse em fazer o trabalho, às vezes a falta de interesse não é só
do aluno. Alguns não fazem porque a família não permite, porque faz sujeira.
Solicitar uma tarefa para casa que envolve experimentação e não discutir o processo de
montagem do experimento, as variáveis que podem ter influenciado em possíveis resultados
discrepantes do obtido pela maioria da turma, o tipo de observação que se espera, as dúvidas ou
as contradições em relação aos resultados obtidos, transmite aos alunos uma determinada visão
acerca da atividade científica. Nessa perspectiva, só se admite um resultado possível ao
experimento, toda e qualquer discrepância em relação ao esperado é ignorada em nome da
verdade que já se conhecia – ou melhor, já conhecida pela professora e pelo autor do livro
didático –, não se discute quaisquer outros pontos de vista. Assim, a atividade científica
59
confirmaria a verdade que prescinde de qualquer reflexão, ou, no máximo, que admite que essa
reflexão seja realizada por determinadas pessoas, supostamente dotadas de uma “inteligência
superior”, como os cientistas, e não por cidadãos comuns.
3.2) Tarefas em classe:
3.2.1) Trabalhos individuais:
Quando foram pedidos exercícios para serem feitos individualmente em classe (em cinco
das aulas observadas), o número raramente excedeu o de três questões do livro didático. O tempo
de espera para que fossem feitos girou em torno de dez minutos a 15 minutos. Foi muito comum
que a classe nesses intervalos de tempo se dispersasse e começasse uma grande confusão, com
muitos alunos conversando em tom de voz elevado e alguns se deslocando pela sala envolvidos
em brincadeiras. Nestas ocasiões, foram freqüentes as reclamações ou ameaças da professora em
relação a alguns alunos em particular ou em relação à classe como um todo:
Eu vou pedir para a diretora mudar esta turma para uma sala “pequenininha”, se não diminuir
o barulho.
Quem fizer quietinho eu não dou lição de casa. Quem conversar, dez questões para casa.
3.2.2) Trabalhos em grupo:
Foram realizadas atividades em grupo em quatro das aulas observadas. Consistiram,
respectivamente, em:
1. Caça-palavras: Realizada em duplas. Os alunos deveriam encontrar quadro palavras em
um quadro e com elas montar uma frase. As palavras eram temperatura, mudança, estado
e água.
2. Interpretação do livro paradidático: Realizada por grupos de quatro alunos que deveriam
responder a três questões retiradas do suplemento que acompanha o livro paradidático.
60
3. Víspora: Realizada em duplas. Os alunos deveriam relacionar as dez questões com as
respostas corretas e registrar os pares (pergunta/resposta) em um quadro.
4. Questão e cruzadinha: Realizada em duplas. Deveriam responder a uma questão sobre o
impacto da poluição marinha nas cadeias alimentares aquáticas e resolver uma
cruzadinha.
Estes trabalhos exigiam basicamente que os alunos tivessem memorizado informações
dissociadas ou que as localizassem em um texto.
No caça-palavras, o tipo de atividade permite supor que a professora considera importante
que os alunos registrem, ou memorizem, que a temperatura influi na mudança de estado físico da
água. Entretanto, a forma de abordagem desta questão pela professora não permite que os alunos
tenham uma clara compreensão de porque a temperatura exerce esta influência (a esse respeito,
ver comentário na p. 51).
O seguinte comentário da professora, feito enquanto os alunos trabalhavam na resolução
das questões sobre o livro paradidático lido, indica sua compreensão sobre o trabalho em grupo:
Trabalho em grupo é assim: lê a pergunta e discute a resposta, antes de escrever.
As questões de interpretação retiradas do suplemento de leitura que acompanha o livro
paradidático diferem bastante das formuladas pela professora nas avaliações e demais atividades
de ciências. Não são do tipo pergunta-resposta, exigem uma interpretação do texto lido e o
estabelecimento de algumas relações, como a de trechos da história com os fenômenos da
evaporação e da condensação.
O enunciado da primeira delas pede que os alunos observem “os elementos mais
importantes da narrativa” e completem um quadro em que devem indicar: o título da história, os
personagens principais e os locais onde se desenvolvem os acontecimentos. A segunda questão
apresenta um desenho que retrata o ciclo da água e pede que os alunos descrevam “com suas
palavras” o caminho percorrido por uma das gotinhas da história. A última questão pede que os
alunos citem duas passagens da história que se relacionem com os seguintes termos: evaporação e
condensação.
Em outra aula, os grupos realizaram uma atividade de víspora. A uma lista de
perguntas, segue uma de respostas que os alunos deverão relacionar, registrando os pares
61
pergunta-resposta em um quadro. O assunto tratado, mais uma vez, foi a ocorrência de mudanças
de estado físico da água.
A última atividade observada tratou da questão da poluição de duas formas. Uma, trazia
um texto que descrevia um derramamento de petróleo no mar e questionava o efeito deste
acidente sobre as cadeias alimentares aquáticas. No livro didático, este efeito é descrito em um
texto e em um desenho.
Essa questão traz um fragmento de texto cuja fonte não foi identificada. Trata do
derramamento de óleo que ocorreu em função da Guerra do Golfo Pérsico, em 1991. Como se
pode perceber abaixo, a questão que segue ao texto mantém com este um vínculo frágil:
Leia com atenção o texto a seguir e depois responda à questão:
“No ano de 1991, durante a Guerra do Golfo Pérsico, as forças do Iraque bombardearam navios
petroleiros, provocando o derramamento de enormes quantidades de petróleo no mar. Em toda a
imprensa mundial, a imagem mais marcante foi a que mostrava uma ave coberta de óleo, com
dificuldades para se mover, morrendo na praia. Mas essa era só uma parte do desastre”.
De que forma o petróleo afetou a cadeia alimentar naquele ambiente aquático?
A questão já identifica qual era a outra parte do desastre (o petróleo afetou a cadeia
alimentar) e pede que os alunos expliquem-na. De fato, bastava trazer a informação de que houve
o tal derramamento de óleo e, então, propor a questão. A reflexão sobre o que mais seria
conseqüência desse desastre ecológico, além da ave coberta de óleo, poderia gerar discussões
instigantes nos grupos, inclusive informando à professora quais os conceitos básicos necessários
aos alunos para alcançar a compreensão da amplitude do desastre em questão.
A outra questão desta atividade era uma cruzadinha. Para respondê-la, os alunos deveriam
ter memorizado diversas definições, tais como:
(1) Fator que causa a poluição.
(2) Quanto maior é a ______________, menor é a penetração de luz na água.
(3) Chuva que arrasta substâncias químicas presentes na atmosfera, prejudicando o
desenvolvimento dos vegetais e animais aquáticos.
62
O que se percebe nas atividades de ciências preparadas pela professora é uma
preocupação em garantir a memorização de definições que, posteriormente serão solicitadas nas
provas de ciências.
Convém também destacar que por mais de uma vez a professora declarou, em conversas
com a pesquisadora, que pretendia trazer sempre atividades para a classe se ocupar, como uma
forma de controlar a indisciplina da turma. Talvez esta intenção declarada possa ter se associado
à necessidade de realizar atividades que promovessem a fixação das definições consideradas
relevantes para a aprendizagem de ciências. O fato de serem realizadas em grupo talvez
represente um facilitador do trabalho da professora, pois as dúvidas que surgem individualmente
podem ser discutidas no grupo antes da sua ajuda ser solicitada.
Depois de corrigidos, os trabalhos em grupo foram entregues a um dos componentes, que
foi orientado a mostrar para os demais. Não foi feita a correção com os alunos, eles foram
orientados a apenas verificar o resultado (a nota) de seu trabalho.
4. Uso dos recursos didáticos:
4.1) Lousa:
Esse recurso didático foi utilizado em 12 das 28 aulas observadas (3/7 do total). Seu uso
pode ser classificado de acordo com as seguintes funções: para registro de definições/explicações,
para confecção de desenhos ou esquemas explicativos, para agendamento de tarefas ou atividades
de avaliação (“Agenda”), para correção de tarefas ou para passar exercícios a serem realizados
em classe. No geral, o conteúdo da lousa ao final das aulas não excedeu os dois terços de sua
extensão, não ocorrendo de, em uma mesma aula, a lousa ser apagada e novamente preenchida.
O uso menos freqüente da lousa foi observado para correção de tarefas ou para passar
exercícios a serem realizados em classe (apenas em duas das aulas). O uso mais freqüente foi
para registro de textos/definições e para marcar a “Agenda” (em sete aulas).
No caso do registro dos textos, sempre foram anteriores às explicações da professora. No
geral, antes da explicação do conteúdo da lousa, a professora fez a leitura de trechos do livro
didático que se referiam ao mesmo tema (usualmente dos mesmos textos copiados na lousa).
63
Os desenhos ou esquemas marcaram o uso da lousa em duas aulas. Foram explicados
enquanto os alunos os conferiam no livro didático e eram essencialmente idênticos aos que ali
constam.
Chama a atenção a pouca utilização da lousa para registro de correções de tarefas ou de
atividades de avaliação. Estas correções foram feitas essencialmente na forma oral, sem que a
professora manifestasse preocupação em falar vagarosamente e em encaminhar para a correção
(preocupação também aparentemente ausente nos alunos que não pedem para que ela, por
exemplo, repita qualquer informação). Essa atividade de correção parece ficar a cargo dos alunos
que, na sua maioria, sequer lêem suas respostas para que a professora possa verificar se
cometeram erros e indicar a necessidade de correção. Portanto, a própria identificação dos erros
compete aos alunos.
4.2) Livro didático11:
O livro didático é um recurso utilizado regularmente nas aulas. Apenas quando a
professora trouxe outro tipo de atividade (como trabalhos em grupo ou atividades de avaliação),
em cinco das aulas, o livro deixou de ser utilizado. Foram identificados quatro tipos de uso do
livro didático pela professora: como fonte para destacar textos que são transcritos na lousa, para
indicar exercícios a serem desenvolvidos durante as aulas, para leitura e para exploração de
figuras, desenhos ou esquemas.
Os trechos de texto transcritos para a lousa são curtos e têm um caráter de definição. Os
termos utilizados são basicamente os mesmos que aparecem no livro, bem como a grande maioria
dos exemplos e dos desenhos explicativos.
Em alguns capítulos do livro encontram-se, além dos dois tipos de exercícios (roxo e
laranja), descritos na abordagem das tarefas para casa (p. 56), desafios chamados “A cientista
detetive”. São aventuras de uma cientista, Dra. Silvana, que é chamada para investigar situações
misteriosas que requerem o uso dos conceitos abordados no capítulo. Esse tipo de exercício foi
11 É interessante destacar que quando se realizou a comparação entre duas edições deste livro – a recebida pelos alunos da rede pública de ensino e a que chegou às livrarias no mesmo ano, de 2001 –, pôde-se verificar uma diferença na forma de abordagem dos temas ao longo dos capítulos, explicitando-se uma maior preocupação, no livro que chegou à escola pública, com a apresentação de definições, enquanto que o outro, que serviu à rede particular de ensino, trouxe mais oportunidades de abordagem de conhecimentos prévios dos alunos e de reflexão sobre as questões abordadas. Desta constatação, resta uma incômoda sensação de que o próprio livro didático que chega à escola pública já porta uma redução e/ou simplificação no tratamento do conhecimento científico.
64
solicitado em três das aulas observadas. Nesses momentos, a professora pediu que os alunos
lessem o exercício, esperou um tempo para que pensassem, fez uma leitura com os alunos e,
então, ouviu alguns palpites. Não manifestou se acertaram ou se erraram, fez novos
questionamentos e, com alterações na expressão facial, foi indicando se as idéias eram coerentes
ou não. Por fim, indicou qual ou quais alunos mais se aproximaram da resposta correta que,
então, foi apresentada oralmente.
Também são encontrados textos complementares nos capítulos do livro didático.
Apresentados em quadros coloridos, destacados do corpo do texto, recebem o nome de Saiba
Mais. Esse tipo de informação foi trabalhada em duas aulas. São textos com caráter de
curiosidades sobre o tema do capítulo.
Outro tipo de seção de leitura extra existente nos capítulos foi trabalhado em três das
aulas. Nesse caso, a leitura é acompanhada de questões de interpretação do texto (Trabalhando a
leitura).
Em 17 dos capítulos do livro didático (de um total de 30 capítulos) existe uma seção
chamada Experimentação: faça você mesmo. São experimentos que não requerem
equipamentos sofisticados e que podem ser realizados em casa ou na escola. Em apenas uma das
aulas observadas, a professora solicitou um desses experimentos para que fosse feito em casa, ao
longo de algumas semanas, e resultasse em um relatório que representaria uma das notas do
período letivo.
Ao longo do período de observação dessas aulas, foi possível acompanhar a abordagem de
sete capítulos de uma mesma unidade do livro didático (Unidade 2 – Água e Vida).
4.3) Textos extras:
O único texto extra (cuja fonte não foi o livro didático adotado) utilizado nas aulas
observadas foi o livro paradidático lido pela professora para os alunos. Estes, reunidos em grupos
de quatro, deveriam acompanhar a leitura em reproduções xerocopiadas (uma para cada grupo).
A história apresentava algumas gotinhas de água que iam descrevendo suas aventuras
enquanto circulavam pelo ambiente, no ciclo da água. O assunto girava em torno das mudanças
de estado físico.
65
A professora mostrou-se bastante decepcionada com esta atividade em algumas
declarações espontâneas, afirmando que, em outra turma, há cerca de cinco ou seis anos, foi
muito bom trabalhar com este livro, mas que, para esta, ele pareceu meio “bobinho”. Ela não
expôs suas impressões sobre o motivo desta diferença de resultados. Embora não se possa
afirmar, é possível que algumas dificuldades como a existência de um único exemplar do livro
para ser visualizado por quatro alunos ou o fato de a qualidade das cópias tornar impossível a
apreciação das fotos e desenhos do livro, embora a professora tenha insistido para que os alunos
as observassem, tenham prejudicado o desenvolvimento da atividade.
Ao terminar a leitura, a professora perguntou para os alunos:
Gostaram da história?
Um aluno respondeu negativamente, com movimentos da cabeça. A esta reação do aluno,
respondeu, sem parecer zangada:
Não, né?
Após este diálogo, voltou-se para a pesquisadora e comentou:
Ai, nunca mais. Primeira e última vez.
Justificou este comentário dizendo que na outra turma de 5ª série desta escola a atividade
“funcionou”, que só o grupo dos alunos com deficiência auditiva fazia barulho durante a leitura
do texto porque uma das alunas deste grupo ia tentando explicar para os outros e fazia sons altos.
A professora avaliou que o resultado desta atividade não foi adequado porque os alunos não se
comportaram como deveriam. As condições para a realização da atividade (o número e a
qualidade das cópias disponíveis, por exemplo) não foram consideradas pela professora ao fazer
esta avaliação. Ainda assim, destaca-se que o fato de, inicialmente, a professora ter considerado a
atividade meio “bobinha” para esta turma sugere uma reflexão sobre a validade de se repetir uma
atividade que deu certo em outro momento e com outro grupo sem considerar as especificidades
de cada turma.
66
Convém ressaltar, que este único trabalho com um texto que não constava do livro
didático se limitou a repetir as mesmas informações que já haviam sido discutidas anteriormente.
Não se pode considerar que tenha sido uma leitura que indicasse um intuito de abrir a discussão
para outras questões que permitissem o acesso a novas informações de cunho científico ou
cotidiano.
5. Avaliação:
No período em que aconteceram as observações, foram aplicadas três provas de ciências
(nos dias 16/04/2004, 11/05/2004 e 22/06/2004).
Quanto aos conteúdos abordados nesses instrumentos, não parece haver uma seleção entre
os que foram estudados no período anterior às avaliações. A primeira prova baseou-se nos
capítulos 1, 2, 3 e 4 da Unidade 2 (Água e Vida). A segunda, dos capítulos 5, 7 e 8 da mesma
Unidade. A terceira, dos capítulos 1, 2 e 3 da Unidade 3 (Ar e Vida). De fato, tudo o que é
abordado tende a aparecer nas questões de prova. A única exceção está na segunda, que ignora
um dos capítulos da Unidade 2. Este capítulo se refere à composição química da água e traz
termos até então não utilizados pela professora ou pelo livro, como átomos e moléculas.
Conforme já comentado, embora estes termos pudessem ter sido utilizados quando do
estudo das mudanças de estado físico, só são introduzidos neste capítulo, sem que se estabeleça
qualquer relação entre estes dois assuntos (mudanças de estado e moléculas). Aliás, este é o
menor capítulo do livro didático, com apenas três páginas. Nele, a explicação sobre a composição
da água causa estranhamento: diz-se que a molécula da água é representada pela fórmula
química H2O, que são dois tipos de átomos que compõem esta molécula, que a molécula de
água é a menor partícula que ainda conserva as propriedades desta substância, que os átomos
de hidrogênio (H) e de oxigênio (O) que compõem uma molécula de água podem ser separados e
que, ocorrendo isto, apresentarão propriedades diferentes da substância água. Todas as palavras
destacadas são termos desconhecidos ou, ao menos, de difícil compreensão para os alunos, uma
vez que ainda não foram explicados. Como apontado para a questão da força (p. 48-49), aqui
também não é feito o levantamento do que os alunos entendem por esses termos; a aproximação
dos conceitos científicos se dá de uma forma que privilegia a memorização de relações
incompreensíveis para os alunos. A professora fez a leitura deste capítulo em uma aula, sem
67
acrescentar maiores informações além das trazidas pelo livro, a não ser quando disse que, assim
como a molécula de água é a menor parte desta substância que mantém suas características, o
pozinho do giz é a menor parte do giz que ainda é giz.
É compreensível que a professora evite tratar destas questões nas suas avaliações, uma
vez que não são de fato enfrentadas pelo livro (e nem por ela, em suas explicações).
Fica a questão: por que optar por não tratar de um assunto e, no entanto, simular que
houve este tratamento? O simples uso de determinados termos associados à atividade científica
(átomos, moléculas, fórmulas químicas, propriedades químicas, etc.) parece conferir um certo
status a esta disciplina, ainda que não haja compreensão de seus significados. O tratamento
dispensado a estes temas gera uma idéia de que “um dia”, se o seu desenvolvimento se der de
forma adequada, os alunos poderão estar “preparados” para lidar com este “conhecimento
superior”. Parece que se está lidando com um processo natural de amadurecimento, que começa
com o uso descompromissado de palavras destituídas de sentido.
Nas três avaliações prevalecem questões do tipo pergunta-resposta, que mobilizam
informações memorizadas pelos alunos. Duas avaliações apresentam sete questões e uma, nove.
Pode-se classificar as questões das avaliações em quatro tipos: pergunta-resposta,
associação de colunas, preenchimento de lacunas e identificação de afirmações verdadeiras ou
falsas. A tabela abaixo indica quantas vezes cada tipo de questão foi solicitado em cada prova:
Tabela 2: Ocorrência de diferentes tipos de questões nas três provas realizadas
Provas Pergunta-resposta Associação Lacunas Verdadeiro ou falso
5 1 1
5 1 2* 1
Prova 1
Prova 2
Prova 3 4 2 1
* Uma das questões trazia as palavras que deveriam ser dispostas corretamente nas lacunas.
Na primeira prova de ciências, do dia 16/04, são solicitadas informações sobre os
seguintes assuntos: mudanças de estado físico, quantidade de água na Terra, pressão exercida
pela água e flotabilidade dos materiais na água. Em duas questões, os alunos deveriam dizer em
que andar de um prédio seria mais apropriado colocar uma caixa d’água. Portanto, deveriam
saber que a pressão da água aumenta de acordo com a altura em que está colocada a caixa d’água.
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Entretanto, como não foi trabalhado o porquê disto, ou seja, nada foi dito em termos da energia
potencial armazenada na água, os alunos só contavam com as informações memorizadas a partir
da leitura do livro didático e das explicações da professora, que não se referiam a isto.
É o mesmo caso da questão que se refere à flotabilidade de materiais na água. O livro traz
uma tabela com o valor da densidade de diferentes materiais e aos alunos cabia memorizar que
quando o material é mais denso que a água, afunda; quando é menos denso, bóia. Para fazer a
aproximação do conceito de densidade seria necessário tratar da questão da quantidade de matéria
de um corpo (a sua massa) e da sua distribuição no espaço (o seu volume). Assim, o conceito de
densidade, necessário para o entendimento desta questão, não foi de fato explorado, restando aos
alunos a memorização das informações da tabela citada.
Outra questão pedia que os alunos associassem duas colunas, uma com o nome de
algumas mudanças de estado e outra com a descrição de alguns fenômenos (por exemplo, ferver
água, derretimento de uma vela, roupa secando no varal). Em outra, deveriam assinalar
Verdadeiro ou Falso para algumas afirmações relativas à quantidade relativa da água nos
diferentes estados físicos no ambiente. Outra questão pedia o nome de uma força exercida pela
água (empuxo).
Na segunda prova, do dia 11/05/2004, aparecem os seguintes assuntos: funções da água
no interior dos seres vivos, poluição, propriedades da água e equilíbrio ambiental (fotossíntese,
respiração, cadeia alimentar). Entre as nove questões, encontram-se duas em que os alunos
deveriam preencher lacunas no texto, sendo que uma delas traz as palavras que completam estas
lacunas para que eles as coloquem nos devidos espaços. A questão que não traz as palavras que
ocupam as lacunas se refere a definições acerca da propriedade da água de dissolver substâncias:
A água e a o açúcar misturados formam uma ___________________.
As substâncias como o sal e o açúcar, quando associadas a um ____________ dissolvem-se e
formam uma ________________.
A outra questão de preenchimento de lacunas (com as palavras a serem posicionadas)
aborda o equilíbrio do ambiente:
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Gás Carbônico – Fotossíntese – Tamanho – Equilíbrio – Luz – População – Oxigênio
Para que um ambiente aquático se mantenha numa situação de ______________, algumas
condições devem ser preenchidas. A _________ do Sol deve penetrar na intensidade adequada,
favorecendo o processo de _____________. Além disso, fatores diretamente ligados à
fotossíntese, como a quantidade de ____________ dissolvido na água e de __________
produzido devem ser suficientes para manter as comunidades ali estabelecidas. O ___________
de cada _____________ também deverá se manter constante, de modo que haja recursos
disponíveis para todos indivíduos que vivem no local.
As questões de preenchimento de lacunas, além de reforçarem a idéia de que a
memorização é a forma legitima de se aproximar do conhecimento, parecem se valer da
capacidade de reconhecimento visual de palavras presentes nos textos do livro didático. Ao trazer
as palavras ausentes, como na questão imediatamente acima, a relação exigida do aluno com o
conhecimento parece ser ainda mais empobrecida.
Outra questão pede que os alunos identifiquem cada item como solução ou suspensão
(como a primeira das questões de preenchimento de lacunas).
Uma questão traz duas colunas que devem ser devidamente associadas. Tratam-se de tipos
de poluentes e conseqüências para o meio ambiente:
(a) pesticidas agrícolas ( ) montanhas de espuma nos rios
(b) fuligem e fumaça de chaminés ( ) contaminação do lençol freático
(c) detergentes domésticos ( ) chuva ácida
Encontra-se ainda nesta prova uma questão do tipo pergunta-resposta a respeito da fonte
de oxigênio que serve aos organismos aquáticos, uma que pede que se monte uma cadeia
alimentar com quatro componentes e uma que apresenta um desenho que indica a circulação de
seiva em uma planta e pede que os alunos nomeiem os processos de entrada e saída de água e os
tipos de seiva que circulam pela planta.
Na terceira prova de ciências, do dia 22/06/2004, foram abordados os seguintes assuntos:
pressão atmosférica, formação de ventos e camadas da atmosfera. Três das sete questões se
70
referem à pressão atmosférica, três ao processo de formação de ventos e uma às camadas da
atmosfera.
Duas questões relativas à pressão atmosférica solicitam que os alunos reconheçam a
influência da altitude sobre a pressão atmosférica. Uma, pede que indiquem se as afirmações são
Verdadeiras ou Falsas:
a) à medida que a altitude aumenta a pressão atmosférica diminui: V ( ) ou F ( )
b) à medida que a altitude aumenta a pressão atmosférica aumenta: V ( ) ou F ( )
A outra, traz um desenho indicando três pessoas posicionadas em altitudes diferentes (nível do
mar, 500 metros e mil metros) pede que se identifique onde a pressão é maior ou menor ou como
ela varia de acordo com o deslocamento das pessoas. Ou seja, as duas questões tratam das
mesmas definições.
A variação da pressão atmosférica em função da altitude foi apresentada como tendo a
mesma causa da pressão exercida pela água sobre os corpos. Como o ar é mais leve que a água,
também exerce menor pressão. Em um pequeno desenho do livro aparece a comparação da
quantidade de ar que pesa sobre a cabeça de uma pessoa que está em Santos e sobre outra que
está em Campos do Jordão. Mas, assim como quando se tratou da pressão exercida pela água, o
motivo da existência de uma força que pressiona os corpos em todas as direções não é
apresentado. Ou seja, não se tratou da questão da força da gravidade que atua sobre os gases da
atmosfera ou sobre as características da matéria quando se encontra no estado gasoso (quando as
moléculas estão distantes umas das outras e com energia para se movimentar bastante). Mais uma
vez, o livro e a professora evitaram enfrentar questões como a movimentação das moléculas, a
energia, a ação da gravidade e o próprio conceito de força. Assim, só restou aos alunos
memorizar a forma correta de responder a questionamentos deste tipo.
A outra questão, refere-se a um exemplo, presente no livro, da ação da pressão
atmosférica sobre a superfície de um líquido que sobe por um canudinho. Os alunos deveriam
explicar como se dá esta subida.
A questão referente às camadas da atmosfera trazia duas colunas que deveriam ser
associadas. Em uma encontram-se os nomes das camadas e na outra, suas características.
71
As três questões referentes à formação dos ventos assim se distribuem: uma pede os
nomes de ventos de diferentes intensidades; outra, a seqüência de formação dos ventos e a última,
a identificação em um desenho da direção em que sopra o vento no litoral, durante o dia e durante
a noite. Também na abordagem deste tema não se tratou de importantes questões que
possibilitariam a compreensão das causas dos fenômenos observados (como, por exemplo, da
diferente densidade do ar quente e do ar frio que provoca as correntes de convecção do ar).
Fica evidente que o recurso cognitivo mais solicitado nestas provas foi a capacidade de
memorização. O destaque dado a esta capacidade sugere um método para conhecer (o uso de
técnicas para decorar) e uma finalidade para o estudo, o acúmulo de informações desarticuladas e
não necessariamente compreensíveis.
Enfim, o conhecimento escolar produzido nas aulas desta professora se caracteriza pela
ênfase na memorização como recurso para ensinar e aprender e pelo aspecto de convencimento
conferido ao ensino, ou seja, o conhecimento relevante é de domínio do professor e do livro
didático e aos alunos basta se deixar convencer por estas instâncias de poder. Neste processo, o
conhecimento cotidiano dos alunos só é invocado no sentido de confirmar a autoridade do
professor e do livro texto, não há espaço para opiniões contrárias. Daí pode-se entender o caráter
a-histórico da abordagem de conhecimentos científicos: se não se pretende garantir espaço para a
discussão dos conceitos apresentados em aula é coerente que também não se explicite as
contradições e rupturas inerentes à produção do conhecimento científico, que ganha, assim,
contornos irreais.
Ao não se estabelecer os nexos entre os temas abordados em aula, difunde-se uma idéia de
conhecimento fragmentado, que não pode compor um corpo de conceitos integrados. A
solicitação da repetição das informações, seja em exercícios de fixação, seja no hábito de esperar
que os alunos completem os finais de frases da professora, é enfatizada neste processo
pedagógico como forma de facilitar a memorização.
A comunicação entre a professora e os alunos no que se refere ao conhecimento se
caracteriza por frases curtas que geram breves diálogos; já quando esta interação se refere ao
controle da classe, as frases tornam-se mais longas. Em ambos os casos, a interação mantém-se
centrada na professora. Em suas aulas, ensina-se que mais importante do que se aproximar do
conhecimento é aprender a comportar-se adequadamente, visto que se despende mais tempo com
questões relativas ao controle do que com a criação e a manutenção das condições favoráveis à
72
aprendizagem dos conteúdos de ciências. Passa-se a idéia de que aprender significa manter-se
ocupado, aproveitar o tempo de permanência na escola. A manutenção da disciplina não visa a
preparação dos alunos para o trabalho intelectual. Com o cumprimento das regras busca-se
garantir a aprendizagem, ou, ao menos, permitir que a professora possa cumprir seu papel de
transmissão, o que levaria inevitavelmente à aprendizagem, a despeito do caminho escolhido para
se abordar o conhecimento. Produz-se em suas aulas um conhecimento fragmentado, a-histórico,
distante do conhecimento cotidiano e da natureza do processo de produção característico da
Ciência e acessível pelo desenvolvimento da capacidade de memorização.
Resta questionar se os limites impostos pela organização escolar ou por outros fatores
ligados à formação dos professores ou à sua biografia de fato impedem que se favoreça um outro
tipo de contato dos alunos com o conhecimento. Será que as questões relativas ao
esquadrinhamento de tempos e espaços e às relações de poder na escola não permitem que se
confira um caráter histórico ao conhecimento, como forma de garantir a compreensão de que o
conhecimento é construção coletiva e que representa a busca de soluções para os problemas
enfrentados pela humanidade ao longo do tempo? Não haverá, dentro dos limites impostos pela
forma escolar, espaço para o conhecimento cotidiano dos alunos e para as descobertas científicas
mais recentes? Não é possível se deter um pouco mais no desenvolvimento das habilidades de
leitura e escrita, dedicando-se maior atenção às discussões em torno das respostas elaboradas
pelos alunos em suas tarefas e provas?
As características da ação educativa desenvolvida pela Professora 1 confirmam o que as
pesquisas relacionadas ao ensino de ciências já apontam. O que se acresce ao já apontado é que a
organização do trabalho escolar circunscreve o processo de ensinar e aprender dentro de limites
estreitos, os quais também restringem, norteiam e orientam – para alunos e professores –, os
modos de conhecer e compreender o processo humano de conhecimento. Aprende-se e pratica-se
uma forma disciplinada de agir, mais no sentido de acumular informações e usar conhecimentos
em provas do que para refletir e compreender o mundo. Mesmo assim, circulam conhecimentos
importantes, que poderiam gerar aprendizagens mais complexas. Por isso mesmo, as questões
acima tornam-se ainda mais relevantes e exigem mais investigações. Trata-se de buscar
estratégias diferentes, outros percursos de professores submetidos às mesmas condições de
desenvolvimento de suas ações para que se explicitem algumas possíveis brechas existentes na
73
escola, para a promoção de um ensino de ciências que permita uma melhora qualitativa no
movimento de aproximação dos alunos ao conhecimento científico.
Professora 2:
Foram observadas dezoito aulas, no período de 10/08/04 a 17/09/04, em uma turma de 7ª
série do Ensino Fundamental, composta por 33 alunos.
A sala de aula ocupada por esta turma tem cerca de 7,0 m X 12,0 m. Resultou da união de
duas salas e já foi utilizada como sala de vídeo da escola. Está localizada no bloco principal da
construção, ou seja, na parte mais antiga do prédio, sobre o andar em que se encontram a
diretoria, a secretaria, a biblioteca e a sala dos professores.
Em uma das paredes mais extensas localizam-se quatro janelas do tipo basculante, com
dois vidros fixos embaixo e um em cima. Todas as janelas possuem cortinas cinzas,
provavelmente devido ao uso a que anteriormente se destinava a sala (projeção de filmes). Os
vidros das janelas são opacos e estão voltados para a rua em que se localiza a entrada principal da
escola.
Na parede oposta às janelas está a porta. A lousa localiza-se na parede da frente e, no
fundo da sala, embora não exista um mural, estiveram expostos por alguns dias, em uma espécie
de varal, 14 trabalhos dos alunos, realizados nas aulas de português.
A sala tem piso cerâmico com aspecto de novo e as paredes parecem ter sido pintadas
recentemente. No teto encontram-se alinhados aos pares seis ventiladores; lâmpadas fluorescentes
garantem a iluminação.
Os alunos permanecem em silêncio a maior parte do tempo das aulas, envolvidos nos
trabalhos solicitados pela professora, e, quando conversam, mantém um tom de voz baixo.
Alguns alunos, por vezes, se comunicam através de mensagens escritas em folhas de papel que
lançam uns para os outros, quando a professora não está olhando. Embora seja pouco freqüente,
se os alunos iniciam uma conversa em voz alta a professora reage prontamente, geralmente
gritando.
As posições dos alunos na sala de aula, assim como na turma de 5ª série observada, foram
definidas através do mapeamento de sala. Em duas das aulas observadas, a professora repreendeu
74
um ou dois alunos por estarem fora de suas posições, orientando-os a voltarem para seus lugares,
o que indica que ela legitima através de sua vigilância essa estratégia de controle dos alunos.
Durante as aulas, enquanto os alunos realizam os trabalhos solicitados, a professora
permanece sentada em sua cadeira, envolvida em atividades que implicam em registros
constantes em seu diário de classe. Em nenhuma aula a professora andou pela classe, exceto na
faixa imediatamente à frente da lousa e entre sua mesa e a porta; caso algum aluno tivesse alguma
dúvida ou mesmo se a professora desejasse falar com algum aluno, ele deveria ir até a sua mesa.
Com sua maneira de agir, marcada pela seriedade e firmeza, e com as freqüentes
referências que faz ao encadeamento e aos objetivos de cada atividade, a professora imprime um
tom de seriedade e de urgência às suas aulas – o tempo é sempre curto e todos têm muito o que
fazer. É comum que durante as aulas a professora saia da sala por alguns minutos, retornando
com alguma informação sobre atividades que está planejando para a classe – por exemplo,
detalhes sobre uma saída, orientações sobre algum trabalho, etc.
Ao solicitar alguma atividade, a professora procura ressaltar repetidamente o que deve ser
feito, em quanto tempo, qual será seu critério de avaliação dos resultados da atividade e quanto
valerá cada atividade no momento de compor a nota bimestral dos alunos.
Não é possível descrever um padrão de desenvolvimento que ilustre o que acontece nos
minutos iniciais, centrais ou finais de cada aula, tal como se fez para a Professora 1. Elas
apresentam formatos bastante diferenciados e a professora utiliza estratégias diversas para
abordar os conteúdos. Entretanto, o trabalho docente observado foi dividido nas mesmas
categorias utilizadas para a Professora 1, para fins de organização da descrição. A seguir,
procura-se detalhar cada uma dessas etapas do trabalho da Professora 2:
1. Organização da classe e controle dos alunos:
A interação oral que se estabelece nas aulas, sob a iniciativa da professora, em relação a
questões referentes a procedimento e controle, caracteriza-se por poucas e breves intervenções
relacionadas à busca por: manutenção do silêncio na aula, estabelecimento da ordem e da
urgência na execução das atividades propostas, antecipação de indicações sobre as próximas
atividades, orientação sobre o que e como estudar e manifestação das expectativas da professora e
dos seus critérios de avaliação dos trabalhos dos alunos.
75
A Tabela 3 pode demonstrar como essas intervenções se distribuíram pelas aulas
observadas nesta investigação:
Tabela 3: Freqüência e teor das intervenções da professora nas aulas
Teor das intervenções da professora Número de aulas em que se repetem
Ameaça/urgência 8
Antecipações 7
Manifestação de expectativas 6
5 Orientações de estudo
Manutenção do silêncio 3
As intervenções marcadas por um tom de ameaça estão sempre vinculadas à preocupação
da professora com a qualidade da participação dos alunos nas atividades propostas. Apenas duas
dessas intervenções se referiram a outra instância de poder na escola, a diretora. Em uma dessas,
a professora recolheu um bilhete que estava sendo passado de uma aluna para a outra. Nesse
momento reagiu com indignação e alertou:
Vou começar a ler alto [os bilhetes]. Na próxima vez, vou levar para a direção e vocês podem
levar até suspensão.
Uma ameaça freqüente é a que aponta o pouco tempo que os alunos têm para fazer o que
foi proposto, vinculando essa urgência à preocupação com a nota ou com o ganho do ponto
positivo:
Se não der tempo de fazer, o aluno vai dançar.
Se não der, o problema não vai ser meu. Vou avaliar o que der tempo de fazer.
Em sete aulas a professora antecipou as orientações sobre como proceder nas atividades
que fariam nas próximas aulas. Nessas ocasiões, ela descreveu o que seria feito (saída, montagem
76
do esqueleto, vídeos, seminários), indicando como os alunos deveriam proceder – como deveriam
se organizar na classe e que material deveriam portar.
Em seis aulas, manifestou quais eram as suas expectativas acerca do resultado final dos
trabalhos dos alunos:
Quero seminários lindos, maravilhosos.
Não quero um seminário. Quero o seminário.
Nesses momentos, a professora também expôs quais seriam seus critérios para avaliar a
produção dos alunos:
Conteúdo, postura, fala alta, criatividade, tempo de apresentação [em um seminário cuja
apresentação foi agendada para novembro/2004].
A limpeza, a maneira como recortou e colou e a montagem [sobre a montagem do esqueleto].
A explicitação freqüente de seus critérios de avaliação e das etapas de realização das
atividades esclarece auxilia na compreensão de como deve ser a participação dos alunos nas
aulas. Orienta a aproximação destes em relação ao conhecimento e aponta para formas de registro
das etapas já realizadas e das que ainda virão, conferindo uma noção de entrosamento entre os
temas das aulas.
Suas expectativas, por vezes, também se referiram ao comportamento dos alunos em suas
aulas:
Quem falta, o mínimo que deve fazer é se informar sobre o que o professor deu na aula e
completar o caderno [comentário feito quando estava avaliando os cadernos].
É um absurdo tanta gente [oito alunos] esquecer o material. Eu avisei.
77
As orientações sobre como, o que e quanto devem estudar os alunos são pontuais e
freqüentemente se relacionam com a preocupação da professora com as notas dos alunos:
Estudem. Estudem as provas [para os alunos que fariam a prova de recuperação].
Tem bastante nota baixa. É bom recuperar na prova de amanhã.
A professora manteve-se sempre muito atenta ao volume da voz dos alunos. Quando
considerou que este atingiu um nível alto, reagiu gritando e dirigindo-se diretamente aos alunos
envolvidos na conversa. Além dessas reações mais intempestivas, em três aulas, fez breves
comentários para garantir a manutenção do silêncio, sendo sempre prontamente atendida:
Ai, gente, eu não queria ouvir a voz de certas pessoas [olhando para um aluno que conversava].
Sem falar, cada um fazendo o seu, senão não vale a pena, pessoal.
Silêncio absoluto. Sem comentários, agora.
Enfim, a professora não compromete mais do que alguns minutos de suas aulas em
considerações relativas ao controle da classe. Quando se refere aos procederes em seus trabalhos,
suas orientações são breves e carregam sempre uma preocupação em antecipar os próximos
passos da aprendizagem e os critérios pelos quais os alunos serão avaliados.
2. Abordagem dos conteúdos:
2.1) Por iniciativa dos alunos:
Em uma aula, um aluno trouxe o resultado de um exame de sangue a que se submetera e
que revelou uma disfunção da tireóide e hipertensão arterial. Após ler rapidamente o resultado de
tal exame, a professora pediu que o aluno fizesse sua leitura para a turma, que foi convidada a se
colocar no lugar do médico desse aluno:
78
O Renato é o paciente, vocês são os médicos.
Em seguida, indicou que o exame apontava para a necessidade de uma mudança de estilo
de vida e ressaltou que um jovem pode ser também afetado por doenças que se costuma associar
a pessoas mais velhas. Então, perguntou para a classe:
Quais poderiam ser as mudanças [de estilo de vida]?
Alguns alunos indicam que se deve cuidar da alimentação, fazer esportes, etc. A
professora retoma essas indicações e reforça a necessidade de se ter uma alimentação equilibrada
e de não se levar uma vida sedentária:
É bom McDonald’s, mas tem que ter limite.
Ao longo dessa discussão iniciada pela intervenção de um aluno, a professora apontou
vários assuntos que, segundo ela, já haviam sido discutidos, como, a questão da pressão arterial,
por exemplo, indicando que o fato de já terem estudado sobre o assunto permitia uma melhor
compreensão do significado do diagnóstico recebido pelo aluno.
Esse último comentário da professora valoriza o conhecimento adquirido na escola como
instrumento para compreensão de situações cotidianas. A professora aproveita uma intervenção
de um aluno para listar temas já estudados, conferir de forma geral o que foi apreendido pelos
alunos sobre esses temas, através de questionamentos que lançou para a classe (o que é
hipertensão, por que se deve cuidar da alimentação, etc.) e para legitimar suas escolhas em
relação ao conteúdo estudado e o próprio conhecimento transmitido pela escola.
Ao final dessa discussão, um aluno perguntou:
O que é tireóide?
Em sua resposta, a professora indicou que isso seria estudado mais adiante:
79
Nós vamos ver logo depois do sistema nervoso. É uma glândula, depois vocês vão ver com
cuidado.
Mesmo destacando que essa resposta não poderia ser dada de imediato, que existe uma
seqüência para a aprendizagem, a professora trouxe um termo novo para os alunos – glândula.
Essa é uma atitude coerente com sua opção, apontada mais à frente, de permitir o contato dos
alunos com as informações antes de suas explicações, como forma de garantir alguma
aprendizagem preliminar.
2.2) Por iniciativa da professora:
As explicações da professora, de fato, fecham todo um processo que conta com diversas
estratégias para introduzir os alunos no assunto explicado. Busca dirigida de informações no livro
didático, vídeos, atividades individuais (montagem do esqueleto), resolução de questões, são
exemplos dessas estratégias escolhidas pela professora para esse fim. De um total de 18 aulas
acompanhadas, somente em uma se pôde observar uma de suas explicações.
Durante o período de observação foram abordados, através de diversas estratégias,
conteúdos referentes à estrutura e ao funcionamento dos sistemas excretor e locomotor humanos.
Na penúltima aula observada, a professora iniciou o 4º bimestre indicando um trabalho que
inaugurou a abordagem sobre o sistema nervoso.
Uma análise mais detalhada da forma escolhida para apresentar o conteúdo pode trazer
indicações dos supostos da professora em relação ao processo de ensino-aprendizagem de
ciências. No caso do sistema locomotor humano, foram utilizadas as estratégias abaixo, assim
distribuídas em oito das aulas observadas, como se pode observar na Tabela 4:
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Tabela 4: Distribuição das atividades de abordagem do conteúdo ao longo das aulas
Data Número de aulas Atividades
Resumo no caderno
Resumo + questões
31/08/04 1
01/09/04 2
03/09/04 1 Questões
08/09/04 2 Montagem do esqueleto humano
10/09/04 1 Vídeos + relatório em grupo
17/09/04 1 Explicação da professora
O tratamento do assunto começou com o contato dos alunos com as informações trazidas
pelo livro didático, tendo a orientação da professora para buscar as que ela considerou mais
relevantes e registrá-las em seus cadernos. Nessas ocasiões, os alunos não fizeram perguntas para
a professora e, entre eles, em voz baixa, trocaram indicações de onde cada informação poderia ser
encontrada.
As questões respondidas nessas aulas foram selecionadas no livro didático e eram do tipo
pergunta-resposta, reforçando basicamente a habilidade de buscar no texto as informações
consideradas pela professora como importantes para a compreensão do assunto.
O trabalho individual de montagem do esqueleto humano também utilizou o livro didático
como fonte de informações e cumpriu, da mesma forma que o resumo, a função de colocar os
alunos em contato com termos que seriam mencionados nas explicações posteriores da
professora, como forma de garantir alguma aprendizagem a partir desse contato com as figuras e
os textos indicados.
Os vídeos representaram mais uma fonte, além do livro, para o levantamento de
informações adicionais relacionadas ao assunto abordado, permitindo o acesso a uma linguagem
diferente e fazendo uso dos atrativos da imagem e do movimento. Os relatórios dos vídeos
representaram mais um exercício de identificação e registro de informações relevantes para a
aprendizagem.
A última etapa na transmissão do conteúdo pela professora se desenvolveu no laboratório.
Ali, dispostos nos grupos, os alunos puderam ouvir a explicação da professora. Durante esta aula,
ela utilizou um modelo de esqueleto humano em tamanho natural.
81
A professora iniciou com a solicitação de que os alunos abrissem seus cadernos no
resumo sobre o sistema locomotor indicando que faria perguntas que eles deveriam responder. O
diálogo da professora com os alunos durante essa aula se caracterizou por perguntas e respostas
rápidas, tais como:
Professora: Quais as principais funções dos ossos?
Alunos (consultando o resumo): Sustentar.
P: E o que vai sustentar?
A: O corpo.
P: Alguém falou também em proteção. O que protege?
A: Os órgãos.
P: O que mais?
A: Produção de células.
P: Mais alguma?
A: Ajuda no processo de locomoção.
Durante o diálogo, apenas alguns alunos responderam às perguntas da professora Os
demais, permaneceram em silêncio. A professora em dado momento reclamou por só ouvir um
ou dois alunos respondendo. Após ouvir cada resposta, a professora tecia comentários. Por
exemplo, quando os alunos se referiram ao papel das articulações na locomoção, apontou que,
sem elas, andaríamos que nem robô.
Foram freqüentes as suas referências a outros sistemas do corpo humano já estudados,
pedindo algumas definições que, na maior parte das vezes, foram apresentadas, embora por
poucos alunos.
O modelo de esqueleto foi utilizado para a identificação de alguns ossos que foram
nomeados e localizados também nas figuras do livro didático e nos esqueletos montados pelos
alunos. Sobre os nomes dos ossos, comentou:
Tem milhares de ossos. É claro que ninguém aqui vai ser biólogo ou médico agora, por isso, não
precisa decorar.
82
Solicitou, então, que os alunos observassem os erros que cometeram ao montar seus
esqueletos. Perguntou se a cabeça, pelo menos, todo mundo havia colocado no lugar certo:
Todo mundo está vendo seus erros absurdos? Está certo que alguns esqueletos estão ótimos, mas
têm outros...
Os comentários da professora e a detecção dos erros de cada um desencadearam muitos
risos dos alunos e da professora.
Ao longo de sua explicação, a professora seguiu a ordem de apresentação do conteúdo
presente no livro didático e nos resumos dos alunos, porém, trouxe informações adicionais. Falou
sobre o risco de acidentes que lesam a coluna vertebral, sobre o peso suportado pelos pés e pelos
joelhos durante a locomoção e sobre contusões de atletas famosos, como o jogador de futebol
Ronaldinho e a ginasta Daiane dos Santos.
Assim, embora o livro didático seja o eixo norteador do que é explicado e da seqüência de
abordagem, a professora mostra certa independência em relação a este, tecendo comentários e
buscando exemplos não constantes do livro. Da mesma forma, ela não lê definições extraídas do
livro didático para legitimar suas explicações, embora o registro dessas definições tenha sido
garantido nos resumos e nas questões respondidas em classe.
A professora manifestou preocupação em destacar com freqüência os tópicos já estudados
do conteúdo e a sua relação com o assunto explicado naquela aula. Também fez referências aos
temas que ainda seriam estudados, como o sistema nervoso. Indicou estar planejando uma visita a
uma Faculdade de Medicina, mas afirmou que não sabia se conseguiria agendá-la porque,
segundo ela, é difícil fazer saída nesta escola.
Apontou também que havia combinado uma complementação desse estudo com a
professora de educação física, que discutiria a questão da postura corporal.
Finalizou sua explicação perguntando se alguém tinha alguma dúvida e, como ninguém se
manifestou positivamente, ressaltou:
Vocês podem começar a estudar porque vão ter uma prova de ossos e músculos e sistema
nervoso.
83
Percebe-se na prática da professora, como outro indício de sua relativa independência em
relação ao livro didático, a busca por atividades que tragam informações adicionais ou que lidem
com outras linguagens para abordar os conteúdos, como, as saídas, os vídeos, trabalhos
individuais e em grupo. Além disso, é notável também sua procura por estabelecer vínculos com
outras disciplinas – especificamente no período dessa observação, a educação física – no que
pode representar uma tentativa de romper com a fragmentação estabelecida pela forma da escola
de lidar com o conhecimento. Apesar disso, nas questões que propõe para finalizar as atividades
ou nas situações de avaliação de aprendizagem, a professora se limita a garantir a repetição de
informações dissociadas e não estabelece espaço para discussão de pontos de vista antagônicos.
2.3) Atividades de registro:
2.3.1) Escrita dos alunos:
A escrita dos alunos chega até a professora através do acompanhamento que ela faz dos
registros do caderno, dos relatórios individuais e em grupo que ela solicita como conclusão de
trabalhos e das respostas elaboradas por eles às questões das provinhas.
Os registros do caderno consistem dos resumos realizados a partir dos roteiros
estabelecidos pela professora e da resolução de questões por ela selecionadas. De fato, a
professora confere rapidamente o conteúdo dos resumos a cada aula em que solicita esta tarefa,
inclusive atribuindo pontos positivos para os alunos que cumprem integralmente o que foi
solicitado, porém, pode-se questionar se o resultado deste trabalho realmente indica um cuidado
com a escrita dos alunos, uma vez que, por se tratar de um trabalho de transcrição de trechos do
livro didático, não parece exigir destes uma elaboração mais autônoma. Além disso, a dinâmica
instituída pela professora para conferir os cadernos e atribuir os pontos positivos acaba por não
permitir uma leitura mais cuidadosa do conteúdo de cada caderno, sendo o tempo priorizado para
conferir a quantidade e não a qualidade dos registros. Tal priorização indica que o critério
adotado para acompanhar a aprendizagem dos alunos é o cumprimento das tarefas, a despeito do
que efetivamente eles apreenderam do conhecimento do qual se aproximaram através da
mediação da professora. Verifica-se, assim, que a professora opta por uma forma de
administração do tempo, enfatizando preferencialmente algumas de suas atribuições em
84
detrimento de outras, para poder desenvolver sua prática nos moldes determinados pela forma
escolar.
A professora também tem a possibilidade de avaliar a escrita de seus alunos através da
leitura dos relatórios que eles produzem a partir das diversas estratégias de abordagem do
conteúdo das aulas. Porém, estes trabalhos são corrigidos por ela e devolvidos com uma nota,
sem que se teça qualquer comentário em relação à expressão escrita dos alunos. Mais uma vez o
que parece prioritário é a execução do que foi solicitado e a identificação do uso incorreto das
definições tratadas em aula e não um tratamento mais detalhado das dificuldades relacionadas à
expressão escrita.
2.3.2) Escrita da professora:
Os alunos interagem com o registro escrito da professora quando ela compõe seus roteiros
na lousa e através das questões que elabora nas provinhas. Nos roteiros, desenvolve-se uma
comunicação bastante econômica, com palavras-chave seguidas por um detalhamento breve sobre
o que deve ser procurado para compor o resumo, sem que se formem frases completas:
Suor
- componentes (quais são eles)
- produção (produzido por quem)
Nas provas, as questões, no geral, são curtas, algumas vezes solicitando o preenchimento
de lacunas em frases ou a associação de colunas:
• Todas as artérias carregam sangue arterial?
• Qual é o papel dos leucócitos em nosso sangue? Como eles agem?
• Complete as frases:
a) As artérias são vasos que _______________ sangue do coração aos demais órgãos do
corpo.
85
b) Veias são vasos que _______________ sangue dos órgãos para o coração.
Mesmo em questões que trazem textos mais longos, estes não demandam a habilidade de
relacionar informações, apenas trazem “dicas” que facilitem a identificação das definições
esperadas pela professora:
• Além de conter células, plasmas e todas as substâncias que já vimos, o sangue também
contém um tipo especial de substância que está relacionada à proteção contra algumas
doenças que contraímos na infância.
a) Como se chamam essas substâncias?
b) Onde são produzidas?
Assim, a escrita da professora revela aos alunos uma forma de lidar com o conhecimento
que o reduz a definições simples, curtas e não geradoras de qualquer tipo de contradição. Ao
apresentar sua escrita de forma esquemática e breve, a professora, além de definir um tipo de
relação com o conhecimento, também produz um modelo de texto a ser seguido pelos alunos: um
texto pouco articulado e sem a preocupação em apresentar seus argumentos explicativos. Um
texto mais comprometido com o convencimento e não com o estímulo à reflexão, o que não
desmerece outros aspectos do trabalho realizado pela professora, tais como, a preocupação em
permitir que os alunos se aproximem do conhecimento de forma mais independente, através da
promoção do contato com diversas fontes de informações antes da realização de suas explicações
e a busca pela integração com outras áreas do conhecimento no desenvolvimento de suas
atividades com os alunos.
3. Tarefas e atividades dos alunos:
3.1) Produção de resumos no caderno:
Nos minutos iniciais de quatro das aulas observadas, a professora solicitou que os alunos
compusessem resumos do conteúdo do livro didático em seus cadernos. Em três dessas aulas,
além do resumo, os alunos tiveram também que responder, no caderno, a questões selecionadas
86
no livro didático, referentes ao conteúdo resumido. Não houve, antes da composição dos
resumos, nenhuma explicação da professora acerca do conteúdo das aulas.
Para compor esses resumos, os alunos contam com roteiros que a professora passa na
lousa. Esses roteiros orientam a busca de informações no livro didático, estabelecendo a mesma
ordem para a abordagem do conteúdo que a ali encontrada.
O exemplo a seguir ilustra o tipo de solicitação da professora em seus roteiros:
Sistema Excretor
- Excreção (o que é)
Principais produtos da excreção
- (cite quais são eles)
Sistema Urinário
- Rins
(qual é a função)
(estrutura)
- Urina (como é constituída)
Estrutura interna de um rim
- (desenhar o rim da p. 119)
O roteiro da professora destaca a forma de divisão do conteúdo que está presente no livro
didático. Assim, o aluno deve seguir, em sua procura pelas informações, a ordem apresentada no
livro e destacar o que a professora põe entre parênteses (o que é, como é constituído, qual a
função, etc.).
Em determinada aula, indica como devem ser feitos os resumos:
Não é para copiar tudo do livro senão ta errado, né? Eu separo para vocês.
É para colocar tudo certinho, como eu coloco, item por item.
Essa busca de informações, ainda que bastante direcionada pela professora, permite que o
aluno tenha um primeiro contato com o conhecimento a partir de uma leitura solitária que, talvez,
87
pudesse revelar outras informações que ele considerasse relevantes em relação ao assunto
abordado, inclusive com dúvidas que poderiam gerar instigantes discussões. Entretanto, o
formato do roteiro parece limitar o espaço para a dúvida, estabelecendo os limites do que é ou
não relevante. Este limite fica ainda mais delimitado pelo fato de, nas situações de avaliação da
aprendizagem dos alunos, a professora pedir a repetição exata das definições que indicou como o
conhecimento relevante em seus roteiros.
3.2) Resolução de questões/tarefas em classe:
Em três aulas os alunos tiveram que responder questões do livro didático, selecionadas
pela professora. Tratavam-se de questões diretamente relacionadas com os resumos que foram
feitos nas mesmas aulas e exigiam a identificação direta de definições no texto.
A professora não discutiu as respostas elaboradas pelos alunos para as questões que
solicitou. Em uma aula, a professora pediu o caderno de um aluno para verificar suas respostas.
Após a verificação, apontou o que deveria ser corrigido e, na aula seguinte, pediu que uma aluna
transcrevesse esta correção para a lousa, orientando os alunos a corrigirem suas respostas. Assim,
os alunos deveriam identificar se o que responderam era condizente com o que foi elaborado pela
professora. É possível que os alunos sequer tenham estabelecido tal comparação entre as
respostas ou que, diante do que definiu a professora, tenham descartado imediatamente o que
elaboraram sozinhos, uma vez que não houve qualquer manifestação de dúvida por parte deles
em relação à correção da professora.
Em uma aula, os alunos receberam uma figura xerocopiada que trazia os ossos do
esqueleto humano dispostos aleatoriamente. Foram orientados a recortar os ossos e a montar o
esqueleto em outra folha. Foi um trabalho individual e, para realizá-lo, os alunos puderam
consultar as figuras do livro didático e não deveriam fazer perguntas à professora. Ela explicou
para a classe que, com esta atividade, eles iriam conhecer alguns ossos e suas posições no
esqueleto humano. Assim, quando, em outra aula, assistissem ao vídeo que traria, iriam
reconhecer algumas informações:
Isso é ótimo para vocês estarem identificando os ossos e onde se localizam. É claro que ninguém
terá que decorar isto!
88
Indicou também que em outra aula os alunos iriam comparar os esqueletos que montaram
com um modelo que fica no laboratório:
Presta atenção nos nomes. Na hora que vocês compararem os esqueletos de vocês com o do
laboratório, vão falar: Nossa!
Com esta atividade, a professora indica mais uma vez sua opção por colocar os alunos em
contato com o assunto antes de estabelecer qualquer explicação. Dessa forma, eles vão lidando
com termos que os preparam para um melhor aproveitamento das futuras discussões. Uma
declaração espontânea da professora revela que ela de fato procura fazer várias atividades
relacionadas a um assunto antes de explicá-lo:
Assim, eles já vão assimilando alguma coisa.
Merece destaque essa iniciativa da professora no sentido de não centralizar a abordagem
dos conteúdos de suas aulas nas suas explicações, permitindo que os alunos entrem em contato
com o conteúdo de forma mais autônoma e com maior probabilidade de mobilização de seus
conhecimentos prévios acerca do assunto abordado.
3.3) Trabalhos em grupo:
Os grupos de ciências foram estabelecidos pela professora no começo do ano e são
representados por um dos seus membros, por ela designados, aos quais ela solicita ou transmite as
informações necessárias para o desenvolvimento dos trabalhos.
Em uma aula dupla, após fazerem uma prova na primeira das aulas, os representantes dos
grupos tiveram que copiar um texto da lousa, acerca do problema da obesidade na adolescência,
em uma folha que trazia cinco questões de interpretação desse texto. O assunto deveria ser
discutido pelos grupos que, então, elaborariam as respostas.
Antes de realizar o trabalho, os grupos ouviram um comentário da professora sobre o
tema. Ela afirmou que eles já haviam discutido bastante sobre obesidade e alimentação e que o
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texto tratava da relação obesidade/problemas do coração. Apontou que a única dúvida que
considerava possível de existir em relação ao texto era sobre o termo osteoporose:
Alguém sabe o que é?
Um aluno responde:
Desgaste do osso.
A professora concorda:
Isso!
Destaca-se o fato da professora ter tecido esses comentários acerca do texto antes da
leitura do mesmo pelos alunos. Dessa forma, ela parece indicar de antemão o que pode ou não
suscitar questionamentos dos alunos. De fato, não é feita nenhuma intervenção por parte dos
alunos durante a execução desse trabalho. O resultado final – as respostas dos grupos às questões
propostas – foi entregue à professora e não foi discutido em nenhuma outra aula.
Outro trabalho realizado pelos grupos foi desenvolvido em uma aula e dizia respeito à
visita que os alunos fizeram a uma mostra denominada “Diálogo pela vida”. A visita foi realizada
durante o período de aula e a professora conduziu os alunos, a pé, até o local de sua exposição
(distante cerca de quatro quarteirões da escola). Essa mostra procurava ressaltar a situação da
espécie humana em suas relações com o universo, o planeta Terra, os demais seres vivos e os
outros seres de sua espécie, na vida social. Na abordagem dos aspectos relacionados ao universo,
ao planeta e às etapas de desenvolvimento do corpo humano, foi apresentada grande quantidade
de informação de cunho científico, com muitas fotos e textos informativos. Porém, o tom que
marcava o encadeamento das partes da mostra, especialmente no seu final, ao tratar da vida
social, remetia a uma mensagem de cunho moral, com um sentido de alerta para a
responsabilidade humana sobre o ambiente em que vive e sobre as demais formas de vida. Foi
possível identificar uma clara divisão entre dois componentes organizacionais desta mostra: um
que trata dos conteúdos científicos e outro, relativo à formação moral dos visitantes, sendo que
90
este último prevalecia sobre o primeiro. Tal divisão remete ao que Bernstein (1988) classifica
como discurso pedagógico: o resultado da combinação do discurso instrucional, ligado aos
conteúdos específicos das áreas do conhecimento, e o discurso regulativo, que transmite saberes
específicos com os quais moraliza e controla os comportamentos. O autor ressalta que o discurso
regulativo será sempre dominante sobre o instrucional (p. 104). O que se observou então, na
organização desta mostra visitada pelos alunos foi a adequação do discurso oriundo dos campos
de produção do conhecimento aos princípios de seleção e organização do trabalho escolar,
resultando este processo em uma ênfase nos aspectos ligados ao discurso regulativo.
Os grupos deveriam permanecer juntos durante a visita. Após a atividade, em outra aula,
os grupos foram orientados a compor um relatório da saída, especificando de que tratava cada
parte da mostra. As partes foram indicadas anteriormente pela professora, quando ela apontou a
seqüência que os alunos deveriam seguir durante a visita, bem como o que deveriam registrar:
Mostra – Diálogo pela Vida – 18/08/2004
- O grande Universo (o que é) [dados sobre astronomia]
- O pequeno Universo (o que é) [dados sobre o corpo humano]
- Aprender vivendo (como) [a importância da formação moral do ser humano]
- O diálogo (o que é) [as relações sociais]
- Amigos do mundo [a responsabilidade humana sobre o planeta]
- Quem somos [apresentação dos organizadores da mostra]
Além do relatório, os grupos deveriam indicar qual era a proposta dos organizadores da
mostra e elaborar uma “mensagem pela vida”. Durante a execução dos trabalhos, os alunos leram
as anotações que fizeram durante a saída. A professora indicou que o que propunha não eram
questões para serem respondidas, e, sim, comentários dos grupos acerca da mostra visitada.
Convém destacar a semelhança entre os roteiros que a professora estabelece para orientar
o trabalho dos alunos na busca de informações, seja no livro didático, seja na visita à mostra.
Em uma aula a turma foi ao laboratório de ciências para assistir a dois vídeos relativos aos
sistemas esquelético e muscular humanos. Ali, dispuseram-se nos grupos de ciências e foram
orientados a fazer anotações que depois seriam utilizadas para compor um relatório.
91
Os conteúdos abordados nos vídeos não foram explicados anteriormente pela professora.
Porém, sobre esse assunto, os alunos já haviam feito o resumo a partir do livro didático, segundo
o roteiro proposto pela professora, e já haviam montado o esqueleto humano em papel sulfite,
conforme indicado no item anterior (Resolução de questões/tarefas em classe).
Mais uma vez, os resultados dos trabalhos não foram discutidos pela professora com a
turma. Os trabalhos foram entregues para a avaliação e seu retorno chegou para os alunos na
forma de uma indicação do que estava certo ou errado, sem espaço para qualquer tipo de
confronto de opiniões ou mesmo de esclarecimento de dúvidas.
4. Uso dos recursos didáticos:
4.1) Lousa:
A lousa foi utilizada em oito aulas: em quatro, para indicar as informações que deveriam
compor os resumos nos cadernos; em uma, para passar um texto a partir do qual os alunos
responderam questões de interpretação; em uma, para passar a correção de uma prova (“prova
relâmpago”); em outra, para apresentar a correção de questões e, em uma última, para passar as
questões da prova de recuperação.
Nestas aulas, a lousa foi preenchida por completo, apagada e novamente preenchida, desta
vez de forma incompleta.
4.2) Vídeo:
Em uma aula os alunos foram ao laboratório de ciências, onde fica instalado o aparelho de
vídeo da escola, para assistir a duas fitas sobre os sistemas esquelético e muscular humanos. A
forma de abordagem dessa atividade já foi exposta (p. 90-91).
4.3) Livro didático:
O livro didático foi utilizado em três tipos de situação durante as aulas observadas: na
coleta de informações para compor os resumos do conteúdo no caderno, na observação de figuras
92
para montagem do esqueleto humano e na seleção de algumas questões para serem respondidas
em classe. A utilização do livro em cada caso citado está especificada em itens anteriores (p.85 e
p. 87).
4.4) Textos extras:
A professora utilizou, em uma aula, um texto não constante do livro didático, com o
seguinte título: Obesidade faz mal ao coração. Não foi apresentada nesta ocasião a fonte de onde
foi retirado este texto e a forma de abordagem desta atividade já foi descrita anteriormente (p.
88).
5. Avaliação:
5.1) Provas:
No período em que foi realizada a observação, foram realizadas três provas, em três aulas
diferentes. Uma delas dizia respeito ao sistema circulatório (estudado antes do período de
observação), outra, ao sistema excretor, denominada pela professora como “prova relâmpago”, e
uma prova de recuperação para alunos que a professora julgou em risco de apresentar notas
vermelhas ao final do bimestre.
Cada prova trazia dez questões e avaliava basicamente a aquisição de informações.
Alguns exemplos de questões destas provas podem confirmar esta característica:
1ª Prova – Sistema Circulatório – 12/08/2004
• Como se chamam os glóbulos vermelhos em nosso organismo?
• O que é linfa?
2ª Prova – Sistema Excretor – 01/09/2004
• Qual a função do rim?
• Qual é o órgão que leva a urina até a bexiga urinária?
• Água, sais minerais e uréia é a constituição de quê?
93
Quanto aos tipos de questões, encontram-se três: pergunta-resposta, associação de colunas
e preenchimento de lacunas. A tabela 5 indica a distribuição destes tipos de questões em cada
prova:
Tabela 5: Ocorrência dos diferentes tipos de questões nas provas
Provas Pergunta-resposta Associação Lacunas
7 1 2
10
Prova 1
Prova 2 (“prova relâmpago”)
Prova 3 (prova de recuperação) 10
A prova de recuperação, realizada no dia 14/09/2004, trouxe cinco questões retiradas da
primeira prova (Sistema Circulatório) e as outras cinco, da segunda (Sistema Excretor). Portanto,
os 15 alunos convocados para essa prova já tinham respondido as mesmas questões
anteriormente. Convém destacar, como se pode perceber na Tabela 5, que somente foram
selecionadas as questões do tipo pergunta-resposta para compor essa avaliação de recuperação.
A repetição das questões na prova de recuperação confirma a relevância atribuída a essas
informações solicitadas anteriormente e funciona como um facilitador na recuperação das notas
dos alunos. Isso pode ser confirmado na seguinte declaração da professora, feita no dia da prova
de recuperação:
O pessoal da recuperação percebeu que eu fiz uma coisa [a prova] bem fácil.
Essa mesma preocupação com a nota dos alunos foi explicitada pela professora em outra
situação de avaliação de aprendizagem, durante a aplicação da primeira prova:
Prova bem fácil para vocês tirarem nota.
Na “prova relâmpago”, do dia 01/09/2004, os alunos ouviram a pergunta, lida por duas
vezes pela professora. Foram orientados a não copiá-la, apenas respondê-la em uma folha de
papel. A professora não repetiu as questões após as duas leituras. Aguardou alguns minutos após
94
cada questão para que os alunos respondessem. Depois de finalizadas, as provas foram trocadas
entre os alunos e as respostas corretas foram escritas pela professora na lousa. Dessa forma, os
alunos corrigiram as provas uns dos outros. Nesse momento, a professora indicou o que podia ou
não ser considerado correto e que, se houvesse alguma dúvida, os alunos deveriam perguntar.
Mas, avisou que só toleraria:
Perguntas inteligentes, né?
Seus comentários sobre as respostas aceitáveis como corretas indicam que apenas uma das
dez questões aceitaria duas respostas, mesmo assim, a diferença entre tais respostas, nesse caso,
apenas se refira aos termos empregados e não a uma outra forma de abordagem da questão. A
correção da prova foi assim apresentada aos alunos:
Respostas
1) Filtrar o sangue (comentou que quem respondeu só filtrar, deveria receber meio
certo).
2) Ureter.
3) Excretas ou excreção.
4) Urina.
5) Hipotálamo.
6) Cistite.
7) Uremia.
8) Hemodiálise.
9) Néfrons (indicou que quem respondeu rins errou porque lá acontecem várias
coisas mas que a pergunta era: aonde vai formar a urina?).
10) Uretra.
Em relação às questões 1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10, a professora ressaltou que apenas as
respostas escritas na lousa poderiam ser consideradas corretas.
95
Após essas explicações, os alunos foram orientados a fazer a correção das questões,
escrevendo as respostas corretas ao lado ou embaixo das respostas erradas. A contagem dos
pontos não deveria ser feita por eles e, sim, pela professora.
A forma como foi aplicada a “prova relâmpago” revela que a professora busca estratégias
para avaliar a memorização de informações curtas pelos alunos, bem como para facilitar sua
tarefa de correção, uma vez que a ela cabe apenas a conferência do trabalho realizado pelos
alunos e atribuição de uma nota final. Além das questões formuladas pela professora priorizarem
a identificação rápida de informações memorizadas, a impossibilidade de repetir a leitura reforça
para o aluno o caráter não reflexivo das questões.
5.2) Pasta científica:
Ao final de cada bimestre, a professora avalia um trabalho realizado individualmente
pelos alunos, denominado Pasta Científica.
Nesta pasta, os alunos devem apresentar um certo número de artigos de jornais,
relacionados a questões científicas, que devem ter sido lidos e resumidos. Os artigos são
recortados e colados em folhas de sulfite onde deve constar a data da publicação e a fonte de
onde foi retirado cada um deles.
Para os meses de agosto e setembro (3º bimestre) a professora determinou um número
total de 16 artigos (oito para cada mês).
Além da apresentação da pasta, os alunos deveriam entregar os resumos dos artigos para a
avaliação da professora.
No dia 14/09/2004, enquanto parte dos alunos fazia a prova de recuperação, a professora
verificou as pastas e recolheu os resumos para correção. A duração total da conferência das
pastas, com atribuição das respectivas notas, foi de 15 minutos.
Durante essa conferência, a professora comentou sobre a diferença de qualidade entre as
pastas de diferentes alunos. Ao conferir o trabalho de um aluno, após ter criticado a pasta do
anterior, um aluno que costuma conversar mais do que a professora parece considerar aceitável
em suas aulas, comenta, olhando para esse último:
Tem pasta que dá gosto de olhar. O aluno entende o que a gente fala.
96
Diante desse comentário, o aluno cuja pasta foi criticada, pergunta duas vezes, com ar de ironia:
Professora, a minha pasta dá gosto de olhar?
A professora não responde sua pergunta.
Nessa mesma aula, além da prova de recuperação e da verificação das pastas científicas, a
professora também solicitou os cadernos dos alunos para avaliação. No dia 15/09/2004, a
professora já havia atribuído as notas para a pasta e corrigido os resumos dos artigos recolhidos
no dia anterior. Nesse mesmo dia, marcou a próxima data de entrega da Pasta Científica, para o 4º
bimestre, com o número de artigos a serem lidos a cada mês:
Dia 23/11 3ª feira
Entrega da Pasta Científica
10 artigos do mês de outubro
10 artigos do mês de novembro
Quando marcou a nova apresentação da pasta, comentou que alguns alunos não a
apresentaram em nenhum bimestre. Avisou, então, que está cogitando a possibilidade de dar
advertências ou suspensões a esses alunos. Nesse momento, chamou dois alunos e pediu que
anotassem o que estava na lousa, para que fizessem pelo menos uma vez esse trabalho para
aprender a ler jornal. Esta observação da professora indica a relevância que ela atribui ao
desenvolvimento da habilidade de leitura, bem como ao contato dos alunos com outras fontes de
informações científicas além do livro didático.
Destaca-se que os temas dos artigos solicitados não precisam se relacionar com os
estudados nas aulas de cada bimestre. Assim, esse trabalho representa um tipo de abordagem do
conhecimento científico aberta, disposta a considerar as outras dimensões em que esse
conhecimento é comunicado, além da escolar.
Apesar de representar um potencial inclusive para incrementar a abordagem das relações
entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, essa possibilidade se esgota diante da urgência com que é
tratado o resultado final do trabalho. Os limites escolares relacionados à administração do tempo
97
e do espaço reduzem as oportunidades de reflexão sobre estas relações. O retorno que os alunos
recebem, na forma de uma nota, se refere a questões relativas à qualidade estética e ao
cumprimento das diretrizes relativas ao número de artigos e resumos. Não é feita qualquer
discussão acerca dos artigos selecionados pelos alunos. É na situação de exploração do potencial
reflexivo da atividade que os limites impostos pela forma escolar, especialmente os que se
referem à administração do tempo, geram um empobrecimento da relação que se estabelece entre
os alunos e o conhecimento. Com isso, desperdiça-se a possibilidade de:
a) Conhecer mais sobre o que desperta curiosidade ou dúvidas nos alunos em relação à
produção do conhecimento científico – pela análise dos temas dos artigos selecionados
por eles;
b) Detectar problemas relacionados à habilidade de leitura – a partir do que revelam os
resumos sobre a compreensão dos alunos a partir dos textos lidos;
c) Promover discussões acerca dos interesses que impulsionam os avanços científicos; etc.
5.3) Participação dos alunos nas aulas:
A participação dos alunos nas aulas é mensurada através da quantidade de pontos
positivos que cada um acumulou ao longo do bimestre. Esses pontos positivos são conferidos
pela professora no final das aulas em que solicita alguma tarefa. Foram atribuídos em cinco das
aulas observadas.
Nessas situações, a professora estabeleceu, logo no início da aula, até onde a tarefa
deveria ser feita para que o aluno “ganhasse” o ponto positivo:
Até aqui, ganha positivo.
Tem mais uma partezinha só, para ganhar positivo.
Esta aula vai estar valendo positivo.
Os desenhos não precisam ser pintados para ganhar positivo, mas, quando eu for ver os
cadernos, sim.
98
Também deixa claro em algumas situações, que, uma vez “ganho”, o positivo pode ser
“perdido”, dependendo do comportamento do aluno ao longo da aula:
Quem terminou, silêncio, viu, senão vou tirar o positivo. E você [para um aluno que estava
conversando] tem dois, viu, se abrir a boca vai perder os dois.
O que se pode perceber em relação à estratégia de atribuir pontos positivos aos alunos é
que se trata de um mecanismo de controle da classe, uma forma de garantir que o que foi
solicitado será cumprido e de manter um nível de silêncio considerado adequado pela professora.
Essa percepção foi confirmada em conversa com a pesquisadora, em que a professora indicou
acreditar que o fato de avaliar os alunos todas as aulas (com a atribuição de positivos) permite a
manutenção do silêncio e garante o cumprimento de tudo o que solicitou.
Em relação ao conhecimento escolar de ciências produzido nas aulas da Professora 2
pode-se caracterizá-lo por demandar maior participação dos alunos no movimento de
aproximação aos conhecimentos científicos: os alunos fazem contato com o conteúdo, sob
orientação da professora, em diferentes fontes, antes que ela faça suas explicações. Ainda que a
professora e o livro didático continuem sendo centrais no processo de ensino, não se passa uma
imagem de que tudo que se tem como conhecimento relevante se limita a estas duas fontes, nem
de que é possível aprender sem que se estabeleçam as condições favoráveis de organização e
empenho dos alunos. A manutenção da disciplina, neste caso, serve para produzir tais condições
favoráveis. Transmite-se a idéia de que aprender é mais do que simplesmente manter-se ocupado,
independentemente da atividade desenvolvida, implica uma participação ativa dos alunos. Este
conhecimento escolar mostra-se aberto para as contribuições do conhecimento cotidiano e para a
produção científica atual: mesmo que se possa vislumbrar na ação educativa desta professora
possibilidades de melhor exploração das atividades desenvolvidas, não se pode negar que elas
representam trilhas que podem gerar reflexões sobre a possibilidade de se garantir melhor
qualidade ao ensino de ciências mesmo dentro dos limites da forma escolar. Por outro lado, fica
patente que tais limites reduzem significativamente o potencial inovador de suas ações
educativas.
99
Como características que se mantêm em relação à ação educativa da Professora 1 – que
representa, pelo que trazem os estudos sobre o ensino de ciências, o modelo predominante de
ensino dessa disciplina –, pode-se apontar para a não abordagem dos aspectos históricos da
produção do conhecimento científico, para os diálogos breves entre professora e alunos – embora
no caso da Professora 2, o controle da indisciplina se dê mais pela antecipação dos procedimentos
e dos critérios de avaliação do que por conversas com a classe –, pelo tratamento superficial da
produção escrita dos alunos e pela ênfase na memorização como recurso mais solicitado em suas
provas.
Professora 1 e Professora 2:
1. Diferentes ações educativas, diferentes formas de aproximação do conhecimento:
A descrição das atividades desenvolvidas pelas professoras aponta para duas maneiras de
se estabelecer a aproximação dos alunos em relação aos conhecimentos da área de ciências. Nos
dois tipos de ações educativas observadas, pôde-se encontrar aspectos semelhantes e aspectos
díspares, sendo estes últimos os responsáveis pela diferença citada anteriormente.
O trabalho das professoras se assemelha em alguns aspectos, como na preocupação com a
manutenção do controle da disciplina e na forma de verificação da aprendizagem dos alunos nas
provas. Ainda assim, pode-se destacar peculiaridades nos modos adotados para atingir os
objetivos relacionados a esses dois aspectos.
Com relação aos procedimentos relativos ao controle, a Professora 1 procura lidar com a
geração de um sentimento de culpa nos alunos: pelo não aproveitamento das possibilidades
oferecidas pela escola, por não apresentarem boas notas, por desagradarem aos professores. Suas
conversas com a classe preenchem boa parte do tempo total de aula e, quando surtem algum
efeito no controle da indisciplina, a situação que as gerou se restabelece após alguns minutos.
Mesmo suas explicações são freqüentemente interrompidas pelo barulho da classe, sendo que,
nessas ocasiões, a professora pára de falar, espera inutilmente pelo silêncio e, na maioria das
vezes, prossegue com sua explicação ainda que o ambiente continue desfavorável à concentração
dos alunos.
100
No caso da Professora 2, o controle desejado é alcançado através do estabelecimento
prévio de todas as etapas de desenvolvimento das atividades seguidas de descrições do que ela
espera em termos de resultados, dos critérios que utilizará para sua avaliação e do valor de cada
uma delas na composição da nota dos alunos. Suas conversas com a classe em relação ao
estabelecimento do controle da disciplina são breves, ocupando bem menos tempo da aula do que
as orientações para a realização das atividades que propõe. Sua tolerância com situações não
planejadas, como brincadeiras ou conversas não relacionadas aos assuntos das aulas, é bem
menor do que a da Professora 1. Nessas ocasiões ela rapidamente restabelece o silêncio, na maior
parte das vezes, gritando. A professora não dá andamento a uma explicação se qualquer aluno
estiver conversando, ainda que em tom de voz baixo, o que indica que, para ela, a manutenção de
um ambiente favorável é imprescindível para estabelecer contato com o conhecimento.
Outro aspecto coincidente nas aulas das professoras é o tipo de prova que preparam para
verificar a aprendizagem de seus alunos. Nos dois casos a ênfase recai sobre questões do tipo
pergunta-resposta, mobilizadoras da capacidade de memorização de informações. Também as
questões selecionadas nos livros didáticos para serem respondidas pelos alunos reforçam essa
habilidade.
Ao optarem por esse tipo de questão em suas provas, as professoras indicam aos alunos a
forma privilegiada de se aproximar do conhecimento na escola. Nesta perspectiva, estudar é uma
atividade que está definitivamente associada à capacidade de registrar na memória as
informações indicadas como relevantes pela professora, assim como, ter sucesso na escola
relaciona-se à capacidade de “devolver” estas informações, da maneira mais fiel possível, nas
situações de avaliação.
Entretanto, vale destacar que no trabalho da Professora 2 encontram-se movimentos no
sentido de abrir a relação do conteúdo escolar para a interação com informações oriundas de
outras fontes. Ao promover a leitura de artigos relacionados às ciências, a integração com outras
disciplinas escolares, a participação dos alunos (como no caso do exame de sangue) e ao buscar
utilizar variados recursos didáticos para abordar os conteúdos, a professora aponta para uma
relação com o conhecimento que não se fecha nos limites estreitos da relação livro didático-
professor. Ainda que nas situações de avaliação da aprendizagem a Professora 2 pareça valorizar
apenas a capacidade de memorização, na abordagem dos conteúdos ela segue um percurso que
101
suscita outras habilidades que apontam para a valorização do desenvolvimento de maior
autonomia dos alunos no processo de apropriação do conhecimento.
Um aspecto bastante diferenciado é a centralidade conferida aos momentos de explicação
das professoras ao abordarem os conteúdos de suas aulas. Para a Professora 1, essa centralidade
se manifesta até mesmo na divisão temporal de suas aulas. Os minutos iniciais concentram as
estratégias que preparam a etapa intermediária da aula, onde ocorrem as explicações da
professora. No geral, os minutos finais destinam-se à realização de tarefas de fixação do que foi
explicado.
Durante suas explicações, a Professora 1 se vale totalmente do que está registrado no livro
didático para convencer seus alunos da legitimidade das informações que traz. Todos os
exemplos que utiliza constam do livro, bem como todos os textos e desenhos transcritos para a
lousa e copiados pelos alunos. Suas explicações ou são iniciadas com a leitura do livro didático
ou finalizadas com ela (ou, até mesmo, iniciadas e finalizadas dessa forma). Todos os
questionamentos aos alunos giram em torno dos exemplos trazidos pelo livro e qualquer
interferência destes será bem vinda se for para confirmar o que nele está registrado ou o que diz a
professora. Opiniões contrárias ao que estabelece a professora ou são rebatidas pela autoridade
conferida ao que está escrito no livro didático ou são ignoradas.
Essa forma de estruturar suas explicações limita a relação com o conhecimento ao que
estabelece o livro didático. Esse recurso é central nas aulas dessa professora, representando a
razão e a forma de conhecer. Nesta perspectiva, conhecer serve ao propósito de cumprir o
conteúdo do livro e a forma de se aproximar desse conhecimento é através da memorização do
que está estabelecido em suas páginas. Usado para convencer os alunos da superioridade do saber
que porta em relação ao que eles adquirem por outras vias, o livro didático, no uso que faz a
Professora 1, serve para transmitir uma noção de Ciência como resultado de uma sucessão de
êxitos atingidos por mentes brilhantes (não identificadas), às quais não cabe qualquer
questionamento.
Durante a observação das 18 aulas da Professora 2, apenas em uma se acompanhou uma
explicação. Este dado isolado já revela que a abordagem de conteúdos não está centrada em suas
explicações, embora se possa afirmar que o tratamento do conteúdo representa a atividade central
de suas aulas. A importância conferida às explicações parece ser a de fechar a aproximação dos
conhecimentos que se iniciou em aulas anteriores. Portanto, elas são essenciais, porém, antes de
102
se chegar a elas é realizada uma série de atividades que permitem que o aluno se aproxime do
conhecimento de forma mais autônoma. Vídeos, leituras, tarefas individuais e em grupos,
elaboração de resumos vão paulatinamente propiciando oportunidades de desenvolvimento pelos
alunos da capacidade de observação, de leitura, de escrita, bem como mobilizando informações já
apreendidas a respeito do assunto estudado. Assim, quando é feita a explicação, a professora pode
se valer do entendimento que já possuem os alunos acerca do conteúdo abordado.
Convém destacar que, embora essas atividades prévias às explicações representem uma
possibilidade de desenvolvimento de maior autonomia dos alunos ao se relacionarem com o
conhecimento, isso não significa que eles são totalmente abandonados na relação inicial com o
conhecimento que será abordado posteriormente nas explicações da professora. A professora
estabelece com muito detalhamento o que espera que os alunos realizem em cada atividade. Seus
roteiros para a produção de resumos do livro didático no caderno são um bom exemplo disso: os
alunos são orientados sobre quais as informações relevantes do capítulo lido e sobre como elas
devem ser registradas.
O tipo de uso do livro didático, portanto, difere bastante do que faz a Professora 1. Para a
Professora 2, ele é mais uma fonte de informações sobre o que será explicado. Porém, como para
a Professora 1, ele parece central quando se trata de escolher as questões que comporão as
provas, o que confere um caráter de legitimidade ao conhecimento que porta.
O que essa breve conclusão sobre as atividades desenvolvidas pelas professoras pretende
ressaltar é a forte influência dos aspectos relativos à forma escolar sobre o conhecimento
delineado nas aulas observadas. Alguns aspectos do trabalho da Professora 2 revelam brechas
para um tratamento mais aberto com o conhecimento. Entretanto, percebe-se que, especialmente
nas situações de avaliação da aprendizagem dos alunos, questões como a manutenção do
controle, a compartimentalização dos conhecimentos nas disciplinas escolares, o estabelecimento
de uma relação instrumental com o conhecimento, os índices de sucesso e fracasso escolar (lidos
nas notas dos alunos e na sua passagem para outras séries) e a limitação do tempo destinado ao
trabalho com os conteúdos representam limites bem definidos para as escolhas possíveis aos
professores. As escolhas da Professora 2 permitem constatar que na escola pública brasileira
existem professores que buscam diferentes estratégias para lidar com esses limites, modos de
abordagem do conhecimento que indicam novas possibilidades além das que revelam as
pesquisas sobre o ensino de ciências. A partir dessa constatação, faz-se necessário refletir sobre a
103
forma escolar que determina tais limites e sobre o que faz com que os professores desenvolvam
reações de adequação acrítica ou de busca de vias alternativas de tratamento do conhecimento em
suas aulas. A respeito desta última questão, com o objetivo de explicitar algumas das
características pessoais das professoras acompanhadas, traz-se agora alguns dados retirados das
entrevistas e questionários utilizados nesta pesquisa. Pôde-se identificar, a partir da aplicação
destes instrumentos de pesquisa, as opiniões das professoras em relação à relevância da disciplina
que lecionam na formação de seus alunos e os fatores que identificam como facilitadores ou
restritivos para o desenvolvimento de suas ações educativas.
2. Informações sobre as professoras acompanhadas:
Professora 1:
Concluiu a licenciatura plena em Ciências Biológicas, na Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, em 1985. Em 2001, concluiu o curso de Pedagogia – formação para diretor de
escola – na mesma universidade.
Há 13 anos leciona na rede pública e há quatro, passou a atuar também na rede particular.
Afirma que no início de sua carreira só trabalhava com quintas séries. Porém, lecionou para as
últimas turmas desta série há cinco anos.
Sua carga horária neste ano inclui oito horas/aula nas quintas séries (na escola onde se deu
esta pesquisa), 16 horas/aula no Ensino Médio, em uma escola técnica estadual, e 20 horas/aula
no Ensino Técnico (Enfermagem e Meio Ambiente), em escola particular.
Na escola em que se realizou esta pesquisa, leciona há cinco anos, com vínculo do tipo
Admitido em Caráter Temporário (ACT). Em 2003, lecionou apenas no Ensino Médio, no
período noturno. Em 2004, reassumiu duas turmas de quinta série no período vespertino.
Acredita que a disciplina ciências é importante por interagir com todas as outras, sem
estabelecer, de forma muito definida, uma separação entre conteúdos, trazendo em suas
abordagens aspectos da História, da Geografia, etc.
Considera que os conteúdos abordados na quinta série são básicos, girando em torno dos
temas ar, água e solo. Afirma que o tema água, por exemplo, é um tema universal nos dias de
hoje; ouve-se falar muito dele no cotidiano. Os conteúdos desenvolvidos na disciplina são
104
importantes por permitir que os alunos entendam o que está acontecendo, por que este recurso
está acabando, o porquê do racionamento, o significado da água e sua importância.
Ao tratar de sua realidade de sala de aula, a professora se ressente da dificuldade de usar
os recursos que a escola tem, especialmente o laboratório. Indica que seu trabalho seria mais rico
se pudesse utilizá-lo com mais freqüência. Porém, as turmas muito numerosas e a ausência de um
monitor no laboratório, o que permitiria dividir a turma e trabalhar apenas com a metade de cada
vez, são apontadas como limitantes desta prática.
Atribui grande importância à experimentação (ao que define como “trabalho com o
concreto”), tanto no laboratório quanto em casa, com as atividades que sugere como tarefa.
Afirma que os alunos que fizeram, por exemplo, uma experiência de germinação de sementes,
tiveram um retorno positivo: observaram, passaram para o papel o que vivenciaram. Alguns até
foram além, fazendo outras experiências. Em relação a este tipo de atividade, vincula o interesse
do aluno em fazê-las em casa à importância que os pais atribuem a elas, inclusive se envolvendo
diretamente na sua realização.
Quando não há possibilidade de “trabalhar com o concreto”, afirma que opta pelo diálogo
com os alunos. Porém, indica que, no geral, encontra dificuldade em manter a ordem neste tipo
de aula (“vira bagunça”).
Considera que a sala de aula é pouco para os alunos, que giz e lousa é pouco. Acredita que
eles recebem muita informação (via internet, principalmente), e que, portanto, seria necessário
encontrar uma forma de chamar sua atenção. Afirma que quando começou a lecionar, a escola era
uma fonte de novidades. Quando levava os alunos ao laboratório, conseguia prender a sua
atenção, porque eles valorizavam a escola.
Com a progressão continuada, segundo a professora, a escola virou uma área de lazer para
os alunos, um lugar para encontrar os outros, brincar e conversar. Isto gerou indisciplina, o que
dificulta seu trabalho. Considera que, mesmo para os pais, em linhas gerais, a escola teria perdido
seu valor. Aponta que os pais devem valorizar a escola e cobrar uma postura adequada de seus
filhos em relação a ela.
Acredita que a dificuldade inicial em seu trabalho é a de lidar com salas muito numerosas.
Tais salas tornam-se difíceis de controlar e praticamente anula-se a possibilidade de uso do
laboratório ou dos computadores. Além disso, o fato de alguns alunos não trazerem o que chama
de pré-requisitos, como as habilidades de leitura e escrita, dificulta o ensino e a aprendizagem.
105
Com relação às notas de seus alunos, aponta que se trata de um grupo bem heterogêneo.
Alguns apresentam muita facilidade; a grande maioria fica na média, assimilando o que é
trabalhado na sala de aula; a outra parte tem o que chama de dificuldade de entendimento – não
possuem os pré-requisitos básicos de leitura e escrita. Em média, por bimestre, de dez a doze
alunos ficam com notas vermelhas (de um total de 38 alunos).
Ao se referir às dificuldades impostas pela escola à realização de seu trabalho, a
professora manifestou bastante ansiedade. Desde o início da entrevista não quis que suas
respostas fossem gravadas e, ao mencionar as questões que seguem, solicitou que não fossem
registradas pela pesquisadora. Quando foi avisada que tais informações, ao aparecerem na
pesquisa, não seriam vinculadas ao seu nome, nem tampouco ao nome da escola, mostrou-se
menos tensa e permitiu o registro.
Segundo a professora, a escola em que se desenvolveu esta pesquisa é muito bem
conceituada, o que confere um certo status a quem leciona ou a quem estuda nela. Os pais
consideram um privilégio conseguir uma vaga nesta escola. Porém, a professora aponta que a
escola não enfrenta seus problemas, cria uma espécie de “casca frágil” que os oculta e faz cair o
nível do ensino oferecido a seus alunos.
Comenta que no ano de 2003 a escola tinha muitos alunos em recuperação, em todas as
disciplinas. Para ela, isto ou se devia a um trabalho inadequado dos professores e da escola ou a
problemas apresentados pelos alunos. Porém, indica que houve grande pressão da escola para que
não se repetissem estes resultados em 2004. O que relata, então, é que houve uma inversão desta
situação, com elevados números de notas azuis em todas as disciplinas.
Ela não verifica esta inversão em relação às notas de seus alunos. Apesar de considerar
que suas provas são muito fáceis, indica que os resultados são ruins. Questiona como alunos que
têm alguma dificuldade com ela, não a apresentam nas outras disciplinas.
Manifesta angústia por saber que seu trabalho tem falhas, que poderia ser melhor como
professora, mas crê que esta forma da escola de não enfrentar suas deficiências contribui para que
sua prática seja menos adequada do que poderia ser de fato.
Exemplifica a falta de apoio da escola com a descrição do processo de desenvolvimento
de um projeto que foi combinado no início do ano (tema: Água). Foi combinado que todos os
professores iriam abordar o mesmo tema. Nesta ocasião, ela procurou a diretora e disse que
106
trataria deste tema desde o começo do ano. No entanto, não identificou nenhum esforço da escola
para que as áreas trabalhassem de forma integrada.
Quando se refere às famílias de seus alunos, volta a manifestar desapontamento em
relação àquelas que não permitem ou não estimulam os alunos a fazerem os trabalhos de casa.
Indica que, devido a esta conduta, recebeu poucos retornos dos trabalhos solicitados. Afirma que,
de um modo geral, percebe pouco empenho e participação das famílias.
As declarações da professora indicam uma consciência das limitações de sua prática. No
geral, ela relaciona estes limites a um processo de desvalorização da escola, por parte dos alunos
e dos pais, relacionado a questões como a circulação rápida de informações no mundo atual e a
carência de recursos didáticos mais atraentes para lidar com o conhecimento. Apesar de indicar
que a escola já não é fonte de novidades, a professora não parece questionar os conteúdos que
compõem o currículo de ciências.
A tendência da escola de não admitir suas deficiências e buscar formas de mascará-las é
considerada pela professora como um fator que limita sua prática.
É possível reconhecer que a Professora 1 desenvolve sua prática de forma bastante
isolada. Sem reconhecer apoio e valorização de seu trabalho por parte da escola, da família e dos
alunos, procura cumprir sua tarefa de transmissão de conhecimentos de uma forma que garanta o
que ela acredita ser a expectativa da escola sobre seu desempenho profissional: a manutenção da
disciplina e as boas notas dos alunos.
Professora 2:
Graduou-se em Ciências Físicas e Biológicas pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas, tendo completado a licenciatura e o bacharelado em Zoologia, no ano de 1994.
Leciona há dez anos, somente na rede pública de ensino. Nesta escola, leciona há seis anos. Sua
única experiência na rede particular durou cerca de três meses, na condição de professora
substituta.
Indica que já lecionou para 7a série do Ensino Fundamental por cinco ou seis anos. Neste
ano, cumpre uma carga horária de 32 horas/aula semanais, distribuídas pelos períodos da manhã,
tarde e noite, somente na escola em que se desenvolveu esta pesquisa, sendo seu vínculo
empregatício do tipo Ocupante de Função Atividade (OFA), cargo também não efetivo, como o
107
da Professora 1. Ministra aulas de ciências para 6a, 7a e 8a séries do Ensino Fundamental e de
Biologia para o 2o e 3o anos do Ensino Médio regular e 2o ano do Ensino Médio supletivo.
Considera que a disciplina ciências é importante na formação de seus alunos porque
aborda questões do cotidiano, permitindo que eles entendam fenômenos que acontecem ao seu
redor. Ao se referir aos conceitos cuja abordagem julga fundamental, insiste na importância de se
formar uma base conceitual sólida, no Ensino Fundamental, para que os temas científicos sejam
aprofundados no Ensino Médio. Assim, os alunos devem ter contato com conhecimentos básicos
relacionados à Física, à Química e à Biologia para prosseguir seus estudos no Ensino Médio.
Indica que o tratamento da questão da leitura com entendimento é fundamental para todas
as disciplinas escolares. Para isto, afirma que proporciona aos seus alunos a oportunidade de
estabelecer contato muitos textos, para que desenvolvam a habilidade de leitura e escrita sobre o
que entendem dos textos lidos.
Entre as condições que dificultam o desenvolvimento de sua ação educativa, identifica o
que chama de “falta de bagagem” (durante a entrevista, indica, em tom de ironia, que não se pode
falar mais em pré-requisitos). Aponta que os alunos chegam à 5a série mal sabendo ler e escrever.
Esta lacuna impede que os alunos entendam o que fala o professor, o que ele solicita. Assim, sem
possibilidade de entender o que se passa na sala de aula, os alunos se desinteressam do contato
com o conhecimento, o que acaba por gerar a indisciplina. Indica que os resultados de seus
alunos em termos de aprendizagem não respondem às suas expectativas pois, mesmo tendo
alunos ótimos em classe, tem também alunos muito fracos, e, em função destes, é forçada a
“baixar” o nível, “senão eles não entendem nada”. A este respeito, indica que sua expectativa é de
que, nos próximos anos, a situação piore ainda mais pois acredita que o poder público não se
importa de fato com a educação. Sua preocupação está centrada na economia de recursos a serem
gastos com os alunos e não com a qualidade de sua formação. O que resulta deste processo, na
sua opinião, é que os alunos concluem o Ensino Médio sem dominar as habilidades básicas de
leitura e escrita. Ao manifestar esta posição, a professora explicita seu ressentimento em relação à
prática corrente de culpar unicamente o professor pelo fracasso do processo de escolarização.
Em relação ao impacto da organização da escola sobre sua ação, a professora indica que
reconhece o esforço da direção em ajudar no que é necessário, embora, às vezes, não haja
condições para que esta ajuda se estabeleça de fato. Acredita que quando a escola pressiona os
professores no sentido de garantir a aprovação dos alunos, esta pressão reflete orientações “que
108
vêm lá de cima”, ou seja, são determinações oficiais que a escola tem que cumprir. Indica que a
direção da escola se preocupa em integrar o trabalho das diferentes disciplinas mas identifica na
própria ação de alguns professores o esforço para “dar um jeito”, mesmo com as dificuldades
impostas pelo Estado, como as mudanças anuais de professores não efetivos, que geram rupturas
nos grupos que vêm desenvolvendo trabalhos integrados, e a necessidade dos professores
assumirem uma carga horária massacrante para garantir sua sobrevivência, comprometendo o
andamento de projetos de integração entre as disciplinas.
Em relação à influência das famílias sobre sua ação, indica a dificuldade imposta por
algumas à realização de trabalhos fora da sala de aula ou mesmo à aquisição de materiais para as
atividades educativas. Aponta que também existem pais que se oferecem para ajudar, mas
considera que, de maneira geral, as famílias estão se distanciando progressivamente da escola e
atribuindo a esta instituição responsabilidades que antes cabiam às próprias famílias. Acredita
que isto dificulta o trabalho do professor porque sobrecarrega este agente com funções ligadas à
formação geral dos alunos, a sua educação num sentido mais global, quando na verdade ele
deveria lidar com a transmissão de conhecimentos, “ensinar o que é importante para a vida”.
A Professora 2 reconhece em sua própria ação e na de alguns colegas o esforço para
garantir a qualidade da aproximação dos alunos em relação ao conhecimento, como indica na
seguinte declaração:
Têm estes problemas aí que são meio complicados, mas, quando a gente tenta, a gente tenta
fazer o máximo para ver as coisas andarem direito, mas não é fácil, é bem difícil, às vezes.
Sua prática não se desenvolve de forma isolada, ela busca vincular seu trabalho ao de
outros professores, bem como solicita apoio da escola, o que, aliás, considera receber. Identifica
fatores que limitam sua ação, como os ligados a interesses políticos, mas aponta para a
importância do cumprimento da função escolar de proporcionar aos alunos as condições para que
entendam os fenômenos que acontecem ao seu redor e para que prossigam seus estudos,
aprofundando progressivamente a sua bagagem conceitual.
Assim, o que se pode verificar a partir das informações trazidas a respeito das professoras,
é que as diferenças entre suas características pessoais e suas trajetórias profissionais não são tão
109
marcantes, mas suas reações diferem frente ao impacto das determinações escolares sobre suas
práticas. A caracterização de tais práticas e os dados retirados das entrevistas e questionários
permitem refletir sobre a questão central desta investigação: o que é o conhecimento escolar
presente no ensino de ciências? Para caracterizá-lo, tomando como referência os dados
apresentados e as contribuições teóricas de estudiosos ligados à educação, no capítulo seguinte
procurar-se-á discutir as relações que este conhecimento escolar guarda com os saberes de
referência, as aberturas permitidas ao conhecimento cotidiano, o impacto das determinações
referentes à organização escolar sobre ele, os recursos cognitivos mais explorados na intenção de
garantir a aprendizagem e o percurso realizado em sala de aula para aproximar os alunos dos
conceitos científicos.
111
Na descrição apresentada no capítulo anterior, delineou-se o perfil da ação educativa
realizada pelas duas professoras. A partir do que foi exposto nesta descrição, procurar-se-á trazer
elementos teóricos que permitam uma reflexão acerca das semelhanças e das peculiaridades que
marcam tais ações.
Para discutir inicialmente a natureza e a semelhança das ações docentes na prática
educativa, far-se-á a distinção entre ações e prática educativa, buscando esclarecer a
especificidade da prática pedagógica, ou seja, a peculiar organização do processo de ensinar e
aprender na escola. É pertinente a contribuição de Gimeno Sacristán (1999), para quem a ação se
refere ao sujeito, enquanto a prática representa a “cultura acumulada sobre as ações das quais ela
se nutre” (p. 73). Assim, a prática é uma construção coletiva da experiência histórica das ações:
“a ação pertence aos agentes, a prática pertence ao âmbito do social, é cultura objetivada que,
após ter sido acumulada, aparece como algo dado aos sujeitos, como um legado imposto aos
mesmos” (idem, p. 74).
A prática escolar comporta uma combinação de informações educativas – codificadas pela
linguagem ou estabelecidas em rotinas e hábitos – que configura uma maneira de pensar, agir e
dar tradução aos objetivos atribuídos à educação. Trata-se de uma configuração particular de toda
a informação virtualmente disponível, em que alguns traços são selecionados e outros, excluídos.
Isso significa que a ação dos agentes encontra-se circunscrita por uma condição prévia, a cultura
da prática acumulada, embora também possa gerar transformações nesta prática estabelecida.
Gimeno Sacristán (1999) indica que “a prática é fonte de ação, e os caminhos gerados por esta,
dentro daquela, podem enriquecê-la e redirecioná-la, condicionando o seu desenvolvimento
histórico” (p. 74). Portanto, as ações educativas representam possibilidades de transformação da
prática estabelecida, ainda que esta imponha limites claros àquelas. Daí a importância de se
descrever as ações docentes que se delineiam no interior da prática educativa, no sentido de
reconhecer o que se deseja conservar ou modificar no processo educativo para garantir uma
educação de qualidade, que cumpra sua função cultural e contribua para o estabelecimento de
condições sociais mais justas.
A prática educativa pode ser observada no funcionamento real da escola ou, também,
pode ser disponibilizada como conhecimento elaborado, ou seja, cultura objetivada sobre a
educação. Tal conhecimento pode revelar aspectos do funcionamento das instituições e
112
apresentar o que compõe a tradição educativa, ou seja, “o conteúdo e o método da educação”
(Gimeno Sacristán, 1999, p. 76).
A experiência ou cultura subjetiva dos professores se forma a partir de sua biografia
pessoal e da cultura compartilhada sobre educação, revelando que há espaço para a criação
individual, embora os limites do que é possível, ou não, já estejam definidos de antemão: “as
ações dos professores pertencem a eles mesmos, embora, por nutrirem-se da experiência coletiva
depurada e por reagirem a situações cristalizadas no percurso histórico, devam situar-se nessa
experiência coletiva, que podem não aceitar” (idem, p. 73). Assim, a descrição trazida no capítulo
anterior se refere à ação educativa desenvolvida por duas professoras que se deslocam na área
limitada pela prática educativa.
O caráter compartilhado das ações dos sujeitos, que gera a realidade social, torna mais
estável a ação de cada um (idem, p. 72). Ou seja, o fato de todos fazerem determinadas coisas da
mesma forma, acaba gerando segurança para os agentes que desenvolvem suas ações. A
mediação entre o sujeito, que age dentro dos limites impostos pela prática educativa, e a realidade
social que se estabiliza é proporcionada pelo habitus – esquemas sociais compartilhados que
orientam as ações dos indivíduos no grupo. Tais esquemas orientadores, segundo Gimeno
Sacristán (1999), “reforçam e amparam a solidez dos esquemas da ação dos professores, dando
estabilidade a práticas coerentes e constantes no tempo, dotando de congruência as ações
individuais entre si, inclusive diferenciando estilos de ações e práticas” (p. 83).
Nessa perspectiva, conclui-se que as professoras, embora partam de um mesmo marco da
cultura da prática acumulada, configuram o que poderia ser interpretado como um estilo
individual que, segundo Bourdieu, representa “o desvio que é possível dentro do exercício do
habitus” (apud Gimeno Sacristán, 1999, p. 84). Assim, quando se aponta para a semelhança entre
os tipos de exigência cognitiva das provas preparadas pelas professoras ou para a excessiva
preocupação de ambas com a realização das tarefas, mais do que com a qualidade das mesmas,
pode-se estar explicitando o que se apresenta para as professoras como limites intransponíveis
impostos por esquemas de ação compartilhados e sedimentados, ou seja, pela cultura da prática
acumulada que se configura nos limites do tempo de aula, dos procedimentos docentes e dos
materiais didáticos utilizados. Estes esquemas funcionariam como marcos a garantir estabilidade
às suas ações. São marcos inscritos nos limites da forma escolar, como definem Vincent, Lahire e
Thin (2001), que utilizam essa expressão para explicar uma “unidade que não é da intenção
113
consciente” (p. 9). Esta unidade corresponde a um princípio de inteligibilidade que permite que
se reconheça uma escola como tal. Segundo os autores, o que garante essa unidade é o caráter
impessoal das regras que pautam as relações no interior da escola (Vincent, Lahire & Thin, 2001,
p. 10).
A unidade que reconhecemos como a forma escolar é o resultado de um processo
histórico que se inicia nos séculos XVI e XVII e sua emergência deve ser considerada em relação
à outras transformações da sociedade (idem, p. 12).
Os autores descrevem o processo histórico de emergência da forma escolar, que
caracterizam pelos seguintes traços: a criação de um universo separado para a infância, a
importância das regras, a organização racional do tempo e do espaço, a necessidade do domínio
da língua escrita e a ênfase na multiplicação e repetição de exercícios. Estas características são
facilmente identificadas na prática educativa em que se inserem as ações docentes observadas.
Ambas as professoras organizam o tempo e o espaço de suas aulas de forma a poder cumprir os
conteúdos determinados pelo livro didático, valorizam a expressão escrita de seus alunos nas
provas – uma vez que este é o instrumento por excelência para estimar o quanto eles aprenderam;
embora a responsabilidade pelo desenvolvimento desta habilidade, especialmente no caso da
Professora 1, recaia praticamente apenas sobre os alunos, preocupam-se em manter a ordem, de
acordo com as regras escolares e enfatizam a repetição de exercícios que favoreçam a
memorização de informações. A forma escolar em que se inserem as ações docentes, portanto,
explica boa parte das semelhanças entre elas.
Na intenção de trazer mais elementos à discussão acerca da cultura da prática, ou das
práticas como trilhas e condição prévia à ação dos professores, destaca-se ainda a contribuição de
Varela (2000), que revela aspectos históricos que podem contribuir para a reflexão sobre os
traços identificados nas ações acompanhadas nesta investigação. A autora aborda o que denomina
“categorias do pensamento” – “representações coletivas relacionadas de alguma forma à
organização social e, mais concretamente, com as formas que o funcionamento do poder e do
saber adotam em cada sociedade”. Estas categorias representam, portanto, o resultado da
acumulação de contribuições de numerosas gerações que permitem que os homens se
reconheçam e se comuniquem, produzindo, também, um certo conformismo necessário à
adequação à vida em sociedade (p. 74).
114
Varela (2000) afirma que se trata de “noções que permitem coordenar e organizar dados
empíricos e tornam possíveis os sistemas de representação que os homens de uma determinada
sociedade e em um momento histórico concreto elaboram sobre o mundo e sobre si mesmos”.
Destaca-se aí o papel exercido pelas instituições escolares que põem em jogo determinadas
concepções e percepções do espaço e do tempo no processo de socialização dos alunos ( p. 73). A
discussão sobre essas categorias de pensamento veiculadas e interiorizadas pelos indivíduos
submetidos à escolarização pode lançar luz sobre algumas características que se repetem nas
ações das professoras acompanhadas.
Partindo da afirmação: “categorias espaço-temporais, poder, pedagogias, saberes e
sujeitos constituem dimensões que se cruzam, se imbricam e se ramificam no interior das
instituições educativas”, Varela (2000) descreve três modelos pedagógicos, frutos de três
períodos históricos distintos: as pedagogias disciplinares (que ganham força a partir do século
XVIII), as pedagogias corretivas (no princípio do século XX) e as pedagogias psicológicas (no
período atual): “três modelos pedagógicos que implicam diferentes concepções do espaço e do
tempo, diferentes formas de exercício do poder, diferentes formas de conferir um estatuto ao
‘saber’ e diferentes formas de produção da subjetividade” (p. 77-78). Pela história do
estabelecimento destes modelos pedagógicos, pode-se identificar o processo pelo qual alguns
fatores presentes na organização e no funcionamento da escola atual – aspectos que definem
limites claros ao desenvolvimento das ações docentes –, chegaram até esta instituição,
constituindo o terreno em que se produz o conhecimento escolar.
Durante o século XV, no período do Renascimento, “conhecer as coisas consistia em
descobrir o sistema de semelhanças que as fazia próximas e solidárias ou distantes e
incompatíveis”. Havia uma unidade fundamental entre os fenômenos “naturais”, “cósmicos” e
“sobrenaturais” e as idades da vida expressavam uma unidade cíclica e inevitável. Ao longo do
século XVI, com o início da Modernidade, os códigos de saber se modificaram e o homem
paulatinamente afastou-se da imagem de um pequeno microcosmo, sujeito às mesmas leis que
regem o Universo. Iniciou-se, então, o exílio do homem, destinado a separá-lo cada vez mais da
“animalidade” (Varela, 2000, p. 79-80).
A autora localiza no século XVIII o surgimento do poder disciplinar, ligado às
transformações ocorridas neste contexto histórico: econômicas (acréscimo e conservação de
riquezas), sociais (preocupação em controlar possíveis “motins” ou situações de inconformismo
115
com as desigualdades) e políticas (viabilização da nova sociedade). Nesse sentido, o poder
disciplinar partiu do seguinte pressuposto: “domesticar, normalizar e fazer produtivos aos sujeitos
é mais rentável do que segregá-los ou eliminá-los” (Varela, 2000, p. 81). Para tal, segundo esta
autora, transforma-se a concepção e a organização do tempo e do espaço. Em relação ao espaço, a
autora aponta:
O importante agora é a redistribuição dos indivíduos no espaço, sua reorganização, a maximização de suas energias e de suas forças, sua acumulação produtiva (...) A cada indivíduo há de se determinar um lugar, uma localização precisa no interior de cada conjunto. Os indivíduos hão de estar vigiados e localizados permanentemente para evitar encontros perigosos e comunicações inúteis, se de fato se quer favorecer exclusivamente as relações úteis e produtivas (Varela, 2000, p. 82).
A concepção e organização do tempo também se modificaram:
A idade se converte no critério fundamental de distribuição dos colegiais. A nova concepção de tempo exige organizar as atividades de acordo com um esquema de séries múltiplas, progressivas e de complexidade crescente. Organiza distintos níveis separados por provas graduais que correspondem a etapas de aprendizagem e que compreendem exercícios de dificuldade cada vez maior (idem, p. 84).
Sob o crivo das pedagogias disciplinares, as instituições educativas se tornaram
instituições examinadoras, tendo o exame dupla função: garantir uma “vigilância hierárquica” e
uma “sanção normalizadora”. Assim, os exames avaliavam as aprendizagens e a formação,
enquanto conferiam uma natureza específica a cada indivíduo, por meio de notas, fichas, registros
e históricos, o que “introduz a individualidade no terreno da escritura, convertendo cada sujeito
em um caso”. Quanto às sanções, frutos de novas relações de poder – menos visíveis quanto mais
fisicamente e materialmente presentes – passaram a consistir em repetições das atividades, em
fazer várias vezes a mesma coisa (Varela, 2000, p. 85-86). Esta autora acrescenta, ainda que:
Essa nova forma de perceber e organizar o espaço e o tempo permite um controle detalhado do processo de aprendizagem, permite o controle de todos e de cada um dos alunos, faz com que o espaço escolar funcione como uma máquina de aprender e ao mesmo tempo possibilita a intervenção do mestre em qualquer momento para premiar ou castigar e, sobretudo, para corrigir e normalizar (idem, p. 84).
116
Os saberes que, segundo Varela (2000), até o final do século XVIII se mantinham
dispersos e com caráter heterogêneo, passaram, com a consolidação do Estado, o
desenvolvimento de novas relações de poder e o impulso da Revolução Industrial a ser
submetidos a “processos de anexação e confisco de saberes locais e artesanais por saberes mais
gerais ou industriais”. Estas operações permitiram a seleção e o controle dos saberes e
implicaram no surgimento de práticas, iniciativas e instituições – da Enciclopédia até as
instituições acadêmicas e a um novo tipo de Universidade controlada pelo Estado (idem, p. 86-
87). O que passa a se delinear, então, é o monopólio das instituições contribuindo para o processo
de objetivação dos saberes. Este processo já se iniciara anteriormente, nos séculos XV e XVI,
com o ajuste do conhecimento a ser transmitido aos moldes da retórica, de acordo com sua
preocupação com a eloqüência, onde o conteúdo do ensino deveria ser moldado de acordo com o
método e a ordem, o que posteriormente serviu para configurar a escolarização como um dos
pilares do Estado Moderno (Hamilton, 2001, p. 57).
Varela (2000) conclui que o poder disciplinar “joga complementarmente em dois terrenos,
o da produção dos sujeitos e o da produção dos saberes” (p. 87). Os sujeitos passaram a ser
identificados pelos resultados obtidos nos exames e seus saberes foram deslegitimados em função
de um conhecimento superior centralizado nas instituições acima referidas. O poder disciplinar se
associa fortemente à história da organização da escola mantendo-se, como traço inerente da
forma escolar.
O estudo citado aponta, no início do século XX, uma certa ampliação da oferta da escola
para as classes trabalhadoras e a resistência de algumas crianças à escola disciplinar, o que gerou
“um novo campo institucional de intervenção e de extração de saberes destinado à ressocialização
da ‘infância anormal e delinqüente’”. Numerosos estudos realizados no início do século XX
trataram de classificar o que se definiu como infância anormal12. As instituições criadas para a
reabilitação dessas crianças inadaptadas acabaram servindo como laboratório para situações
experimentais que implicavam em uma redefinição do espaço e do tempo, uma visão diferente da
infância, a produção de uma nova subjetividade e um novo estatuto do saber (Varela, 2000, p. 89-
12 Varela (2000) cita as definições encontradas em um texto da época para os alunos considerados “refratários à disciplina escolar”: abúlicos, teimosos, mimosos, parabúlicos, cretinos, sem sentimentos, desconfiados, frios, desmemoriados, memoriosos, visionários, terroristas, surdos-mudos, cegos, de gostos grosseiros, inexpressivos, imbecis, histéricos, hiperestésicos, passionais e masturbadores (p. 89).
117
90). A tendência nos estudos de alguns pedagogos desse período, que se apoiaram nas teorias
psicológicas para criar situações experimentais com crianças consideradas anormais, foi de
rejeição às pedagogias disciplinares, motivada pela idéia de que o controle do processo de
aprendizagem e de socialização não deveria ser exterior e coativo e, sim, menos visível, menos
opressivo e mais operativo. Para alcançar esse objetivo, a criança passou a representar o centro de
seu próprio processo educativo, fazendo coincidir “um meio educativo ‘artificial’,
minuciosamente organizado e preparado, com algumas supostas ‘necessidades naturais’ da
criança” (Varela, 2000, p. 93). Delineia-se, assim, um modelo de pedagogia corretiva, de
transição para pedagogias psicológicas, que se desenvolveram mais ao final do século XX.
Destaca-se na descrição dos vários modelos pedagógicos estudados por Varela, o papel
fundamental da escola na transmissão e interiorização de categorias de pensamento que
contribuem para a manutenção da ordem escolar e da ordem social. Compreender o processo
pedagógico, de ensino e aprendizagem, no interior da escola exige, portanto, passar pelo
enfrentamento das questões relacionadas aos parâmetros de organização de espaço, tempo,
estatuto do saber, formas de autoridade e relações de poder – na relação com as condições sociais
e culturais mais amplas. Significa dizer que tais parâmetros, sedimentados como prática
educativa compartilhada, atuam como fronteiras que definem o contorno e delineiam as
possibilidades da ação dos sujeitos e, portanto, do processo pedagógico. O que se observa a partir
dos dados atuais referentes às ações docentes acompanhadas, é a força do poder disciplinar
incidindo sobre os indivíduos no interior da escola, em suas relações entre si e com o
conhecimento: na definição das posições a serem ocupadas pelos alunos na classe, na ênfase
conferida à obtenção de boas notas, na repetição de atividades como forma de adquirir
conhecimento e na cautela em relação à entrada do conhecimento cotidiano na sala de aula.
Contudo, mesmo diante das semelhanças das ações docentes, por estarem circunscritas
pela forma escolar, pôde-se constatar que as estratégias para lidar com estes limites foram
diferentes. Por exemplo, as professoras acompanhadas nesta investigação manifestam
preocupação com o controle da distribuição espacial de seus alunos, entretanto, esta preocupação,
para a Professora 1, se desloca para o contexto externo à sala de aula enquanto para a Professora
2, o foco é a própria sala. Nas aulas da Professora 1, não aconteceram situações que indicassem
um empenho da professora para controlar as posições dos alunos de acordo com o mapeamento
da sala de aula. Conforme a descrição da p. 36, seu comportamento em relação a essa atividade
118
foi um tanto displicente; de fato, ela revelou, em sua atitude e em alguns comentários feitos em
aula, uma certa descrença na possibilidade de arranjar os alunos no espaço de forma a evitar
conversas ou desatenção. Sua descrença talvez se deva ao fato de que criar um ambiente
favorável à aprendizagem demandaria mais do que simplesmente mantê-los em suas posições,
exigiria uma mudança na forma de compreender seu próprio trabalho, um cuidado maior com a
atividade de ensino e com a aprendizagem dos alunos, esforço que não demonstrou julgar
necessário para que os alunos de fato apreendessem o conteúdo de suas aulas.
A despeito do desprezo para com o ambiente em que se dá o ensino e a aprendizagem, a
Professora 1 mostrou-se sempre bastante disposta a evitar que os alunos atrapalhassem o
funcionamento dos demais espaços da escola, ou seja, que a indisciplina de seus alunos
ultrapassasse o limite espacial da sala. Tal disposição talvez possa ser compreendida quando se
atenta para a seguinte declaração, em que revela o que considera que a escola espera de seu
trabalho:
Sinto como se não importasse o que faço nas aulas, desde que os alunos fiquem na sala e que as
notas sejam azuis.
Tal declaração foi feita durante a entrevista, quando a Professora 1 manifestou que sabia que seu
trabalho poderia ser melhor, mas que essa expectativa reduzida da escola limitava a qualidade de
suas aulas. Diante disso, pode-se entender porque a professora exerce maior controle sobre a
indisciplina quando esta ameaça ultrapassar o território da sala de aula. A manutenção das
condições de organização e funcionamento da escola como um todo foi assumida por ela como
indicadora da qualidade de seu trabalho, ao menos diante dos demais agentes da escola, sendo
mais importante até do que a aprendizagem dos alunos, uma vez que o objetivo de manter um
clima favorável de funcionamento da escola se sobrepõe ao de manter um ambiente propício à
aprendizagem no interior da sala de aula.
A Professora 2 revela forte intenção de manter o espaço de sala de aula claramente
organizado, com as posições dos alunos no mapa de classe sendo confirmadas esporadicamente.
Sua preocupação com esta organização pôde ser identificada em uma aula em que desenhou na
lousa as posições que cada grupo de alunos deveria ocupar na aula seguinte, quando realizariam
um trabalho. Nesta aula, suas orientações foram para que quando ela chegasse à sala, os grupos já
119
estivessem posicionados na forma indicada. Em outra situação, ao combinar uma próxima aula,
no laboratório de ciências, indicou que os alunos deveriam se dirigir para lá após o sinal de
entrada na escola e se posicionar nos locais já definidos por ela anteriormente. Assim, ela
antecipa as orientações para as aulas futuras com o intuito de garantir a ordem e o ambiente
favorável para o desenvolvimento de sua ação, bem como de economizar o tempo da aula que
poderia ser gasto nesta atividade.
A manutenção de um ambiente propício às atividades de ensino e aprendizagem aponta
para uma determinada forma de se aproximar do conhecimento. Indica que é necessário um
esforço de concentração para que se mobilizem as informações ou os conceitos prévios que se
tem para que seja possível a apropriação do conhecimento. Aponta, portanto, para um processo
ativo por parte dos alunos e não para a recepção passiva de um conjunto de informações
desarticuladas que deverão ser simplesmente memorizadas. Por outro lado, descuidar das
condições em que se dá o ensino e a aprendizagem, fazer suas explicações a despeito de estar
sendo ou não ouvida, como faz a Professora 1, indica a consideração de que tal processo é
unilateral, ou seja, demanda apenas que o professor detenha o conhecimento e cumpra seu papel
de transmissão, sem a participação ativa dos alunos na sua apropriação. E, apesar de reforçar esta
idéia na forma de desenvolver sua aula, é principalmente a indisciplina, o comportamento
inadequado dos alunos e a não-valorização da escola, que a Professora 1 aponta como os grandes
responsáveis pela perda de qualidade de seu trabalho, como se pode verificar na seguinte
declaração:
O número muito grande de alunos por sala é o ponto de partida. A classe se torna difícil de
controlar (...) A não-valorização da escola pelos alunos e por alguns pais é um fator que
dificulta a aprendizagem.
A Professora 2 ocupa um espaço bem definido na sala de aula: só se desloca na faixa que
fica entre a lousa e as primeiras carteiras das fileiras. Quando os alunos precisam falar com ela
ou, quando são por ela convocados, dirigem-se à sua mesa. Fica, portanto, bem delimitado o
espaço ocupado por professora e alunos em suas aulas.
A organização da escola como um todo também define claramente que diversos espaços
são proibidos aos alunos, tais como, o corredor da secretaria, a sala dos professores e a porta
120
principal de entrada e saída da escola. Quando algum aluno se aproxima destes espaços, é comum
que algum funcionário – o auxiliar de serviços gerais, a secretária, professores, a diretora, etc. –
reaja prontamente, interpelando-o, por vezes com gritos.
Cada banheiro da escola também serve a grupos específicos de pessoas, não podendo ser
utilizado por qualquer um. No corredor da secretaria localiza-se o banheiro que serve à diretora e
vice-diretora, à coordenadora e ao pessoal da secretaria. No 1o andar do bloco mais antigo, sobre
o corredor da secretaria, localizam-se os banheiros dos professores (masculino e feminino). Os
alunos utilizam os que ficam no pátio, na área externa aos prédios que abrigam as salas de aula.
Aí também se localiza o banheiro que serve aos demais funcionários. Todos os banheiros
permanecem trancados – exceto os dos alunos – e somente os usuários determinados para cada
um deles podem retirar as chaves que permitem o seu uso, nos locais e com as pessoas definidas
para guardá-las.
A demarcação dos espaços que podem ou não ser ocupados pelos indivíduos no interior
da instituição escolar está ligada à preocupação com o controle e com uma definição hierárquica
de seus agentes. É um dos instrumentos de exercício do poder disciplinar. Na ação educativa da
Professora 1 verifica-se que este instrumento limita-se a servir a este propósito enquanto na da
Professora 2 ele extrapola estas funções no sentido de garantir que se estabeleçam as condições
necessárias para a aprendizagem.
A forma pela qual se administra o tempo das aulas pode definir e comunicar aos alunos
quais são as prioridades para o professor. Este tempo pode ser utilizado para diversos fins, tais
como, a organização do grupo – definir procedimentos, restabelecer o silêncio, ameaçar, recordar
tarefas que deverão ser entregues, agendar provas, etc. – e o ensino, entendido como a interação
entre professor e alunos em torno do conteúdo curricular. Rockwell e Mercado (1986) indicam
que nas escolas mexicanas, por exemplo, esta última atividade ocupa cerca da metade do tempo
efetivo de trabalho na sala de aula (p. 15).
A Professora 1 mantém um padrão bem definido de utilização do tempo em sua aula: no
geral, os 15 minutos iniciais concentram as conversas que estabelece com a classe acerca do
comportamento que os alunos devem ou não apresentar; suas explicações do conteúdo curricular,
que ocupam a parte central da aula, duram, em média, 25 minutos; os dez minutos finais se
destinam, geralmente, à realização de tarefas que não demandam a participação efetiva da
professora. Portanto, a interação da Professora 1 com os alunos em torno do conhecimento
121
escolar de ciências ocupa de 25 minutos a 30 minutos de sua aula. Deve-se destacar que, dos 15
minutos iniciais de aula uma parte significativa – que atinge, por vezes, dez minutos – não é
sequer utilizada para as conversas com a turma; representa, na realidade, o tempo de espera da
professora para que os alunos se sentem e diminuam o volume da voz e ela possa, então, iniciar
suas atividades. Assim, o que esse padrão de uso do tempo comunica aos alunos é que a
transmissão do conhecimento é central na escola, define a função da professora em classe e se
estabelece ainda que os alunos não estejam atentos a ela. É a professora que define o ritmo de
desenvolvimento da explicação, invariavelmente de acordo com a seqüência de abordagem
presente no livro didático. Porém, o controle do ritmo de desenvolvimento das demais atividades
– resolução de exercícios, provas, leitura, etc. – é estabelecido pelos próprios alunos, uma vez
que o tempo disponibilizado para elas é maior do que o que efetivamente utilizam, restando
sempre alguns minutos em que a turma se distrai com conversas não relacionadas com o assunto
abordado e com brincadeiras.
Nas aulas da Professora 2, pode-se perceber uma grande preocupação com a economia de
tempo, no sentido de maximizar as oportunidades de contato dos alunos com o conhecimento e
de minimizar as perdas que se devam à desorganização ou à indisciplina. Ainda que esse contato
com o conhecimento não seja preferencialmente centrado na figura da professora, é ela quem
define todas as etapas de desenvolvimento das tarefas, bem como o ritmo em que deverão ser
cumpridas. Logo no início das aulas, ou mesmo em aulas anteriores, a professora define o que
será feito, em quanto tempo e o que ainda resta fazer. Assim, os alunos são constantemente
lembrados da necessidade de se ganhar tempo, fazer o máximo no menor período. Essa urgência
comunica aos alunos que o trabalho de aproximação ao conhecimento é árduo, demanda
organização pessoal e do grupo e concentração no que se está fazendo. Não prescinde, de maneira
nenhuma, da participação efetiva do aluno, ao contrário, só se dá através dela. O que é central nas
suas aulas é a manutenção do ambiente favorável a esse movimento de aproximação ao
conhecimento – através da definição clara e prévia das etapas de trabalho, dos critérios de
avaliação e da diversificação de estratégias para tal – e não de extensas conversas acerca da
forma como devem se comportar os alunos.
Percebe-se, assim, como a prática sedimentada atua como terreno de limites e
possibilidades à atuação das professoras e define os contornos do processo pedagógico. O
conhecimento escolar, objeto e resultante desse processo, formata-se no interior das práticas, das
122
quais conserva marcas indeléveis. Por outro lado, trata-se de um conhecimento que é prescrito
externamente e apresentado à escola, sofrendo inúmeras transformações no percurso.
O conhecimento escolar representa o “resultado de um processo de trabalho social, por
meio do qual o conhecimento passa por uma série de transformações até resultar neste produto
que circula na escola” (Santos, 1995, p. 31). Baseando-se nas idéias de Bernstein, Santos (1995)
afirma que:
O discurso de um campo intelectual ou área de conhecimento é deslocado de seu campo original e realocado na escola por meio de recontextualizações sucessivas. Isso significa que o conhecimento produzido em um campo da ciência é recontextualizado de acordo com princípios políticos dos organismos e instâncias da sociedade civil ligadas à educação (administração pública do sistema de ensino, universidade e agências de pesquisa, rede editorial etc.) e, finalmente, recontextualizado de acordo com a gramática do aparelho escolar (p. 33).
A “gramática do aparelho escolar” cria as condições, portanto, para a constituição do
conhecimento escolar e, tal como as demais instâncias em que se estabelecem as
recontextualizações dos saberes, porta as marcas dos interesses, valores e relações de poder que
pautam a organização da sociedade.
O conhecimento escolar, portanto, não se reduz a um conjunto organizado de tópicos do
conhecimento científico transmitido pela escola. Segundo Santos (1995), as teorias e métodos de
ensino têm que ser considerados como elementos constitutivos do próprio conhecimento escolar
(p. 37). Assim, ao se acompanhar as ações educativas das duas professoras, pôde-se identificar
que as recontextualizações sofridas pelos saberes desde seus campos de produção resultaram em
materiais e em determinações oficiais que recaem sobre professores e alunos, delineando
contornos para o conhecimento escolar produzido. Mantém-se, portanto, por esta via, a relação do
conhecimento escolar com o conhecimento científico de referência. Entretanto, as escolhas de
cada professora em relação ao conteúdo e à forma de abordagem do conhecimento representam
estratégias diferenciadas de lidar com a “gramática do aparelho escolar” que permitem diferentes
aproximações em direção ao conhecimento científico. Como foi indicado, a relação do
conhecimento escolar com os saberes de referência pode ser ampliada ou reduzida, conforme o
favorecimento da discussão sobre a produção científica atual, a abordagem dos aspectos
123
históricos da produção do conhecimento científico e a preocupação em se explicitar o caráter
descontínuo de sua evolução.
O objetivo desta análise consiste em destacar os modos de aproximação ao conhecimento
possibilitados pelas práticas de ensino, com foco nas ações desenvolvidas pelas duas professoras
acompanhadas. Busca-se conhecer, como indica Santos (1992), “o regime de verdades que
orienta a produção do conhecimento pedagógico” e que marca suas ações, formatando o ensino e
o conhecimento escolar de ciências.
Em relação ao conteúdo selecionado para a transmissão nas aulas, percebe-se que as duas
professoras procuram seguir a seqüência trazida pelo livro didático. Entretanto, para a Professora
2, este recurso didático representa uma fonte de informações que baliza suas aulas mas não
restringe o conhecimento aos limites de seu texto. Através de atividades que se valem de outros
recursos – tais como, vídeos, leituras de jornal, visitas à exposições –, o processo de produção do
conhecimento escolar de ciências se abre para outras fontes de conhecimento, num movimento
que poderia permitir o estabelecimento de discussões acerca da responsabilidade social da
Ciência, como fator da maior relevância no que se refere à instrumentalização para a tomada de
decisões que possam interferir nas condições de vida do homem. O livro didático porta um corpo
de conhecimentos importante, mas não se pode esquecer que ele representa uma adequação dos
saberes de referência às determinações curriculares oficiais e às condições de organização da
escola, o que, por definição, significa um ajuste às condições de tempo e espaço escolares, bem
como às relações de poder que se definem nesta instituição. Assim, por questões relacionadas à
economia de tempo ou à manutenção da ordem social muitas questões que poderiam gerar ricas
discussões podem ser desconsideradas na produção dos livros didáticos. O trabalho com outras
fontes pode trazer este tipo de questão para o cerne do processo de produção do conhecimento
escolar.
A história dos conceitos científicos não foi abordada nas ações das professoras
acompanhadas. Essa lacuna implica uma noção de Ciência muito distante do que de fato
caracteriza tal atividade. É inerente ao trabalho dos cientistas, na produção do conhecimento, o
movimento de construção e desconstrução – bem como de filiação e contestação – de explicações
para as questões que se impõem em contextos específicos, como frutos destes e incidindo
diretamente sobre eles. Ao se ignorar estas características no processo de ensino, gera-se uma
relação com o conhecimento científico marcada por uma visão estática e dogmática e por um
124
sentimento de distanciamento em relação às questões científicas que inexoravelmente imprimem
suas marcas no cotidiano dos cidadãos.
O movimento de aproximação ao conhecimento científico por esta via, desligado da
história de sua produção, acaba por conferir ao ensino de ciências um caráter de convencimento.
Não há espaço para se discutir o que afirmam as autoridades que representam a Ciência – o
professor e os livros didáticos, por um lado, e os cientistas, estigmatizados como sujeitos
especiais, por outro. Da mesma forma, não há espaço para o conhecimento cotidiano dos alunos,
exceto quando ele serve para atestar a veracidade do o que o professor acaba de dizer. Ao se
aceitar que a Ciência não é produzida através de conflitos de idéias, o processo de produção do
conhecimento escolar sofre uma redução ou simplificação, pelo impedimento à explicitação de
qualquer contradição em sala de aula.
A Professora 1, mantendo-se estritamente ligada ao conteúdo do livro didático, não se
expõe a qualquer possibilidade de discussão sobre os conceitos abordados ou sobre a natureza da
atividade científica. Todos os exemplos que utiliza em suas explicações são encontrados nos
mesmos termos no livro didático. Ela opta, assim, por manter uma atitude de legitimação
recíproca entre suas afirmações e as que porta este recurso didático.
Identifica-se na ação educativa da Professora 2 uma abertura maior à entrada do
conhecimento na sala de aula por outras vias, além do livro didático. Ao indicar atividades que
demandam a leitura de artigos relacionados à Ciência, não necessariamente relacionados aos
assuntos abordados nas aulas, por exemplo, ela se expõe mais à possibilidade do estabelecimento
de discussões acerca da natureza e da responsabilidade social associada ao trabalho científico.
Ainda que a forma escolhida pela Professora 2 para explorar as atividades não tenha gerado tais
discussões nas aulas observadas, a sua ação indica que há alternativas para se realizar a
aproximação do conhecimento científico de forma mais aberta e crítica.
A forma de se aproximar do conhecimento científico também define um modo de
conceber o conhecimento comum. Lopes (1995), traz importantes contribuições à questão da
construção do conhecimento escolar, indicando crer que o conhecimento científico não é
construído a partir de elaborações sucessivas do conhecimento comum, numa idéia de
continuidade, e, sim, por ruptura com este conhecimento (p. 42). Concordando com a autora,
indica-se que a própria natureza da atividade científica confirma esta ruptura. Na Ciência
contemporânea, a natureza não é mais alvo de contemplação passiva pelo cientista, que neste
125
caso se limitaria a descrever fenômenos, da forma mais objetiva possível. A técnica, hoje, media
a relação entre cientista e natureza; apenas a teoria pode permitir que se estabeleçam as relações
entre o fenômeno observado e o que revelam os instrumentos, a técnica. Limitar-se a descrever
aspectos superficiais dos fenômenos fornece apenas um conjunto de fatos desconexos, destituídos
de caráter científico por não estarem inseridos em um sistema teórico (Lopes, 1995, p. 45). O
ensino de ciências parece não ter se apropriado desta mudança no caráter da atividade científica
instituída pelo desenvolvimento da técnica; insiste-se em reforçar as impressões superficiais dos
fenômenos observados no dia-a-dia, aquilo que o aluno já conhecia, ajustado apenas à linguagem
escolar. Um exemplo disto fica explícito na forma de abordar a mudança de estado físico da água,
nas aulas de 5a série: repete-se infinitas vezes que um cubo de gelo – água no estado sólido –
quando recebe calor, torna-se água no estado líquido. O processo de ensino traz algumas
definições; a explicação não ultrapassa o que os alunos já haviam observado sobre o fenômeno.
Toda a descrição feita não passa de informações desconexas, porque não se insere em um sistema
conceitual. Rockwell e Mercado (1986) indicam, a este respeito, que:
Ao se desenvolver uma unidade em ciências, se transmite ou destaca a definição formal de termos novos, e não o processo investigativo para chegar aos conceitos. Os processos que constituem os objetos de conhecimento das ciências sociais e naturais, na escola se segmentam e se transformam, necessariamente em “objetos de ensino” (p. 19).
Não se está afirmando que o conhecimento comum, ou cotidiano, não deve entrar na
escola. Pelo contrário, é dele que devem partir as reflexões que implicarão na desconstrução de
algumas noções e na substituição destas por novos conhecimentos. Mas, o que se observou,
especialmente nas aulas da Professora 1, foi que os conhecimentos prévios dos alunos só eram
considerados se servissem para reforçar o que dizia a professora durante suas explicações.
Rockwell e Mercado (1986) indicam como se dá esta entrada do conhecimento comum na escola:
Não parece importante validar o conhecimento que os alunos têm de seu meio, confrontá-lo com novas observações, elaborá-lo, buscar suas implicações. O docente pede exemplos ou ilustrações dos alunos a respeito de algum princípio ou conceito mais geral. Do que propõem os alunos faz-se uma seleção, uma reinterpretação e uma integração em função do tema específico que o professor deve tratar (...) Desta maneira, as referências ao meio servem para fazer mais familiar o esquema ordenador que transmite a escola (p. 20).
126
Esta desconsideração pelo conhecimento do aluno, que para ele compõe de fato um
sistema explicativo acerca dos fenômenos, ensina que existe um conhecimento e uma forma de
conhecer válidos – de domínio da escola –, que, ainda que negue a sua experiência pessoal e não
constitua um sistema explicativo de fato para o aluno, deve substituí-lo. Novamente Rockwell e
Mercado (1986) contribuem para a compreensão deste processo, concluindo:
Dada a invalidação da experiência própria, o aluno pode perder a confiança na sua própria capacidade de análise e construção de conhecimentos. Este fato, mais do que a falta de relevância temática do conteúdo escolar, explica por que o conhecimento escolar pode ser tão alheio ao aluno (p. 21).
A constatação das autoras talvez explique o desinteresse dos alunos, mencionado pela
Professora 1, em sua entrevista. Ela afirma que os alunos não se interessam, porque a escola não
traz novidades. Porém, nada pode ser objeto de interesse intelectual quando se perde a confiança
na própria capacidade de se aproximar do conhecimento.
A ação educativa da Professora 2 também não indica uma preocupação em estabelecer
interações orais freqüentes com os alunos acerca do que eles já conhecem a respeito do conteúdo
de ciências. Entretanto, por apresentar este conteúdo através de estratégias diversas, antes de
definir, fechar com sua explicação, o que se apresenta como conhecimento válido, legitimado
pela escola, ela proporciona aos alunos a possibilidade de mobilizarem, a partir das atividades
desenvolvidas, seus conhecimentos acerca dos assuntos abordados. Esta mobilização pode criar
situações de confronto entre as explicações iniciais dos alunos e aquelas com as quais eles
entraram em contato ao longo do processo de ensino estabelecido pela professora. Novamente, a
Professora 2 se expõe, cria possibilidades de discussão, de confronto de idéias, no processo de
construção do conhecimento escolar de ciências, assim como quando abre suas aulas à entrada de
questões científicas atuais.
Enfim, a análise das ações docentes acompanhadas nesta pesquisa revela que o
conhecimento escolar de ciências é fruto de uma conjunção de fatores que incidem sobre a
atividade de sala de aula. Questões ligadas à cultura da prática educativa acumulada, à forma
escolar, à cultura subjetiva dos professores incidem sobre as ações educacionais delimitando um
campo de possibilidades para o desenvolvimento destas ações. O modelo descrito nas pesquisas
acerca do ensino de ciências foi amplamente confirmado no caso da Professora 1 e parcialmente,
no caso da Professora 2. As aberturas apontadas na ação docente desta, indicam que, embora os
127
contornos definidos pelos fatores descritos acima possam de fato incidir negativamente sobre o
processo de produção do conhecimento escolar de ciências, gerando fragmentação e
simplificação do conhecimento científico – e do processo de elaboração deste –, há algum espaço
na escola pública para aproximações mais cuidadosas e mais ricas deste corpo de conhecimentos
fundamental para a formação dos alunos.
129
Em uma primeira etapa desta pesquisa, buscou-se delinear as escolhas de uma professora
em termos de forma e conteúdo estabelecidos para o desenvolvimento de suas aulas.
O que se pôde observar nas condições expostas inicialmente foi uma prática que não se
diferenciou substancialmente das descritas nas pesquisas sobre ensino de ciências anteriormente
citadas.
Confirmou-se a fragmentação dos conteúdos e a relação de dependência do professor em
relação ao livro didático. Revelou-se ainda uma aproximação do conhecimento que se baseia no
convencimento dos alunos de que a escola porta um conhecimento válido, que, ora desconsidera
o conhecimento cotidiano, ora, nas explicações da professora, não avança mais do que este já
explicava em relação aos fenômenos, apenas ajusta o que já se sabia a uma forma escolar de
conhecer.
A metodologia adotada confirmou-se centrada no professor e destacou-se a pouca
relevância dada ao desenvolvimento da expressão escrita dos alunos.
Considerando a classificação anteriormente apresentada, proposta por Astolfi e Develay
(1990), para os modelos pedagógicos assumidos no ensino de ciências, o que se observou
aproximou-se do modelo de aprendizagem por transmissão-recepção. Ou seja, o diálogo é
comandado pelo professor e os recursos que ele utiliza servem ao propósito de confirmar suas
exposições e neutralizar as representações espontâneas dos alunos. Não são abordados os
aspectos relativos à história do desenvolvimento do conhecimento científico e a Ciência parece
constituir-se de uma série de sucessos que vão se somando de forma contínua. O principal
recurso cognitivo acionado pelo processo de ensino é a memorização, confirmada nos tipos de
questões das prova e de tarefas de classe e de casa.
Na segunda etapa da investigação, ao se acompanhar a ação educativa de outra professora,
identificou-se aspectos semelhantes à primeira ação docente observada, tais como os tipos de
questões de prova e de classe, a pouca exploração dos registros escritos dos alunos nas correções,
a ausência de aspectos ligados à história do desenvolvimento do conhecimento científico, além da
escassa interação oral entre professora e alunos acerca dos conhecimentos prévios destes. Apesar
destas semelhanças, pode-se afirmar que a ação educativa desta professora se aproxima do que
Astolfi e Develay (1990) definem como modelo pedagógico por investigação-estruturação, uma
vez que as atividades didáticas visam auxiliar os alunos a se apropriarem do saber, e não apenas
recebê-los, como se pode verificar no hábito da professora de proporcionar o contato dos alunos
130
com várias fontes de informação, sob a sua orientação, sem centralização deste processo nas suas
explicações:
O professor anima, instiga, aconselha e apresenta certas exigências. Em outros momentos, observa, deixando os alunos autônomos. Orienta a atividade tateante, sobretudo de maneira indireta, por sugestões ou contribuições que modificam a atividade, facilitando as trocas entre grupos, reformula o que é dito e feito. Provoca momentos de explicação, de verificação, de confrontação, de comunicação (momentos estruturantes) (Astolfi & Develay, 1990, p. 119).
Explicitaram-se iniciativas na ação educativa desta professora que criam possibilidades de
aproximação do conhecimento a partir de um papel mais ativo e autônomo dos alunos e que
representam uma maior abertura do processo de construção do conhecimento escolar de ciências,
na interlocução com o conhecimento cotidiano e com as conquistas mais recentes da Ciência, o
que pode gerar, por um lado, maior confiança dos alunos nos seus recursos para conhecer e, por
outro, mais chances para que se reflita na sala de aula sobre as implicações sociais do
desenvolvimento da Ciência.
Enfim, pôde-se constatar que o conhecimento escolar de ciências no Ensino Fundamental
mantém-se ligado às Ciências de Referência especialmente através dos conteúdos presentes nos
materiais didáticos que chegam às mãos de professores e alunos – em especial, o livro didático.
Marcado pelas determinações escolares – especialmente as que se referem ao tempo, ao espaço e
ao tipo de uso dos recursos didáticos sedimentado pela prática –, o tratamento destes conteúdos
acaba por favorecer a constituição de um caráter a-histórico e dogmático ao conhecimento
científico. A escola, assim, veicula uma determinada visão da Ciência: uma atividade
caracterizada pela evolução contínua do conhecimento – para a qual os conflitos não trazem
qualquer contribuição –, cujo desenvolvimento compete à algumas pessoas portadoras de
características cognitivas especiais, apresentadas genericamente como cientistas, que trabalham
de forma isolada das condições sócio-históricas em que vivem. As relações entre escola, Ciência
e Sociedade encontram-se bastante empobrecidas por esta visão que favorece um distanciamento
dos indivíduos em relação às questões referentes ao processo de produção do conhecimento
científico e ao uso que se faz dos produtos da Ciência.
Destaca-se a relevância da hipótese inicial desta investigação (apresentada na p. 9) na
argumentação e análise dos dados para chegar à compreensão do conhecimento escolar de
ciências que se viu delinear nas aulas observadas. O que se verificou foi que os traços centrais do
131
conhecimento escolar de ciências no Ensino Fundamental são determinados pela formatação
escolar mais do que pela natureza do processo de produção e legitimação do conhecimento
científico. Evidenciou-se que esse predomínio das questões relativas à forma escolar pode gerar
uma limitação do potencial reflexivo dos conteúdos abordados no ensino desta disciplina.
Entretanto, o que esta investigação indica, e que confere esperança a quem se importe
com a qualidade do ensino público brasileiro, é que é possível ao professor, nas condições
escolares, repletas de limitações devidas a questões atuais e à própria história da instituição
escolar, encontrar algumas brechas para uma aproximação mais crítica do conhecimento
científico. Na análise dos dados evidenciou-se a necessidade de compreender o conhecimento
escolar nos parâmetros institucionais de sua constituição, assim como nos contornos de seu
campo científico de referência, sugerindo questões relevantes para a pauta de formação dos
professores. Não se está dizendo com isto, que é de total responsabilidade do professor a
qualidade do conhecimento escolar produzido, porém, pesquisas desta natureza ajudam a
identificar os pontos mais restritivos da cultura da prática acumulada às ações docentes
inovadoras e, também, o que já é possível fazer, dentro dos limites impostos, para melhorar a
qualidade do ensino de ciências.
133
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138
Levantamento dos procedimentos de pesquisa e das principais características apontadas em
pesquisas sobre a prática docente no ensino de ciências:
Total de teses e dissertações analisadas pelo autor: 572
Período: 1972-1995
Pesquisas que se referem exclusivamente ao Ensino Fundamental II: 114
Pesquisas referentes à prática docente neste segmento do Ensino Fundamental : 14
Procedimentos de pesquisa e caracterização da prática docente descritos nos resumos desses 14
trabalhos:
PROCEDIMENTOS DE PESQUISA NÚMERO DE PESQUISAS
Entrevistas 9
Observação de aulas 5
Análise documental 5
Questionários 4
CARACTERÍSTICAS DA PRÁTICA DOCENTE NÚMERO DE PESQUISAS
Concepção inadequada do professor em relação ao
processo de produção e legitimação do conheci- 4
mento científico
Dependência do professor em relação ao livro didático 3
Recursos didáticos insuficientes ou inadequados 2
Contradições entre as concepções do professor e sua 2
prática
Deficiências conceituais na formação do professor 2
Metodologia centrada no professor 2
Distribuição desigual do conhecimento de acordo com 2
a origem social dos alunos
140
1) ROTEIRO DE DESCRIÇÃO DA ESCOLA E DE SEU ENTORNO
I) CARACTERIZAÇÃO DO ENTORNO:
A) Estrutura do Bairro:
sim não frequência
Asfalto X
Luz X
Abastecimento de água e coleta de esgoto X
Áreas de lazer X + +
Arborização X + + +
Posto de saúde X
Pontos de ônibus X + +
B) Localização da escola e caracterização das atividades econômicas no entorno:
Localização: Município de Campinas, São Paulo.
Tipos de estabelecimentos comerciais no entorno da escola: Restaurantes, bares, lojas de
decoração, boutiques, consultórios médicos e odontológicos, escola de música, papelaria,
quitanda, farmácia de manipulação.
141
II) CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA E DE SEUS AGENTES:
A) Espaço físico:
Descrição da construção: Dois prédios interligados com 12 salas de aula, laboratório de
Ciências, biblioteca, sala de informática, cozinha, sanitários, quadra de esportes coberta,
zeladoria e almoxarifado.
Data da construção: 1943. Reformado e ampliado em 1993.
Distribuição das salas: Bloco principal (construção mais antiga): no térreo, secretaria, dire
toria, biblioteca, sala de informática, vice-diretoria, sala de coordenação, sala dos profes-
sores, um banheiro, sala de recursos; no 1o andar, sete salas de aula e dois banheiros.
Segundo bloco (construção mais recente): no 1o andar, duas salas de aula e laboratório de
Ciências; no 2o andar, três salas de aula.
B) População usuária:
Bairros de origem: Cerca da metade dos alunos reside no bairro e nas cercanias; o restante,
vem de bairros mais distantes e de regiões periféricas do município.
Defasagem idade/série: Segundo a coordenadora, praticamente não existe.
Índices de aproveitamento, avaliação da escola e evasão dos alunos: Segundo a coordena-
dora, a escola apresenta média de aproveitamento dos alunos no SARESP superior quando
se compara aos resultados de outras escolas da Delegacia de Ensino, da Coordenadoria e
do Estado de São Paulo. Apesar disso, ela ressalta que apenas duas séries apresentam per-
centual ideal de acerto nas avaliações. Não há evasão de alunos (a coordenadora atribui
142
este fato ao regime de progressão continuada).
Participação em atividades de recuperação ou de acompanhamento de estudos: Até o 1o se-
mestre de 2004, a recuperação paralela ocorria no contra-período de aula. Isto não mais
ocorre devido a um processo que a coordenadora denominou de “descaracterização da
clientela” – muitos alunos vêm de bairros distantes, o que não acontecia há alguns anos a-
trás –, dificultando a convocação para a recuperação. Segundo a coordenadora, de um tur-
ma de vinte alunos, compareciam, em média, dois. A recuperação contínua é realizada pe-
lo professor de cada disciplina, em sala de aula.
C) Direção:
Formação: História e Pedagogia.
Exerce atividade em sala de aula? Não.
Disponibilidade para atendimento ao público escolar e/ou geral: Todos os dias. Reveza o
atendimento com a vice-diretora (professora de matemática e pedagoga).
D) Coordenação:
Formação: Matemática.
Exerce atividade em sala de aula? Não.
Disponibilidade: Oito horas por dia, de segunda à sexta-feira.
E) Organização e funcionamento:
Ciclos atendidos: Ensino Fundamental II, Ensino Médio regular e Supletivo.
143
Turnos: Manhã, tarde e noite.
Nº de alunos: 1064.
Nº de classes por série: Ensino Fundamental: 5a série: 3 classes; 6a série: 2; 7a série: 4 e 8a:
5 classes. Ensino Médio regular (manhã): 1o ano: 4 classes; 2o ano: 3 e 3o ano: 3. Ensino
Médio regular (noite): 2o ano: 1 classe e 3o ano: 1 classe. Ensino Médio Supletivo: 1o ano:
1 classe e 2o ano: 1 classe.
F) Quadro docente:
Número de professores: 43
Equipe completa? Não.
Rotatividade: Grande, segundo a coordenadora. De um ano para o outro, efetivos permane-
cem e OFAS tem grande rotatividade.
Faltas e afastamentos: As faltas de professores são freqüentes. Em novembro de 2004 havia
4 professores afastados.
G) Orientação pedagógica:
Agente: Coordenadora.
Tipo: Predominantemente sua ação se relaciona com o controle de problemas disciplinares.
Nestas ocasiões procura envolver os pais, o aluno e a direção da escola.
H) Atividades de planejamento:
144
Tipos: Reuniões com todos os professores, sem pauta específica.
Freqüência: Em 2004, ocorreram três reuniões (em fevereiro, no retorno das férias de julho
e em outubro).
I) Projetos:
Número: Em 2004, quatro projetos foram desenvolvidos. Seus resultados foram apresenta-
dos em uma mostra da Delegacia de Ensino (produto final do Projeto CUIDAR).
Descrição: Projeto CUIDAR: da Delegacia de Ensino. Já vem sendo desenvolvido há cerca
de 4 anos. Relaciona-se com qualquer tipo de cuidado que se deva ter com a saúde, a cida-
dania, os aspectos emocionais dos alunos, as escolhas profissionais, etc. Engloba os demais
projetos descritos a seguir:
Projeto Agenda 21: Desenvolvido no ano de 2004, coordenado por uma professora de geo-
grafia, envolveu outras disciplinas. Relaciona-se com conceitos de ecologia.
Projeto Reciclagem: Desenvolvido no ano de 2004, por uma professora de ciências.
Projeto Vida – início e fim: Relacionado a questões sociais junto à Terceira Idade e à infân-
cia carente. Envolve doações e visitas a asilos e creches.
Projeto Educação Fiscal: Cada disciplina desenvolveu este projeto em uma série diferente.
Relaciona-se à questões relativas à cidadania. Também desenvolvido neste ano de 2004.
J) Participação da comunidade nas atividades escolares:
Descrição: De acordo com a coordenadora, é tímida. Ela atribui este fato à já mencionada
“descaracterização da clientela”. Não houve em 2004 nenhum projeto que envolvesse a
atuação da comunidade na escola.
145
2) ROTEIRO DE OBSERVAÇÃO DE AULA
SIM NÃO FREQUÊNCIA DESCRIÇÃO
Exposição do
tema ou do
objetivo da aula
Encadeamento
com a aula
anterior
Verificação de
tarefas
Correção de
tarefas
Uso do livro
didático
Uso de outros
recursos
didáticos
Referências ao
histórico dos
conceitos
abordados
Produção de
sínteses das
explicações
Questionamentos
aos alunos
Reação às
intervenções dos
alunos
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Conceitos abordados em aula:
Tarefas corrigidas e não-corrigidas:
Exemplos utilizados para a abordagem dos conceitos:
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ROTEIRO PARA QUESTIONÁRIO
1) Qual é a sua formação?
2) Onde e quando concluiu este curso?
3) Fez outros cursos? Quais?
4) Há quanto tempo exerce o magistério (na rede pública e na particular)?
5) Qual é a sua experiência com turmas de 5ª série?
6) Atualmente, quantas aulas ministra por semana? Em quantas e quais escolas e em que
níveis?
7) Qual é o tipo de vínculo empregatício que possui com esta escola?
8) Há quanto tempo leciona nesta escola?
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ENTREVISTA – Professora 1
1) Qual é importância da disciplina ciências para a formação de seus alunos?
Ciências é uma disciplina que interage com todas as outras, que não consegue ter
separação entre conteúdos pois traz aspectos da História, da Geografia, etc.
Por exemplo, uma vez fui chamada para uma entrevista em uma escola particular. Lá,
ciências era considerada o carro-chefe da escola. A professora que assumisse as aulas
teria que coordenar todas as outras disciplinas também. Acho que ciências é mesmo o
carro-chefe da escola.
A realidade é complicada, se fosse possível usar o laboratório, trabalhar no concreto,
seria mais rico. Mas a turma muito numerosa e a ausência de um monitor, ou de uma
forma de trabalhar com a metade da classe, dificultam.
2) O que você considera fundamental que seus alunos aprendam em ciências?
Na 5ª série são trabalhados conceitos básicos de ar, água e solo. A água, por exemplo, é
um tema universal agora. Ouve-se falar muito da água no cotidiano. Para entender o que
está acontecendo, por que está acabando, o porquê do racionamento, os alunos precisam
aprender sobre o significado da água e sobre a sua importância.
3) Ao tratar desta parcela do conhecimento, várias outras aprendizagens estarão envolvidas.
Como você percebe esse processo e quais seriam estas aprendizagens?
No tema água, quando os alunos fizeram a experiência da germinação, por exemplo, os
que fizeram tiveram um retorno: observaram, passaram para o papel o que vivenciaram.
Alguns até foram além, fazendo outras experiências.
O trabalho com o concreto é importante para tratar com essas outras aprendizagens.
Mas, quando o aluno não tem interesse em fazer o trabalho, às vezes a falta de interesse
não é só do aluno. Alguns não fazem porque a família não permite, porque faz sujeira.
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4) E quando não há possibilidade de “trabalhar com o concreto”?
Gosto de trabalhar dialogando com os alunos. Na aula sobre doenças, por exemplo,
quando falei daquela doença de praia.
Mas a coisa se perde neste tipo de aula, vira bagunça.
A sala de aula é pouco para o aluno; giz e lousa é pouco. Eles recebem muita informação
(internet, principalmente), seria necessário uma forma de chamar e prender a atenção
deles.
5) E antigamente, giz e lousa eram o suficiente?
Acho que sim, porque a escola era a fonte de novidades.
Dou aulas há treze anos. Antes, no começo, ia mais ao laboratório, conseguia prender a
atenção dos alunos, eles valorizavam a escola.
Depois dessa história da progressão continuada, a escola virou uma área de lazer para
os alunos, um lugar para encontrar os outros, brincar e conversar. Isso gera indisciplina
o que dificulta o trabalho.
Mesmo para os pais, em linhas gerais, a escola perdeu o valor. Acho que isso vem de
casa. Na minha casa, com os meus filhos, eu cobro uma postura de valorização, afinal,
eles passam a maior parte do dia na escola. Tem que ter cobrança.
6) Você identifica condições que dificultam o aprendizado de seus alunos? Quais e por quê?
O número muito grande de alunos por sala é o ponto de partida. A classe se torna difícil
de controlar, é inviável ir ao laboratório ou mesmo utilizar os computadores.
Seria necessário um material que despertasse maior interesse por parte dos alunos. A
não-valorização da escola pelos alunos e por alguns pais é um fator que dificulta a
aprendizagem, assim como a falta de acompanhamento dos pais sobre a vida escolar de
seus filhos. Por exemplo, tinha um aluno que no começo do ano ficava sozinho em casa
com o irmão. Ele apresentava resultados ruins, nem copiava o que era passado na lousa.
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A partir de um certo momento, ele começou a comentar que a mãe estava ajudando a
estudar e a fazer os trabalhos. Seus resultados foram melhores, o que mostra como é
importante o envolvimento da família.
Alguns alunos não trazem pré-requisitos, como habilidades de leitura e de escrita, o que
dificulta o aprendizado.
7) Como têm sido os resultados de seus alunos nesta disciplina?
Com relação às notas, é um grupo bem heterogêneo. Alguns alunos apresentam muita
facilidade; a grande maioria situa-se na média, assimilando o que é trabalhado na sala
de aula e outro grupo tem dificuldade de entendimento (faltam os pré-requisitos básicos
de leitura e escrita).
A média na classe é de dez a doze notas vermelhas por bimestre.
Em relação às discussões em classe, sinto que houve uma evolução desde o começo do
ano.
8) Você recebe algum tipo de apoio da escola para organizar seu trabalho de sala de aula?
Qual? Por outro lado, existe alguma ação da escola que dificulta seu trabalho? Qual e por
quê?
No ano passado, a escola tinha muitos alunos em recuperação, em todas as disciplinas.
Acho que isso ou indica um trabalho inadequado dos professores e da escola ou
problemas dos alunos. Porém, houve grande pressão para que não houvesse esse índice
alto. Isso gerou uma “chuva” de notas azuis neste ano, em todas as disciplinas.
Não é o que acontece comigo. As minhas provas são fáceis e, mesmo assim, os resultados
são ruins. Eu me pergunto: como os outros conseguem estes resultados?
Esta escola é muito bem conceituada, há até um certo status para quem dá aula aqui. Os
pais também consideram um privilégio conseguir vagas para seus filhos. Mas, a escola
não enfrenta seus problemas, criou uma espécie de casca frágil que oculta estes
problemas e faz cair o nível do ensino.
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Fico angustiada porque sei que meu trabalho tem falhas, que eu poderia ser melhor como
professora, mas esta forma da escola de esconder suas deficiências contribui para que eu
seja menos do que poderia ser.
Por exemplo, o projeto que foi combinado no começo do ano. Todos os professores iam
trabalhar o mesmo tema – água. Fui até a direção e disse que este seria o assunto que eu
abordaria desde o começo do ano. No entanto, não houve nenhuma integração entre as
disciplinas.
Sinto como se não importasse o que faço nas aulas, desde que os alunos fiquem na sala e
que as notas sejam azuis.
9) Estes alunos vieram de outras escolas. Na sua opinião, como tem sido a sua adaptação a
este novo ambiente?
Boa. Não senti dificuldade. Sempre há uma preocupação com o prédio, com as escadas,
etc., mas esta turma adaptou-se bem. Muitos já estudavam juntos nas outras escolas, por
isso, não tiveram dificuldade em se entrosar.
10) E em relação às famílias destes alunos, você identifica algo que dificulte ou facilite seu
trabalho em sala de aula?
Alguns pais não permitem ou não estimulam seus filhos a fazerem os seus trabalhos de
casa. Por isso, recebi poucos retornos dos trabalhos solicitados.
De modo geral, percebo pouco empenho e participação das famílias.
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ENTREVISTA – Professora 2
1) Qual é importância da disciplina ciências para a formação de seus alunos?
É importante porque vivencia muito o seu dia-a-dia. Na área do corpo humano, traz
muitas coisas novas que acontecem. Tanto a parte da 5a série, a parte de água, ar e solo,
também, a gente traz muita coisa, então, é importante para ele entender isto, que a
disciplina ciências trabalha o seu dia-a dia, o que está acontecendo ao seu redor, a
importância de algumas coisas, de alguns fenômenos. Então, esta que é a importância, de
eles estarem conhecendo.
2) O que você considera fundamental que seus alunos aprendam em ciências?
Entender como funciona o corpo, pelo menos as coisas básicas, para ele estar
aprofundando mais no ensino médio. Algumas coisas, também, muito “basicazinhas” que
estão relacionadas com a parte de física, que são as coisas básicas para ele também
poder ter uma bagagem para o ensino médio. A parte de química, também, porque tem
um pouquinho na 5asérie, bem pouquinho de física e química. E mesmo a parte de
zoologia e botânica, também, porque como a matéria é muito grande, não dá tempo para
estar dando tudo na 6asérie, mas pra eles terem uma idéia para o ensino médio, para a
área de biologia, física e química, para eles entenderem no ensino médio.
3) Ao tratar desta parcela do conhecimento, várias outras aprendizagens estarão envolvidas.
Como você percebe esse processo e quais seriam estas aprendizagens?
Por exemplo, leitura. O que eu acho muito importante, que a gente está trabalhando até
em reuniões, que é a parte da interpretação. Esta é uma das coisas mais fundamentais,
que é o aluno ler, interpretar e entender o que está lendo e, não, ler só por ler. Então, o
que a gente faz é trazer muito texto para eles estarem lendo. O que eu faço é trabalhar
com jornais com eles. É eles estarem indo atrás de informações do cotidiano, do que está
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acontecendo na área científica e poder ler e escrever o que eles entenderam. Então, a
interpretação é uma das coisas mais fundamentais, não só na área de ciências como em
todas as áreas. É o que todo mundo está brigando aí, que é a interpretação. A gente está
fazendo até um curso que é do ensino médio, em rede, porque é isto aí que está
“pegando”: leitura e escrita. São coisas fundamentais que eles não estão tendo.
4) Você identifica condições que dificultam o aprendizado de seus alunos? Quais e por quê?
É a falta de bagagem. A falta de condições, que são os pré-requisitos, que eles vêm da 4a
série mal sabendo ler e interpretar, que é uma das coisas mais graves que a gente pega
aí. Em uma prova, não conseguem entender o que a gente está pedindo. O problema é
que eles chegam assim e começam a ficar desinteressados, o que gera a indisciplina.
Então, a classe começa a ficar tumultuada, por estarem sendo “empurrados”, não terem
uma base boa de 4a série, chega na 5a e fica totalmente perdido. Eu acho que este
desinteresse é que gera isto. Ele está na sala de aula, não entende o que o professor pede
e começa a tumultuar, gerar aquela indisciplina, e o professor começa a cansar. Então,
esta é uma das condições que eu considero um problema grave.
5) Como têm sido os resultados de seus alunos nesta disciplina?
Não é o resultado que eu gostaria. Eu espero mais porque, às vezes, eu mesma tenho que
baixar o meu nível para poder fazer com que eles consigam antender algumas coisas,
porque a gente tem, assim, na classe, ótimos alunos, alunos que têm dificuldades, mas
que tentam e alunos que não fazem absolutamente nada. Então, quando eu vou avaliar, o
que eu sinto dificuldade é isto, porque tem alunos ótimos e eu não posso dar muito para
estes alunos e tem alunos fracos, que eu tenho que descer um pouco o nível, senão eles
não entendem nada, entendeu? Não é um resultado que eu espero...esperava, né? Eu
acho que daqui prá frente o negócio vai dificultar cada vez mais por causa do nível que o
Estado está, das condições que o Estado está...a educação, em geral, né? Cada vez mais,
no meu ponto de vista, eles não estão preocupados com a educação, estão preocupados
com outra coisa, né? Política, no meu ponto de vista. Então, se o aluno fica, se é retido, é
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dinheiro que o governo vai gastar. É aquele monte de coisa que todo mundo já sabe. A
gente está formando esses alunos, saindo do 3o ano do ensino médio mal sabendo ler e
escrever. Aí, o que acontece, a culpa é de quem? É do professor. O que vai acontecer? No
fim, vão falar que o professor não ensinou, que o professor não foi atrás desse aluno, que
o professor não deu oportunidade. Eu vou atrás. Eu falo, eu converso, então, a gente
coloca este lado aí, né?
6) Você recebe algum tipo de apoio da escola para organizar seu trabalho de sala de aula?
Qual? Por outro lado, existe alguma ação da escola que dificulta seu trabalho? Qual e por
quê?
A escola apóia muito alguns trabalhos nossos, ela ajuda no que pode. Quando ela não
tem meios, chega e fala pra gente. Mas, aqui na escola a gente tem muito apoio da
direção. Pelo menos, comigo. O que eu sinto dificuldade, às vezes, é principalmente no
laboratório porque eu chego, às vezes, o laboratório está sujo, está bagunçado, aí, eu
falo, aí é difícil a direção estar correndo atrás. Aí, a gente cansa, porque eu arrumo o
laboratório, faço as coisas, consigo acontecer. Às vezes, ele é usado por outros
professores, também, tem, por exemplo, química, estas coisas, usa o laboratório e, às
vezes, eu sinto dificuldades nesta parte aí. E a sujeira, que a gente pede, né, e quando vai
ver, está tudo sujo, os alunos sentados em mesas sujas, isto aí me irrita um pouco, porque
a gente quer sentar num lugar agradável.
Eu acho que não tem uma coisa, assim, que a direção dificulta, o que acontece é que a
direção, às vezes, vem falar pra gente que, por exemplo: “O aluno, chega no final do
ano, vocês têm que tentar fazer de tudo para o aluno passar”. Mas, não é, às vezes, a
própria direção, são coisas que vêm lá de cima pra cair em cima deles e daí els falam
isto prá gente e nós, professores, acabamos ficando meio irritados, chateados, porque
você faz um trabalho o ano todo e o seu trabalho é jogado no lixo. Eu falo para os meus
alunos: “Vocês não estão passando comigo, se vocês passaram sem saber nada, o
governo é que está passando”. Porque os alunos vêm, perguntam mesmo prá gente: “Por
que o Fulano passou se ele não fez nada o ano inteiro?”. Eles mesmos ficam pensando,
né? Eu, na minha matéria, dou todas as oportunidades possíveis, né?
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Então, assim, a gente tem um certo apoio da direção. Tem a preocupação com a
interdisciplinariedade. A direção está preocupada, mas os próprios professores observam
tudo, não todos, mas alguns vão tentando dar um jeito. Porque é complicado no Estado
por causa das mudanças de professores, às vezes, os professores não conseguem se
reunir porque têm que dar muita aula, então, tem estes problemas aí que são meio
complicados, mas, quando a gente tenta, a gente tenta fazer o máximo para ver as coisas
andarem direito, mas, não é fácil, é bem difícil, às vezes.
7) E em relação às famílias destes alunos, você identifica algo que dificulte ou facilite seu
trabalho em sala de aula?
Ah, têm alguns que dificultam. Principalmente quando você vai pedir para fazer algum
trabalho fora da classe. Aí vêm os pais reclamar. Ou, se você tem que pedir algum
material, por exemplo, mesmo o jornal, que é um trabalho super importante, já veio pai
falar que não consegue arrumar jornal. Eu falei assim: “Mas, você tem que ensinar seu
filho a ler um jornal, pelo menos. Não tem, pega no vizinho, quanto jornal é jogado fora,
é usado para outras coisas?”. E outros, não, outros pais vêm aqui na escola para ajudar:
“Você quer uma ajuda?”. Então, a gente tem os dois lados, mas eu acho que a família
está cada vez mais distante, a família está entregando o aluno na nossa mão e falando
assim, ó: “Vocês eduquem, façam o que vocês quiserem”. Eu sinto isto, que o que os pais
estão fazendo dificulta o nosso trabalho porque o certo era eu, professora, dar conteúdo,
ensinar o que é importante para a vida, e não ficar educando, que é o que eles deveriam
fazer. Às vezes, eles vêm para cá e deixam na mão da gente para educar.