Confiteor

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CONFITEOR César Garcia

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Livro contendo 19 contos de César Garcia, publicado no Recife (Brasil), em 1912. Aborda questões existenciais, familiares e sociais.

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César Garcia

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Confiteor

César Garcia

Recife, 2012

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Copyright© by César [email protected]

Revisãodo autor

CapaClarissa Garcia

Produção GráficaEdições BagaçoRua dos Arcos, 150 • Poço da PanelaRecife/PE • CEP 52061-180Telefax: (81) 3205.0132 / 3205.0133email: [email protected]

G218c Garcia, César, 1938-Confiteor / César Garcia. – Recife : Ed. do

Autor, 2012.123p.

1. FICÇÃO BRASILEIRA – PERNAMBUCO. I. Título.

CDU 869.0(81)-3 CDD B869.3

PeR – BPE 12-0625

ISBN: 978-85-373-1002-1

Impresso no Brasil – 2012

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“Todo fantasma, toda criatura de arte, para existir, deve ter o seu drama, ou seja, um drama do qual seja personagem e pelo qual é personagem. O drama é a razão de ser do personagem; é a sua função vital: necessária para a sua existência.”

Luigi Pirandello

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Sumário

9 Confiteor14 Pedras de Bolonha17 O Prêmio35 Pedaço do Corpo40 Não Criei Você para ser Dona de Casa47 Bodas de Ouro52 Vocação de Ator58 Errantes ou Defeito de Origem63 Cabeça de Herói68 Carta Extraviada74 O Carteiro77 Amigos de Infância83 Um Coração Delicioso87 Cérbero93 Julião e seus Hóspedes99 O Tempo no Espelho108 Falésia114 Otários118 O Porteiro

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Eu pecador me confesso a Deus todo-poderoso, à bem-aventurada sempre Virgem Maria, ao bem-aventurado são Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado são João Batista, aos santos apóstolos são Pedro e são Paulo, a todos os Santos e a vós, Padre, porque pequei muitas vezes, por pensamentos, palavras e obras, (bate-se por três vezes no peito) por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa. Portanto, rogo à bem-aventurada Virgem Maria, ao bem-aventurado são Miguel Arcanjo, ao bem-aventurado são João Batista, aos santos apóstolos são Pedro e são Paulo, a todos os Santos e a vós, Padre, que rogueis a Deus Nosso Senhor por mim.

Nessa época Amadeu ainda era padre. Segundas, quartas e sextas ficava das quinze às dezoito horas no confessionário. Nos dias de muito calor, abria a batina de cima a baixo e mesmo assim o suor não parava de es-correr. Tinha vontade de ficar só de calça e camisa, mas isto seria um escândalo para as beatas. Perguntava-se se aquele sacramento não podia ser ministrado de forma mais amena, mais adequada ao nosso clima. Chegou a tocar no assunto com o Senhor Bispo, em cuja opinião os fieis não aceitariam tão cedo uma novidade como aquela.

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“A vida de sacerdote – disse – requer muito sacrifício. Ali, Deus lhe dá o poder de perdoar os pecados dos pe-nitentes, uma grande responsabilidade. Trata-se de mo-mento sagrado entre confessor e fiel.”

Tinha a intenção de ir mais longe, mas não teve co-ragem, sabia que a ideia não seria bem recebida. Queria que a confissão fosse coletiva, em silêncio, cada um falan-do diretamente a Deus. Achava que aquele espaço quente e escuro favorecia certas tentações. Muitas vezes, os pe-cados contra o sexto mandamento eram narrados com tal realismo, tantas minúcias, que o deixavam a ponto de esquecer seu papel de representante de Deus. Por mais que se concentrasse, era arrastado pelos sentidos e se via na terrível contradição de dar conselhos incompatíveis com seus desejos. Principalmente as noivas e mulheres casadas atormentavam-no com seus conflitos. Não que-riam pecar, mas nunca resistiam aos impulsos da carne: as moças, tentando chegar virgens ao casamento; as casa-das, sofrendo a dúvida cruel entre o desejo de conhecer todas as novidades da vida sexual contadas por amigas e o de manter a imagem de esposa honesta e santa. À me-dida que falavam, perdiam a inibição inicial e pareciam sentir prazer em detalhar suas intimidades. Chegavam a descrições anatômicas de si mesmas e de seus noivos e maridos que levavam Amadeu ao estado de grande exci-tação. Ele rezava para não ouvir e ao mesmo tempo não tinha coragem de dizer que parassem com aquilo. Fala-vam do tamanho e da rigidez dos órgãos de seus homens, para mais ou para menos; da abundância ou escassez de secreções de suas vaginas; das súplicas que faziam tentan-do chegar ao orgasmo; quase todas falavam da resistência que opunham a seus parceiros quando estes insistiam em

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pedir-lhes provas de amor que consideravam exageradas ou incômodas. Pareciam achar que o padre tinha grande experiência no assunto, suficiente para dizer o que de-viam aceitar ou fazer. Ele repetia sem nenhuma convic-ção o que aprendera no seminário, regras fabricadas por homens frustrados e que eram tidas como a palavra de Deus. Como poderia deixar de perdoar os pecados da-quelas pessoas se ele próprio acabava cometendo ali mes-mo, no confessionário, faltas ainda mais graves?

Saía daquele cubículo exausto e ajoelhava-se diante do altar em profunda dúvida a respeito de tudo. Anjo ou animal? Como ser ambos ao mesmo tempo? Padre, santo a serviço de Deus e da salvação dos outros, ou um bicho cheio de hormônios, louco para fecundar a maior quantidade de fêmeas? Pensava nas três possibilidades: santo o tempo todo; bicho tempo integral; às vezes bicho, às vezes santo. Cada qual mais difícil, talvez todas três impossíveis. Quase concluiu que o ser humano era inviável, não podia viver segundo sua própria natureza. Teve ímpeto suicida, mais um pecado.

Estava longe de saber que a salvação aproximava-se. Terminara de rezar missa às oito horas de uma ma-nhã luminosa, em estado de graça, fortificado por uma longa meditação feita na véspera. Fechou a capela por dentro e, ao sair da sacristia, foi delicadamente aborda-do por uma jovem desconhecida. Queria confessar seus pecados. Disse-lhe que viesse à tarde, horário normal de confissões. Pediu desculpa e insistiu docemente justifi-cando-se com o fato de que faria uma viagem logo após o meio-dia. Aquele rosto angelical, aqueles olhos claros dispostos simetricamente, o brilho do cabelo escuro em contraste com a pele lisa e branca, a voz suave como uma

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brisa, tudo naquela moça o impedia de contrariá-la. Pôs a estola, tomou coragem para desobedecer à regra e pe-diu que sentasse ali mesmo, na sacristia. Sentou-se em outra cadeira a seu lado, mas virado na direção oposta de modo que para ver seu rosto tinha que girar a cabeça para a esquerda. Perguntou-lhe se preferia o confessioná-rio e ela disse apenas “não, aqui está ótimo”. Matou logo a curiosidade dizendo que não morava naquele bairro, mas já ouvira falar bem do padre, como um bom confessor. Amadeu disse-lhe apenas que contasse seus pecados, em-bora, no íntimo, achasse que aquele anjo nunca pecara e jamais precisaria de seu perdão. Na verdade, não havia desobedecido a nenhum mandamento. Falava de suas in-certezas sobre o futuro e a necessidade de fortalecer sua fé em Deus; não duvidava da misericórdia divina, apenas em certos momentos não se achava merecedora da graça e da salvação. Quanto mais falava, mais o padre se achava um pecador empedernido, um hipócrita. Estava diante de um ser humano se não perfeito, a caminho da perfeição. Terminou uma frase e disse: “fale, padre, diga-me alguma palavra segura que me mantenha no bom caminho”.

Como nada vinha à sua cabeça que correspondesse à expectativa daquela ninfa, Amadeu manteve o silêncio por alguns segundos. Virou o rosto para o da moça e olhou fixo nos olhos dela deixando escapar um leve sorriso com a expressão mais terna que pôde. Balbuciou, então:

– Pode ser surpresa para você, porém, na sua fren-te, não passo de um pobre pecador. Se eu fosse Deus, le-varia você em meus braços para um voo pelo universo em busca das mais belas constelações e galáxias. Em se-guida, abandonaria o trono de Criador para dedicar meu poder infinito à busca da felicidade que você merece.

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Não posso perdoar pecados que você não cometeu. Nada que vem de você pode ser pecado.

A moça baixou os olhos e em seguida levantou-os para o padre, mais belos ainda. Vendo uma lágrima em seu rosto, aproximou sua boca e sorveu-a, deslizando os lábios em direção aos de Amadeu. Durante duas horas viveram no paraíso. Nada ali lembrava o mal, o feio, o errado. Do aroma dos cabelos à perfeição dos dedos dos pés, tudo era celestial naquele anjo. As finas feições do rosto, principalmente lábios e dentes; a respiração sua-ve a princípio e quase selvagem ao final; o tamanho, as formas mutantes e as cores em contraste que cobriam os seios – duas ilhas de tonalidade âmbar em um mar lei-toso; a cintura em perfeita harmonia com os quadris; as coxas e pernas sustentando entre elas um cálice de vinho negro nunca sonhado pelos deuses. Silenciosos todo o tempo, salvo suspiros profundos e beijos intermináveis, compreenderam tudo o que queriam a dizer um ao ou-tro. O movimento das mãos sobre a pele expressava o prazer que sentiam diante de uma completa dedicação, inteiro abandono. O padre não se cansava de admirar e desfrutar do contraste entre a suavidade do corpo femi-nino e a rigidez do seu. Sua escassa experiência não o constrangia porque adivinhavam o que o outro queria. Não saberia dizer quantas vezes o sol passou pelo zênite durante aquelas horas.

A moça olhou o relógio de parede e pronunciou as primeiras palavras depois de todo aquele tempo: “é hora de partir”. Respondeu o padre:

– Tens razão.Deixou a batina ali na sacristia e, sem dizer palavra,

seguiu para sempre aquela de quem nem o nome sabia.

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PedraS de Bolonha

Às quartas-feiras, jantavam cachorro-quente. O re-cheio – salsichas moídas juntamente com a carne bem temperada – ia para a mesa em uma tigela branca. Cada um fazia o seu e, para acompanhar, tomavam suco de fruta ou café com leite. Uma vez, um amigo levou umas amostras grátis de remédios e sentou-se à mesa. Comeu dois sanduíches e tomou um pouco de suco. Adorava ca-chorro quente, disse, e aquele estava delicioso. Conversou um pouco, contou uma piada de português e aproveitou a despedida para trocar algumas palavras com Isaura, a dona da casa, antes de ir embora.

Mais tarde, na cama, Afonso, o marido, pergun-tou se ela não achava estranha aquela simpatia toda, es-quisito aquele entusiasmo por cachorro quente. Pensou que a mulher ia perguntar se ele estava com ciúme. Em vez disso, ela começou a contar a história: – Rico, casado, frequenta altas rodas, está apaixonado por Carlota, nossa amiga. Sendo paciente dele, encontram-se no consultó-rio. Não te contei logo porque ela me pediu que guar-dasse segredo, mas, com a visita dele, se eu não contasse, você ia desconfiar que ele queria alguma coisa comigo. Já

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ligou para mim várias vezes, pedindo notícia, perguntan-do detalhes sobre a vida dela, dizendo que nunca tinha visto uma mulher assim, tão corajosa, tão decidida.

Ele próprio dissera que as amostras eram um pre-texto para ouvir algum recado, ou apenas para estar com pessoas amigas dela, sentir algum resto de luz ou de per-fume neles impregnado, um eco em suas vozes. Afonso, dado a leituras, riu muito e achou aquilo uma loucura. Lembrou da famosa pedra de Bolonha. O velho devia ter lido Os Sofrimentos do JovemWerther. Qualquer hora ia chegar de paletó azul e camisa amarela.

No outro dia, perguntou à amiga Carlota se era verdade. Preferia que ele não soubesse, mas, já que sabia, confirmou. Disse que no começo não parecia nada sério, mas, justamente por ser uma mulher jovem, tinha rea-quecido o coração do velho. Uma janela para um novo mundo, um sopro nas brasas já quase brancas. Para ele, tratava-se de uma experiência nova, nunca tinha se re-lacionado com uma mulher tão livre, tão independente, sem preconceitos. Ficava perplexo com a liberdade que ela dizia ter conquistado. Recebera muitos presentes, muito carinho, muita atenção e até uma viajem a Salva-dor, com ele, sem que ninguém soubesse. Tudo bem, dis-se Afonso, e perguntou se ela não tinha medo do marido. Disse que não, que ele também tinha uma namorada. A mulher do velho é que andava desconfiada, fazendo per-guntas. Tinha pressionado até obter a confissão: estava apaixonado, mas ia encerrar o caso. A mulher sofreu nos três meses seguintes porque, segundo ele mesmo, não era tão fácil pôr um ponto final no romance. O casal viajou pela Europa toda; ela, para esquecer as mágoas; ele, para tirar Carlota da cabeça. Na volta, foi matar a saudade do

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cachorro-quente. Deixou uma caixa repleta de presentes. De coração partido, pediu que o casal escolhesse alguns e desse os outros a Carlota. Uma espécie de indenização, pois jamais voltaria a vê-la. Em cumprimento à promessa feita à esposa, não procurou Carlota nem foi mais à casa das pedras de Bolonha, como se isso fosse suficiente para evitar um reencontro que, é claro, aconteceu – no mes-mo lugar de sempre: o consultório. Carlota, sua paciente, tinha todo o direito de frequentar aquele lugar, e, desta vez, para comunicar-lhe que estava grávida. O velho, que se considerava estéril, – nunca tivera filhos – chegou per-to de uma síndrome, esmagado entre dois sentimentos contraditórios: de um lado, o pavor diante da ameaça de um terremoto em sua vida e, de outro, o êxtase com a idéia de ter um filho. Carlota foi franca: – Nem terremo-to, nem êxtase. O filho não é seu nem é do meu marido. Vim aqui lhe pedir para fazer um aborto imediatamente. Como sei que você me adora, estou segura de que não vai deixar de ajudar-me num momento tão delicado.

O aborto foi feito, com muita discrição. E no ou-tro dia bem cedo, no hospital, Carlota recebeu a visita de Afonso, um pouco envergonhado e muito agradecido.

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o Prêmio

Capítulo 1 – Transformação

Maciel, trinta e dois anos, casado, jurando fidelida-de a Celina. Os dois disseram sim, na alegria e na triste-za, na saúde e na doença. Terno preto e vestido branco, de cauda de dois metros. Muitos padrinhos, flores natu-rais, música ao vivo, tudo filmado, fotografado. Na fes-ta, os amigos saudaram os noivos com a irreverência de sempre.

Maciel deixou de ir ao estádio e aos bares, tornou-se caseiro, via novelas, visitava os sogros. De namorador cheio de lábia a um pacato senhor casado. Da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Tiago, o mais cético e desiludido dos amigos em matéria de amor, quis apostar como aquilo não ia durar.

Com o tempo, Maciel não era mais lembrado no salão de dança onde costumavam ter origem os casos e amores passageiros de antes. Celina, cuidadosa, teceu uma rede de proteção em torno do marido. Visitava pe-riodicamente o escritório, cumprimentava com simpa-tia os empregados, especialmente as moças. Telefonava

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durante o expediente para consultar Maciel sobre o que desejava comer no almoço, não esquecia de pôr no con-gelador uma cerveja meia hora antes da sua chegada, tra-tava carinhosamente a sogra. As roupas e demais objetos do marido estavam sempre em ordem e tudo mais que uma mulher sabe fazer para manter um casamento. Re-cebia em troca tudo que desejava: carinho, elogios, bons presentes, pequenas e grandes atenções. Não pedia, mas sonhava com viagens e mais espaço, mais conforto. Ami-gas confidentes choravam em seu ombro, contando as descobertas de traições de seus maridos e pediam con-selhos, queriam aprender como se faz para um marido sentir-se feliz e resistir às tentações. Celina repetia as re-comendações de sempre, baseada na própria experiência e, para as mais íntimas, revelava um segredo: “na cama, não deixe seu marido em paz, faça tudo e muito, mante-nha-o sempre saciado”.

Os negócios de Maciel progrediam no comércio de flores e frutas, abastecendo pequenos mercados da cida-de. Com o tempo, tornou-se empresário de porte médio e continuava a crescer. Considerava a paz familiar um dos fatores do sucesso e quando sabia de aventuras amoro-sas de alguém, não aprovava, não demonstrava interesse. Dizia sempre a Celina que só lamentava não poder estar mais tempo com ela. Já não almoçava em casa todo dia e pelo menos uma vez por semana tinha de visitar clientes em cidades vizinhas. Com esta mobilidade, foi apresen-tado a muita gente, ampliou seu círculo de amizades.

Três anos mais tarde, conheceu Sandra, mulher sem grande beleza no rosto, mas simpática, dona de uma loja de flores. Deu-lhe uns trinta anos e com ela reali-zou um bom negócio. Por delicadeza, convidou-a para

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almoçar. Ela aceitou e, durante o almoço, revelou passa-gens de sua vida que comoveram Maciel. Há dois anos, perdera uma filha e o marido em acidente de trânsito. Depois de um ano de luto, reagiu e arriscou tudo que ti-nha no negócio de flores e até então ia bem. Não se sentia ainda segura diante do mercado, mas buscava constan-temente orientação dos mais experientes, em revistas e páginas da Internet.

Maciel falou pouco e ouviu muito. Pagou a conta e voltou ao trabalho. No resto do dia pensou várias vezes naquela figura corajosa, disposta a lutar pela vida e ao mesmo tempo tão suave, feminina, meiga. Não contou a Celina o encontro, como fazia em relação a outros em que, por alguma razão, via pequenos fatos que podiam interessar-lhe. E Celina sempre ouvia com atenção ain-da que, no íntimo, não visse nenhuma importância nas histórias.

Passado um mês, recebeu telefonema de Sandra para tratar de novo negócio. Concluído o assunto, a moça disse que, para retribuir e comemorar, gostaria de convidá-lo a um restaurante. Maciel aceitou, com a condição de pagar a conta. Sandra respondeu que, tendo feito o convite, fazia questão de pagar. Chegaram ao restaurante, desta vez mais modesto, quase à mesma hora e Maciel revelava no rosto algum sinal de ansiedade.

– Se você tem pouco tempo não se preocupe, aqui o serviço é rápido – disse a moça.

– Não, de jeito nenhum, tenho tempo, sim. Trou-xe-lhe esta caixinha de cerejas que chegaram hoje, espero que você goste.

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– Quem não gosta de cerejas? Obrigada, pela gentileza.

No meio da conversa, Maciel achou que devia ser honesto e falou da família. Afirmou que Celina era uma ótima esposa, e excelente mãe. Seguiu-se um pequeno si-lêncio durante o qual o olhar de Maciel desviou-se para a rua, através da parede de vidro que protegia o ambiente do calor e do barulho de fora. Sandra tentava perceber se aquelas frases eram estudadas ou espontâneas, se podia confiar, se faziam parte de uma estratégia, que intenção podiam esconder. Achou melhor deixar de lado assuntos pessoais e falou de custos, impostos e burocracia. Ape-sar de novo protesto de Maciel, pagou a conta. Saíram do restaurante, entraram no carro e Sandra pediu que a deixasse na esquina antes da loja para fazer um jogo de loteria. Despediram-se com beijinhos formais.

Era véspera de Páscoa e Celina havia pedido ao marido para comprar ovos de chocolate. A compra foi esquecida, o que causou mal estar na volta a casa, à noite. Os dois meninos reclamaram e o pai aborreceu-se pro-metendo comprar os ovos no outro dia logo cedo.

Como era domingo de Páscoa, a mãe e os garotos queriam ir ao shopping. Maciel disse que não estava dis-posto e pediu à mulher para ir com os filhos. Comprasse os ovos que quisesse. Ficou em casa lendo o jornal no amplo terraço do apartamento. Na página de economia, leu sobre os preços de produtos agrícolas em alta, par-ticularmente flores. Fechou por alguns instantes o jor-nal olhando o céu com nuvens muito brancas contra um azul forte como nunca tinha visto. Levantou-se, apanhou a agenda, o telefone e ligou para Sandra.

– Você viu a subida dos preços de flores?

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– É, estão subindo, mas onde você viu?– No jornal de hoje, caderno de economia. Bom

para você, não?– Não sei, às vezes os clientes fogem porque flor é

supérfluo.– Depende. Quando um apaixonado quer mandar

flores a uma mulher, nem pergunta o preço.– Ah, isso é verdade, mas nem todos os fregueses

estão nesse estado.– É isso, boa sorte, espero que as coisas continuem

assim. Um abraço.– Obrigada, até breve.Sandra desligou, mas não soltou logo o telefone,

mantendo o olhar fixo no infinito, pela janela da sala. Retomou os papéis que examinava, tentou lembrar o que fazia quando foi interrompida, levantou-se e foi ler a matéria sobre o mercado de flores. Realmente, os preços estavam em alta, sobretudo os de rosas. Voltou à mesa de trabalho e aos cálculos que precisava fazer. Terminada a tarefa, ligou para Lúcia, amiga íntima.

– Vamos almoçar no self service?– Vamos, pode passar aqui?– Claro, chego já.Ao entrar no carro, Lúcia perguntou: – Tudo bem? Que cara é essa?– Nada, tudo bem.Durante a refeição, falaram de compras, trocaram

notícias de parentes, sem grande entusiasmo. Lúcia ca-lou-se, ficou olhando para o rosto da amiga. Notara algo

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diferente no sorriso, no movimento dos olhos, decidiu esperar. Sandra perguntou:

– Que foi?– É isso que eu quero saber, que está acontecendo?– Vamos tomar o café em outro lugar.Foram.– Dois capucinos.– Vai, conta.Contou.Lúcia, menos jovem, disse que não entrasse em

fria, saísse correndo, antes que fosse tarde. Sandra con-cordou e voltou para casa.

Capítulo 2 – Tulipas

Duas semanas depois, Maciel ligou oferecendo novidade, flores vindas de longe. Sandra respondeu que se abastecera em outro fornecedor, quando precisasse o chamaria, tentou encurtar a conversa. Maciel insistiu, le-varia as flores novas para experiência, não precisava pa-gar logo, ficariam consignadas. Sem argumento, Sandra aceitou. Maciel chegou com tulipas de várias cores, im-portadas da Holanda.

– São ou não são bonitas?– Belíssimas, devem custar uma fortuna.– Como eu já disse, há sempre alguns apaixonados

dispostos a gastar dinheiro. Dá para vendê-las a quinze reais cada uma, sem dificuldade. Entrego-lhe a sete.

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– Vamos ver.– Veja só essas vermelhas, dizem tudo que um ho-

mem quer dizer.Olharam-se em silêncio, Sandra baixou a vista.

Maciel repôs as flores na caixa e despediu-se.– Bem, assim que vender as primeiras, me chame

por telefone. Até breve.Sandra estendeu a mão e disse baixinho: até breve,

obrigada por ter vindo. Maciel não soltou logo a mão da moça. Puxou-a até os lábios e deu-lhe um beijo. Levan-tou o olhar e disse tchau, sorrindo. Durante a volta ao escritório, não pensou em outro assunto. Que está acon-tecendo? Desorganizar a vida quando tudo vai bem? Um homem adulto não pode comportar-se como um meni-no. O pensamento muda de uma hora para outra, quero e não quero. Se começar, vai ficar mais difícil terminar. Já começou? Celina não errou em nada, não merece sofrer. E eu, mereço? Trata-se de uma cliente, posso encontrá-la quando quiser. A moça não tem culpa de ser atraente. Mesmo sem um rosto muito bonito, tem um corpo de dar arrepio. O cabelo, a voz, o perfume. Não sei como pode estar solteira, não há homem que resista. Se é proi-bido, por que existe?

À noite, em casa, foi mais carinhoso do que de cos-tume. Puxou Celina para junto, no sofá, diante da TV, e não parou de acariciá-la enquanto via o noticiário e a novela. A mulher retribuía e não escondia o prazer com as cenas de amor que se sucediam. Mal podia esperar o fim do capítulo. Disse aos meninos que fossem dormir e desligou a TV. Convidou o marido a tomar uma ducha a dois e trancou a porta da suíte.

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Ao acordar pela manhã, Maciel abriu as cortinas e viu o céu azul claro, sem nuvens. Chamou Celina para ver a planta coberta de flores, um encanto. A mulher dis-se: essa trepadeira sou eu, e abraçou-o por trás. Maciel estremeceu. Ela riu e beijou-lhe as costas.

Capítulo 3 – Rosas

O tráfego estava péssimo, exigia muita paciência. Antigamente – pensou Maciel – os carros não tinham ar condicionado, toca-discos, direção hidráulica, nem vidro elétrico. Todo mundo achava normal o calor, o barulho, a fumaça. Agora, com este conforto todo, ainda se acha motivo para reclamar. A gente devia se conformar com o que possui. O problema é que, se fosse assim, as empre-sas não cresceriam, os empregos não se multiplicariam e a população seguiria crescendo, a miséria aumentando. Será que não há solução para o mundo? Talvez cada um tenha que procurar o que é melhor para si, o mundo não tem jeito. Por falar nisso, que é melhor para mim? Ao aproximar-se do escritório, Maciel viu os primeiros pin-gos de chuva no para-brisa e disse baixinho: ué, cadê o céu azul?

Trabalhou duramente a manhã toda e por uma se-mana esteve tranquilo, quase não pensou no problema, se problema existia. A cada vez que entrava em casa, pas-sava os olhos por toda a sala, beijava Celina e dirigia-se à suíte. Os meninos recebiam um carinho, o menor se queixava do outro e este procurava justificar-se. Pergun-tava se estava tudo bem na escola e eles diziam que sim.

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Domingo, após o almoço, o telefone tocou. Era Clara, irmã mais jovem de Celina, em conversa demorada e sé-ria. Vivia no interior, a trezentos quilômetros, com o ma-rido, proprietário de uma fazenda. Maciel perguntou de que se tratava. A mulher explicou que a irmã não estava bem de saúde e pedia-lhe ajuda, uma visita de dois dias, não era a primeira vez. A delicadeza e o amor de Celina faziam muito bem à irmã. Ninguém mais merecia tanta confiança. Maciel perguntou: e a casa, os meninos? Vou pedir a mamãe para dar uma força, são apenas dois dias – respondeu a mulher. Maciel ficou em silêncio.

Quarta-feira, cedo, Maciel foi levar Celina à rodo-viária. Na volta, pensou em ligar para Sandra. E agora: ligo ou não ligo? Se ligar, sou um cretino; se não ligar, um idiota. Lembrou-se da frase de um fazendeiro for-necedor: se o touro sentir o cheiro, pula a cerca nem que deixe o saco pendurado no arame. Que droga, não passo de um touro – disse como se conversasse com alguém.

– Bom dia, como vão as coisas?– Quem está falando?– Maciel, das flores.– Oh, meu... meu caro. As coisas vão bem. Foi bom

você ligar, preciso de mercadoria.– Não lhe vendo isso, vendo-lhe flores, as mais bo-

nitas. Posso passar por aí no fim da tarde?– Sim, pode, será um prazer.– Levarei boas amostras.No caminho, Maciel leu a placa do carro à sua fren-

te: KMA-4098 e pensou em jogar no bicho, vaca. Lem-brou do touro, diminuiu a marcha, apurou o olfato para sentir o perfume das rosas que levava e voltou a acelerar o

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carro. Entrou na loja com as amostras na mão como um buquê. Sandra disse: realmente, isso é muito mais que uma mercadoria. Surpreso, Maciel beijou-lhe a face in-vadindo com os dedos os cabelos louros que desciam até aos ombros da moça. Ela abriu um sorriso e convidou-o a entrar na pequena sala que servia de escritório. Sen-taram-se e falaram de datas, preços e pagamentos com frases cortadas, interrupções inesperadas. Feitas todas as anotações, olharam-se com um sorriso. Sandra saiu de seu lugar, apanhou uma das rosas, aspirou-lhe o perfu-me e a pôs no bolso da camisa de Maciel. Abraçaram-se num beijo prolongado, sem uma palavra. Separando-se, Sandra olhou o relógio e sussurrou: está na hora de fe-char. Mudo, coração disparado, Maciel assistiu a moça fechar as portas por dentro e ligar o condicionador de ar.

No dia seguinte choveu muito. Avenidas inunda-das, engarrafamentos, acidentes, muita gente não chegou ao trabalho. Parte do comércio fechou as portas ao meio-dia, inclusive Maciel e Sandra. Encontraram-se às cator-ze horas e saíram em direção à praia. Sandra quis saber aonde estavam indo. A um lugar lindo – respondeu Ma-ciel. De fato, o motel recém-inaugurado tinha decoração de muito bom gosto.

Capítulo 4 – A outra

Lúcia foi comprar flores e conversar com a amiga. Perguntou se estava tudo em paz, se o desastre não tinha acontecido. Sandra riu e prometeu contar tudo, mais tar-de. – Mais tarde, não, quero saber agora.

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– Desastre é pouco, querida, calamidade, hecatombe.

– Não acredito, você é louca. Aquele homem não vai se separar nunca da mulher dele, e quando ela souber, é capaz de mandar matar você.

– Veremos. Não creio que ela possa viver sem ele e não me importa que ele continue morando lá, sou a outra.

– Ih, amiga, você mudou muito.– Mudei para melhor. Confesso que era analfabeta

em matéria de amor, esse homem me ensinou tudo, você entende o que eu quero dizer?

– Acho que sim, pelo seu jeito de falar...– Pois é, enquanto ele me der isso, não o quero per-

der. Vamos sair?– Aonde você quer ir?– Passar na costureira e fazer um joguinho.

Capítulo 5 – A concorrência

A expansão dos negócios de Maciel exigira em-préstimos bancários. Segundo suas previsões, em dois anos pagaria tudo. Não contou com a possibilidade de queda significativa de suas receitas em função da con-corrência de empresas maiores. Achou que, para enfren-tá-las, teria que modernizar alguns setores e entrar em mercados mais distantes. Contraiu novos empréstimos e cortou custos na empresa e no consumo doméstico. Três meses depois, não havia sinais de recuperação e Celina

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queixava-se da perda de certos luxos com os quais se habituara. Durante todo esse tempo, nada percebera da concorrência que sofria no mercado do amor. O costu-meiro entusiasmo de Maciel se arrefecera, mas ela atri-buía tudo às suas preocupações com os negócios. Come-çou a inquietar-se quando notou que o marido chegava tarde com frequência cada vez maior. Não queria admi-tir logo uma ameaça, mas pouco a pouco convenceu-se de que devia ficar mais atenta. Lembrou-se de dar uma olhada no celular, anotar números mais chamados, ligar após o horário de trabalho, examinar o carro, cheirar as roupas. Sentia-se mal nessa pesquisa humilhante. O mal estar, no entanto, instalava-se e crescia rapidamente. Uma noite, terminada a novela, Maciel chegou e encon-trou Celina aos prantos.

– Chorando por causa de novela, amor?– É, o capítulo foi muito triste.– Que aconteceu?– O casal parecia tão feliz, a mulher descobriu que

era traída.– Bobagem, meu amor, isso é ficção.– Sei não...– Como não sabe?Tiveram uma longa conversa em que Maciel apa-

rentemente conseguiu convencê-la de que precisava mais do que nunca de seu apoio, de muita paz, para enfrentar as dificuldades que a firma atravessava. Não tinha cabeça nem tempo para outra coisa.

No dia seguinte, Celina resolveu ligar para os nú-meros anotados. Todos de homens, com exceção de um: Sandra, da Flórida – Flores e Arranjos. Pediu o endereço

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com o pretexto de ir até lá. Foi, mas, não para comprar, no fim do expediente. Olhou as flores, conversou com a loura que a atendeu e não se identificou. Achou que aquele rosto não era páreo para ela, porém o resto sim – e muito. Saiu preocupada e voltou para casa. Mais tarde, na cama, criticou uma amiga ciumenta, uma louca, sem-pre vigiando o marido. Maciel disse que estava morto, deu-lhe um beijo, apagou a luz e virou-se.

Celina despertou mais cedo, foi à garagem e entrou no carro do marido. Sentiu cheiro de rosas, achou que era normal. Examinou o banco dianteiro, demorou-se no encosto e encontrou, não um cabelo louro, mas dois. E grandes. Grandes como os da loura das flores. Levou-os com cuidado e guardou-os dentro de uma caixinha de jóias. Estava convencida. Teria o dia todo para pensar no que ia dizer à noite, a portas fechadas. Pediria o divór-cio e exigiria tudo que a lei lhe garantisse. O futuro dos meninos estava em jogo e o seu também. Conhecendo bem as reações de Maciel, achou que o melhor era dizer de uma vez: sei de tudo e tenho provas, quero o divórcio.

Capítulo 6 – A falência

Após o jantar, Celina chamou o marido ao quarto, trancou a porta e desembuchou do jeito que havia pre-parado. Maciel piscou os olhos, tremeu o lábio superior, tentou rir e perguntou que história era aquela. Celina gritou: não minta, seu cretino, cara de pau, quero o di-vórcio. Maciel controlou-se, ficou sério e falou, olhando para o chão:

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– Celina, estamos falidos. O que temos para repar-tir é um monte de dívidas.

A mulher ficou lívida, levou as mãos às têmporas e mergulhou na cama enfiando o rosto no travesseiro. Não se levantou para falar com as crianças e, na posição em que estava, soltou um grito abafado: vá dormir no quarto de hóspedes. Maciel obedeceu. Os meninos estra-nharam, entenderam que as coisas estavam feias e nem deram boa noite ao pai.

Capítulo 7 – O jogo

Maciel marcou encontro com Sandra e contou-lhe tudo. A moça disse:

– Tudo isso por dois fios de cabelo?– Minha mulher é muito desconfiada, já vinha me

espionando. De repente, corro o risco de perder tudo, minha empresa e minha família.

– Está arrependido?– Não, apenas confuso, preciso pensar. O pior é a

falta de dinheiro. Se pudesse fazer uma viagem com Ce-lina talvez ela se acalmasse.

– Ainda quer me ver?– Quero, você não tem culpa, não vai sair da minha

cabeça assim.– Nem você da minha. Pense com calma e depois

me chame. Preciso voltar para a loja, mas antes me deixe numa lotérica, não quer fazer uma fezinha?

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Sandra costumava fazer pequenas apostas. Maciel disse que achava melhor fazer um jogo grande e ofereceu dinheiro. Perguntou se não topava fazer um só jogo, para os dois. Sandra disse:

– E se a gente ganhar?– Dividiremos o prêmio em partes iguais.– Olhe bem o que está dizendo.– Falo sério, pode ficar com os comprovantes.– Está combinado.

Capítulo 8 – O prêmio

– 04, marquei; 09, marquei; 31, marquei, já acer-tei três! 36, marquei, já ganhamos a quadra! 48, ai meu Deus, ganhamos a quina; 53, não acredito, que loucura, vou conferir: 4, 9, 31, 36, 48 e 53, vou ter um troço!

Sandra revira tudo na bolsa à procura do celular. Emborca a bolsa em cima da mesa, cai tudo, agarra o aparelho, contatos, M, Maciel, tecla verde.

– Querido, falo sério, ganhamos a sena! Estou na loja, corra até aqui, porque não sei se meu coração aguenta!

– Não brinque, estou no escritório com uma visita importante.

– Pode ser o papa, venha, senão eu morro!– Diga as dezenas.– Se você disser mais uma palavra, não lhe entrego

sua metade.

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Capítulo 9 – O acordo

– E agora, como vamos dizer a Celina?– Qual é o problema? Ela não quer se divorciar? Eu

fico com uma metade e você divide a outra com ela. Nós dois juntos ficaremos com três quartos.

– Talvez ela mude de ideia, queira continuar casada comigo e, neste caso, você fica com uma metade e eu com a outra.

– Mas então, ela vai exigir que você encerre o caso comigo. Saiba que guardei os comprovantes bem guar-dados. Diga-lhe que só entrego sua metade se ela fizer de conta que não sabe de nada.

– Você seria capaz?– Ora, estou sendo correta. Não faço questão de fi-

car com o dinheiro todo. Quero entregar o seu, não exijo que ela perca o marido, porém tampouco quero perder você.

– Bem pensado.Maciel explicou tudo à mulher, com muita calma,

falou sobre o tamanho do prêmio e, Celina, após alguns segundos de reflexão, disse parecendo calma:

– Tenho ideia melhor. Proponho que você pague suas dívidas, e, nós três juntos, fundemos a MCS Fru-tas e Flores, a maior empresa do ramo na região e não falaremos mais nesses detalhes desagradáveis tais como divórcio, metade pra cá, metade pra lá.

– Fala sério, Celina.– Nunca falei tão sério, Maciel. Topa ou não topa?– E você não vai sentir ciúme?

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– Ciúme é coisa de pobre, querido.– Celina, você me espanta.– Eu era analfabeta em matéria de canalhice, Ma-

ciel; você me ensinou tudo. Liga aí para a Sandra e fecha esse negócio.

– Não esculacha, mulher.– Não esculacho nada, o mundo é assim há muito

tempo, só eu não sabia. – É exagero, nós somos uma família, temos as

crianças.– Eu também fui criança, meu pai devia ter lá as

amantes dele, ninguém falava. Todo mundo fazia de con-ta que não havia nada. A diferença é apenas esta: nossos filhos vão poder dizer: este é meu pai, esta é minha mãe e esta é a amante de meu pai.

– Celina, você está ironizando. Pelo jeito, você dei-xaria de lado essa ideia de divórcio desde que eu encer-rasse definitivamente o caso com a Sandra. Acontece que os comprovantes do prêmio estão com ela e se eu disser que nunca mais a verei, ela não entregará minha parte. Tenho que manter a relação com ela, aceitar as condi-ções. Do contrário, estarei falido e sem o prêmio. Ela aceita que eu continue casado com você, só não quer me perder. Pense no tamanho desse prêmio e na nossa situ-ação financeira. Para brigar na Justiça, eu precisaria de dinheiro e correria o risco de perder a ação.

– Maciel, prefiro ficar sem dinheiro a me submeter a uma chantagem.

– Não considero chantagem, ela reconhece que você é minha mulher, e está disposta a se conformar com a humilhante posição de amante, concubina, a outra, seja

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lá o que for. Não estamos em condições de perder essa montanha de dinheiro. Pagaremos as dívidas, compra-remos um apartamento grande à beira do mar, faremos uma viagem longa, você renovará seu guarda-roupa, o futuro dos meninos estará garantido. É muita vantagem para se jogar fora apenas em nome de convenções. Não vá me dizer que não tem amigas na mesma situação.

– Tenho, mas eu me julgava diferente, privilegiada. Notei que você vinha aos poucos se afastando de mim e atribuí isso aos problemas da firma. Quero seu amor de volta, do jeito que era antes.

– Mas isso você terá, eu juro. A falta de dinheiro é que me tornou estranho, sem ânimo para atender as suas expectativas. A tranquilidade vai voltar e seremos felizes outra vez, com mais conforto e segurança.

– Olha aqui, Maciel: você vai pagar o que deve aos bancos e fornecedores, mas a dívida que você está assu-mindo comigo é eterna. O que você está me pedindo só uma Celina pode lhe dar. Vamos ter um padrão de vida muito acima daquele em que vivemos até hoje e depois não me venha pedir para cortar gastos. E não é só isso, você vai continuar meu marido com todos os deveres que isto implica. Nunca mais me fale de problemas da firma, nem de trabalho. Está combinado?

– Tá. Vai ser do jeito que você quer. Agora me dê licença que eu vou cuidar do nosso futuro.

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Pedaço do CorPo

“Casamento não passa de um papel. Podemos vi-ver juntos sem essa complicação burocrática. O funda-mento da união é o amor e não um instrumento jurídico ou religioso. Se um dia o amor termina, a separação é simples, sem juiz, sem advogado. Devemos ser coerentes com nosso pensamento a respeito da sociedade baseada na preocupação com o patrimônio, herança, essas coisas. O modelo tradicional de família está desmoralizado pela hipocrisia; não há por que ceder agora, pelo contrário: é preciso ficar claro que as novas ideias estão aí para mu-dar o mundo. Um casamento, depois de tudo o que vi-vemos, seria uma contradição, uma negação de todos os nossos princípios.”

Marta dobrou o papel, olhou a paisagem com de-sânimo, pela janela do ônibus. Tudo que estava perto passava rapidamente, sem poder ser admirado. Casas, gente, animais, veículos, uma sucessão sem nitidez. Só o que estava longe demorava a passar, mas sem detalhes. Um campo cultivado, um resto de mata, uma montanha ao fundo. Mais uma hora, pelo menos. Tirou um livro da bolsa e leu algumas páginas, sem muita atenção. Foi

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vencida pelo sono, só despertando na Rodoviária. En-trou no saguão puxando a mala e avistou Rodrigo vindo em sua direção. Beijos, abraços e poucas palavras.

Só retomaram o assunto no outro dia: por que ca-sar? – perguntava Rodrigo e Marta respondia: por que não casar? Repetiram argumentos já ditos em conversas anteriores e voltaram a atenção para tarefas domésticas, adiando uma decisão. Mais importante era organizar a vida em comum, o uso dos espaços. O apartamento per-tencia ao pai de Rodrigo e Marta deixara a família e a cidade para realizar a união. Embora não expressasse em palavras, sentia certa insegurança diante do desafio de viver longe da casa dos pais. Ganhavam dinheiro sufi-ciente para manter o padrão de vida a que estavam ha-bituados, o medo era outro. Queria criar filhos com pai e mãe, não sozinha, como várias amigas. Sabia que mais cedo ou mais tarde correria este risco. Casada no cartó-rio e na igreja, sentir-se-ia mais segura. O assunto ia e voltava.

– Quero que meus filhos tenham pai – disse Marta e, no dia seguinte, voltou para a casa dos pais. A mãe não queria crer: filha, contra a nossa vontade, você foi embo-ra, dizendo que era para sempre e volta dois dias depois...

– Você não me quer aqui?, perguntou a filha. – Claro que quero, não estou dizendo isso, o que

me preocupa é você não saber o que quer.– Sei tanto que não fiquei lá, mesmo sabendo que

vou sofrer, disse Marta.– Então, por que resolveu ir? – Porque pensei que conseguiria convencê-lo.

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– Filha, escute: seu pai ainda hoje está aqui ao meu lado, mas você pensa que vai encontrar alguém igual a ele? Os homens aproveitaram a independência financeira das mulheres e deixaram de sentir culpa quando abando-nam suas companheiras. Antes, permaneciam casados, mal humorados, tristes ou tinham amantes, mas não iam embora tão facilmente, porque se sentiam responsáveis pela família. Hoje, a mulher tem até vergonha de pedir pensão para si mesma. Faz questão apenas do dinheiro para terminar de criar os filhos. Se eu tivesse agora a sua idade, teria apenas os filhos que pudesse criar sozinha. Os homens não querem mais ser pais, se é que um dia quiseram. Só não vê quem não quer: eles desejam uma companheira por algum tempo, e depois outra, e mais uma, e no fim preferem viver sozinhos, pagando uma empregada para limpar a casa.

– Mãe! Olhe o que você está dizendo, você acha que todos são assim?

– Não, mas hoje em dia, quando não é o homem que vai embora, é a mulher. Família como a nossa ou a de meus pais, é coisa do passado. Se você não percebe agora, perceberá depois, fatalmente.

Aos prantos, Marta sai gritando em direção ao seu quarto: quero ter marido e filhos, isso é querer demais? Entra no quarto e bate a porta com força.

Longe dali, deitado na cama, Rodrigo limpa os óculos com um lenço de papel. Apanha o livro que aca-bara de comprar e examina a capa. Curioso, lê na quarta página: Ernst Ludwig Kirchner, Eingang zum groβen Gar-ten in Dresden, 1905, aquarela, 35x 45 cm. Caminhando pelo jardim, um casal e, logo atrás, uma ama e um meni-no. Acha a imagem bem escolhida, adequada ao título do

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livro: Felicidade Conjugal, Lev Tolstoi. Começa a ler e, ao perceber que a história era narrada por uma mulher, interessa-se mais ainda. Uma hora depois, não consegue parar e continua até a página sessenta, onde termina a primeira parte. Fortemente impressionado com a beleza da personagem e a felicidade em que esta vivia, sai para almoçar, pensando em ler a segunda metade logo mais, ao voltar. Pelo que leu até ali, imagina que vai conhecer o que mais lhe interessa: a vida de casada da bela jovem e a veracidade do título da novela.

Leu as sessenta páginas restantes e decidiu pedir a Marta que lesse o livro antes de tomar qualquer decisão definitiva. Disse pelo celular: só quero que você leia esse livro e depois ligue para mim.

Marta atendeu ao pedido. Comprou a novela e leu-a em dois dias. Muitas lágrimas depois, ligou para Rodrigo dizendo que não se identificara com a personagem que, na sua opinião, era ingênua e submissa; não sabia de onde vinha sua insatisfação e por isso esperava tudo do marido. Não era seu caso. Não tinha um sonho, tinha um projeto amplo que incluía realização profissional, independência financeira, filhos e netos. Um projeto sólido, baseado em compromisso sério com alguém que tivesse maturidade e clareza nos objetivos. Se ele não era essa pessoa, paciência. Procuraria outro. Rodrigo respondeu que era um homem assim, apenas não dava importância às formalidades burguesas do casamento civil nem às palhaçadas do casamento religioso, uma farsa em que todo mundo fazia de conta que estava falando a verdade quando por dentro ninguém acreditava naquilo, a começar pelo padre. Marta argumentou que importante não era levar tudo ao pé da letra, mas aceitar

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as cerimônias como símbolos que existem em todas as culturas e expressam os valores que orientam as famílias e os indivíduos. Rodrigo não cedeu: reforçou sua posição afirmando que não precisava de símbolos; o compromisso baseava-se em seus sentimentos e no seu caráter; mesmo admitindo que os sentimentos mudassem com o tempo, um compromisso sério sobreviveria, em nome de outros fins como os que ela mesma dizia, filhos e netos. Marta não se convenceu: se ele não dava importância a símbolos, por que renunciar a tudo apenas para não participar de formalidades legais e religiosas a que todo mundo se submete? Rodrigo interrompeu para dizer que nem todo mundo e Marta disse que era verdade, havia uns bobos inseguros que gostavam de se afirmar, enfrentando os costumes e até as leis para depois, na maturidade ou na velhice, tornarem-se mais conservadores que os pais. Mais de uma hora de telefone deixou os dois esgotados. Marta desligou e tentou dormir. Sonhou com uma cartomante que lhe dizia: infelizmente, a felicidade não parece duradoura para a senhora; vejo nas cartas uma criança nos braços da dama; não há valete nem rei por perto.

Pensou no sonho a manhã toda e concluiu pessi-mista: – Só quem tem filho é a mulher. O feto é um pe-daço de seu corpo, alimentado pelo seu sangue e depois pelo seu leite. Homem não sabe o que é isso.

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não Criei VoCê Para Ser dona de CaSa

“Eles dizem que é a cidade mais oriental do mun-do.” Do mundo? – perguntou o neto mais novo. Deve ser da América do Sul – disse o mais velho. “Sei lá! É o que eles dizem.” Eles, para D. Alzira, eram os habitantes de João Pessoa. Difícil saber se dizia isso percebendo o non sence da frase. O fato é que não acreditava que “aquilo” fosse a cidade mais qualquer coisa do mundo.

– Má vontade, preconceito, dizia o genro Zaqueu, fiscal da Receita Federal, tentando convencer Regina, a mulher. Tem ótimas praias, sem engarrafamentos, pouca violência. Pode-se andar pelas ruas sem preocupação, o tempo parece passar mais devagar. Isso aqui virou um inferno, ninguém sabe a que horas vai chegar a casa, ou se vai chegar.

– Sei disso, Zaca, a questão é outra, parece até que você não entende. De um lado você tem razão: an-tes, você viajava e eu ficava com as crianças, mas Ma-mãe ajudava muito, eu podia dar conta do meu trabalho. Foi assim que consegui minha clientela, fiz meu nome, a clínica cresceu. Sentia sua falta, mas era seu trabalho.

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Esperamos muito tempo para você mudar de setor, parar de viajar, mas a encomenda não veio como esperávamos. Morar ali pode ser bom, a pergunta é: que é que eu vou fazer lá? Minha clínica, pela qual tanto lutei, não pode ser transferida num caminhão. Para continuar minha vida profissional, vou ter que passar pelo menos três dias por semana aqui. Não sei se vou suportar esse regime.

– Acho que você pode começar outra clínica lá, gente precisando de fisioterapia tem em todo lugar.

– Mas a clínica não é só minha, querido. É quase impossível vender minha parte. E não trabalho apenas para ganhar dinheiro, adoro o que faço, é parte da minha vida. Mesmo supondo que apareça alguém para me subs-tituir, corro o risco de ficar fora da minha área, numa cidade em que não conheço praticamente ninguém. Mi-nha mãe, que sempre me ajudou, agora fica me pressio-nando, do jeitinho dela, soltando indiretas, e até diretas mesmo. Ela jamais iria para lá e tampouco quer que eu vá. É mais um peso na minha cabeça.

– Escuta aqui, Regina: nós temos dois filhos que precisam mais do que nunca conviver com a mãe e o pai. Antes, eu não podia, viajava muito, agora vou poder. Jus-tamente nesse momento, você diz que terá que ficar três dias por semana longe deles. Se sua mãe continuar difi-cultando as coisas, vou terminar falando sério com ela. Seu pai, que não morre de amores por mim, tem ajudado. Na opinião dele, mulher tem que acompanhar o marido. Sei que você não aceita esse tipo de argumento, mas é o jeito dele de dizer o que pensa. Converse com sua mãe, se ela não pode ajudar, pelo menos não deve atrapalhar.

– Vou falar, deixe que eu falo.

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Questão delicada para qualquer casal, mais ainda para Zaqueu e Regina, com dez anos de boa convivência e dois filhos bastante ajustados, sem grandes conflitos. Quem sabe, a ausência do marido pode ter ajudado, durante todo esse tempo. A convivência contínua dá mais oportunidade ao desgaste, às pequenas mágoas, à desatenção, aos esquecimentos. No entanto, nenhum dos dois parecia perceber esta verdade. Sonhavam com o tempo em que fosse possível dormir, almoçar, jantar e ver novelas na TV, ou sair para o cinema, sempre juntos, ou com os meninos. QuandoZaqueu conseguiu a transferência para outro setor, nem perguntou logo se ficaria na mesma cidade. Esta parte ruim da notícia veio na comunicação por escrito. Ao ler o papel, sentiu o choque; porém, logo em seguida, começou a encontrar atenuantes e até vantagens na mudança. Ficaria na mesma região, estrada de primeira qualidade, vida mais tranquila, mais segura, menos perigo para os filhos quando chegassem à adolescência, enfim, as vantagens de uma cidade menor. Não pensou que Regina reagisse tão mal. No primeiro domingo após a transferência, levou a família toda para conhecer melhor a cidade e uma das praias. A cor do mar não era tão verde, mas o panorama era bonito. Ruas arborizadas, bons centros comerciais, prédios modernos etc. Foram almoçar em restaurante famoso. Dezenas de pratos diferentes, os meninos gostaram. Regina não dava uma palavra, apenas pensava “ainda bem que mamãe não veio”. Talvez por ter levado muito sol, não se sentia bem no restaurante, não tinha fome. Aquela montanha de comida começou a provocar-lhe um leve mal estar que só aumentou, ao ingerir meio copo de coca-cola. Todos se serviram,

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menos ela. Zaqueu insistiu e, para estimular o apetite, pôs uma rodela de lingüiça em sua boca: “come, amor.” Sem coragem para recusar, Regina aceitou. Mastigou com sacrifício e terminou deixando descer aquela massa gordurosa, avermelhada e intragável. Um minuto e algumas voltas no estômago foram suficientes. Regina levantou-se apressada, com a mão tapando a boca, correu até o toalete que, se estivesse mais um metro distante, não teria servido de nada. Zaqueu chegou logo depois, aturdido e inútil. Não podia entrar no toalete feminino. Perguntou sem refletir, em voz alta: você está bem, Regina? Ela respondeu tossindo e soluçando: estou ótima!

Fora inútil, o esforço de Zaqueu. O que esperava ser um passeio agradável tornou-se um dia de silêncio e mal estar. Os meninos, de sete e nove anos, já entendiam o conflito e sentiam medo e insegurança. Não tinham co-ragem de dar opinião, sabiam que se tratava de assunto de gente grande. Durante a viagem de volta, Zaqueu ar-riscou uma pergunta:

– Que acham, vocês? Podem dizer a verdade.Gustavo, o mais velho, falou:– Queria que ficasse todo mundo junto.Em seguida, Jorginho:– Quero ficar com minha mãe.Regina não deu uma palavra, Zaqueu continuou:– É o que nós queremos, Guga; faremos o possível

para estarmos juntos.Na cama, à noite, as carícias tomaram o lugar

das palavras. Momentos em que os dois entendiam-se perfeitamente. Laço que até então não sofrera nenhum

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relaxamento. Apesar das viagens de Zaqueu, nenhum si-nal de traição, nem de um lado nem do outro. Este tesou-ro, Regina não queria perder nem pôr em risco, sabendo o que ocorrera com várias de suas amigas que haviam se casado antes dela. Para essas mulheres, o número dez, dez anos, parecia fatal. Uma delas confessara sua indife-rença já que nem mesmo o grande presente da nature-za, descrito pelas revistas femininas como badaladas de sinos e chuva de estrelas, ela recebera. Desmanchara o casamento sem grandes queixas. Não era o caso de Re-gina. Nunca sentira necessidade de experiências novas, achando impossível encontrar algo melhor. De longe, o maior prazer da vida, prioridade total sobre os demais aspectos, inclusive o profissional.

Muito cedo, na segunda-feira, Zaqueu pegou a es-trada, de volta ao trabalho e Regina aproveitou para con-versar com a mãe.

– Mamãe: adoro meu marido e meus filhos. Sou capaz de fazer qualquer sacrifício para manter minha fa-mília unida. Esperamos dez anos pela oportunidade de uma vida normal, como todo mundo, sem aquelas via-gens tão frequentes. Sei que vai ser difícil, no começo, mas vou terminar conseguindo retomar meu trabalho. Estou decidida a enfrentar a mudança. Vou sentir muito sua falta e os meninos também, mas poderemos visitar-nos pelo menos uma vez por mês.

– Se você está decidida, minha filha, só tenho que me conformar, mas, sinceramente, não acredito que seja fácil você continuar seu trabalho. Não criei você para ser dona de casa. O sacrifício foi grande para que você tives-se uma profissão.

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– Mãe, por favor: não disse que vai ser fácil e sem-pre fui muito grata a você e ao papai pelo esforço que fizeram para que eu pudesse completar minha formação. A questão é outra. Se eu não concordar com a mudança, estarei dando o primeiro passo no caminho da separação, da ruína do meu casamento. Veja o que aconteceu com tantas amigas e parentas nossas. Vivem sozinhas, crian-do os filhos com grandes dificuldades. Lá, recomeçarei meu trabalho quase do zero, mas não vou me acovardar diante de um novo desafio. Tenho saúde e coragem para enfrentá-lo.

– Bom, pelo que você me contou do que aconte-ceu lá no restaurante, seu sofrimento vai ser grande e, na idade em que eu e seu pai estamos, nossa vida vai sofrer grande abalo, terminaremos numa casa de repouso, en-tre velhos rabugentos.

– Mãe, pelo amor de Deus, não torne as coisas mais penosas do que já são. Você tem mais dois filhos aqui nesta cidade, morando muito bem.

– Deus me livre de ir para casa de nora. Elas toma-ram meus filhos e hoje mandam neles. Só visitam as fa-mílias delas e quase nunca vêm aqui. Mas é isso mesmo, seja o que Deus quiser. Prefiro até morrer antes de seu pai. Ele se dá melhor com as noras.

Na clínica, a sócia de Regina surpreendeu-se. Não esperava um dia perder aquela parceira leal, competen-te. Era casada, mas seu comentário deixou ver que não tinha tanto entusiasmo pelo marido a ponto de arriscar sua vida profissional: “e você acha que vale a pena, bonita como você é, não vai faltar candidato, eu não iria.” Regi-na tentou explicar que seu casamento era sólido, valia a pena, sim. A sócia acrescentou: “e se um dia ele te deixar,

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com mais idade e sem o prestígio que você tem aqui?” Bem – disse Regina enxugando os olhos – eu terei feito a minha parte. Se for inevitável, como você parece acre-ditar, espero que só aconteça depois da morte de minha mãe.

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BodaS de ouro

Durante a lua de mel, Carmem disse ao marido que não acreditava ser possível alcançar tamanha felicidade. Por mais que tivesse fantasiado, seu estado superava to-das as expectativas. Ao despertar, olhava o rosto de Ma-nuel e ficava em silêncio, querendo convencer-se de que não estava sonhando. Aproximava-se até sentir na face a respiração do amado. Beijava-o com ternura até que len-tamente ele também despertasse. No quarto dia, propôs uma inversão das comemorações convencionais: aquela seria a semana de suas bodas de ouro; quando comple-tassem dez anos, festejariam as bodas de prata; aos vinte anos, bodas de bronze e aos cinquenta, de papel. Manuel achou que ela estava sendo pessimista, seriam felizes para sempre.

– Não, querido, não se iluda. Os dias de ouro são estes, aproveitemos – e beijou a boca do marido com paixão.

Dez anos depois, o despertador tocou e Carmem abriu os olhos. Leu a data, olhou de lado e chamou:

– Manuel! São seis horas. Acorda.– Que dia é hoje?

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– Dezesseis de novembro, sexta-feira. Dia das nos-sas bodas de pedra-sabão – respondeu Carmem sorrindo.

– Não eram de prata?– Eram, mas a prata está em falta e eu tenho que

levar o Pedrinho à escola. Levanta.Manuel obedeceu; fez a barba, tomou banho, co-

meu bastante no café e enquanto se aprontava ouviu: tchau, Manuel, tchau pai! Tchau – respondeu. Pegou a arma no cofre, acomodou-a na cintura e dirigiu-se ao Tribunal. Voltou ao meio dia para almoçar em casa. O telefone tocou, era Carmem.

– Manuel, resolvi comer aqui pela cidade para apro-veitar o tempo. Tenho muito que fazer, até mais tarde.

– Até – respondeu. Não é que ela tinha razão? Nos primeiros anos, as outras mulheres não me interessavam. Agora, jogo charme para as colegas, dou um toque na buzina do carro quando vejo uma gata no ponto do ôni-bus e não resisto a um sorriso malicioso. Se não fosse o Pedrinho, eu caía fora. E ela? Pensará também assim? Ainda é bonita, teve algum caso? Se teve, fez tudo muito bem feito, nunca notei nada. Acho que também nunca desconfiou de mim. Ou não quis pensar, nem saber. Me-lhor assim. Não quero casar outra vez, gosto da compa-nhia do meu filho e me dou bem com Carmem. Nosso patrimônio cresceu, padrão de vida bom, por que des-truir tudo? Bodas de pedra-sabão com um diamante em cima. Diamante? De amante? Amante homem ou mu-lher? Eu, não tenho. E ela?

À noite, logo após o jantar, Manuel disse: – Carmem, tive a ideia de pôr um diamante em

cima da pedra-sabão.

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Carmem riu e Pedrinho perguntou que pedra era aquela. Sem responder, Manuel convidou mãe e filho para dar uma volta de carro. Volta onde – perguntaram. Ver a lua cheia, na praia. Vamos, disseram.

Maré baixa, céu limpo, molharam os pés e subiram na pedra onde terminava a praia. O luar realmente des-lumbrava e o filho fez várias perguntas sobre a Lua. As crateras, as fases, a outra face e Manuel saiu-se bem. De repente, perguntou a Carmem:

– Meu bem, você já teve um amante?– Tá louco, Manuel? – disse Carmem fazendo um

sinal pela presença do filho.– Pois é. Hoje um colega juiz me contou ter desco-

berto que a mulher tem um amante, quer matá-la.– Manuel, o menino!– Tá vendo aquele coco ali no chão, Pedrinho?– Tou.– Vou acertar nele, presta atenção. Pá!Pedrinho vibra com a pontaria do pai e Carmem

treme de medo:– Vamos para casa, por favor!Manuel guarda o revólver na cintura e diz:– É, vamos, parece que vai chover.No carro, de volta para casa, Pedrinho dormiu e

ninguém falou. Só depois que deixou o filho na cama, Carmem encarou Manuel e perguntou carinhosamente:

– Querido, que está se passando na sua cabeça? Você me assustou.

– São as bodas de pedra-sabão, Carmem.

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– Ah, isso foi uma brincadeira, amor. Você até dis-se que ia pôr um diamante em cima...

– Também foi brincadeira. Você quer separar-se de mim?

– Nunca, que pergunta é esta? A história das bodas eu inventei porque acho uma grande hipocrisia come-morar vinte e cinco anos, cinquenta anos como se fossem de felicidade e harmonia. Há casos em que as pessoas se odeiam e fazem uma grande festa e uma missa com re-novação do casamento. Isto, eu não quero. Depois de dez anos de convivência, não há lugar para comemorações românticas, devemos ser mais discretos e cultivar senti-mentos de responsabilidade, respeito e delicadeza, o res-to é fantasia.

– Você está falando como um homem.– E você como uma mulher. Vamos falar como se-

res humanos, sem preconceitos. Não será você que está querendo a separação?

– Carmem, escuta: você é uma mulher madura. Mesmo assim, parece não saber a diferença entre as ne-cessidades de um homem e as de uma mulher. Conheço várias que vivem sozinhas e não reclamam, não saem por aí à procura de uma noite de sexo. Os homens são dife-rentes, não conseguem viver assim. Entre nós dois não há mais aquele furor que sentíamos nos primeiros anos. Te-mos orgasmos puramente fisiológicos, sem emoção. Fico imaginando como seria uma aventura com outra mulher, bonita e jovem. Ao mesmo tempo, não quero perder a estabilidade que conquistamos, a convivência com nosso filho. Sofro entre esses dois desejos: a estabilidade e uma aventura. Como não tenho coragem para tomar uma

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decisão consequente, firme e definitiva, deixo-me levar pela fantasia de que você pode ter um amante. Isto justi-ficaria uma atitude mais drástica de minha parte.

– Vamos ver se entendi. Você me propõe duas saí-das: continuarmos casados e você ter suas aventuras; eu arranjar um amante e partirmos para o divórcio. Não sa-bia que você me considerava imbecil, Manuel.

– Não se trata disso, Carmem. Estou apenas re-velando humildemente a miséria moral em que me en-contro. Se há alguma vítima aqui, sou eu. Você parece não sofrer com a indigência emocional em que vivemos. Conforma-se com o que resta e até tira onda, ironiza.

– Que é que isso tem a ver com seu colega corno e o tiro que você deu no coco?

– Desculpa, Carmem, foi um momento de descon-trole que afinal nos deu oportunidade para esta conversa.

– E agora, que faremos?– Não sei. O tempo dirá. Vamos dormir.– Vamos, mas, antes, vamos pôr nem que seja um

vidrilho em cima da pedra-sabão.

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VoCação de ator

Leu biografias de atores, matriculou-se em cursos e acabou estreando em peça de teatro com o nome de Elias Autran. Saiu-se bem e estreitou laços com os com-panheiros de palco. Foi apresentado a membros de ou-tros grupos, frequentou os cinemas o mais que pôde e, em casa, diante do espelho, imitava os ídolos. Terminado o ensino médio, Elias entrou no curso de dramaturgia da universidade e levou à frente seu projeto, enfrentando a resistência do pai. Após o curso superior, considerava o teatro uma etapa vencida e pensava no cinema como re-alização profissional. Desempenhou papeis em filmes de curta metragem, feitos por colegas. Via as principais no-velas da TV, prestando atenção aos atores consagrados. Já não se tratava apenas de um sonho, julgava-se um ator ainda desconhecido, mas a caminho do sucesso.

Submeteu-se a testes e logo foi convidado a tra-balhar em novela para a TV. Foi aí que conheceu Lígia. Iniciantes, apaixonaram-se durante as gravações. Guar-daram discrição, por conveniência. O diretor podia não gostar, formavam o casal da história. Ouviam dele e dos mais antigos: é preciso fingir que há emoção, quem deve

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emocionar-se é o telespectador. Como fingir se realmen-te sentia? Tentou esconder. O diretor gostou das cenas, eram convincentes – elogiou. Nas locações e no estúdio estavam sempre separados, trocando sofridos olhares. Encontravam-se fora dali e nunca nos bares frequenta-dos pelos atores. Esconderam a novidade até o fim das gravações.

Agora todo mundo já sabia, moravam juntos. O sucesso chegou e Lígia foi convidada para outra nove-la. Elias também, porém não como seu par, na história. O papel coube a outro ator, mais velho, como convinha. Comemoraram com os amigos em jantar alegre. Na vol-ta para casa, Lígia falava mais que Elias, concentrado na direção do carro. A vida parecia acelerada, frases da conversa no bar se misturavam a lembranças dos pais e irmãos no momento da decisão de sair de casa. Em um ano, tudo mudara. Olhou para Elias, passou o braço em volta do seu pescoço e deu-lhe um beijo na face. Elias sorriu em silêncio.

Na manhã seguinte, saíram apressados, para o tra-balho. No carro, Lígia disse:

– Amor, acho que estou mais feliz que você. Minha surpresa é maior que a sua. Não esperava que tudo acon-tecesse assim, tão rápido. Sabia que você seria logo cha-mado, é o queridinho das adolescentes, mas, não contava que me dessem esse novo papel, é a novela do horário nobre.

– Estou tão feliz quanto você. Não só por ter um novo papel, mas por ver você brilhar. Era tudo que eu queria.

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– Não sei. Desde ontem tento entender o que você sente. Sei que você vibra com minha conquista e com a sua também, mas o rosto, a voz, o olhar, me dizem que há alguma nuvenzinha, um grão de areia, não sei... , fala!

– Não há nada, como poderia não estar feliz? Nós nos amamos, tudo deu certo até agora, só temos alegria.

– Tudo bem. Realmente não temos do que nos queixar. Vamos ao trabalho.

Quando soube que em várias cenas apareceria montado em um cavalo, Elias adorou a notícia. Lem-brou a infância na fazenda do avô, em longas cavalgadas acompanhando o vaqueiro. Sentia-se à vontade, mon-tado, e sabia comunicar-se com um bom animal. Lígia não perdia oportunidade de elogiar o modo espontâneo como ele galopava, controlava os passos do cavalo e pa-recia colado à sela.

Elias não esteve presente à gravação da primei-ra cena em que a personagem de Lígia encontrava seu amante. Quis saber apenas se tudo correra bem, ao que Lígia respondeu que sim, que o ator com quem contra-cenava era experiente, ajudava a encontrar os melhores gestos, as melhores expressões. Estava empolgada. Per-guntou como ele tinha se saído. Tudo bem – ele disse.

No outro dia, Lígia gravou cenas de beijos com o galã, na presença de Elias. Terminado o trabalho, já em casa, era evidente o mal estar. Nenhum dos dois encon-trava uma palavra, uma pergunta para iniciar a conversa. Lígia segurou o rosto de Elias com as duas mãos e apro-ximou os lábios. Ele recuou e afastou as mãos de Lígia. A moça sentou-se ao sofá numa atitude de desânimo e as lágrimas começaram a correr.

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– Que foi que houve, Elias?– Você está cheirando a cigarro.– Elias, é meu trabalho, não sinto nada. Pura fic-

ção. Tenho apenas que fazer o melhor possível, a cena deve ser perfeita para parecer real, você sabe disso e já beijou atrizes, nunca senti ciúme porque sei que aquilo não é real, diante de muita gente trabalhando, com câme-ras, luzes, tudo falso.

– Sei de tudo isso, mas não é possível fazer de conta que não é você que está beijando. Além disso, como vou saber o que o ator sente?

– E você, querido, sentia o quê, quando beijava uma atriz no palco?

– No teatro era diferente, não havia close, não pre-cisava de tanto detalhe. Na TV, eles querem beijo de lín-gua, olhos fechados, respiração ofegante, tudo.

– Meu amor escute: você é ator, eu sou atriz. Se amamos nosso trabalho, temos que aprender a vê-lo ob-jetivamente. Um cirurgião não pode emocionar-se ope-rando o coração de um paciente, cometeria erros. Nós também não podemos sentir o que queremos que o es-pectador pense que sentimos. A cena só parece verdade se for mentira, você não aprendeu isso? Eu beijo o per-sonagem, não o ator. Não é isso que acontece com você?

– Talvez seja diferente. Eu beijo pensando em você.– Pois não devia. Você deve pensar na personagem.

Se pretendemos trabalhar para o cinema, temos que estar preparados porque lá as cenas vão mais longe. Que será de você, vendo-me nua em cima de uma cama, abraça-da com um ator também despido? Quantas vezes vimos

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cenas como esta no cinema? Aquelas pessoas amam ou-tras, não sentem nada do que parecem sentir.

– Daqui a pouco você vai dizer que nos filmes de sexo explícito...

– Vou dizer agora: ainda que tenham orgasmo, não estão sentindo nada!

– Chega, Lígia! Você está brincando ou enlouque-ceu. Não se importa que eu tenha orgasmo com outra mulher? Distinguir a tal ponto fantasia e realidade é ou-tra fantasia. Aquilo ali é tão real quanto a realidade. Do contrário, o real também é pura fantasia e então tudo se-ria fantasia, não pode. Não há dois mundos, há um só, e é real.

– Amor: você conseguiu confundir-me. Sei apenas que existimos, nós dois, Lígia e Elias, que nos amamos e somos atores. Encarnamos personagens fictícios durante uma gravação ou num palco. Ali, devemos fazer tudo o que essas personagens fazem na obra de ficção. Empres-tamos nossos corpos, nossas vozes e, só aparentemente, nossas almas.

– Responda: se uma personagem mata a outra, de-vemos matar nosso colega ator?

– Não. Novamente você me confunde. Um faz de conta que mata; o outro finge que morre. É isto, a arte cênica. Não é real, mas emociona o público.

– Aí está. A bala é de festim, o beijo, não. – Pois se é assim para você, querido, sinto muito,

mas você deve procurar outra profissão e outra mulher, porque, neste caso, vou sentir-me traída cada vez que você beijar alguém em cena.

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– Você tem razão. Para ser ator, é preciso ter voca-ção. Vocação para corno.

– Você está errado. Precisa ter alma de ator. Você não tem, você é real no pior sentido que a palavra pode ter.

– Que sentido é esse?– Não sei dizer, mas deve existir. Também não sei

dizer o que é eletricidade, mas ela existe.– Agora é você que me confunde.– É simples. Você é uma pessoa, eu sou outra. Isto

é muito mais importante do que parece ser. Ao contrário do que você pensa, o mundo não é um só. Há infinitos mundos. Cabe a cada um escolher o que mais lhe agrada.

– Você acaba de me dar uma ideia. Antes de nos separarmos, que tal fazermos um curta com o diálogo que acabamos de ter, palavra por palavra?

– De acordo, mas acho que a separação deve acon-tecer antes, para poder ser narrada.

– Negativo. Separados, não faremos mais o filme. Prefiro que a separação ocorra na última cena, cada um saindo em busca de seu mundo, como você diz.

– No filme, ou na vida real?– Nos dois. Ao mesmo tempo.

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erranteS ou defeito de origem

Transcrevo, sem autorização, a mensagem de um amigo. Não creio que se aborreça, pois não direi seu nome, é claro.

“Sabe aquela sensação de que há problemas insolúveis na frente, atrás, dos lados, acima e abai-xo? Pois é o que eu sinto. Nunca tive sonho mais eloquente do que o dessa noite: um edifício qua-dradão com um espaço livre no meio. Não encon-trava a saída. As pessoas davam indicações erradas. Às vezes, dava até para ver a rua, mas não era pos-sível chegar à porta. Andava por corredores, en-trava em salas, banheiros, saía por outra porta que levava sempre a mais uma sala ou corredor. Havia desníveis e paredes que me obrigavam a voltar e recomeçar a busca inútil. Ninguém demonstrava interesse em sair, ou toda aquela gente a circular sem aflição parecia saber perfeitamente como dei-xar o labirinto. Só eu não conseguia, nem sabia o que estava fazendo ali.

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Sei não, talvez seja exatamente esta a verdade da vida: não há saída para a rua. Na rua, qualquer um seria livre para ir aonde quisesse. Quem pensa que pode sair, engana-se. Vai perceber, se um dia tentar escapar. Vai ver que a aparente facilidade é falsa. Ou pior: vai descobrir que a rua, lá fora, é uma miragem. O desejo de sair não passa de uma desadaptação, um defeito de origem. A rua não é nada, não existe. Serve apenas para nos causar angústia, insatisfação. Qualquer tentativa deses-perada de sair voando sobre os abismos ou atra-vessando paredes leva-nos à morte. A vida é aqui, dentro deste gigantesco mausoléu habitado por multidões errantes. Pergunte ao primeiro que en-contrar. Você vai ver que ele não sabe como chegou aqui, de onde veio, o que fará depois. Mistério, que mistério? Sempre foi assim. Quem disse que po-dia ser diferente? E se você chegasse, por milagre, à rua, aonde iria? Faria o quê? Eu mesmo não sei. Ir aonde quiser – e eu quero ir a algum lugar? Não há lugar, esta é que é a verdade. A Lua não é lugar, e Marte, muito menos. Nossos limites são esses mes-mos que estamos vendo: paredes e abismos.

As alfândegas existem para dar-nos a impres-são de que estamos saindo. De onde? Para onde? Voltamos para casa com fotografias e bonequinhas de lembrança para provar que saímos, que fomos à rua. E ainda queremos que os amigos vejam as fotos e as bonecas. Crianças – é o que somos. Ou parecemos ser. Se percebemos a falsidade de tudo isso, já não somos mais crianças, somos infelizes adultos que só raramente são atingidos por um

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cego mastigando chiclete. É isso. Ana ia no bon-de, levando para casa as compras que havia feito. O bonde parou em frente ao cego que mastigava chiclete. Depois daquele instante, parecia que sua vida nunca mais seria a mesma. Em casa, o almo-ço, o marido, os filhos, tudo voltou ao que era. Um relâmpago, nada mais. Logo a escuridão volta e re-começamos a tatear, errantes.

Li um conto chamado Amor e, por um ins-tante, pensei que minha vida ia mudar. Desliguei o computador e fui ao supermercado. Foi o bastante para que tudo voltasse ao normal. É um lago. A pe-dra cai, forma círculos que crescem até desaparecer e a superfície é plana outra vez. Tomo dois dedos de uísque e em dez minutos sinto-me feliz. Depois, passa. Cheiro cocaína e de repente o mundo é per-feito. Mais tarde, volta tudo: problema em cima, em baixo, dos lados, na frente e atrás. Um dia vou deixar de existir e o quadradão vai continuar cheio de errantes, para lá e para cá, para lá e para cá.”

Respondi:Caro amigo, sei que não te perguntaram se que-

rias nascer, mas nasceste. Ipso facto. Queiras ou não, estás vivo e vais morrer. Antes que isto aconteça, no entanto, tens a liberdade de fazer certas escolhas. A primeira é sem dúvida continuares vivo ou matar-te. Neste último caso, não há o que discutir, tudo é muito simples: mata-te e serás enterrado, ou cremado. A questão mais complexa é realmente a primeira. Se decidires continuar vivo, te-rás que aceitar certas regras, limites à tua liberdade. Por exemplo, nem todas as mulheres que desejares estarão

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dispostas a entregar-se a ti. Este talvez seja o limite mais absurdo e dificilmente aceitável, mas ao mesmo tempo o mais intransponível. Se não conseguires reconhecê-lo, correrás grandes riscos, talvez sejas assassinado ou con-denado a uma longa reclusão. Portanto, terás que con-trolar teu desejo como um domador controla uma fera: sem descuido. Qualquer desatenção te deixará em pe-rigo. É verdade que, sendo rico como és, poderás satis-fazer teu desejo com muito mais frequência do que se fosses pobre. Mesmo assim, há mulheres que resistirão à tua riqueza e aí mora o perigo, pois, certamente, essas te atrairão mais que as outras. A energia que pouparás com essas fora do teu alcance forçosamente deverás destiná-la a algo do teu interesse, se é que isso existe. Pelo que me contas do teu sonho, tens uma idéia muito vaga de tuas aspirações: “e eu quero ir a algum lugar?” Se não sabes se queres ir, muito menos saberás aonde poderias que-rer chegar. E neste ponto não posso ajudar-te; nem eu, nem ninguém. Lembro-te que D. Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, dedicou a vida a sua Dulcinea, mas não diretamente. A dama era, por definição, inalcançável, se-gundo as regras da cavalaria. Ele então partiu em busca de aventuras, confundindo hospedarias com castelos, rebanhos com exércitos, moinhos com gigantes, nunca recuando face ao perigo mesmo ao preço da perda de dentes e pancadaria de todos os lados, tendo apenas a prudência de estar sempre acompanhado do fiel escudei-ro Sancho, verdadeira âncora que impedia sua entrada em órbita. Porém, se não nasceste para Quixote, assume então teu lado Sancho. Se não vais de Rocinante, vai en-tão de jumento, mais baixo, mais seguro. Desculpa. Sei que és homem de espírito, não te conformarias jamais

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com a jumentalidade de Pança. Tens que escolher entre a política, a religião, o dinheiro, o futebol ou a arte. Não incluo as drogas por serem ainda mais falsas. Mas aten-ção: mesmo assim, não estarás a salvo das armadilhas do desejo. Conheces bem a biografia dos grandes homens, quase todos obrigados a esconder sua parte obscura, por mais brilhante que seja a outra. Paciência, amigo. A vida é mesmo assim, desilusões e nada mais.

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CaBeça de herói

Manuel Amaro foi à guerra disposto a dar a vida pelo Brasil e pela democracia no mundo. Chorava, ao pensar na mulher e nos dois filhos. Sabia do risco de não voltar, morto nos campos de batalha. Que seria da fa-mília, perguntava-se. Encontrava consolo na crença de que não seriam abandonados pelo governo e teriam or-gulho de descenderem de um herói. Imaginava-se víti-ma de uma grande bomba que despedaçasse seu corpo. Apenas a cabeça seria repatriada e entregue solenemente aos familiares. Antes, porém, daria cabo de pelo menos uma dúzia de inimigos. Não ficaria na retaguarda, faria questão de avançar com a infantaria, ganhando terreno a cada passo, arrastando-se como cobra no solo italiano. Em julho de 1944 estava em Nápoles e tomou parte na ocupação de Massarosa. Ferido, baixou hospital, onde teve uma perna amputada. Contra a vontade, foi repa-triado e apesar de ter ganho uma medalha aí começaram suas desilusões com os poderosos do mundo. De volta ao Brasil, esperava ser recebido por alguma autoridade, tal-vez o próprio prefeito do Recife, Dr. Antônio de Novais Filho de quem era admirador. No cais do porto, estava,

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sim, a família e mais ninguém que ele conhecesse. Mais do que a medalha, ostentava a muleta que fez chorar a mulher e os filhos.

Já em casa, teve a sensação de estar apenas em vi-sita à família, que voltaria logo à Itália. Seu lugar não era mais ali, na segurança e no conforto. Desejava voltar à luta para terminar um serviço interrompido, matar ini-migos e morrer. A expressão triste e silenciosa foi atri-buída pela mulher à perda do membro inferior, “questão de tempo” – pensou Imaculada. Os vizinhos chegavam alegres, querendo homenagear o herói e tentavam con-solá-lo pela amputação. Nada nem ninguém, no entanto, conseguia um sorriso, muito menos uma descrição das cenas de guerra. Para livrar-se das perguntas, Manuel di-zia que mais tarde, quando se sentisse melhor, contaria o que vira.

Imaculada e os dois filhos faziam tudo para animar o ambiente. Ligavam o rádio, arranjavam flores em jar-ros, e a cozinheira caprichava nas receitas, tudo em vão. Um dia, um médico entrevistado na emissora de rádio usou a expressão “neurose de guerra”. Imaculada pensou: “é isto que ele tem”. Falou primeiro com sua ginecologis-ta, parenta em segundo grau. A médica disse que seria melhor conversar com um psiquiatra. Manuel foi, a con-tragosto, dizendo que não tinha nada de maluco.

O médico começou perguntando como ele se sen-tia. Respondeu: bem.

– Então, por que veio procurar-me?– Minha mulher insistiu até me vencer pelo cansa-

ço. Diz que estou com neurose de guerra.– Já deu o diagnóstico?

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– Já.– E o senhor, que acha?– Estive pouco tempo no campo de batalha, o sufi-

ciente para mudar de ideia a respeito da vida. No navio, queria morrer defendendo o Brasil e a democracia. Acha-va que morreria numa explosão e a família receberia ape-nas minha cabeça e uma gorda pensão. Alguma rua teria meu nome, seria lembrado como herói. Na verdade, per-di uma perna e hoje ando com auxílio desta muleta. Tive esperança de mesmo assim ter algum reconhecimento, mas o tempo passou e tudo se tornou normal. Parece até que nasci com uma perna só. Há algo errado. Não fui à guerra para voltar. Quem sou eu na minha casa? Um ex-combatente, um deficiente. Penso naquela multidão de jovens brasileiros, americanos, italianos, alemães, to-dos se matando para não morrer. Ali no campo ninguém pensava em política, país, nada. Eu pensava em matar o inimigo antes que ele me acertasse. Minha vontade de morrer pela pátria desaparecia da cabeça e eu tratava de acertar o tiro em um homem que só existia para me eli-minar. Não o conhecia, não sabia se ainda era solteiro, filho único, um bruto qualquer ou um poeta. Só me in-teressava a certeza de que estava de posse de um fuzil talvez melhor do que o meu e apontava sua mira para mim. Uma bala de fuzil atravessa qualquer capacete e perfura o crânio ou quebra uma costela e abre o coração em pedaços. É o melhor que acontece a um soldado. Pior é ter o fêmur fraturado e não poder levantar-se. Sangrar até morrer ou ser levado em maca contorcendo-se de dores insuportáveis. No meu caso, o terreno era coberto de lama e todos nós estávamos irreconhecíveis, pretos, porcamente sujos. Fui levado pelos companheiros com a

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metade da perna pendurada logo acima do joelho. Não sei quantos matei, sei que tive a intenção de matar todos que estavam à minha frente, ao meu alcance. Na viagem de ida, tinha consciência de que estava em guerra con-tra o nazismo, o fascismo, mas não os matei por serem nazistas ou fascistas – talvez nem o fossem – e sim por-que estavam ali tentando matar-me. E por que queriam fazê-lo, se não tinham a menor ideia de quem era eu? Porque sabiam que eu apontava uma arma contra eles, mais nada. Compreendi então que o soldado morto que matou apenas para não morrer é transformado em herói da pátria e o que volta mutilado é um deficiente que não serve mais para a guerra.

– Desculpe interrompê-lo, mas o senhor preci-sa valorizar o fato de estar vivo, ter uma família, poder acompanhar o crescimento das crianças. Com a ajuda de um medicamento, seu ânimo poderá voltar e outros interesses surgirão. Esqueça a guerra e volte a uma vida produtiva, há muito o que fazer.

– É verdade, doutor. Há muito o que fazer, para quem não foi à guerra e voltou mutilado. O senhor está me propondo tomar um comprimido e esquecer o ines-quecível. Como já lhe disse, vim por insistência de mi-nha mulher, não para perguntar-lhe o que fazer. Tentei resumir o que ocorreu comigo, para lhe dar uma pálida ideia de uma cena de guerra, mas é indescritível. Quanto a mim, não vejo saída, a não ser, se fosse possível, voltar à Itália. Nada mais faz sentido. Com as ideias que tenho hoje, não aceitaria nenhuma convocação, mesmo diante da ameaça de condenação como desertor. Só existe uma guerra justa: a defesa contra uma invasão, da mesma for-ma que só é lícito matar em legítima defesa.

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– Mas se o senhor é contra a guerra, por que esta fantasia de voltar à Itália?

– Porque o Manuel Amaro que se dedicava aqui ao trabalho e à família não mais existe – a guerra trans-formou-me em soldado matador de outros soldados também matadores. Se tampouco sirvo para isto, nada me resta. Morto, serei melhor exemplo para meus filhos do que vivo. Guardarão a lembrança de que fui à guerra e voltei sem uma perna. Não vão se lembrar de um pai que não queria mais viver, ou melhor, que não devia mais viver.

Manuel despediu-se do médico e nem sequer com-prou o remédio receitado.

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Carta extraViada

O endereço era o meu, mas o destinatário não ti-nha meu nome nem o do antigo inquilino. Como não havia tampouco o nome do remetente, em vez de tentar encontrar o destinatário, cedi à curiosidade e li a carta com a sensação de estar cometendo um crime. O autor dirigia-se a um caro doutor. Pedia que lesse a carta aten-tamente e a destruísse. Depois, revelava suas angústias na forma seguinte.

“LUTE PELO SEU DESEJO. Ouvi esta frase inúmeras vezes, desde muito cedo. Familiares, pro-fessores, amigos e psicólogos eram unânimes: não desista, vá em frente. O estímulo teria sido útil se eu soubesse qual era o meu desejo e me angustiava achando que todo mundo tinha um, apenas eu era desprovido, nascido com um defeito de fabricação. Tinha desejos tão imediatos e tão bobos que nenhum deles podia servir. Aquelas pessoas falavam de algo importante, não de um copo d’água, um sorvete, ou uma sessão de cinema – e eu só tinha desejos desse tipo. Esperava que mais tarde aparecesse algum com

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a importância daqueles que tinham meus amigos. Um queria conhecer o mundo; outro, formar-se em medicina; ser um grande músico, um empresário rico. Uma vez, tive que responder com improviso e vergonha: professor de matemática. Ora, minhas notas nesta matéria nem eram boas. E fui jogando bola, indo à praia, ao cinema e nada do desejo apa-recer. Quando me dei conta, nascia finalmente, não de uma vez, mas cada dia mais forte, o claro inte-resse pelas meninas, pelo sexo, pelo que só as mu-lheres têm. Tudo o mais passou a ser secundário e então pensei: agora sei o que quero. Porém, seria este um desejo pelo qual eu deveria lutar? O que ouvi, logo em seguida, foi uma condenação veemente de pensamentos, palavras e obras relativos ao assun-to. Aprendi que devia lutar, sim, mas contra o meu desejo e não a favor. Por obediência, lutei muito e sempre perdi, diante de um adversário que em vez de ameaçar, prometia os maiores prazeres da vida. Em cada derrota, percebia o quanto ainda viria a desfrutar daquela maravilha recebida da natureza. Pecava preocupado com o inferno, mas pecava. As penitências estavam longe de convencer-me à re-núncia: o pecado compensava, valia a pena. Daí nasceram, digamos, duas outras necessidades: uma bicicleta e uma namorada para não me sentir in-ferior aos amigos – e consegui as duas. Cheguei a achar que tudo ia bem na minha vida mesmo saben-do que, com o tempo, outros desejos não satisfeitos poderiam surgir.

Terminado o colégio, doutor, entrei na univer-sidade sem sentir atração por nenhum dos cursos.

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Neste caso, pensei, está resolvido: qualquer um serve e fui fazer o que meus amigos tinham escolhido. Um deles resolveu mudar de cidade dizendo que quan-do voltasse de férias a família toda o receberia com festa. Achei que ele tinha razão e fiz o mesmo: fui fa-zer o curso em uma cidade maior. Longe da família, minha vida mudou radicalmente. Morava em uma república, onde encontrei novos amigos. Uns, para beber cachaça; outros, para descobrir o mundo dos livros. Romances, filosofia, política e religião. Com esta última, durante alguns anos, achei que tinha encontrado resposta para tudo. Diziam os padres que eu devia fazer a vontade de Deus. Isto resolvia meu problema, pensei. Não precisava mais saber qual era meu desejo e sim, o de Deus. Mudei de ideia ao perceber que teria de renunciar à razão, porque os dogmas não me entravam na cabeça e até me pa-reciam ridículos. Substituí a religião pelo marxismo, mais de acordo com minha natureza racional. O que importava era compreender o desenvolvimento da História, o papel de cada classe social e não a vida de cada indivíduo. Deixei de lado a ficção e passei a ler Nelson Verneck Sodré, Caio Prado Jr., Marx, Lênin. Anos depois, repetiu-se a decepção. Os crimes de Stalin, o fracasso da União Soviética, a persegui-ção aos intelectuais, a invasão de países. Foi a dupla desilusão que me trouxe de volta os romances, e dos grandes: Machado, Rosa, Suassuna, Nelson Rodri-gues, os latino-americanos, Cervantes, Shakespeare, Flaubert, Balzac, os russos, Faulkner, Philip Roth e muitos outros canônicos. Duas décadas de leitura me fizeram bem e ainda fazem. Encontrei personagens

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com os quais me identifiquei, em parte, e outros dos quais tive inveja. Sei o que significa a insegurança de Bentinho; queria ter histórias para contar como as de Riobaldo e Pedro Quaderna; D. Quixote e San-cho Pansa muito me ensinaram; às vezes me sinto Hamlet, outras, Charles Bovary, Akaki Akakievitch ou até Bartleby, mas eu queria ser mesmo era o herói de uma história que ainda não fora contada. É como se estivesse em busca do tempo perdido, e como dói ver o tempo passar. Mas “a dor é melhor do que o nada”, assim li em algum livro.

Pois é, doutor, o tempo passou,não me casei nem tive filhos e agora, qual é o meu desejo? A ve-lhice chegou e qual é o desejo que um velho pode ter? Acreditei que até ao fim da maturidade alcançaria pelo menos algum êxito profissional, fosse o que fos-se. Estava equivocado. Não foi ideia minha, isto me meteram na cabeça. Não era capaz de ir além da mediocridade, eu sabia, mas não queria acreditar. Preferi aceitar a doce ilusão de um dia ser o que di-ziam de mim, mesmo sem poder. Hoje me pergunto se teria sido mais feliz sem essa ilusão. Talvez mi-nha autoestima fosse mais baixa, o que me teria fei-to desistir de alguns desafios que enfrentei e venci. Acontece que numa corrida de obstáculos, todos os atletas podem chegar ao final, mas só um é o primei-ro. E tem mais: em algumas provas, nem cheguei ao final. É tarde para tirar lição dos erros que cometi. De um lado, não tive coragem de conhecer o pânta-no onde vivem as prostitutas, os bêbados, os derro-tados – verdadeiros heróis da sociedade. Eu tinha que conhecê-los para amar o gênero humano, para

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tornar-me homem. No ambiente asséptico em que vivi, não criei anticorpos, sucumbi diante das me-nores ameaças. De outro, – o pior dos erros, o maior deles – expus minhas fraquezas como um mendigo exibe suas feridas para ganhar esmolas. Buscava o reconhecimento, a admiração, senão de quem tinha condições de julgar o que eu fazia, pelo menos da-queles que se deixavam impressionar pela minha retórica, e, mesmo assim, fracassei. Pergunto-me a quem devo prestar contas: a Deus, ao partido, ao es-tado, à sociedade, a meu pai? A nenhum desses, não é mesmo? Talvez, então, a mim e, certamente, serei condenado, pois sou o produto deles todos.

Sendo assim, caro doutor, não preciso que nin-guém me leve ao patíbulo. Irei sozinho e acionarei o mecanismo que me deixará suspenso. No último segundo de consciência, direi: eis a linha de chegada, venci.”

Não destruí a carta, é claro. Como não havia as-sinatura do autor, devia procurar o destinatário entre psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. Não vi notícia de nenhum enforcado, nos jornais. Quem sabe, o homem nem tivesse morrido (vencido). Mas, por que teria errado o endereço? Algum lapso? Que significado teria esse en-gano? Teria morrido na ilusão de ter sido escutado (lido) por seu analista? E, neste caso, teria vencido, como ele dizia? Pensei nessas duas possibilidades de que ele não tivesse alcançado a vitória tão desejada. Se ainda esti-vesse vivo, talvez não procurasse mais seu analista, com vergonha ou constrangimento e, desse modo, ficaria feliz se soubesse que a carta não tinha sido lida. Se estivesse

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morto, eu precisava entregar a carta para que ele se sen-tisse vencedor? Não creio em vida eterna, mas ele pode-ria ter voltado a crer. Isto faria diferença?

Não consegui pensar em outro assunto durante dois dias. No terceiro, abalado pela insônia e pelo crime, li a carta, entre soluços, na minha sessão de análise, sem dizer antes do que se tratava. O analista ficou calado. In-daguei se conhecia alguém com o nome que estava no envelope e ele respondeu que sim, conhecia. Perguntei se podia fazer o favor de entregar-lhe a carta. Ficou nova-mente em silêncio e após dois minutos perguntou se eu tinha intenção de interromper o tratamento com ele. Só então compreendi que havia lido o maldito texto como se tivesse sido escrito por mim. Desfiz o mal-entendido, entreguei-lhe a carta e deitei-me no divã.

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o Carteiro

Nos tempos em que foi carteiro, Dagoberto tinha prazer em gritar o nome da moça, com a carta na mão. Ela lhe agradecia, sorrindo. Sempre apressado, ia adian-te, fugia de cães, suava, cansava e gastava os sapatos. Um dia chuvoso, as poças encharcaram-lhe os pés e ele fez como o colega de um filme que assistira: dobrou uma das cartas e a pôs entre a meia e o solado. Uma voz dentro da cabeça disse baixinho: pode ser importante. Parou, abriu o envelope e leu:

Última Carta

Estou pronto. De tanto pensar em ti, tua che-gada não causará nenhum espanto, nenhum rebo-liço. Não deixarei nenhuma comédia imorredoura, nenhuma tragédia grandiosa. Nenhuma vacina contra aids ou gripe suína. Em minhas gavetas en-contrarão grampeador, fita adesiva, clipes, canivete suíço, relógio, faca japonesa, tesoura, canetas, lu-pas e dezenas de outras bugigangas que muito pra-zer me deram desde menino. Em meu escritório,

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computador e livros. Fantasias, tive-as poucas, todas desfeitas. Deixo o que escrevi, tudo compreensível por qualquer alfabetizado. É sinal de que não sou capaz de elaborar um pensamento complexo, uma reflexão profunda. Tudo que escrevo é raso e trans-parente. Se fosse mar, seria muito apreciado. Por que escrevo, então? Rainer M. Rilke disse ao jovem poe-ta que só deveria escrever se estivesse seguro de que, não escrevendo, morreria. Se fosse assim, teríamos raros escritores. Faço esforço para escrever; se não o fizer, quedo-me passivamente numa rede, lendo um romance, no máximo. “Não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada”. Nem tenho qual-quer sonho do mundo. Não sou atleta, nem cantor, nem músico, nem pintor, nem ator. Não sou filósofo, nem político, nem militar, nem religioso, nem co-merciante, nem jurista, nem engenheiro, nem mé-dico. O tesouro público me sustenta. Nunca produzi um grão de arroz, de milho ou de feijão. Sempre re-cebi mais do que dei, sinto-me infinitamente pago, recompensado. Nenhuma queixa, nenhum ressen-timento. Pelo contrário: devo a todos sem jamais ter pedido nada. Y así me voy, acercandome de ti. Levei vida leve, sem consciência do perigo que me rondava. Passei pela chuva sem me molhar. Talvez tenhas pensado que eu mesmo te buscaria. Come-teste engano redondo. Não só não te busquei, como evitei distraidamente muitos encontros contigo. As-sim, considero-me vitorioso. Por mais que te esfor-ces, não conseguirás surpreender-me. Nosso jogo pode acabar a qualquer instante. Honras, glórias – nenhumas. Não as mereci. Preocupa-te com outros

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que esperam da vida em demasia. Mesmo diante do fracasso normal, crêem na redenção até o último mi-nuto, um milagre, quem sabe. Imagino que muito te apraz vigiar de perto aqueles que lutam contra um mal incurável, um coma, um câncer. Não te dei, nem te darei este prazer – ele é meu. Já me vejo erguendo uma taça, uma copa, um troféu. Meu maior feito será receber tua chegada sem nenhum pavor. Medo de quê? Embora não tenhas sentido, a vida tampou-co o tem. Vivemos para morrer. Encontro marcado, mesmo sem data. Se a morte de uma formiga não é um mistério, por que a minha o seria? Estou certo de que o desaparecimento da vida no planeta não fará nenhuma falta ao universo e menos ainda o da espé-cie humana. Que a vida um dia tenha tido início é surpreendente; que tenha fim, não.

Dagoberto achou melhor usar a carta no sapato. Não queria ver onde morava a destinatária.

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amigoS de infânCia

Após quase cinquenta anos sem notícias, um en-contro no aeroporto da cidade natal. Sílvio, moreno, ca-belos brancos; Vicente, gordinho e míope. Caíram nos braços um do outro e o primeiro confessou:

– Não me lembro do teu nome.– Vicente, mas tampouco me lembro do teu, disse

o segundo. – Sílvio, porra! – Claro, Sílvio, como é que fui esquecer! – Pela mesma razão que esqueci o teu: a velhice.

Pelo que sei, disse Sílvio, somos da mesma idade. Voltou para a terrinha?

– Voltei, faz um ano.– Eu também. Voltei quando me aposentei. Mas

você está em forma!– Tirando o paumolismo, o resto está.– Palmolive, o sabonete? Que história é essa?– Você tem problema de audição?– Um pouco, mas só achei estranho o sabonete aí.

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– Você não tem paumolismo?– Ah, entendi, safado. Tenho sim, desde que tirei

a próstata.– Eu não tirei, meu caso é outro.– É o quê?– Minha mulher não é a mesma.– Se casou com uma mais jovem, não devia estar

assim.– Casei não, o problema é esse. É a mesma, mas

não é mais aquela com quem me casei, entende? Enve-lheceu quarenta anos e engordou quarenta quilos.

– É normal, a minha também. Nem tira a roupa na minha frente.

– E você queria que ela tirasse?– Claro que não, é melhor assim. Eu também perdi

a forma, mas você está com ótima aparência.– Você disse bem, amigo Sílvio: aparência. Para fa-

lar a verdade, por dentro, isto é, o espírito vai mal, muito mal. Não quero mais viver. Comecei a distribuir meus poucos bens entre os herdeiros e depois vou encher a cara até morrer completamente bêbado, em coma alcoó-lico. Não gosto de mortes violentas, é coisa para exibicio-nistas. Será meu primeiro e único ato só meu, legitima-mente meu, radical como gostaria que tivesse sido toda a minha vida. Espero que o final seja breve, suficiente apenas para algumas despedidas.

– Não tem religião?– Nunca tive. Não se lembra de nossas conversas

no colégio? Enquanto a classe rezava a avemaria em voz alta, eu dizia: avemaria, que coisa chata, o senhor é um

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saco, quero estar entre as mulheres, comendo o fruto do vosso ventre... E você tem?

– Tive, mas perdi a fé. Metade das desgraças do mundo, Vicente, deve-se às religiões. Cada uma pior que a outra. Depois, vi que era tudo uma invenção. Só não vê quem não quer.

– Taí uma coisa que me intriga: gente culta, com ar de inteligente, e diz que vai viver eternamente depois da morte.

– Por isso. Porque não quer largar a tábua de sal-vação e sair nadando. Imagina, o sujeito viver achando que pode ir morar no inferno para sempre. E o inverso: achar que merece gozar eternamente no paraíso. Coisa de louco.

– Vamos deixar isso pra lá, falemos de mulheres.– Já falamos.– Falamos das nossas, porra. Vamos falar dessa

mulherada que anda por aí solta, no maior fogo.– Falar o quê, meu camarada? Não dá para dizer

nada, é só olhar e babar.– Pior que é mesmo, viu? Fui puxar um papo com

uma garota de uns quarenta anos, ela me chamou de tio. Botei minha viola no saco e fui procurar uma profissio-nal, é o que me resta.

– É isso aí, meu caro. Nosso tempo passou, somos sobreviventes. Arranja outra lenha pra queimar senão o trem para. Desde que me aposentei, não peguei mais em broca, pinça, espelho, alicate, nada.

– Ah, você é dentista?

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– Fui cirurgião dentista da assembleia dos deputa-dos, lá em São Paulo. Agora, só penso em fotografia. Fiz cursos, comprei equipamentos, leio, encho a cabeça com isso. E você?

– Nada além de encontrar uns amigos e encher a cara. É o que eu sei fazer: bebo todas e vou dormir.

– Por que não inventa um hobby?– Não sei fazer nada.– Então escreve, cara. Um romance, contos ou

mesmo um diário.– Quem não sabe fazer nada, escreve?– Não quis dizer isso, mas um computador ou pelo

menos uma caneta e papel você deve ter.– Computador, eu tenho. Vou tentar.Trocaram endereços, números de telefone, com-

prometeram-se a manter contacto e despediram-se com abraço. Sílvio saiu com pena do amigo e Vicente meio abalado. Em casa, Sílvio conversou com a mulher so-bre o encontro, lamentando a situação do antigo colega. Marieta, gordinha, mansa, disse apenas “ainda bem que você gosta dessas fotos”. O tom da frase fez Sílvio achar que suas fotos, para a mulher, não valiam nada, a não ser para evitar que fizesse como Vicente, entregue à bebida. Pensou um pouco e resolveu falar;

– Marieta, você gosta das minhas fotos? – Havia de não gostar?– Mas você acha que são fotos artísticas ou apenas

fotos comuns?– São bonitas, homem; se são artísticas, não sei

dizer.

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– Você acha que eu podia fazer uma exposição em algum lugar público?

– Poder, pode; por que não?– Porque se não prestam, não vale a pena tentar.– Mas você só vai saber se prestam se o povo gostar.– Mas você não disse que gosta?– Eu gostar é uma coisa; prestar é outra.Sílvio calou-se e foi organizar as últimas fotos que

fizera, flagrantes de rua. Olhou uma por uma. Camelôs, ambulantes, motoqueiros, mulheres com crianças, tráfe-go de ônibus, táxis. Pensou: quem quer ver isso? Povo feio, mal tratado, mal vestido. Tem fotógrafo que fica famoso fazendo fotos assim. Sei não. Dizem que é uma denúncia do sofrimento do povo, mas a fama, e o dinhei-ro, não vão para o povo; vão para o dono das fotos. Não acho que as minhas sejam uma denúncia. Se um dia fizer uma exposição vai ser na rua, onde as fotos tenham sido feitas. Quem se achar numa delas, leva para casa. Não vivo disso...

Mais tarde, ligou o computador e leu as mensa-gens. A última era de Vicente:

– Amigo Sílvio: tentei começar um romance ba-seado na história da minha família. Pus uma garrafa de uísque e um copo cheio de gelo, ao lado do computador. Depois de duas horas, tinha escrito duas linhas e estava de porre, fui dormir. Se tiver outra sugestão, pode dizer. Esta não serve para mim.

Sílvio respondeu:– Caro Vicente: também não é assim. Você tem

que começar com calma, contando pequenas histórias.

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Pode ser também que seu talento seja maior em outras áreas: teatro, pintura, música, escultura, dança de salão etc. Qualquer atividade que faça sua cabeça, traga-lhe de volta a alegria. Dê notícias.

Vicente chegou a visitar alguns lugares, conheceu gente, pensou, e em vez de chegar a uma resposta, che-gou a uma pergunta: “de que é mesmo que eu gosto?” Não demorou muito a responder: “ora, de sexo e uísque!” Correu para o computador e digitou:

Amigo velho: fiz a pergunta certa e encontrei a resposta. Eu gosto mesmo é de mulher e uísque. Então, não há o que pensar: vou abrir um cabaré no velho es-tilo, com bolero e radiola de ficha. Salão de dança, bar, e muita mulher bonita. E o nome: CABARÉ PARAÍSO. Dinheiro, eu tenho, só falta saber se minha mulher vai concordar. Que acha?

Resposta de Sílvio:Amigo Vicente: ótima ideia. Serei o primeiro clien-

te e farei com prazer as fotos da inauguração. Isto é, se Marieta deixar.

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um Coração deliCioSo

Tempos atrás, quando não havia ainda luz elétri-ca nas fazendas do sertão, Guilherme, poeta popular, era recebido noites de lua no terraço da casa grande. Os membros da família bem sentados nas cadeiras e os moradores nos degraus que desciam para o terreiro. A um sinal do velho fazendeiro Vicente Gadelha, fazia-se silêncio e o poeta iniciava suas declamações. Algumas, longas, verdadeiros romances, outras, curtas. Longas ou curtas, quase sempre trágicas. Amores proibidos, trai-ção, crimes, desonra, vingança e crueldade, tudo rimado e metrificado. Não seguravam o choro algumas mulhe-res mais sensíveis, entre elas, dona Natércia, esposa de Vicente, quinze anos mais jovem que ele, a mais bela e vigiada da redondeza. Terrível exagero do marido, na opinião das comadres e amigas, pois jamais se ouvira qualquer comentário malicioso em relação à bondosa senhora.

Uma noite, o poeta anunciou uma novidade: havia preparado um longo e triste poema desconhecido daque-la plateia. Alertou especialmente as pessoas de coração mole, pois narraria cenas de sangue e muito sofrimento.

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Por precaução, pediu licença ao dono da casa, pergun-tando se mesmo assim podia continuar. Foi autorizado e deu início ao espetáculo. Começou com voz suave a história de um trovador de tempos antigos, loucamente apaixonado por uma baronesa cujo marido, a cada ve-rão, fazia viagens por suas terras. As trovas, canções e poemas eram conhecidos e recitados pelo povo. Sempre, de uma forma ou de outra, falavam de uma dama for-mosa, merecedora de qualquer sacrifício. Pela descrição, havia quem dissesse que o trovador se expunha demais e até corria sério perigo se o barão achasse aquela imagem muito semelhante à da baronesa. Naquele verão, sabendo da ausência do nobre, o trovador arriscou-se mais ain-da, cantando seus versos nas proximidades do castelo. O comentário chegou aos ouvidos da dama que, sem malí-cia, contou ao marido. Daí em diante, o barão, por cuja cabeça nunca havia passado aquela idéia, começou a dar atenção às notícias que circulavam sobre os movimentos e as apresentações do artista. Um dia mandou chamá-lo para mostrar sua arte no castelo. A baronesa aprovou o convite em silêncio e, por dentro de sua cabeça, a vaida-de começou a tecer bordados de fantasia. Ficou curiosa e sentiu o coração bater mais apressado à medida que o dia se aproximava. Durante a apresentação, o que era apenas curiosidade transformou-se em sentimento mais delicado e complexo. Além de bom intérprete, o homem tinha uma beleza rústica que contrastava com a dos pa-rentes e familiares, pálidos habitantes do castelo. O cabe-lo, a barba, a pele curtida pelo sol, os olhos, a voz grave, e mais que tudo, as enormes mãos daquele homem des-pertavam todos os sentidos da baronesa. Ela fez o que pôde para impedir a reação do corpo e da mente diante

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daquela novidade. Uma sensação nova, uma descoberta, uma excitação desconhecida. Sem prestar muita atenção ao espetáculo, o barão registrou cuidadosamente todos os sinais de aflição de sua mulher. Homem poderoso e habituado a dar soluções radicais a seus problemas, man-dou assassinar o trovador e exigiu que lhe fosse entregue seu coração. Deu ordens para que a peça fosse preparada com os melhores requintes da culinária e serviu-a à ba-ronesa durante o jantar, após o qual, perguntou-lhe o que achara do novo prato. A bela e doce mulher respondeu que jamais comera iguaria mais deliciosa e subitamente apunhalou-se, caindo aos pés do barão.

Todos aplaudiram, menos Vicente Gadelha.Este resumo está longe de revelar a grandeza do

poema recitado magistralmente por Guilherme. Deta-lhes enriquecedores, as rimas, a impostação da voz, o ritmo e as expressões faciais do poeta encantaram e le-varam às lágrimas, moças, mulheres casadas e mais que ninguém, D. Natércia. O vaqueiro Valdemar, rapaz sen-sível, também não suportou a emoção e soltou o choro. O velho Vicente olhou em sua direção e sussurrou: “va-queiro frouxo”... O poeta recebeu uma recompensa em dinheiro, como de costume. Agradeceu os aplausos e, tendo notado que o patrão não batera palmas, pergun-tou-lhe se não havia gostado. O velho limpou a garganta e mandou que Guilherme se sentasse ao seu lado. Em seguida, falou em voz baixa: “Seu Guilherme, eu me admiro do senhor, um homem inteligente, bom obser-vador, gostar de correr riscos desnecessários. O senhor escolheu e preparou para declamar aqui na minha casa um poema que fala de um trovador que, por loucura de amor, resolveu meter a cabeça na boca do leão. Claro que

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as semelhanças são poucas porque sua baronesa era uma mulher devassa, coisa que não existe nessas terras de mi-nha propriedade. Mesmo assim, sendo eu casado com uma santa de grande formosura, nunca dei moleza nem fechei os olhos para as armadilhas do capeta. Por outro lado, D. Natércia – o senhor a conhece – não é mulher de se impressionar com uma história por mais bem contada que seja. Contudo, seu Guilherme, se é que já deu para o senhor compreender, não acho que valha a pena, só por vaidade, arriscar ter seu próprio coração guisado e con-sumido por santa nenhuma desse mundo nem do outro. Sendo assim, o melhor que o senhor faz é enfiar sua viola no saco e cantar em outras fazendas, bem longe daqui.”

Guilherme, sem levantar a vista, garantiu que cum-priria a ordem e pediu apenas que o patrão ouvisse uns versos de despedida. O fazendeiro cedeu e o poeta falou:

Estamos em vossa casa,Ilustre senhor patrão.Por ter sido convidado,Já lhe devo gratidão.Não lhe posso dar conselhoCom a pouca idade que tenho.Dizer-lhe só o que sei,Mesmo assim, agora venho.Não devemos confundirVida com literaturaEmbora não dê pra verQual das duas é mais dura.Apenas por precaução,Farei o que o senhor querEu me vou com a poesiaE esqueço sua mulher.

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CérBero

O delegado não estava. O escrivão ofereceu uma cadeira e perguntou qual era o assunto. Cienfuegos disse gracias, sentou-se, fez um ar de riso e disse que queria prestar uma queixa. O outro disse: nome completo, pro-fissão e endereço. Juan Cienfuegos Bellincione, gerente de banco, rua Olímpio Vilela, quatrocientos e dos, aparta-mento seiscientos e uno, Boa Viagem – respondeu.

– De que país é o senhor?– De Colômbia.– Há quanto tempo está aqui?– Cinco años.– Sotaque forte.– Si.– Pode falar.Cienfuegos começou dizendo que não era de bri-

ga, não gostava de incomodar ninguém, mas também não gostava de ser incomodado. Pagava um aluguel caro, num prédio de muito bom nível, ele, a mulher e duas crianças muito calmas. No apartamento de cima vi-via um casal jovem, sem filhos. Aparentemente pessoas

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educadas, davam bom-dia no elevador, tinham aspecto de gente bem nascida. A despeito disso e para desgra-ça dos vizinhos, criavam três cães ferozes que latiam a toda hora. Ele mesmo e outros moradores já haviam pe-dido, sem nenhum sucesso, alguma providência ao casal. Falaram também com o síndico de quem ouviram uma explicação um pouco confusa a respeito da falta de legis-lação específica que regulasse o assunto. Contou que já pensara em resolver o problema como se fazia lá no país dele. O escrivão quis saber como era. Disse que bastava oferecer ao animal uma bolinha de carne com muito pó de cocaína para o bicho ficar alucinado, depois dormir e nunca mais acordar. O escrivão adiantou logo que ele seria preso e condenado, se não pela morte do cão, pelo porte de entorpecente. Cienfuegos disse que sabia, desis-tira logo da ideia. Por isso mesmo, havia feito mais uma tentativa. Pedira ao casal que se colocasse em seu lugar, trocasse seus terríveis animais por um só e de pequeno porte. O casal perguntara muito ofendido se ele trocaria os filhos por outros. Argumentara que cachorros não são filhos, mas o casal havia dito que os animais eram seres humanos reencarnados e deviam ser tratados com todo respeito a seus direitos, como qualquer pessoa. Vendo que seria inútil argumentar, já que o assunto descambara para o terreno religioso, decidira procurar a polícia e a justiça. Estava ali dando o primeiro passo, na esperança de que o senhor delegado desse pelo menos um conselho ao casal insensível e irredutível. O escrivão adiantou que registraria sua queixa, embora, pela sua experiência, não acreditasse que o delegado atendesse ao seu pedido.

Enquanto aguardava a decisão do delegado, Cien-fuegos deu o segundo passo. Teve longa conversa com

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um advogado e saiu meio triste diante das explicações sobre a falta de uma lei específica, frase que ele já ouvira da boca do síndico. Mesmo assim, pediu que desse início a uma ação na justiça reclamando seus direitos ao sosse-go e ao silêncio indispensáveis ao repouso.

A vida continuou, sem alteração. Os cães latiam e despertavam Cienfuegos alta madrugada; sua mulher, vítima de enxaquecas periódicas, sentia os latidos como marteladas na cabeça; as crianças, beneficiadas por sono profundo, não acordavam durante a noite, mas pertur-bavam-se nas horas de estudo. O delegado falou com o dono dos cães por telefone, perguntou se as informações eram verdadeiras, ponderou que parecia um exagero a presença de três animais em um apartamento, recomen-dou que procurasse entender a queixa do vizinho. San-telmo – dono dos cães – contestou, acusou Cienfuegos de intolerante, colombiano metido a besta; o delegado avisou que não gostaria de perder tempo com questões tão pequenas e desligou.

Um mês depois, Santelmo recebeu intimação para comparecer ao juizado, na companhia de um profissio-nal do Direito. Não quis acreditar, ligou para um ami-go advogado que lhe deu orientação no sentido de não complicar as coisas. Comparecesse bem vestido, bem humorado e respeitoso. Ao chegar à sala do concilia-dor, surpreendeu-se ao encontrar o vizinho colombiano. Controlou-se e cumprimentou-o com um leve aceno de cabeça. O conciliador resumiu a situação e perguntou se havia possibilidade de acordo. Cienfuegos disse que sim e Santelmo disse que não. Todas as tentativas foram frustradas e o funcionário comunicou que seria for-mada uma ação a ser enviada ao juiz. Haveria a seguir

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audiências de instrução, ouvida de testemunhas e ao fi-nal, o julgamento. Ambos saíram insatisfeitos e aborreci-dos. Aparentemente, os cães também não gostaram, pois acrescentaram uivos aos latidos.

Cienfuegos irritava-se cada dia mais e começou a pensar em formas de revide. Passou a ouvir música clás-sica em alto volume – o que incomodava mais à própria família do que ao vizinho de cima. Buscou no Google latidos de cachorros e encontrou vários sites. Pequenos vídeos do You Tube com cães de várias raças, pit bull a pintcher. As crianças e a mãe, Dona Beatriz, a princípio, acharam muita graça, mas logo pediram ao pai e marido que encerrasse a sessão de barulho.

Um dia, os dois adversários encontraram-se no elevador. Cienfuegos tomou a iniciativa:

– Senhor Santelmo, quero que sea sabedor de que no voy a suportar indefinidamente a sus perros. Breve-mente tomaré providências práticas. Ponga se em meu lugar, le pido por la última vez. Se la justiciano me garante mis derechos, eu mismo voy a garanti-los com mis pró-prias manos.

– Faça o que quiser, senhor Cienfuegos, mas esteja preparado para as consequências. Você pode ser valente lá na sua terra, aqui, não. Lembre-se de que os assaltos com morte nesta cidade são muito frequentes.

O trabalho no banco exigia dedicação cada vez maior de Cienfuegos. Uma viagem a Roma, onde estava situada a sede, veio em momento oportuno. Achou que-poderia descansar, ainda que se tratasse de uma semana de reuniões. Convidou a mulher a acompanhá-lo e fica-ria mais três dias na Itália. Visitariam Florença, terra de

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seus antepassados por parte de mãe. O casal viveu dias de euforia preparando a viagem e convencendo a mãe de Dona Beatriz a ficar com as crianças.

Roma estava esplêndida no início do verão e al-guns passeios foram organizados pelo próprio pessoal do banco. Cienfuegos e Beatriz viveram dias encantado-res que apenas prenunciavam o fascínio de Florença para onde se dirigiram logo após o encerramento do traba-lho. Hospedaram-se no hotel Casa di Dante, no início da rua Don Minzoni, perto do centro da cidade. Sem luxo, porém próximo a diversos pontos turísticos. Cienfuegos disse a Beatriz que havia lido quando era jovem uma par-te da Divina Comédia, o Inferno, obra-prima do famoso poeta florentino. Por isso, fez questão de visitar o Museu Casa di Dante, – mesmo nome do hotel – na rua Dante Alighieri. Dona Beatriz ficou surpresa com a repetição do nome do poeta. Cienfuegos, para mostrar familiari-dade com a Comédia e seu autor, acrescentou que, em vida, nem todo mundo gostava de Dante devido à sua atividade política e por isso fora expulso da cidade por seus adversários e morrera em Ravena.

Visitaram com os parentes os principais pontos turísticos, deslumbrados com tanta beleza. Após um dia cansativo, o casal recolheu-se ao hotel e foi para a cama cedo a fim de repousar bastante e despertar com dispo-sição. Dona Beatriz dormiu logo e Cienfuegos deixou o pensamento voar sobre o Arno e suas pontes. Por uma rápida associação de ideias chegou aos cachorros do vizi-nho e sentiu grande prazer em poder dormir no silêncio florentino. Para deixar os problemas longe, relembrou algumas passagens da Comédia, inclusive aquela de Cér-bero, o grande cão de três cabeças, guardião da porta do

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Inferno. Mudou para a musa do poeta, xará de sua mu-lher e aos poucos vagou pelas ruas da bela cidade. Ao passar por uma loja de artesanato, viu um grande cão de três cabeças, em tamanho natural. Ao aproximar-se, percebeu estar diante de um animal vivo. Um pouco as-sustado, perguntou ao vendedor quanto custava o bicho. Não achou caro. Levou-o, apesar dos protestos de Dona Beatriz. Realmente, não seria fácil levar aquele trambo-lho até chegar a casa, mas o fato é que chegou e ao pas-sar pelo corredor de acesso a seu apartamento, deu-se o apocalíptico encontro. Os três cães do vizinho Santelmo, mais ferozes do que nunca, avançaram sobre Cérbero para despedaçá-lo. Não sabiam diante de quem estavam. O grande animal de Cienfuegos ergueu-se sobre as patas traseiras e atacou simultaneamente os três adversários com as bocarras capazes de estraçalhar a cabeça de cada um dos inimigos. Com duas sacudidelas para os lados, os corpos dos três cães foram arremessados de encontro às paredes esguichando sangue suficiente para tingi-las de alto a baixo. Os três crânios foram triturados e degluti-dos por Cérbero em questão de segundos. Cienfuegos ria como se estivesse vendo uma cena de desenho animado e apontava zombeteiro para Santelmo, coberto de sangue da cabeça aos pés.

Ainda no avião, sobre o Atlântico, Dona Beatriz suspirou e disse baixinho:

– Quando eu penso que aqueles latidos vão reco-meçar... Sabe o que eu comprei para o Júnior? Um cãozi-nho de pelúcia com três cabeças, ele vai adorar.

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Julião e SeuS hóSPedeS

Dois homens chamados Julião. Um, professor em colégio masculino religioso onde estudavam os filhos dos ricos e dos remediados que queriam a todo custo dar uma boa educação à prole. De origem espanhola, bran-co, magro, alto, feições afiladas, famoso no colégio por sua autoridade dentro e fora da sala de aula, o homem aterrorizava os alunos mais tímidos com gritos, ameaças e castigos físicos. Enciclopédico, ensinava todas as disci-plinas do programa e tinha o hábito de cuspir no lenço que guardava no bolso da batina. Tinha lá seus alunos preferidos a quem dava tratamento privilegiado. As más línguas espalhavam histórias nunca comprovadas. Pois foi na classe deste Padre Julião que um aluno certo dia revelou que o pai tinha o mesmo nome, o que foi motivo de piadas e brincadeiras. Coisa de pouca importância se aquele não fosse o ano em que ocorreria a maior e mais escandalosa tragédia da história da cidade.

O outro Julião, homem rico e feio, era casado com Eugênia, bela mulher de trinta anos ou pouco mais. Quem queria agradá-la dizia que se parecia com Ingrid Bergman, atriz então no auge da fama. Dispondo de

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empregada para todas as tarefas domésticas, D. Eugênia ocupava seu tempo com salão de beleza, encontros com amigas, curso de pintura e demoradas visitas à mãe e às tias. Fazia esses percursos em seu automóvel dirigido por Manuel, motorista de confiança com cinco anos no em-prego, selecionado por ela própria, rapaz de boa aparên-cia e leitor de romances durante as horas de espera. O fi-lho estudava em colégio religioso por decisão do marido, pois D. Eugênia não gostava de igreja, de religião nem de padres – único traço de personalidade que não com-binava com seu prestígio social, segundo a opinião das amigas. Quando a questionavam sobre o assunto, dizia que as religiões causavam mais mal do que bem e tinha sua própria forma de comunicar-se com Deus. Não era, contudo, uma forma eficiente. Do contrário, teria obtido de Deus a informação de que os sogros chegariam sem avisar para matar saudades, com a intenção de ficar al-guns dias. Julião avisara que almoçaria na cidade com dois empresários amigos. Assim, D. Eugênia disse à cozi-nheira que seriam quatro à mesa: ela, o filho e os sogros. A estes, após o almoço, disse-lhes que fizessem a sesta na suíte do casal, pois o quarto de hóspedes não estava ainda arrumado. Permitiu que a empregada saísse mais cedo para acudir uma filha que tivera um parto difícil – e foi, com Manuel, levar o menino ao colégio. Todos esses eventos do cotidiano seriam irrelevantes se não es-tivessem inscritos numa sucessão de fatos que só o desti-no pode explicar. É que durante o almoço, os amigos de Julião perceberam algo estranho. Na conversa, tiveram que repetir as frases para Julião entender o que diziam, parecendo distraído ou preocupado. Indagaram se esta-va bem e só ouviram a desculpa de que havia despedido

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um empregado há três dias e recebera ameaças, – o que só em parte era verdade. Não recebera ameaças. De fato, não estava nada bem porque lhe tinha chegado às mãos, na empresa, uma carta anônima dizendo que D. Eugênia o traía com o motorista na sua própria casa. Lera uma só vez a folha escrita em letras de imprensa e a rasgara em pequenos pedaços antes de atirá-la à lixeira. Atribuiu a maldade ao sujeito demitido, mas, na verdade, o vene-no estava inoculado. Pensou na beleza da mulher, na sua antipatia pela religião, nos modos gentis do motorista, e em casos semelhantes que conhecia. Quase cancelara o almoço, mas achou que seria pior e também não devia tomar atitude precipitada, sem um mínimo de investiga-ção. Mesmo assim, ao sair do restaurante, percebeu que não tinha condições de trabalhar e resolveu ir direto a casa. Dirigiu lentamente, pensando como deveria agir: de modo racional, civilizado, ou com violência, no caso de ficar provada a denúncia. Parou em frente à residên-cia, deixou o carro na rua e entrou em silêncio com a cabeça confusa. Ao abrir a porta da suíte, viu na penum-bra do quarto iluminado apenas pelas cores de um vitral acima da janela fechada, o casal deitado em sua cama. Sacou o revólver e começou a atirar. No segundo tiro, os corpos já não se mexiam, mas continuou atirando até acabarem-se as balas.

As famílias dos dois lados não conseguiram abafar os acontecimentos e os jornais estamparam fotos e títu-los em grandes letras: EMPRESÁRIO MATA OS PAIS.

No colégio, a repercussão foi terrível. O menino não queria voltar às aulas e os colegas tentavam obter notícia pelo telefone. Julião, o professor, proibiu que os garotos falassem no assunto, mas, no recreio, eles riam e

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inventavam várias histórias a partir da coincidência dos nomes: que Julião era chifrudo, assassino, qual Julião? Que o menino era filho do motorista e coisas piores. A agitação chegou ao ponto de forçar o diretor a dar uma semana de férias à turma da quarta série, na esperança de caírem no esquecimento a tragédia e as infames brin-cadeiras – e aconselhou D. Eugênia a transferir o menino para outro colégio. D. Eugênia aceitou a sugestão e exter-nou o desejo de ter uma conversa com o Pe. Julião, com quem estivera apenas uma vez, em reunião com outras mães de alunos. Foi então encaminhada à sala de traba-lho do professor que a recebeu com expressão grave:

– Entre, D. Eugênia. Saiba que o ocorrido deixou-me profundamente consternado e estou à sua disposição para qualquer forma de ajuda que possa aliviar sua dor. Por favor, sente-se.

Com os cabelos presos atrás da cabeça, o rosto de Eugênia estava exposto em todo seu esplendor, apesar da tristeza e da quase ausência de maquiagem. O olhar até então dirigido ao piso da sala, mudou em direção ao ros-to do padre.

– Agradeço de coração, Padre. Nunca imaginei uma tragédia em minha vida e até me sinto culpada por não ter avisado meu marido sobre a chegada dos pais dele, o que teria evitado tudo isto. Agora, ele está preso e por certo será condenado. Além de caluniada, não tenho com quem dividir meu sofrimento.

– Não diga isso, minha senhora, Deus há de ajudá-la.

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Eugênia, notando que o padre devia estar mesmo comovido, pois falava com certa dificuldade, lábios trê-mulos, tentou desculpar-se.

– Desculpe pelo incômodo que lhe causo, Padre. Não desejo tomar-lhe muito tempo.

– Não fale assim, D. Eugênia. Certamente a se-nhora veio aqui para conversar sobre seu filho. É meu dever dar-lhe toda orientação no sentido de facilitar a adaptação do menino ao novo colégio. Isso não significa que não deva oferecer-lhe outras formas de apoio. Venha quantas vezes precisar, pois além de professor tenho a função de sacerdote. Seu filho, embora tímido, é inteli-gente e por isso tem bom rendimento escolar. Farei uma carta ao colégio para onde ele for, pedindo alguns cuida-dos que lhe facilitem a integração.

Conversaram mais meia hora e Eugênia despe-diu-se um pouco aliviada. Agradeceu mais uma vez a acolhida e aceitou o convite para um novo encontro, desta vez, numa livraria da cidade. Saiu surpresa com a diferença entre o que lhe dizia o filho sobre o terror que lhe infundia o professor e a delicadeza com que fora re-cebida. Talvez a roupa esportiva – calça e camisa de man-gas compridas – tivesse ajudado a esquecer a antipatia que devotava aos religiosos. Em alguns momentos, não parecia padre, falou da finalidade da vida na Terra como um mistério a ser desvendado por cada um; da insegu-rança diante das dimensões do universo; do desencontro entre a razão e os sentimentos e até do desamparo em que nos sentimos nos momentos mais difíceis.

Julião, o assassino, sentia-se tão culpado que deci-diu esperar o julgamento sem pedir habeas corpus. De-pois de dez meses, foi julgado e condenado a doze anos.

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Até então, recebia visitas de Eugênia quase diárias, no início, e raras ao final dos dez meses “por absoluta fal-ta de tempo”, dizia a mulher que fora forçada a tomar a frente da empresa. Para tanto, recebera orientações mi-nuciosas do marido e dos auxiliares, revelando-se muito mais capaz do que parecia quando não precisava saber de onde vinha o dinheiro. Portanto, era verdade que não tinha mais tempo para as frequentes visitas. Mas verdade apenas em parte, porque, de fato, o encontro com Julião, na livraria, repetira-se inúmeras vezes em lugares muito diferentes. Tão diferentes que, em seis meses, mudaram profundamente a vida do professor, já, então, ex-padre, ensinando em colégios leigos particulares. Publicamente apaixonados, Eugênia tomou a decisão inevitável: pediu divórcio. O marido traído respondeu com o silêncio e na noite do mesmo dia, na cela da prisão, atravessou o peito com um longo chuço artesanal cuja ponta apareceu em suas costas.

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o temPo no eSPelho

“Se há um espelho para o espaço, deve haver tam-bém um para o tempo. Não importa que a duplicação do espaço seja falsa, ilusória. Tem, assim mesmo, grande importância. Que seria dos salões sem os espelhos? Se não existir um espelho para o tempo, que será das horas, ainda que sua duplicação seja igualmente uma ilusão? Sim, o espelho do tempo não pode ser uma impossibili-dade. Ele existe. Estou seguro de que ele existe. Cheguei a esta conclusão de forma parecida à que Mendeleiev, no século XIX, concluiu que certos elementos químicos deviam existir embora ninguém os conhecesse. Não po-diam deixar de existir. Mais tarde ficou provado que ele tinha razão. Assim também, a pesquisa à qual me dedico provará que podemos duplicar o tempo, bastando para isto dispor de um equipamento análogo ao espelho que temos em casa e que duplica o espaço.”

Este é um trecho da conferência apresentada pelo Professor Mendes Leiva em reunião solene da Academia de Ciências do município de S., no Ceará, em 29 de fe-vereiro de 1929. A propósito desta data é bom lembrar que aquele ano não foi bissexto no resto do mundo. Foi-o

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somente em S. por decisão do Conselho de Intendência em razão de um artigo publicado meses antes no jornal da cidade em que o citado cientista demonstrara a neces-sidade de criar-se mais um dia naquele ano já que o dia 29 daquele mês do ano anterior – 1928 – (este, sim, bis-sexto) praticamente não existira. O artigo era tão curto quanto convincente e o argumento central era insofismá-vel. É que no dia 29 em questão S. devia ser invadida por um grupo de bandidos que se diziam cangaceiros envia-dos por Lampião. Como a invasão fora anunciada, o In-tendente determinou por decreto que toda a população saísse da cidade e deixasse suas casas de portas abertas para que os bandidos saciassem sua cobiça sem violên-cia, sem arrombamentos. O bando, misteriosamente, não apareceu nem foi visto pelas redondezas. Ao voltarem a suas residências, as famílias encontraram tudo intacto, sem nenhum sinal nem rastro de cangaceiro. Todos os habitantes se convenceram de que realmente o dia não aconteceu, e aquele fevereiro só teve 28 dias. O próxi-mo, portanto, devia ter 29, bissexto ou não, e foi o que ocorreu.

Voltando ao que realmente interessa, o Dr. Men-des Leiva, fundador e primeiro presidente da Academia, foi vivamente aplaudido ao concluir a exposição de sua hipótese sobre a necessária existência de um espelho do tempo. Tinha a seu favor o respeito oficial e popular a proposições anteriores, aparentemente insólitas e, no en-tanto, brilhantemente comprovadas. Após os aplausos, afirmou que contava com o apoio financeiro da Inten-dência para a nova pesquisa que, ao contrário de outras, puramente teóricas, acarretava certos gastos com ma-teriais raros a serem adquiridos em centros industriais

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mais adiantados. O Intendente, sentado a seu lado, ex-pressou por meio de uma careta sua primeira desapro-vação ao discurso do nobre cientista que, ignorando a atitude do alcaide, apresentou-lhe uma folha com o orça-mento completo de seu projeto. A soma era grande para o governo de S. e, nos dias seguintes, o assunto tomou conta do Conselho de Intendência, dos bancos da praça, do salão de sinuca e do jornal local. A população dividiu-se: contra e a favor do financiamento do projeto. Os que eram contra, uma minoria, diziam que era impossível fa-bricar um espelho do tempo pela simples razão de que o tempo não para e não se pode duplicar algo que não para. A maioria a favor do projeto retrucava que seus ad-versários estavam aferrados à noção do espelho comum, conhecido de todos; para entender o espelho do tempo era preciso ter a mente livre de preconceitos, o que talvez fosse impossível àquela minoria rude e iletrada.

O projeto acabou sendo aprovado com uma emenda que condicionava o apoio financeiro oficial à participação direta da população por meio de doações voluntárias. Para cada unidade monetária doada, o go-verno aportaria outra, o que significava uma parceria público-privada meio a meio. O vigário da cidade, Pe. M., opôs-se à ideia afirmando que se os fieis já doavam pouquíssimo à paróquia, doariam ainda menos se des-viassem recursos para um projeto mirabolante que de-safiava as leis divinas. Após dois meses de campanha, o total arrecadado não estava longe de alcançar a meta. As-sim, foi possível comprar boa parte dos materiais solici-tados pelo cientista, entre os quais, dois grandes relógios de parede. Um mês depois, o Prof. Mendes Leiva anun-ciou a primeira demonstração pública de seu invento. O

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Intendente convidou toda a população a comparecer ao salão da Academia de Ciências às nove horas da manhã do sábado imediato. Abriu a reunião com um discurso de dez minutos e passou a palavra ao Prof. Mendes Leiva. O cientista puxou um grande lençol que cobria seu equi-pamento montado sobre um pedestal de dois metros de altura e todos os presentes, dentro e fora do salão, alvoro-çaram-se para ver a novidade. Todos esperavam ver algo desconhecido, alguma máquina estranha, nunca vista, mas, por incrível que pareça, estavam diante de dois re-lógios de parede de trinta centímetros de diâmetro, com mostradores brancos e números pretos, marcando nove horas e trinta minutos. O professor limitou-se a, sentado em uma cadeira diante de seu invento, olhar fixamente os dois relógios. No primeiro minuto o silêncio foi to-tal; no segundo ouviram-se algumas tosses e limpeza de garganta; no terceiro, algumas risadas de meninos; no quarto, um arrastar de cadeiras e finalmente uma voz: cadê a novidade? Terminado o quinto minuto, metade do auditório já de pé, o cientista levantou-se e, de frente para o público, curvou-se como fazem os músicos e tra-pezistas de circo ao final de suas apresentações. O Inten-dente, com medo de uma reação violenta da turba, pediu gentilmente ao professor que explicasse um pouco o que acontecia para que todos pudessem apreciar melhor sua invenção. Mendes Leiva ajeitou os óculos, arrumou os cabelos com as duas mãos e disse em tom solene:

– Excelentíssimo Senhor Intendente de nossa que-rida S., demais autoridades presentes, senhoras e senho-res: estamos diante de um equipamento que deverá re-volucionar a vida da sociedade. Creio que agora todos já perceberam que o relógio da direita marcou o tempo

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convencional que pode ser conferido por quem dispõe de relógios nesta sala; no da esquerda, podemos consta-tar que em vez de decorridos oito minutos, decorreram apenas quatro. Como minha reflexão não se limita ao campo da engenharia mecânica, mergulhei no da filoso-fia e cheguei à conclusão de que nada nos obriga a seguir sempre o prosaico relógio da direita. A todo momento em que o tempo marcado pelo relógio da esquerda, cien-tificamente alterado por mim em suas estruturas, corres-ponder aos elevados interesses da sociedade, nada nos impedirá de deixar de lado o relógio tradicional e guiar-mo-nos pelo meu invento. A conseqüência mais óbvia é que um dia passará a ter quarenta e oito horas, com vinte e quatro de luz solar e igual período de escuridão, com subperíodos de doze horas alternados.

Aproveitando um pequeno intervalo do professor para um gole de água, o Intendente perguntou se ele po-dia dar algum exemplo para se fazer entender com mais facilidade, ao que o mestre respondeu:

– São inúmeros, Excelência. Pense no trabalho realizado por um operário que por dezesseis horas re-ceberá o mesmo valor que atualmente recebe por oito; na reduzida idade que as mulheres poderão declarar em resposta a perguntas inconvenientes; no dilatado tempo de aposentadoria que seus servidores serão obrigados a contar; na tranquilidade em que poderemos viver sem a pressa que hoje nos atormenta para evitar atrasos e assim por diante. Com isto, o ritmo da vida mudará, o decorrer do tempo será outro. De certa forma, e mais concreta-mente do que o que acontece com o espaço nos espe-lhos comuns, o tempo duplicar-se-á. Haverá os espíritos curtos que dirão tratar-se de uma ilusão para enganar os

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bobos. Pergunto eu então por que continuamos a usar espelhos convencionais se as imagens que ali vemos são também ilusórias? Ainda que o sejam, não são portado-ras de grande utilidade?

O Intendente olhou o relógio da direita. Eram dez horas e dez minutos; no outro, nove e quarenta. Coçou a cabeça, abanou o paletó e pediu silêncio ao auditório que, a esta altura, já era composto por novas caras que vieram de fora em substituição aos que saíram em bus-ca de uma brisa. Disse sem entusiasmo – e pensando no dinheiro emprestado a alguns parentes – que o trabalho do professor era realmente revolucionário e que, ao lado daquelas vantagens, podia trazer alguns problemas, por exemplo, o tempo que os tomadores de empréstimo iam querer contar para pagar menos juros e a reação dos tra-balhadores diante da dilatação da jornada de trabalho. Um contrassenso sem solução: ora o relógio parecia estar bem situado à esquerda, ora não. E antes de mais nada gostaria de ouvir uma explicação mais clara sobre a rela-ção entre o novo relógio e os espelhos.

– Vou começar pela segunda dúvida, Excelência. De forma análoga à que os espelhos de cristal duplicam os espaços, o relógio-espelho duplica o tempo. Os efeitos desse fenômeno podem ser favoráveis aos interesses de alguns e contrários aos de outros, é verdade. Conflitos haverá, admito, mas será isto alguma novidade no mun-do de hoje em que impera o relógio da direita? Ademais, o fato de ser uma ilusão apenas torna meu invento mais atraente. Diria mesmo que a maioria das ideias que go-vernam a vida social não passa de ilusão e não creio que alguém aqui discorde. No entanto, há milênios guiamo-nos por elas. Algumas, ainda que pertencentes ao terreno

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da ciência, eram tão ilusórias que foram abandonadas, substituídas por outras. Se na ciência isto acontece, que dizer das demais esferas do pensamento? Quanto à pri-meira parte de sua intervenção, Excelência, considero que hoje em dia essa questão de esquerda e direita tem muito pouco significado.

O auditório esperava uma reação do Intendente. Em vez disso, ouviu-se a voz do Coronel Nepomuce-no, grande pecuarista da região, perguntando quanto o inventor queria por aquele relógio preguiçoso. Mendes Leiva respondeu:

– Não posso vender o que não me pertence, co-ronel, pois o projeto foi financiado por uma PPP e an-tes que o senhor me pergunte o que é isto digo-lhe que se trata de uma forma moderna de conseguir recursos juntando os esforços do governo e das pessoas com o nome de parceria público-privada. A expressão é muito simples: a palavra parceria é conhecida de todos os nos-sos agricultores; a privada, não digo que seja comum no campo, mas na cidade sim; e o público é um detalhe que só interessa aos especialistas. O fato é que o equipamento não está à venda, pertence à vila.

O coronel dirigiu-se então ao Intendente dizendo que se aquilo pertencia à vila poderia ser vendido no dia em que ele quisesse uma vez que cabia à autoridade má-xima local desfazer-se de um bem de utilidade duvidosa. Ao ouvir o que considerou um insulto, o ilustre professor protestou com palavras duras e agressivas:

– Coronel Nepomuceno, com todo o respeito que lhe devo, quero lembrar-lhe que S. não é mais apenas um curral de vacas. Nossa produção intelectual não tem parado de crescer em diversos ramos do conhecimento

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humano e isto pode espantar espíritos atrasados vindos do interior distante. Desse modo, o senhor poderia ao menos dizer por que razão pretende adquirir meu inven-to que, como já ficou dito, é propriedade pública.

O coronel levantou-se exibindo uma expressão grave em seu rosto e pedindo a atenção de todos, pois não pretendia alongar sua participação naquele debate que considerava perda de tempo, e deu ênfase à parte final:

– Senhor Intendente, ilustre Professor, minhas se-nhoras e meus senhores: minha insistência em comprar o relógio-espelho aqui exposto é muito simples. É que pre-tendo fundar, dentro de pouco tempo, em nossa cidade, um museu da loucura ao qual darei o nome de Mendes Leiva em homenagem ao insigne cientista aqui presente. Venho guardando em meus arquivos, há dez anos, docu-mentos, objetos, laudos médicos e jornais com resulta-dos de eleições que farão parte do acervo desse museu. Acredito que, no futuro, quando o costume moderno do turismo chegar a estas plagas, uma das principais atra-ções deste lugar perdido nos sertões do Ceará, será sem dúvida o Museu Mendes Leiva, especializado em preser-var a triste história da loucura em nossa população que, como todos sabem, às vezes registra casos nada tristes, pelo contrário, inesquecivelmente hilariantes. Estamos justamente diante de um desses, o maior de todos, o mais bizarro, o que lhe garante um lugar de destaque no tal acervo. E para que fique clara minha boa intenção, caso o relógio-espelho passe às minhas mãos, pagarei por ele o mesmo valor que foi gasto em sua fabricação e com-prometo-me a financiar diretamente futuros inventos do

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Professor Leiva desde que mereçam acolhimento na ins-tituição a ser criada.

Talvez por causa do tom solene da fala do coronel e pela dificuldade de compreender o significado de certas palavras, ou ainda pelo adiantado da hora e o calor insu-portável que fazia, alguém no auditório puxou as palmas e todos os demais acompanharam numa verdadeira ova-ção. O professor ficou impávido e o Intendente hesitou por alguns segundos. Vendo este que a palavra estava com ele, arriscou uma decisão sem a certeza do êxito, afirmando que neste caso venderia o relógio-espelho ao coronel. O aplauso foi ainda maior porque então as pessoas que estavam fora do recinto, ouvindo as palmas anteriores, entraram e ajudaram a aprovar por aclamação a decisão da autoridade. O Coronel Nepomuceno pagou em dinheiro o valor comprovado pelo professor e rece-beu das mãos do Intendente seu relógio-espelho prome-tendo guardá-lo em perfeitas condições de conservação até que o museu da loucura abrisse suas portas.

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faléSia

No casebre ao pé da falésia, com o sol ainda baixo, Dona Salete sentia as primeiras dores do parto e ouvia o vento soprar nas palhas da coberta. Antes de entrar no mar, Joaquim subira para dizer à parteira que talvez Salete precisasse dela mais tarde. Foi pescar e não volta-ria antes das cinco da tarde, achando melhor garantir o peixe e deixar que o problema fosse resolvido por quem entendia do assunto.

Picos é uma praia bonita, deserta e tem um mar piscoso, mas o povoado é muito pequeno: umas quarenta casas em cima e só quatro ali, na praia, como a de Dona Salete. Quando a maré está baixa, a praia fica larga e é possível chegar de carro a essas casas. Com a maré alta, a areia é fofa e só se passa a pé ou a cavalo. Joaquim, sua mulher e o filho de dois anos tiveram que deixar a casa em que moravam, em outra praia, e o jeito foi levantar a palhoça ali, imprensada entre o mar e a muralha de barro avermelhado.

O sol foi esquentando e as dores aumentaram du-rante toda a manhã. A demora da parteira fez Dona Sa-lete pedir ajuda à vizinha para subir o paredão com dor

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e tudo. Não podia dar à luz naquele chão de terra, sem parteira, sem nada. A vizinha achou melhor ir sozinha, chamar alguém, mas a teimosa insistiu: vamos, mulher, quero parir lá em cima, aqui só tem areia.

Deixou o filho de dois anos aos cuidados de outra amiga, juntou alguns panos, encostou a porta e deu os primeiros passos segurando o braço da vizinha. O cami-nho era reto e muito inclinado, sem uma árvore para um descanso e com raras passagens planas, curtas, apenas um pouco mais largas e feitas pela erosão nos pontos em que o solo da parede era mais solto. Visto do mar, era uma reta que cortava a falésia na diagonal. A cada gemi-do de Dona Salete, a vizinha rogava a Nossa Senhora que segurasse o menino até o final da subida. Também era casada, mas nunca tivera filho e quando ouvia histórias do sofrimento de mulheres em partos complicados dava graças a Deus por tê-la poupado daquela prova.

Os primeiros trinta metros eram os mais íngremes e foram vencidos a muito custo, muito gemido e muita oração que Dona Salete não conseguia responder apesar dos pedidos da vizinha. Paradas no primeiro lugar pla-no, olharam o mar sem fim, sem velas, emendado com a imensidão azul do céu. Dona Salete pôs a mão direita na testa, mas a esquerda continuou segurando a barriga. A vizinha olhou o rosto da amiga e achou que todas aquelas rugas não tinham apenas uma causa. Umas se deviam ao intenso clarão do sol, mas a maior parte com certe-za resultava das dores que a pobre sentia. Dona Salete apoiou-se toda nos ombros da vizinha e deixou escapar um grito que parecia anunciar o parto ali mesmo, na-quele instante. Soltou o choro, fechou as pernas e pediu misericórdia a Deus e a todos os santos. Foi atendida,

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porque a contração cessou e voltou-lhe o ânimo para continuar a escalada. Andava e gemia, segurando com força o braço amigo. Não trouxera sombrinha para não ocupar uma mão, precisando às vezes das duas para se-gurar a barriga, mas na maior parte do tempo uma das mãos tinha que estar agarrada ao braço da vizinha e as-sim a sombrinha só teria atrapalhado. Subiram mais al-guns metros e fizeram nova parada. Dona Salete resolveu usar um dos panos para envolver a cabeça que parecia ferver, debaixo daquele sol de fogo. Pensou em Joaquim, longe, parado em algum pesqueiro, lançando seus anzóis e queimando a pele já tostada por tantos anos naquela luta contra o mar, o vento, a chuva, as ondas. O perigo das profundezas sempre rondando sua jangada. O vôo do pensamento foi interrompido bruscamente por outra contração e Dona Salete quase caiu. A vizinha pergun-tou se não queria sentar-se um pouco, mas ela disse que não, seria pior, não conseguiria levantar-se. Esperou a dor passar e retomou a caminhada cada vez mais difí-cil, passo a passo até que sentiu as pernas molhadas e aí parou. Minha Nossa Senhora, foi a bolsa – disse – e a vizinha começou a chorar. Chora não, mulher, quem está sentindo a dor sou eu, vai, me ajuda – completou. Com o caminho menos inclinado, conseguiram avançar um pouco mais depressa, deixando um rastro de líquido na terra seca. Dona Salete olhou para o topo do paredão e resmungou: ainda falta a metade, não sei se vai dar – e continuou o esforço, procurando apoiar bem o pé antes de cada passo. A vista de mais um lugarzinho plano deu novo ânimo para umas quinze passadas. Tomaram fôle-go, enxugaram o suor do rosto. O único barulho era o do vento na pouca vegetação rasteira e em suas próprias

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roupas. A vizinha interrompeu o silêncio: e se não der tempo? Dona Salete não respondeu. Continuou subindo como se não tivesse ouvido, mas a certeza de chegar a tempo perdia força, pensando na próxima contração que não devia tardar. Já se perguntava o que aconteceria se o menino começasse a sair. A vizinha era boa pessoa, mas não tinha sangue frio nem muito jeito para coisas fora do comum. Onde já se vira uma criança nascer no meio de uma ladeira, debaixo de um sol de rachar? Nem com os bichos acontece uma coisa dessa, qualquer cabra encon-tra um lugar para despejar seu cabrito. Com gente tudo é mais difícil e complicado. Se fosse uma menina, podia batizar como Falésia? Parece nome de gente e é bonito. A divagação foi interrompida desta vez por uma contração tão forte que as pernas não aguentaram e se dobraram. A queda empurrou a criança e fez Dona Salete dizer: chega, mulher, me ajuda que o menino está coroando. Abriu as pernas o quanto pôde, na posição em que estava e, com os dentes trincados, disse: “segura o bichim, muler”! A vizinha, nervosa e desajeitada, segurou com tanto nojo o feto coberto de sangue e secreções que deixou acontecer o pior: a criança rolou cerca de um metro ladeira abaixo, chorando, esticando o cordão umbilical e puxando a pla-centa. Dona Salete ainda teve força para dizer: toma jeito, mulher – e ela mesma puxou a criança pelo cordão que foi cortado nos dentes. Levantou a criança envolta numa camada de fina areia e disse quase sorrindo: “é Falésia, muler”. A vizinha não entendeu, mas não teve coragem de falar, de tanta vergonha. Chorava e dizia apenas des-culpa, desculpa. Dona Salete envolveu a filha no melhor pano que trazia, entregou-a à amiga e tratou de se limpar como pôde com os demais trapos. Descansou um pouco,

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ficou de quatro e lentamente levantou-se sentindo um tremor nas pernas, muita sede e vontade de chegar ao alto. Agora a sombrinha fazia falta, não pelo sol que po-dia tapar, mas pela ajuda que podia dar como bengala. Continuou a caminhada prestando atenção no mato para ver se havia algum galho seco que pudesse servir de cajado. Achou, e do bom. Alguém tinha largado por ali aquele pau porque a vegetação do terreno era rasteira. Ia na frente, de vez em quando voltando-se para olhar a filha nos braços da amiga. Achou que estava andando melhor do que antes do parto, sem o peso da barriga e sem as dores. Restava pouco e Dona Salete só pensava em chegar lá em cima para cuidar da menina e contar a história. Finalmente, chegaram ao plano, perto da pra-ça onde havia alguns homens sentados embaixo de uma árvore. Dona Salete virou-se para o mar, sem ver nenhu-ma vela e se visse sabia de longe se era a de Joaquim. Os homens não queriam crer na história e um deles correu para chamar a parteira. A mulher chegou logo e a notí-cia espalhou-se, fazendo juntar gente na frente da casa em que o grupo entrou para dar banho na criança. Dona Salete falava pouco. Quem contava tudo era a vizinha, omitindo a queda da recém nascida e ressaltando a ajuda que havia dado. Já se considerando madrinha, disse alto: “diz aí o nome da menina, comadre!” Falésia, respondeu Dona Salete. Todo mundo riu, mas ninguém discordou. A dona da casa levou Dona Salete para fazer um asseio e disse que ela podia dormir pelo menos uma noite ali, em sua casa. Voltando à sala, serviu café a todos que ainda comentavam a aventura e a coragem da mulher de Joa-quim pescador que por sinal vinha chegando ainda mo-lhado, segurando alguns cangulos presos a uma palha.

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Bateram palmas dando-lhe os parabéns, mas Joaquim apenas sorriu, tímido, entregou os peixes à dona da casa e olhou para Dona Salete. Aproximou-se e perguntou: “tu tá bem, mulher? É uma menina, né? Eu queria um homem, mas eu gostei do nome que tu botou nela, Falé-sia. É bonito”.

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otárioS

João Bala e Zé do Fumo só ficaram conhecidos por esses nomes muito depois. Nasceram na mesma noi-te, na mesma maternidade pública, perto do rio, onde as mães, sem maridos, tinham recebido os cuidados do pré-natal. Dois dias após o parto, elas voltaram para os barracos do tipo palafita, na lama do Capibaribe. Após o período de licença-maternidade, recomeçaram a traba-lhar como empregadas domésticas, deixando os meninos na creche da prefeitura. Chegando à idade escolar, eles foram matriculados numa escola municipal do bairro. Receberam uniformes, material escolar, mochila e me-renda durante todo o ensino fundamental. As mães já se conheciam como vizinhas e tornaram-se mais amigas com as conversas que mantinham sobre os cuidados com os meninos. Cadastradas no programa de habitação, ti-nham esperança de ganhar casas decentes, construídas pelo governo para acabar com as palafitas. O tempo pas-sou, os meninos entraram no ensino médio mesmo sem ter aprendido praticamente nada e o sonho da casa nova ainda não se concretizara. Na nova escola, os garotos fi-zeram amizade com muitos outros meninos, alguns de

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idade maior que a deles e que exerciam clara liderança, impunham respeito, enfrentavam as professoras, briga-vam com outros grupos, fumavam cigarros e falavam de sexo. As mães de Joãozinho e Zezinho notaram a mu-dança que despontava no comportamento dos filhos e apertaram o controle sobre eles. O resultado foi insig-nificante, pois, ao entrarem na adolescência, não obe-deciam mais às mães nem às professoras. Um dia foram flagrados fumando maconha dentro da favela. A mãe de João tentou dar-lhe uma surra, mas acabou apanhando e a mãe de José ameaçou o filho de entregá-lo à polícia e, em troca, foi ameaçada de morte por ele mesmo, José, seu filho. Daí em diante, os dois amigos nem sempre dor-miam em casa. As mães sofriam, choravam e não sabiam o que fazer. Foram à escola falar com as professoras e fi-caram sabendo que também elas não sabiam o que fazer e tinham muito medo das ameaças que sofriam.

João e José não terminaram o curso médio. Aban-donaram a escola e começaram a aparecer vestindo roupas e sapatos novos. Aos dezesseis anos, já tinham porte, voz e conversas de adulto sobre sexo. Ganhavam preservativos distribuídos pelo governo que nem sem-pre usavam nas relações que mantinham com amigas, namoradas e prostitutas. Um dia conheceram um sujeito que negociava com automóveis. Receberam a proposta de tomar um carro grande, novo, de alguma madame e trazê-lo para ser negociado no Paraguai. Receberiam dez por cento do valor do veículo. O próprio sujeito forne-ceu duas armas e munição, mas a moto eles teriam que roubar, tomando-a de um motoqueiro, ensaiando assim o roubo do carro.

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João e José deram-se muito bem na primeira eta-pa: surpreenderam o dono de uma moto em um esta-cionamento e saíram tranquilamente sem dar nenhum tiro. Compraram dois capacetes e saíram à procura da vítima, em bairros de classe média para cima. A escolha recaiu sobre um Toyota novo em folha dirigido por uma senhora de idade que saía do edifício em que morava. Anunciado o assalto, a mulher entrou em pânico, gritan-do loucamente por socorro. João atirou a queima-roupa no ouvido esquerdo da mulher, destravou o cinto, puxou o cadáver para fora do carro e saiu fazendo o ruído típico com os pneus em uma arrancada frenética, seguido por José, na moto. Poucos quilômetros adiante, a moto foi abandonada e os dois levaram a encomenda para o es-conderijo. O sujeito não pagou o que os dois esperavam, mas prometeu que em outro negócio eles poderiam ter uma compensação. João e José pegaram um táxi, ligaram para duas prostitutas e passaram a noite no mesmo quar-to de um motel.

O programa repetiu-se várias vezes e a dupla já se sentia segura a ponto de exibir na favela os sinais de bons resultados do negócio de carros dando presentes às mães e aos amigos mais necessitados. Durante um ano tiveram êxito em todas as investidas. Pedaços de histórias circu-laram na favela e então nasceram os dois apelidos, João Bala e Zé do Fumo, usados apenas na ausência deles.

Um dia a polícia entrou na favela procurando dois elementos autores de vários latrocínios, chamados João e José. Alguém disse deve ser João Bala e Zé do Fumo, as mães deles moram ali. Os policiais nem quiseram fa-lar com elas. Montaram campana e poucos dias depois puseram as mãos nos meliantes. Estão presos, vocês dois

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– disse um policial, apontando uma arma. João disse cal-mo: mas a gente é de menor, não pode ser preso. Isso é com o delegado, disse o policial, e levou os dois. De fato, o delegado examinou os documentos e disse que os dois seriam encaminhados à instituição competente e julga-dos pelo juiz da vara de menores. E assim sucedeu: João Bala e Zé do Fumo passaram três anos sendo reeducados em instituição do governo pelos oito roubos de carros e três latrocínios que cometeram, inclusive um em perde-ram a vida a mulher que dirigia o veículo e seu filho de apenas três anos de idade. Cumprido o programa de ree-ducação, João e José foram soltos, então com vinte anos, e voltaram a assaltar e matar pessoas que possuíam bens que eles desejavam também possuir.

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o Porteiro

De tão acostumados a ouvir e a falar, os moradores não achavam nada demais o edifício chamar-se Cumbu-ca, sendo assim que as coisas mais estranhas acabam se tornando normais, com o tempo. Os objetos mais precio-sos, quando vistos todo dia, deixam de chamar atenção e deste modo também as palavras, pela repetição, por mais estranhas que pareçam a quem as ouve pela primeira vez, terminam igualando-se às outras nisto de estranheza e normalidade. Para os forasteiros, sim, uma cidade não devia se chamar Bodocó, mas, para os que nascem lá, ela só podia chamar-se por esse nome e não outro. Pois foi no edifício Cumbuca, velho de trinta anos, que o Sr. Pra-xedes, porteiro desde a inauguração, viveu seus dias de glória e de desgraça. A primeira, graças à confiança que conquistou servindo os moradores com respeito, sim-patia e honestidade; a segunda, com os acontecimentos narrados aqui com a precisão somente possível a um ob-servador privilegiado. Precisão possível também porque, sabendo-se que as palavras nunca dão conta de tudo que acontece, somos forçados a dar desconto em histórias de pescadores e temos sempre o direito de enriquecer os

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casos contados com muita parcimônia e, sendo o mundo como é, bem feito aqui e lá nem tanto, é de esperar que uma narrativa seja aceita quando não exagera nem para um lado nem para o outro.

Tanta confiança tinham no Sr. Praxedes as doze fa-mílias habitantes do Cumbuca que frequentemente dei-xavam as chaves com ele para uma eventual necessidade. Para evitar confusão, o síndico mandou confeccionar um chaveiro para cada apartamento com o respectivo número.

Um dia o morador do apartamento 402 saiu com a mulher e deixou sua chave com o Sr. Praxedes dizendo que mais tarde chegaria um amigo francês que seria seu hóspede por quinze dias. Podia entregar-lhe a chave por-que só chegaria no fim da tarde.

– Bonjour – disse o francês – je suis M. Duchamp, je viens comme invité de M. Conradô.

O Sr. Praxedes não soube o que responder, mas en-tregou o chaveiro e disse: quatrocentos e dois! O francês disse apenas merci beaucoup e subiu com sua mala. No elevador, olhou o chaveiro e leu: 302. Dirigiu-se ao apar-tamento, abriu a porta sem dificuldade e entrou com sua bagagem. Como esperava, não viu ninguém; encontran-do o primeiro quarto arrumado, instalou-se, trocou de roupa e deitou-se para se refazer da viagem.

Às dezessete e trinta, ao ver o Sr. Conrado entran-do sozinho no edifício, o Sr. Praxedes disse logo:

– O francês chegou, viu Sr. Conrado! – Certo, Sr. Praxedes, obrigado – disse o Sr. Conra-

do e subiu. Na porta do 402, tocou a campainha. Tocou outra vez. Nada. Pensou: o Duchamp deve estar no maior

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sono. Bateu na porta, tocou a campainha mais uma vez. Nada. Pelo celular, ligou para o telefone fixo, chamou até o fim. Resolveu descer.

– Sr. Praxedes, o homem chegou mesmo?– Chegou, Sr. Conrado. Falou comigo, mas eu só

entendi Conradô, aí eu lhe entreguei a chave.Nesse instante, chegou Dona Fátima, esposa do Sr.

Conrado. Vendo o marido ali no térreo perguntou:– Cadê o francês?– Deve estar dormindo, porque já bati na porta, to-

quei a capainha, telefonei e ele não responde, ainda bem que você chegou.

Subiram comentando que o hóspede devia estar muito à vontade, para cair no sono daquele jeito. Dona Fátima pegou seu chaveiro, meteu a chave na fechadura, abriu a porta.

– Duchamp! – chamou o Sr. Conrado – enquanto entrava. Foi até o fim do corredor e entrou no quarto de hóspede.

– Fátima, não há ninguém aqui!– Fala baixo, Con, deve estar no banheiro.– Não, não está, deve ter saído e o Sr, Praxedes não

viu! Vou perguntar pelo interfone. – Sr. Praxedes, meu chaveiro não está aqui; meu amigo deve ter saído e você não viu, como é que pode?

– Saiu não, Sr. Conrado, isso eu garanto.– Como é que ele não está aqui, Sr. Praxedes?– Não sei, doutor, só sei que por aqui ele não saiu.

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– Saiu e levou o chaveiro, Sr. Praxedes. Ele não co-nhece a cidade, pode se dar mal por aí. Vou comunicar à polícia.

D. Fátima acalma o marido, dizendo que não era ainda caso de polícia, que o francês devia aparecer logo mais.

No apartamento 302, M. Duchamp desperta, após duas horas de sono, acende algumas lâmpadas e, não en-contrando ninguém, desce, com a intenção de andar um pouco pela rua em busca de um café. Passa pela portaria sem ser visto pelo Sr. Praxedes que falava ao interfone, levando a chave do apartamento 302. Toma um café no boteco da esquina, compra um jornal e volta ao prédio. Ao passar pela portaria, é visto pelo Sr. Praxedes que imediatamente liga para o 402 e diz:

– Sr. Conrado, acabou-se o mistério, o homem está subindo.

Dez minutos depois, o Sr. Conrado liga para a por-taria e grita:

– Sr. Praxedes, o senhor está brincando comigo? Está maluco?

– Que é isso, doutor, não precisa gritar, qual é o problema?

– Não subiu ninguém, Sr. Praxedes, ninguém!– Subiu seu amigo, doutor, tenho certeza.– Quero ver o senhor dizer isso na minha cara, Sr.

Praxedes, vou descer!D. Fátima acompanha o marido preocupada com

seu nervosismo. Encontram o Sr. Praxedes junto à porta do elevador.

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– Sr. Praxedes, que palhaçada é essa? – Palhaço é o seu amigo, doutor Conrado, não tenho

culpa se ele passa aqui e não vai para o seu apartamento.Ao ouvir estas palavras, D. Fátima interfere:– Calma! Tive uma ideia. Não vi nenhuma mala no

nosso apartamento. Ele pode estar em outro. Sr. Praxe-des, qual foi a chave que o senhor entregou ao homem?

– O chaveiro do seu marido, D. Fátima, 402.– Veja se ela não está na sua gaveta.O Sr. Praxedes, muito irritado, emborca a gaveta

em cima da mesa da portaria e não quer acreditar no que vê: entre várias outras, estava a chave do 402.

– E agora, Sr. Praxedes, que diabo de chave o se-nhor entregou ao meu amigo?

Sabendo que todo ser humano tem direito ao tem-po necessário a uma resposta difícil, o Sr. Praxedes usou esse direito coçando a cabeça e repondo o boné. Na ter-ceira vez, o Sr. Conrado perdeu a paciência:

– Sr. Praxedes, não perca tempo! Ligue para todos os apartamentos até encontrar meu convidado.

– Quem deve fazer isso é o senhor, Sr. Conrado. Eu não sei nem dizer o nome do homem. Tome o interfone.

– Sr. Praxedes, vou pedir ao síndico que demita o senhor ou pelo menos lhe dê outra função porque esta de porteiro é demais para o seu juízo.

O Sr. Conrado começou pelo 602 e foi baixando. Ao ligar para o 302, ouviu um alô diferente.

– Duchamp, c’est toi?– Oui, Conradô, où es tu?

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– Mais, qu’est-ce que tu fait là, Duchamp?– Je suis chez toi, moncher.– Duchamp, tu es fou? Tu n’est pas chez moi. Je t’at-

tend au 402.O francês pega a mala e vai apressado até a porta.

Ao abri-la, depara-se com uma senhora idosa com um chaveiro na mão que grita frases das quais uma só pala-vra ele entende: polícia! Na pressa, tromba com a mulher que vai ao chão. Ouvindo os gritos, o Sr. Conrado e D. Fátima jogam-se pela escada em direção ao andar de bai-xo e encontram o amigo reanimando a idosa desmaia-da com respiração boca a boca. A notícia espalha-se no prédio e dez minutos depois todos os demais moradores estavam no hall de entrada interrogando o Sr. Praxedes. Acuado e sem conseguir dizer uma palavra, o porteiro do Cumbuca sai com sua mochila e desaparece na pe-numbra da rua na direção do ponto de ônibus.

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As fontes utilizadas neste livro foram Minion Pro 12pt/14,4pt (texto), Trajan Pro 12pt/14,4pt (título); seu formato é 14cm x 21cm; capa em Triplex 250g. e miolo em Pólen 80g.Teve sua impressão concluída nas oficinas gráficas das Edições Bagaço, em 2012.

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