Conhecer Góis
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Um olhar sobre a geografia humana
Uma abordagem do passado
O património natural. Dois ex-libris
O património construído. O Interesse Público
O património cultural. Um desafio
O objectivo deste texto é proporcionar uma ideia genérica do concelho, a partir de
coordenadas que julgamos melhor o caracterizam.
Naturalmente que, sendo um curta notícia, muito ficará de fora. São opções
tomadas, sujeitas à crítica, que desde já se agradece.
A quem desejar aprofundar os conhecimentos, aconselhamos a consulta da
principal bibliografia sobre o concelho, que em breve vamos colocar disponível
neste portal; e, sobretudo, passar uma temporada em contacto directo com as
terras e as suas gentes.
Um olhar sobre a geografia humana
Num espaço de quase 264 Km2, no interior da Beira Litoral, afeiçoados à serra mas
em parte ligados ao meio citadino, quer a Coimbra, quer a Lisboa, residem cerca de
5 000 almas, na esperança de ainda poderem assistir à inversão da taxa
decrescente populacional, que o concelho sofreu no seu passado recente.
Olhando do alto, uma linha de alturas evidencia uma divisão em duas áreas
distintas, geográfica e socialmente díspares, que o poder central decidiu unir, numa
visão economicista, contrariando a História, as leis da natureza e os desejos dos seus
autóctones. Uma junção mais que união de facto, que muito veio condicionar o
desenvolvimento social, económico e cultural desta mini – região
.
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Um olhar sobre as alturas (num esboço hipsométrico do concelho)
Egas 455 m
Gatucha R. Ceira R. Ceira R. Ceira R. Ceira Vieiro 963 m R. CelavisaR. CelavisaR. CelavisaR. Celavisa 859 m
R. SotamR. SotamR. SotamR. Sotam
Carvalhal Rabadão 536 m 696 m R. SandinhaR. SandinhaR. SandinhaR. Sandinha R. ÁdelaR. ÁdelaR. ÁdelaR. Ádela Sacões 593 m R. CeiraR. CeiraR. CeiraR. Ceira
R. Alvém R. Alvém R. Alvém R. Alvém Caveiras R. CeiraR. CeiraR. CeiraR. Ceira 1029 m
R. AigraR. AigraR. AigraR. Aigra R. Mestras R. Mestras R. Mestras R. Mestras
Trevim R. Loureiro R. Loureiro R. Loureiro R. Loureiro
1202 m R. Pena R. Pena R. Pena R. Pena
Neve Malhadas 1174 m 1000 m
Penedo Pedras do Lumiar Entre Capelos 1043 m 874 m 932 m
Picos R. SinhelR. SinhelR. SinhelR. Sinhel 1040 m Freiras
773 m
Vale do Chão 818 m R. SimantortaR. SimantortaR. SimantortaR. Simantorta
R. SinhelR. SinhelR. SinhelR. Sinhel
R. AmR. AmR. AmR. Amiosoiosoiosoioso
R. MegaR. MegaR. MegaR. Mega
R. UnhaisR. UnhaisR. UnhaisR. Unhais
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A parte norte, o núcleo primitivo do concelho, faz parte da bacia hidrográfica do
Mondego, unida pelo rio Ceira, que atravessa todas as suas freguesias. Insere-se na
denominada Beira Serra, nos contrafortes sul da Serra da Estrela, à sombra da Serra
do Açor. Em parceria histórica com o concelho vizinho de Arganil, e em parte com
os de Tábua e Pampilhosa da Serra, com eles compartilhou divisões administrativas e
judiciais, e conviveu economicamente e socialmente. Foi desta área que se gerou o
primitivo concelho de Góis, foi dali que, ao longo do tempo, se moldou a alma
goiense.
A freguesia de Góis é uma amálgama de diferentes sociedades.
Na sede, única vila do concelho, reside praticamente um sexto da população, um
extracto social intermédio entre camponeses e citadinos, constituído sobretudo pelo
tecido terciário, de funcionários, comerciantes e profissões liberais. Com um
comportamento contraditório, característico de vila do nosso interior, por lado sendo
proletários, isto é, vivendo da sua actividade profissional, por outro comportando-se
como burgueses. Permanece ainda, pela força do costume, algo de espírito
senhorial, de que o poder municipal, vindo de fora, tem querido apropriar-se.
Uma boa parte dos que aqui trabalham são forasteiros e pouco inseridos na
sociedade local. Por isso, quem desejar conhecer a genuína sociedade goiense,
mais facilmente a encontrará nos subúrbios da vila.
Nas povoações periféricas, das chãs às meias encostas dos montes que a envolvem,
labuta uma classe que, embora movendo-se em torno da vila e por ela sendo
atraída, não tem perdido as suas características aldeãs e algumas das suas
tradições.
Ponte do Sotam é, nesta freguesia, uma excepção. Outrora genuína povoação de
operariado, consequência de uma grande indústria local centenária, que a
marcaria ao longo de várias gerações, vive hoje a amargura de uma alteração
radical, económica e social, do seu aglomerado. Os seus naturais são um exemplo
vivo de luta tenaz contra a adversidade e as alterações de vida.
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A freguesia de Vila Nova do Ceira é ainda senhora de arreigado espírito
comunitário, de vida social coesa, de forte personalidade. A “pertença” paroquial
que todos sentem, espelha-se quando se lhes pergunta donde são: invariavelmente
respondem que são “da Várzea”, e só depois, se necessário, explicitam o nome da
sua povoação natal.
As freguesias do Cadafaz e Colmeal, tipicamente serranas, com as aldeias dispersas,
onde é mais forte a simbiose entre as gentes e a natureza e é mais elevada a faixa
etária. O seu isolamento, pelo acidentado do terreno e ausência de vias de
comunicação, contribuiu para uma diversidade de valores culturais, dificultando ao
mesmo tempo uma agregação de vontades e de esforços, na luta pelo seu
desenvolvimento.
A parte sul, que se juntou em meados do século XIX, preenchida na sua totalidade
pela freguesia de Alvares, está inserida na bacia hidrográfica do Zêzere e encontra-
se voltada para a região baixa das Beiras, onde outrora terá pertencido
administrativamente. A Beira Serra pouco lhe diz.
Com o centro de gravidade puxado bem a sul, onde se situa a sua sede e o grosso
da população, distante da capital administrativa, a sua inserção no novo concelho
não tem sido fácil, com o coração balançando entre Góis e os concelhos vizinhos.
Tendo sido a freguesia capital de um concelho desmembrado, igualmente muito
antigo e com pergaminhos, com a sua própria História, a perda da identidade
concelhia deixou-lhe marcas profundas.
Duas povoações, Alvares e Cortes, concentram cerca de 30 % da população da
freguesia.
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Uma abordagem do passado
Vestígios antigos indicam-nos que a região de Góis foi frequentada por romanos e
outros povos que estiveram na Lusitânia. Calçadas, talvez de hipotéticas rotas de
mercadorias, ligando Tomar a Bobadela ou a caminho do interior da Península, e
alguns achados arqueológicos, embora não muitos, encontrados por aqui e ali,
como candeias, ânforas e mós, ou aras votivas, moedas e brincos de ouro, a isso
levam a crer. As nossas minas certamente tê-los-ão atraído, mas não se sabe se
chegado a manter uma povoação com estabilidade.
Provavelmente a um desses povos remotos (do tempo dos “mouros”, como em
linguagem popular são referidos os nossos antepassados antigos), se deva a origem
da própria palavra Góis, um topónimo que existe em apenas mais três povoações
na Europa ocidental, uma em França, outra na Áustria e uma terceira na Holanda,
locais onde já tivemos ocasião de conviver com os nossos irmãos goienses. Há quem
sugira que o topónimo Góis tenha origem goda, mas há outros também que
esgrimem argumentos a favor da latina.
Aquando da reconquista cristã, a região encontrava-se despovoada. É natural que
os indígenas estivessem refugiados nas montanhas, fugindo das sucessivas invasões e
lutas travadas. Mas é dessa altura que possuímos elementos concretos que nos
permitem assinalar no tempo a constituição do embrião do concelho de Góis.
De facto, por documentos escritos, sabe-se que D. Teresa, então viúva do Conde D.
Henrique e tendo a seu cargo a governação do Condado Portucalense, sendo o
seu filho Afonso Henriques ainda uma criança, doa os domínios de Goes (como
então se escrevia) a Anaia Vestrares. E fá-lo isso exactamente com o intuito de ele
fazer o seu povoamento (referindo que se encontrava despovoado), de modo a
fortalecer a defesa contra os infiéis, na reconquista das terras usurpadas. A data
deste documento de doação, 15 de Agosto, é o motivo da opção do Dia do
Município, que festejamos nos tempos actuais.
Constitui-se assim um senhorio, na base de uma concessão a título hereditário, que
iria prosseguir numa linhagem contínua, passando de geração em geração, até ao
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liberalismo, no século XIX, quando então é decretado o fim do regime geral dos
senhorios. Ao longo de oito séculos, os donatários unem-se pelo matrimónio a outras
famílias notáveis do reino, passam por algumas turbulências e lutas violentas, mas
resistindo sempre. E vão ter posição de destaque na História do nosso país, quer na
Idade Média, quer na Moderna.
* * *
Ainda que toda a periodização histórica seja sempre artificial, pessoalmente
gostamos de o fazer, pela sua utilidade na compreensão da evolução da
sociedade. Assim, vamos distinguir duas épocas ao longo deste tempo senhorial.
A primeira abrange a vivência de duas famílias, a dos Góis (1114 - 1459) e a dos
Silveira (1459 - 1617), ambas famílias da Corte, de prestígio, com altos cargos na
Administração Pública e intervenientes em acções importantes no país.
Na família Góis, que se estende ao longo de onze gerações, vamos referir apenas
alguns dos seus donatários, ligados a factos relevantes na vida do concelho:
Gonçalo Dias de Goes – Genro do primeiro donatário Anaia Vestrares, que, ao usar o
homónimo Goes, tirado do topónimo local, dá início à nova família. Merecia, pelo
menos, uma referência na toponímia da vila.
Vasco Farinha de Goes – Institui, em 1290, o morgado de Góis, um dos primeiros que
foram constituídos no reino, uma instituição que iria fortalecer, durante séculos, a
unidade do senhorio. Constrói o Paço Velho, no largo do Pombal, que vai servir de
residência dos Senhores, até à construção do Novo Paço, terminado em 1532, junto
ao rio Ceira.
Gonçalo Vasques de Goes – Escrivão da puridade (hoje chamaríamos Primeiro
Ministro) de D. Pedro I, estabelece, em 1314, o primeiro foral de Góis. Não foral do
poder central, mas um regularizando a organização local.
Mécia Vasques de Goes – É uma das figuras emblemáticas do concelho, pela sua
forte personalidade e envolvimento na vida local. Bem podia ser considerada como
símbolo da mulher goiense. E com direito a estátua. Foi dona do senhorio entre os
anos 1395 e 1444.
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Une-se pelo casamento à família Lemos, mas fica viúva muito cedo. Com uma
grande fortuna, faz aplicações no forte mercado financeiro italiano e, em Portugal,
conhecem-se ajudas financeiras ao Infante D. Henrique, para os seus negócios e
actividades marítimas. Bate-se com energia numa longa batalha jurídica, travada
entre os seus filhos mais velhos, para que os negócios do senhorio de Góis pudessem
prosseguir no bom rumo. Morre nos Paços Velhos, em 1444, no Largo de Pombal.
Beatriz Lemos de Goes – O último donatário a usar o apelido de família. Casa com
Diogo da Silveira, escrivão da puridade de D. Afonso V, da família alentejana
Silveira, então em vertiginosa ascensão social e política do reino.
Fora do concelho, outros Goes e Góis (a partir de certa altura usaram-se as duas
grafias), escreviam algumas das melhores páginas da história do nosso país.
Poderíamos falar sobre muitos deles, alguns levando o nome da nossa terra por
outros mundos, mas neste contexto são cartas fora do baralho.
Ao longo deste período dos Góis, e à medida que Portugal também se ia
constituindo de Norte para Sul, o concelho vai tomando, pouco a pouco, uma
forma administrativa e jurídica cada vez mais perfeita. A palavra concelho
raramente aparece antes de meados do século XIII, sendo mais frequente usar-se a
expressão “reunião dos homens da governança municipal”.
No início, estendia-se por áreas actualmente pertencentes aos concelhos de Arganil
e Penacova, com fronteiras que se foram modificando de acordo com a vontade
dos vizinhos.
A família Silveira está em Góis durante cerca de um século e meio, de 1459 a 1617,
abrangendo seis donatários. Salientamos três deles, avô, filho e neto, com os quais
Góis entraria na Idade Moderna, ao nível que a Corte estava a querer para o país.
Nuno Martins da Silveira
Muito próximo do poder real, em quatro reinados, de D. Afonso V a D. João III, é
contemporâneo do foral manuelino, em 1516, e inicia obras importantes da vila,
algumas das quais virão ser concluídas no tempo de seu filho Luís.
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Luís da Silveira I, 1º Conde de Sortelha.
Talvez a figura mais emblemática do senhorio. Cortesão, homem de espírito e de
cultura, poeta do Cancioneiro de Garcia Resende, guerreiro em África, embaixador
na corte espanhola.
De espírito rebelde e inconformado, arranja sarilhos com D. Manuel I e D. João III.
Desgostoso, afasta-se da corte e isola-se em Góis, para felicidade dos goienses, pois,
vai dar um grande contributo ao património da vila (ver à frente).
O seu filho mais novo, o nono, Gonçalo da Silveira, padre jesuíta martirizado em
Monomotapa, cantado nos Lusíadas, é figura da História de Portugal.
Tal como seus pais, encontra-se sepultado na Igreja matriz, junto da sua estátua de
guerreiro.
Diogo da Silveira I, 2º Conde de Sortelha.
Continua a obra do pai e, com ele, provavelmente Góis atinge o seu zénite.
Inaugura o hospital de Góis, funcionando como albergaria e local de tratamento de
moléstias, cuja fama vai atrair muitos forasteiros e chamar a atenção do país.
Cria as paróquias de Cadafaz e de Colmeal, iniciando a construção das respectivas
igrejas matriz.
Com Luís da Silveira II, que morre em 1617, sem descendentes varões, encerra-se o
ciclo dos Silveira. No seu tempo, em 1599, é constituída a Misericórdia de Góis,
exactamente cem anos depois de esta instituição ser formada em Portugal.
A filha mais velha, Branca da Silveira, casa com Gregório de Castelo Branco, novo
donatário, desaparecendo no senhorio o nome Silveira.
Como curiosidade, baseando-nos no primeiro levantamento dos lugares e dos seus
moradores feito no país, por ordem de D. João III, em 1527 (e não esquecendo a sua
credibilidade, face às condicionantes da época), diga-se que a vila de Góis tinha 77
residentes, Várzea d’Além 27, Várzea da Igreja 12, Bordeiro 15, e todas as demais
povoações do concelho apenas com um dígito, incluindo Cadafaz (9) e Colmeal
(8)... No total do concelho, estimava-se 321.
* * *
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A partir dos Silveira, os donatários de Góis, mais ligados a outras regiões do reino,
parece que se desinteressaram por este senhorio, não perdendo, é claro, os direitos
que o estatuto lhes concedia, isto é, arrecadando tributos e prestações aos
moradores, aos trabalhadores, aos proprietários e por quem cá passava.
E, face à ausência deles, assiste-se ao emergir de novos senhores locais, oriundos da
burguesia rural, ainda que fidalga, filha d’algo, mas não aristocrática. Uma
burguesia já não fundada no nascimento, no privilégio ou na honra, como era a dos
donatários, mas no trabalho ou no talento. E foram esses então que mais puxaram
pelo progresso do concelho.
É o segundo período do senhorio, que decorre até 1832, quando, por decreto de
Mousinho da Silveira, se extinguem os senhorios e os pequenos morgadios.
Deste período, indiquemos apenas o primeiro que ficou para a história do concelho:
Pedro Rodrigues Barreto. Por duas razões, por estar na toponímia local (Rua Pêro Roiz,
depois alterada para Rua da Quinta) e por dar origem a dois importantes
morgadios, que marcaram a vida de Góis. Seu filho António Rodrigues Barreto,
nascido em 1590 (?) institui o morgado da Capela ou de São José (a que se liga a
Quinta da Capela), e o seu neto Alexandre Barreto de Figueiredo Perdigão, nascido
em Góis em 1598, institui o morgado da Lavra (a que se liga a Quinta da Lavra, na
qual a Casa de Cima terá sido acabada de construir cerca de 1625).
* * *
Entrando agora na época da Monarquia Constitucional, destaquemos dois
acontecimentos.
Logo no início, em 1821, a implantação da indústria de papel, que viria a durar mais
de um século e meio, e seria, durante muito tempo, a principal indústria da região, a
mais empregadora e a de maior valor acrescentado, e que faria de Ponte do
Sotam, onde esteve instalada, devido à boa água do rio Sotam, a única terra do
concelho com uma sociedade de índole operária.
Também nos alvores do liberalismo, a racionalização da divisão administrativa vai
levar à inclusão no concelho de Góis da freguesia de Alvares, que anteriormente
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fazia parte do desaparecido concelho de Alvares, uma região antiga, com carta de
foral passada por D. Dinis, ao mesmo tempo que se reajustam as fronteiras do
concelho de Góis com as dos vizinhos.
O ano de 1855 passa a ser data histórica do concelho, não só por serem
estabelecidos os seus actuais limites, como também por, desde então, passar de
quatro para as actuais cinco freguesias: a da Várzea de Góis (que, a partir de 1927,
se denominaria Vila Nova do Ceira, para, com toda a razão, ter nome próprio e
afirmar a sua identidade), de tradições muito antigas, com prerrogativas próprias,
face à Câmara Municipal de Góis, supondo-se mesmo que tenha sido aqui, na
época romana, o principal aglomerado das terras de Góis; as freguesias de Cadafaz
e Colmeal, do lado nascente do concelho, terras antigas dos domínios de Góis, mas
só elevadas à categoria de freguesia em 1560; e a freguesia de Alvares, a nova
companheira, que agora se lhes juntava.
O fontismo, que varre Portugal na segunda metade do século, praticamente não
contemplaria o concelho de Góis. O caminho-de-ferro foi promessa chorada e
alimentada durante dezenas de anos, mas por aí se ficou. O ramal de Coimbra
chegaria a Serpins em 1930, e a sua continuação até Arganil, atravessando Góis,
não passaria do traçado no terreno, embora ainda tenham sido feitas expropriações
de terrenos. Os goienses passavam a ver passar o comboio só por um canudo.
Entretanto, a importância que o concelho a nível regional ia tomando, na vida
comercial e política, encorajava-o a solicitar ao poder central novas divisões,
administrativa e judicial, com uma repartição de espaços mais apropriada aos seus
interesses e a ser mesmo sede de comarca. Mas aqui também sem êxito.
Nos finais da Monarquia e inícios da I República, destaca-se a figura de Francisco
Inácio Dias Nogueira, como político e empresário.
Exerce intensa actividade política na região, militando no Partido Regenerador.
Financiador do jornal A Comarca de Arganil, é seu Director nos últimos anos da
Monarquia. É o último Presidente da Câmara Municipal antes da revolução
republicana.
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Funda a Companhia de Papel de Góis, consolidando a indústria de papel, então já
existente, e instala a Central Hidro-Eléctrica de Monte Redondo, obra arrojada para
a época, que permitiu à vila de Góis ter sido uma das terras pioneiras a ter
iluminação eléctrica pública, ainda antes da cidade-mãe Coimbra.
O seu busto, erguido de iniciativa popular e por subscrição pública, aliás o único da
vila de Góis, encontra-se no centro do largo que tem o seu nome, o antigo Largo de
Pombal.
* * *
Durante a I República, é de assinalar a inauguração, em 1916, do Hospital
Comendador Monteiro Bastos, em Vila Nova do Ceira, pondo fim a um jejum de 82
anos, pois desde o encerramento do Hospital de Góis, em 1834, que o concelho não
possuía qualquer estabelecimento hospitalar.
Durante a II República, a das ditaduras militar e corporativista, três acontecimentos
assumem um significado especial.
A exploração de minério, com relevância económica e social sobretudo nos finais
dos anos 30 e princípios de 40.
No concelho, são numerosos os sinais de exploração antiga, quer em galerias, quer
em terraços fluviais, mas a sua cronologia é desconhecida. No entanto, por achados
arqueológicos na região, supõe-se que os romanos tenham aqui explorado o ouro e
o estanho, antes de outros povos o terem feito.
Agora, em meados do século XX, Góis vai novamente passar por um período de
grande animação, envolvendo as comunidades locais e centenas de imigrantes,
sobretudo dos concelhos vizinhos, atraídos pelas zonas estano - volframítica das
freguesias de Cadafaz e de Góis, e aurífera no norte da freguesia de Alvares.
Foram anos de movimento de grandes quantidades de dinheiro, que animaram a
economia local, proporcionando enriquecimento em muitos dos seus autóctones, a
fixação de forasteiros, originando novas famílias, e o desenvolvimento de algumas
estruturas locais. Infelizmente foi tempo efémero. A Grande Guerra, com a desordem
13
e espionagem a que esteve associada, e a conjuntura internacional que se lhe
seguiu, não foram favoráveis para a criação de uma indústria mineira consistente,
como chegou na época a ser equacionada.
O êxodo rural, contemporâneo de outras zonas do interior do país, começa entre
nós a ter um significado maior a partir dos meados dos anos 40, em direcção
sobretudo à Grande Lisboa, na procura de melhores condições de vida. É lá que
agora vive a maior comunidade goiense, num número que se estima, com as
gerações que se seguiram, superior ao triplo da população actual do concelho.
A população, que se tinha mantido na ordem dos 12 500 residentes até ao fim da
Grande Guerra, baixaria para 9 700 em 1960 e 6 500 em 1980. No princípio deste
século, cifrava-se em 4 800. Este grande decréscimo, sobretudo com a saída do seu
sangue mais vivo, vai reflectir-se no envelhecimento da população e na sua letargia.
No entanto, a uma má carta, seguia-se uma boa: o movimento regionalista. Um
vínculo forte às origens, um estado de espírito próprio da região, a possibilidade de
os migrantes em Lisboa estarem “com um pé cá e um pé lá”, deu origem a um
associativismo sui generis. Um trunfo que, infelizmente, ainda não foi usado em toda
a sua potencialidade no desenvolvimento do concelho.
Cerca de meia centena de associações, as denominadas Comissões de
Melhoramentos, são constituídas pelas várias aldeias do concelho, ao mesmo tempo
que, a Casa do Concelho, sediada em Lisboa, é inaugurada em 1954. Seria esta
instituição a ter a iniciativa de construir o primeiro estabelecimento de ensino
secundário do concelho, inaugurado em 1969.
Tal como o Hospital, a Escola Primária Feminina e a Casa de Caridade, também o
Colégio seria totalmente doado por beneméritos da terra, instituições estas que se
ficam a dever, respectivamente, ao Comendador Joaquim Marques Monteiro
Bastos, Comendador António Torres Dias Galvão, Engenheiro Stanley Mitchell e
Comendador Augusto Luís Rodrigues.
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A III República, que nos trouxe a democracia, a instalação de um Poder Local forte
e a adesão à Comunidade Europeia, veio permitir um desenvolvimento mais
harmonioso. O concelho apetrecha-se de estruturas básicas, há uma melhoria
significativa de vida da população e uma maior equidade social.
Se o espírito de solidariedade social já fora patente no passado, mais ressalta agora.
Perante o envelhecimento cada vez maior da população, consequência da
elevada emigração, da mais baixa natalidade e do aumento do tempo de vida,
instalam-se vários Lares e Centros de Assistência: o Centro Social de Rocha Barros,
inaugurado em 1978, em Góis; o Centro Paroquial de Solidariedade Social da
Freguesia de Alvares, em 1981, sediado nas Cortes e com extensão em Alvares, onde
recentemente foi aberto o Lar de S. Mateus; o novo Lar de Vila Nova do Ceira, da
Santa Casa da Misericórdia, no prosseguimento aliás da sua grande acção
benemérita no concelho; a que em se deverá juntar, em breve, o da freguesia de
Cadafaz.
A solidariedade social tem sido uma carta activa na vida destas gentes.
Cria-se a ADIBER, uma associação de desenvolvimento local, com campo de acção
em alguns concelhos da região mas sediada na vila de Góis, que, sabendo com
oportunidade aproveitar as ajudas comunitárias, tem contribuído para o
desenvolvimento económico e cultural.
A semelhança de outros concelhos, também no concelho têm-se vindo a acolher
imigrantes estrangeiros, sobretudo oriundos da Europa, distribuindo-se pelas aldeias
serranas, o que tem contribuído para o início de uma pequena revolução cultural no
concelho.
Entretanto, o século XXI parece iniciar-se auspiciosamente.
O Poder Local adquire o grande edifício do antigo Hospital, do século XVI – outrora,
uma marca do esplendor do concelho, que levou o nome de Góis pelo país fora – e
decide dotá-lo de condições, para ser novamente um foco de desenvolvimento.
15
Um projecto promissor encontra-se em curso, com o intuito de o transformar num
Museu do século XXI, não só espaço de preservação de memória colectiva e
guardador de ricas colecções doadas ao concelho, mas também uma instituição
viva, pedagógica, com ramificações previstas pelos pequenos museus das nossas
aldeias. Uma obra que se espera dignificar toda a região e a ser um ponto
fomentador de turismo de qualidade.
Foram já efectuadas escavações, a cargo da Câmara Municipal e supervisionadas
pelo IPPAR, trazendo até nós importantes vestígios do passado, seguidas do seu
estudo. A comunidade científica olha com expectativa para este projecto de
tempos modernos. E o Poder Local, ao afixar um grande cartaz no centro da vila -
“Um Compromisso” -, transmite, com coragem e determinação, uma mensagem
pública do seu empenho para levar este projecto a bom porto.
Os goienses têm razões para voltarem a sonhar e poderem sentir novamente orgulho
na sua terra e, para muitos que tiveram que partir, pensar que valerá a pena um dia
regressar.
O Século de Oiro
No século XVI, Góis atingiu o apogeu da sua vida. Na arte, de que a estátua de Luís da Silveira, com o seu enquadramento, é o seu símbolo maior. Na Assistência Hospitalar e Social, com o Hospital - Hospedaria e a instituição da Santa Casa da Misericórdia. Na criação de duas novas paróquias, Cadafaz e Colmeal, e edificação das respectivas igrejas matriz. Na grandeza do património construído, reflectido no novo palácio, no hospital, na ermida do castelo, na restauração da igreja matriz da vila com nova capela mor, em capelas várias em aldeias, na ponte de três arcos, nas residências que ainda hoje se reflectem na arquitectura do centro histórico. Pela primeira vez, eram unidas as duas margens do Ceira, para passagem de viaturas. E ser-lhe-iam atribuídos forais, pelo governo central, com a carga simbólica que lhes está associada. Vieram alguns dos mais conhecidos artistas do país, para dar corpo a algumas daquelas obras. Visitaram-na gente ilustre, eclesiásticos, nobres, poetas e músicos, para as festas palacianas. Para aqui encaminharam-se muitos carenciados, na procura de assistência física e espiritual. O Palácio à beira do Ceira, o Hospital e as obras de arte eram focos de atracção. Góis estava na geografia de Portugal. O seu nome era referido com respeito no país e fora dele.
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O património natural. Dois ex-libris do concelho.
É valioso o nosso património natural. O encanto das montanhas e das serras, dos rios
e das ribeiras, as matas e os espaços verdes, as paisagens e o ambiente, o sossego,
o clima, um pouco de tudo isso está a atrair emigrantes de outros países, que aqui
encontram uma qualidade de vida que não usufruem nas suas terras. São já
algumas dezenas de famílias estrangeiras que aqui estão instaladas, com
perspectivas de um aumento progressivo, à medida que o homem moderno, com
as possibilidades que a tecnologia lhes oferece, de a todo o momento poder estar
em contacto com o mundo inteiro, se volta cada vez mais para residir junto da
natureza.
Tendo que fazer uma escolha para ilustrar este património, opto pelos dois seguintes.
O Penedo de Góis
Em tempos remotos, em data incerta, mas certamente durante a orogenia do ciclo
hercínico (com início há cerca de 450 milhões de anos), terá acontecido aqui, um
fenómeno geológico semelhante a tantos outros que a natureza nos proporciona:
uma grande projecção e derrame de aglomerados de rochas metamórficas, vindos
do interior da terra, a temperaturas elevadas, transformando os arenitos em
quartzitos, a rocha predominante do novo maciço que se formou.
Nascia assim uma nova elevação, sobrelevando-se às vizinhas, no seguimento de
uma linha de alturas que, ligando a Serra da Lousã com a do Açor, divide o
concelho em duas zonas bem diferenciadas.
Com o passar do tempo, por ocorrência de desligamentos, fracturas e
enrugamentos, aliada com a resistência à erosão que é própria do quartzito, o
Penedo tomaria o seu aspecto actual, de acentuado contraste de relevo, de crista
alongada, imponente e majestoso nos seus 1043 metros de altura, que sobressai da
paisagem, avistado das cinco freguesias do concelho.
17
Composto por vários montes, os pastores foram-nos baptizando com denominações
simbólicas ou alusivas à sua utilização, que entraram no seu vocabulário quotidiano,
o Penedo da Abelha, o Penedo do Picoto, o Penedo das Portas do Sol, o Penedo do
Meio-Dia, o Penedo do Reboludo, o Penedo da Foice, o Penedo do Pinheiro, o
Penedo da Aigra, o Penedo da Carvalha, o calhau das merendas, as meninas, as
fraguitas...
A pastorícia era a principal actividade de subsistência. Grandes rebanhos
comunitários, de vários milhares de cabeças, compartilhavam os mesmos pastos e
eram geridos pelo mesmo pastor, indicado rotativamente por cada grupo
proprietário.
Quem visite esta região, ainda pode deleitar-se, junto dos poucos residentes, com
histórias de lobos, atacando os seus rebanhos, umas com pitadas de heroísmo ou de
bravura, outras fantasmagóricas, ou com lendas de mouros que em tempos
habitavam nas suas grutas.
Quatro aldeias da região – Comareira, Aigra Nova, Aigra Velha e Pena – pequenos
aglomerados à base do xisto, constituindo como que um percurso histórico, estão
sob alçada de um projecto comunitário de desenvolvimento. Mas é pertinente
também referir, como aldeias típicas desta região, e aconchegadas ao Penedo, os
Povorais e o Vale Torto.
Na parte ocidental, na extrema com o concelho de Castanheira de Pêra, o espaço
ao redor da capela de Santo António da Neve é local do “Encontro dos Povos
Serranos”, alegre convívio anual entre as gentes das serras.
Em tempos remotos, juntavam-se os pastores dos montes e aldeias ao redor, nos seus
trajes característicos, constituindo grande romaria, com gentes vindas de zonas
muito afastadas. Uma romaria e, agora também feira, que continua a fazer-se
anualmente, no segundo sábado do mês de Julho, não faltando a tradição de
cada participante levar, para além da merenda, um queijo inteiro, em homenagem
ao seu santo padroeiro.
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Outrora, fabricava-se ali gelo, a partir de neve, em poços de que ainda hoje se
observam vestígios, vendido depois para diferentes partes do país, nomeadamente
para as geladeiras da Corte, em Lisboa. O antigo armazém dos neveiros transformar-
se-ia na actual capela, por se ter encontrado num dos poços, um santo, logo
baptizado de Santo António da Neve. Curiosamente, por meio da capela, passa a
linha de fronteira dos dois concelhos, Góis e Castanheira de Pêra.
O Rio Ceira
Permitam-me que endosse a palavra ao nosso rio, que, melhor do que nós, saberá
transmitir-vos um pouco da sua vida.
“Os antigos chamavam-me “Célia”, outros “Celium”, mas ainda ninguém me explicou
porquê. Atravesso as quatro freguesias do núcleo antigo do concelho, e por isso me
terem considerado sempre como traço de união entre os goienses, do que muito me
orgulho.
Através dos meus vinte e cinco quilómetros dentro do concelho, passo por baixo de uma
dezena de pontes, desde a manuelina, em pedra, de três arcos, a mais velha, já com
cinco séculos de vida, até à noviça, aquela de madeira, elegante e de ar moderno, a
seguir ao Cerejal (aqui para nós, são as duas de que mais gosto), e penso que deixo por
toda a parte um rasto forte da minha personalidade. Sei que tenho encantos, que sou
prazenteiro, mas também, por vezes, arrebatado, quando a isso me obrigam, chegando
mesmo a ser torrencial, e então, claro, sujeito-me a um monte de lamúrias e de
queixumes, que reconheço serem justas. Mas, entre amores e desavenças, não deixo de
me comportar como anjo protector.
Nas freguesias serranas, do Colmeal e Cadafaz, serpenteando por montes e vales, vão-
se-me revelando vestígios de um passado antigo, moinhos, as “Buracas dos Mouros”,
covas talhadas em rocha, talvez minas exploradas noutros tempos, a extensa “Levada
dos Mouros”, também ela talhada na rocha, que, segundo a lenda, teria sido aberta por
um cavaleiro, para levar a água até Bobadela, onde estava a princesa sua amada, coisas
que vou ouvindo, por aqui e por ali, e com que me delicio no meu trajecto.
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Antes da Cabreira, um conjunto de antigos lagares e tulhas, junto ao rio, é uma autêntica
relíquia do passado, memória do espírito comunitário da vida destas gentes. Com
estatutos aprovados pela população, e com uma Comissão de Lagares administrando-os
democraticamente, a vida era feita de maneira ordenada, de modo a todos beneficiar e
dentro da maior justiça. Era um bom exemplo de vida comunitária.
Acontece que aqui, na encosta da minha margem direita, se situa uma daquelas áreas de
mineralização de estanho e volfrâmio, onde, durante a Segunda Guerra Mundial, se
processaria uma exploração mineira muito intensa.
Pois foi ali mesmo, junto às tulhas, na junção que a ribeira do Lagar faz comigo, que se
tornou um local abundante de minério de aluvião. Com o preço do volfrâmio a galopar
para valores nunca antes imagináveis, a cabeça de muita boa gente rodopiou demasiado.
E fiquei de boca aberta, a ver aquele enxame todo, uns da casa, outros forasteiros,
conspurcando (e de que maneira) as minhas águas e sacando avidamente das minhas
entranhas o ouro negro.
Onde era um local ordeiro e pacato, agora centenas de “mineiros” amontoavam-se, sem
rei nem roque, uns procurando trabalho honesto, para equilibrar o seu orçamento familiar,
mas outros com subtis artimanhas, ludibriando as autoridades e o próximo. Que me fez
compreender como é volúvel a mente humana, quando a tentação se lhes apresenta,
vislumbrando pontes sedutoras, por vezes em miragens de falsos horizontes,
Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes Que um outro, só metade, quer passar Em miragens de falsos horizontes, Um outro que eu não posso acorrentar...
Prosseguindo o caminho, as minhas águas vão passar mais abaixo pela Central de Monte
Redondo, obrigando-me agora a grandes esforços. Nada que seja extraordinário, mas
sempre alimento duas unidades, uma de 400 KVA e outra de 175 KVA. Foram instaladas
pela extinta Companhia de Papel de Góis e agora exploradas por uma empresa de fora.
Mas o meu esforço é compensado pela vaidade que tenho de os meus antepassados
terem gerado electricidade e fornecido iluminação pública à vila de Góis, ainda antes de
Coimbra a ter. Segundo conta a minha avó, o Mondego jamais nos terá perdoado. Daqui
a cinco anos, completar-se-á um século que realizamos essa proeza, a vila de Góis
iluminada a lâmpadas incandescentes.
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Saindo das turbinas, vou descendo para jusante, a caminho da vila, retemperando
forças. Cortejo respeitosamente os três arcos da Ponte Manuelina, embora já tenha sido
concluída no tempo do seu filho D. João III, e entro no meu troço final, lentamente, julgo
que de um modo majestoso, em terreno chão de fundo largo, tentando animar os turistas
e deliciar os meus amantes.
Depois de um cúmplice pestanejo a Santo António (de cuja capela os nossos
historiadores ainda não conseguiram saber a idade), torno-me galanteador, aos pés do
irresistível Cerejal. E ali fico, enamorando-o por uns aprazíveis momentos, não me
esquecendo que se trata de um parque classificado de Interesse Público.
Agora mais sereno, chega a Vila Nova do Ceira, espreguiçando-me nas suas várzeas e
espraiando-me pelas belas margens com que me quiseram presentear.
E depois, a despedida. No sítio do Cabril, no Cerro da Candosa, com a sua pequena
ermida lá no alto, onde o povo vai adorar a Virgem, invocando-a com o nome de Nossa
Senhora das Candeias, ou, para outros, Nossa Senhora da Candosa. Padroeira dos
varzeenses, é motivo para no local se realizar anualmente, em meados de Agosto, uma
tradicional festa que, desde há muito, é pertença da memória do concelho.
A partir de ligeiros vestígios encontrados, há quem questione se ali não teria havido uma
fortaleza ou uma povoação, para defesa daquele vale majestoso de horizontes sem fim.
E ouvi contar uma história, talvez seja lenda, em que o grande rochedo estaria outrora
fechado, com a água tombando em cascata por cima dele. Existia então uma grande
lagoa, estendendo-se desde a Candosa até Góis, bordando as povoações de Bordeiro e
Alagoa, que justificavam assim a sua denominação. Na carta de doação de Serpins,
passada por D. Afonso Henriques, é referido a lagoa de Sacões, o que dá credibilidade a
essa suposição. Mais tarde, ter-se-á cortado o rochedo, com intuito de desfazer a lagoa,
e, com o abaixamento das águas, obter-se aquelas terras férteis que conformam as
várzeas.
Ouvi também de outra lenda, que a imaginação do povo é muito fértil, que a Senhora das
Candeias, linda como sempre, protegida de capuz e de candeia na mão, ia pela calada da
noite destruir a muralha que os mouros tentavam sucessivamente erguer para refazer a
lagoa. E assim, desse modo, os varzeenses conseguiram conservar as suas boas terras,
ao mesmo tempo que baptizavam carinhosamente a sua santa padroeira.
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Seja obra do homem ou da natureza, seja ou não com a participação bondosa de Nossa
Senhora, é nesse local aprazível, o Cerro da Candosa, que me despeço com ternura e
emoção do concelho de Góis, a caminho do Mondego, a quem não deixarei depois de
segredar, baixinho, “haver sereias sem ser no mar”, como nos diz o poema do hino dos
goienses e como eu próprio tenho tido ocasião de verificar.
Para trás, fica a consciência do dever cumprido, de ter proporcionado melhoria de vida
aos goienses. Ora irrigando as várzeas e os campos verdejantes, ora dando força às mós
e às turbinas, ora alimentando os salmonídeos, ora proporcionando momentos de prazer
a quem tenha querido deliciar-se, com pescarias, com velejo, com desporto, com amor,
ou apenas com o dolce fare niente. E leguei-lhes um espólio de encantos e de belezas,
de lendas e de fantasias, onde os poetas se podem inspirar.
Sei que, nas suas margens, frente ao lindo palácio que mandou edificar, para os
Senhores e para o prestígio da terra, e para onde se tinha acolhido, fugindo ás amarguras
e aos enganos da Corte, já lá vão quase cinco séculos!, Luís da Silveira um dia poetisou:
Ao longo desta ribeira vivo vida descansada e a derradeira, esta é vida descansada para quem já não quer nada. (...) Não me deis, quer mo creiais quer se me, senhor, não creia, mas eu folgo de ser mais o primeiro desta aldeia que o segundo donde estais.
Para defesa da minha honra, peço licença para lembrar que ribeira não é forçosamente
um rio pequeno, pois igualmente tem o significado (sobretudo em tempos idos) de
margem, de porção de terreno banhado pelo rio.
Obrigado pela vossa atenção.”
O Penedo e o rio Ceira são bem representativos das belezas naturais do património
natural do concelho. A montanha e o rio. Simbiose de alturas e de várzeas.
Região montanhosa, entre as serras da Gatucha, do Vieiro, de Egas, do Rabadão,
do Carvalhal, de Sacões, das Caveiras, das Malhadas, de Entre Capelos, das Pedras
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do Lumiar, da Neve, do Trevim, dos Picos, do Vale de Chão. Onde as antenas
eólicas vão marcando as paisagens bucólicas, lembrando que a qualidade de vida
vai exigindo cada vez mais uma vivência inteligente entre o ambiente e a
tecnologia.
Região de floresta e, por enquanto, ainda de pastorícia e apicultura. E também de
minério, guardado que está no subsolo, para um dia, quem sabe, vir a ser
novamente revolvido.
Região fluvial dividindo-se por duas redes hidrográficas distintas. Pele vertente norte,
em direcção ao Mondego, através das ribeiras de Ádela, de Carrimá, da Sandinha,
do Lagar, das Mestras, de Celavisa, do Alvém, do Sotam; e, pela vertente sul, a
caminho do Zêzere, através das ribeiras da Simantorta, de Sinhel, do Amioso, de
Mega, dos Unhais.
Uma extensa rede fluvial, com a água correndo pelas encostas, escapulindo-se por
refúgios ou saltando sobre pequenos açudes, proporcionando por vezes paisagens
idílicas.
A montanha e o rio. As alturas e as chãs, os planaltos e os vales.
O silêncio e o murmurejar. A pureza e a transparência. A liberdade.
A imensidão e o recanto. O céu e a terra
O Penedo e o Ceira. Dois símbolos. Dois ex-libris do concelho.
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O património construído. O Interesse Público.
No património edificado pelo homem, são três as nossas opções.
A Pedra Letreira, por ser o mais antigo testemunho dos nossos antepassados.
Situado no extremo norte da freguesia de Alvares, fronteiro ao Penedo, é uma
manifestação de arte rupestre, ao ar livre, de hieróglifos, sendo suposto ter cerca de
quatro milénios, da plena Idade do Bronze. Está com classificação oficial de
Interesse Público.
Em segundo lugar, o Centro Histórico da vila. Por várias razões: por se tratar de um
conjunto de grande qualidade arquitectónica e artística, por se situar no centro da
vila e portanto no centro do concelho, e por aquilo que representa na nossa
memória colectiva.
Há poucos anos, esta área foi considerada como possuindo virtualidades para ser
englobada na lista do património mundial, precisamente pelo representante da
UNESCO para a sua classificação. Será que haverá coragem e vontade para
prosseguir com essa ideia e tentar concretizá-la, antes ainda do concelho festejar os
seus 900 anos de existência?
A sua descrição pormenorizada seria aqui fastidiosa. Apenas recordarei, como dele
fazendo parte: a Igreja Matriz, com a capela-mor e a estátua tumular de Luís da
Silveira I, sob a batuta de Diogo de Castilho, Diogo de Torralva e Filipe Hodarte; o
antigo Hospital e o seu espaço adjacente, agora postos a nu, arqueologicamente
falando, pela feliz intervenção da Câmara Municipal; a Casa da Quinta e os seus
tectos pintados; a arquitectura envolvente dos edifícios da Praça da República, do
Largo do Pombal e de algumas das suas artérias; a antiga fonte do Pombal e os seus
azulejos; as pinturas no tecto de outro edifício da Praça; os santos da Igreja; a ponte
manuelina; a capela do Mártir e a capela de Nossa Senhora da Assunção, no morro
do castelo, tudo isto património dos séculos XVI ao XVIII. Alguns deles também já
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reconhecidos oficialmente de Interesse Público nacional, como foram a Igreja
Matriz, os tectos dos Paços do Concelho e o conjunto Ponte Manuelina - Capela do
Mártir.
E não esqueçamos, embora bordando esse espaço histórico (traçado no passado
mas certamente passível de revisão), a linda capela de Santo António.
Como terceira opção, para caracterizar o nosso património construído, elejo as
típicas aldeias serranas.
Espalhadas pelo concelho, muitas povoações, aldeias, casais e lugares, contém em
si um valioso património. Calcorreando as ruelas e examinando a sua arquitectura,
conseguimos perspectivar um pouco o seu passado e compreender o que elas
contribuíram para dar corpo à identidade do concelho.
Geralmente são de casario concentrado e fechado entre si, com as fachadas das
habitações defronte umas das outras, como que querendo defender-se de perigos
do exterior, pessoas estranhas ou perigosos animais.
Tradicionalmente habitações do tipo agro-pastoril, com predomínio do xisto, de
telhados de ardósia escuros a formarem extensas áreas contínuas. Sendo a
pastorícia fundamental, o gado é recolhido no piso inferior, o seu calor ajudando o
aquecimento da própria casa. No primeiro andar, onde se habita, a lareira a um
canto dispensa a chaminé, dissipando-se os fumos através das telhas
estrategicamente colocadas e resguardando-se o calor para o fumar dos enchidos
e o aquecimento do interior. São zonas de invernos rigorosos, em que todo o calor é
pouco para lhes aquecer o corpo e a alma.
Fora das habitações, notam-se equipamentos colectivos, uns trabalhando ou
prontos para isso, outros apenas restos de um passado que a emigração
abandonou. Moinhos, junto a correntes de água, geralmente de propriedade de
alguns mas compartilhados por todos; ou fornos de lenha, em que o trabalho de
aquecimento e de cozedura, do pão e da broa, era combinado colectivamente
entre as vizinhas.
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E naturalmente com capelas, que são propriedades das respectivas aldeias, do
mesmo modo que a igreja paroquial é propriedade da freguesia.
Lugar de culto, lugar de convívio e de festa, a capela é o património que o aldeão
mais venera. O nosso registo pessoal enumera 81capelas públicas, não contando as
particulares, uma ou outra com indícios de serem do século XVI, mas a maioria são
dos séculos seguintes, até ao final do século XX.
As capelas estão normalmente associadas ao culto de um santo, protector da
comunidade, e, por todo o concelho, cultivam-se 21, cada um deles com o seu
próprio atributo. O que mais se repete é o Santo António, por seis vezes, ou não fosse
ele o casamenteiro. Outras capelas estão sob o culto de Maria, aparecendo o
nome de Nossa Senhora em 17 diferentes denominações, algumas ligadas à
topografia local ou a momentos importantes da vida, e, em três delas, o padroeiro é
Nosso Senhor.
Materializados em imagens, pintadas ou esculpidas, em pedra ou em madeira, estes
símbolos constituem um rico património da aldeia.
Também não podemos esquecer as Alminhas, cerca de meia centena, colocadas
em locais estratégicos, à beira dos caminhos, normalmente nas encruzilhadas ou à
saída das povoações. Na falta de capela, rezava-se defronte delas por alma de
alguém, numa manifestação de saudade, ou de despedida quando se levava o
caixão a caminho do cemitério. Mas há também quem ainda se recorde do
costume de as raparigas lá irem rezar para que o santo lhes arranjasse marido...
Há-os de pequenos nichos, em pedra ou em madeira, alguns muito estimados,
outros quase abandonados, a maior parte com uma idade que se perdeu na
memória colectiva. Mas há também, como uma nos Povorais, nas fraldas do
Penedo, onde se entra em pé no seu interior.
Ciosos do seu passado, há aldeias, como o Soito, a Várzea Grande, o Esporão,
Alvares, que vão criando pequenos espaços museológicos, carinhosamente
guardando aquilo que de mais importante pensam ser representativo das suas
comunidades. Para que a memória não se perca.
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������������������������������������������������������������������������ 1ª fila – Pinturas em tectos da Câmara Municipal, considerado de Interesse Público (sec. XVII?) Estátua de D. Luís da Silveira, na Igreja Matriz de Góis (sec. XVI) 2ª fila – Imagem de Nossa Senhora, em madeira, considerada de Interesse Público (sec. XV)
Imagem de S. Mateus, em pedra, padroeira dos alvarenses (sec.XVI). (ambas no Museu Paroquial de Alvares)
3ª fila – Miniaturas sobre folha de marfim, de Alice Sande (século XX)
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O património cultural. Um desafio.
Temos a ousadia de aqui colocar este tema, para não sermos acusados de passar
ao lado do que certamente mais identifica a nossa terra. Apresentar “Conhecer
Góis”, sem referir a sua cultura, seria uma imperdoável omissão. Sem ela, fica-se com
uma perspectiva redutora do concelho. É como apreender o hardware, o corpo, e
deixar de lado o seu software, a alma.
Para se conhecer Góis, tem que se mergulhar profundamente nas suas raízes,
apreciar o seu habitat, aspirar o seu aroma, compreender a mentalidade das suas
gentes.
No entanto, seria presunção da nossa parte, tentar resumi-la, em meia dúzia de
parágrafos ou de páginas. Até porque ninguém teve, até aqui, a coragem de fazer
o seu levantamento. Os usos e costumes, o folclore, as lendas e os contos de cunho
local, as tradições, a música e a poesia popular, os poetas, os escritores e os artistas.
Longe ainda de uma certa massificação e de agressões do exterior, que se têm
apoderado de outras regiões, despersonalizando-as, nas nossas aldeias continua-se
a apostar na “autenticidade”, preferindo prosseguir na continuidade do que
embrenharem-se por modernismos.
Deixamos aqui esse desafio, de se fazer, em próximo futuro, o levantamento das
principais áreas culturais, contando, para isso, com a ajuda dos associados do
Movimento, sejam ou não cibernautas, e de todos aqueles que connosco queiram
colaborar.
E por aqui nos ficamos, na esperança de que tenhamos contribuído para aumentar
a curiosidade sobre o concelho de Góis. Porque vale a pena conhecê-lo.
Góis, Janeiro de 2007
João Nogueira Ramos