COLORIDO-E-COMO-MONOCROMÁTICO
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Publicao do Laboratrio de Investigao e Crtica Audiovisual (LAICA) da USP Junho 2013
COLORIDO E/ COMO MONOCROMTICO
Paul Coates
A dialtica da cor e do preto e branco
Os termos cor e preto e branco sugerem uma dialtica de oposio simultnea e
de difcil complementaridade, j que branco e preto tambm podem ser vistos como
cores, assim como sua suposta oposio em relao cor pode ser vista como
um truque de linguagem, de ideologia ou de histria. No cinema, claro, o
monocromtico foi durante muitas dcadas a regra contra a qual o filme colorido se
definiu, seja como um sinal de exuberncia e/ ou fantasia tecnolgica, ou como algo
adjunto reproduo realista de um mundo que supomos ser colorido. Disparidades
entre cores frequentemente supersaturadas de maneira grosseira na tela e a sutileza
real dos tons naturais poderiam ser ridicularizadas como algo kitsch ou (com menos
frequncia) relevadas como o inevitvel tributo da arte conveno. Que o branco e
o preto sejam considerados como cores ou como preldio e eplogo das cores uma
questo irrelevante, apesar de sua ausncia do espectro ou do fato das cores dos
objetos s se tornarem visveis depois que sua iluminao alcana um limiar mnimo
capaz de revelar apenas suas formas. Afinal, Berlin e Paul Kay defenderam que os
primeiros nomes de cores a se manifestarem num dado idioma so preto e branco,
seguidos do vermelho.1 Quando Eisenstein fala em preto e branco como cores, ele
1 BERLIN, Brent; KAY, Paul. Basic color terms: their universality and evolution. Berkeley/ Los Angeles:
University of California Press, 1969. Como Berlin e Kay contestam aquilo que denominam relativismo lingustico extremo, dizendo que sua pesquisa revela fortes indcios da existncia de universais semnticos (p. 1), provvel encontrar resistncia por parte daqueles que, dentro dos estudos do cinema, enxergam isto como algo que presta auxlio ps-teoria. (Como veremos em breve, no creio que seja
esse o caso, mas vejo que isto oferece evidncias que ambos os lados poderiam usar, talvez indicando
assim a natureza problemtica das guerras envolvendo a ps-teoria). Pior, seu trabalho indicava prontamente a alguns a imagem tpica do final do sculo 19, e hoje considerada tabu, de uma cadeia
evolucionria cultural, com os habitantes de Papua-Nova Guin no extremo inferior, pouco acima dos
animais, e os sofisticados europeus situados confortavelmente no topo, seu devido lugar (HARDIN, C. L.;
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talvez parea culpado de advogar em causa prpria.2 Ainda assim, existe uma antiga
tradio que enxerga o preto e o branco no como algo externo ao territrio da cor, e
sim como se cada um dos dois contivesse potencialmente metade da amplitude do
espectro. Assim, resumindo os estudos mais recentes, Margaret Visser destaca que o
vermelho costumava ser, na verdade, a nica cor. Antes da descoberta do espectro no
sculo dezessete, todas as demais cores eram consideradas variaes do preto
(marrom, azul, verde, roxo) ou do branco (amarelo, bege, creme e outras tonalidades
mais claras). Nossa gama de cores era, portanto, preto-vermelho-branco.3 Michel
Pastoreau diz que, no momento atual, o preto recuperou o status que lhe foi
atribudo por sculos, ou at milnios o de uma cor em si.4 Para ele, os efeitos da
descoberta newtoniana do espectro sobre a definio de cor so agora coisa do
passado. Os novos jogos de linguagem que agora podem ser jogados com a palavra
so, para ele, recrudescentes. A nfase no contraste entre preto e branco e cor pode
ser tambm um reflexo de fins do sculo dezenove, poca em que preto e branco
representavam limitaes desnecessrias riqueza de cores tornada possvel pelo
colonialismo e pela qumica industrial. Se a revolta contra o preto e o branco com
frequncia os rotula de opressores, repressivos ou demasiadamente sem
personalidade, esse tipo de retrica libertria tambm um protesto capitalista contra
as restries ao comrcio, ou seja, os limites impostos ao processo de alienao. A
MUFFI, Luisa (orgs.). Color categories in thought and language. Cambridge: Cambridge University Press,
1997, p. 5). Hardin e Muffi desconsideram isso como interpretao equivocada da tese de Kay/ Berlin,
afirmando que no faz parte da perspectiva dos autores e, portanto, no dedicam proposio mais nenhuma ateno neste volume. (Ibid) Outra defesa de Berlin e Kay poderia ler a evoluo mencionada no subttulo da obra como questo da temporalidade das categorizaes lgicas, e no dos
grupos humanos. Assim, embora suas estatsticas possam ser interpretadas como definindo um triunvirato
primrio formado por preto, branco e vermelho de maneira bastante enftica, sua subsequente ordem das
cores inclui um nmero cada vez maior de equivalentes (verde ou amarelo podem seguir o vermelho;
roxo, rosa, laranja ou cinza podem seguir o marrom), marcando assim a passagem do universal para o
varivel, e um ponto de abertura diferena cultural. De fato, essa diferena pode at estar presente desde
o incio, j que Berlin e Kay destacam que diferentes idiomas colocam em primeiro lugar o preto ou o
branco, que portanto tambm se configuram como equivalentes (BERLIN; KAY. Op. cit., p. 4). 2 EISENSTEIN, Sergei. Selected works - vol. III: Writings, 1934-47. Londres: BFI, 1996, p. 264. (Para mais
comentrios a respeito dessa afirmao de Eisenstein, ver a introduo ao captulo 4). 3 VISSER, Margaret. The way we are. Toronto: Harper Collins, 1994, p. 292. Para uma imagem
semelhante do encapsulamento de todas as cores no preto e no branco, ver o relato que Sartre faz de suas
experincias da infncia no cinema: Eu amava o cinema at na geometria dos planos. Para mim, preto e branco eram as supercores que continham todas as demais, revelando-as somente aos iniciados. (SARTRE, Jean-Paul. The Words. Nova York: Vintage, 1981, p. 123.) 4 PASTOREAU, Michel. Black: the history of a color. Princeton/ Oxford: Princeton University Press, 2009,
p. 11. Edio em portugus: Preto, a histria de uma cor. So Paulo: Senac/ Imprensa Oficial, 2011.
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revolta est sem dvida ligada percepo do branco e do preto como absolutos e,
portanto, como pilares de um ethos religioso que passa a ser objeto de
questionamento. A rpida expanso da influncia de Nietzsche indica que ele no foi
o nico intelectual do fin de sicle com o desejo de ir alm do Bem e do Mal
simbolizados por eles, regando em vez disso uma semente que jazia dormente noutra
parte.
A dialtica da cor e do monocromtico assume diferentes formas, algumas das
quais sero analisadas mais adiante neste livro5. De modo libertrio, o ressurgimento
da cor no fin de sicle marcado pela expressividade em particular, a
expressividade bloqueada do feminino numa sociedade de montona e
monocromtica repetio: o sculo dezenove controlado por tribos de homens de
preto. Ironicamente, claro, esses mesmos homens tornavam a expressividade
possvel por meio das novas tcnicas industriais de tingimento que desenvolveram. O
destaque dado s cores representa um tipo de autoafirmao individualista. Assim,
Hawthorne talvez no precisasse usar o vermelho, muito menos o vermelho
hipervisvel estigmatizado como escarlate, como cor fundamental de sua obra mais
conhecida: qualquer cor forte teria surtido o mesmo efeito. Cores fortes aprofundam
a disputa modernista com o realismo, que qualifica este ltimo como uma represso
concebida como monocromtica, defendendo que ele seja suplementado com uma
cor liberadora na fase inicial otimista do modernismo conhecida como
impressionismo ou demonstrando os efeitos dessa represso no posterior e mais
pessimista expressionismo, cujo grito o barulho de uma cor incapaz de encontrar
seu lugar no mundo. Seria esse um dos motivos pelos quais o famoso O grito, de
Munch, existe em tantas verses, a multiplicidade indicando o desajuste essencial da
cor, cuja pluralidade de contextos possveis pode somar-se a uma falta de contexto?
Se a cor flmica definida em parte por meio de uma relao dialtica com o
monocromtico, j passa da hora de esboarmos algumas das formas principais dessa
dialtica.
Primeiro, existe a j mencionada relao com o realismo e a contrariedade de
seus significantes. Em O estado das coisas (Der Stand der Dinge, 1982), Wim
5 COATES, Paul. Cinema and colour: the saturated image. Londres: Palgrave Macmillan/ BFI, 2010 do
qual foi extrado o presente texto (N. do E.).
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Wenders identifica o realismo com o preto e branco, mas sem protestar contra essa
forma, que j representava (na poca) uma anomalia. Se o realismo to granulado
quanto ditam os esteretipos, ele vai de fato pender monocromia, embora Lukcs
possa considerar isso como indicativo de uma degenerao em naturalismo. Mas,
ironicamente, num certo estgio da histria do cinema, o monocromtico associado
a um glamour nostlgico cujo uso nos videoclipes de rock pode desvirtuar canes
definidas como sendo comprometidas com protesto institucionalizado. A
monocromia portanto contraditria, com seus contrastes agudos bebendo
paradoxalmente tanto no melodrama de protesto realista contra as oposies sociais
quanto nos contornos acentuados de uma moda cujos defensores cortam o mundo
com a facilidade do comercial, como com as tesouras do couturier.
Na medida em que o realismo se gaba tanto de sua sobriedade quanto de seu
(concomitante) compromisso, surge a probabilidade de os cineastas que j refletiram
a respeito das conotaes do uso da cor e buscam o impacto do protesto poltico ao
usarem o monocromtico em parte ou no todo para indicar a identificao com a
privao e a virtude estereotipicamente associadas a um cinema pobre. Com tal
motivao, um parti pris fundador antes frequente para o preto e branco pode
sobrepujar um elemento do poltico que favoreceria o filme em cores: afinal, a esfera
poltica uma das reas primrias nas quais a cor encontra-se continuamente
presente, tanto verbal quanto visualmente, designando alianas de formas percebidas
como no arbitrrias. O vermelho, que habitualmente denota paixo, parece
logicamente significar a fria revolucionria, a crena de que fazer histria envolve
necessariamente o derramamento de sangue, por vezes amarelado de maneira
eufemstica num preparo de omeletes. Enquanto isso, para o conservador, o calmo
azul designa a tranquila naturalidade da ordem social, uma valorizada limitao. Ao
mesmo tempo, aqueles de sangue azul demonstram at que ponto o cultivo os elevou
acima de uma natureza na qual o sangue normalmente vermelho. Sendo donos
desse sangue azulado, acreditam que ele nunca deve ser derramado, sendo para
sempre preservado num conjunto de canais azuis que correm sob a superfcie da pele,
enquanto seus oponentes podem se tornar ainda mais determinados a derram-lo
precisamente para revelar que sua cor vermelha, como o sangue de qualquer pessoa
comum. Quando as cores recebem significado poltico, at as harmonias entre elas se
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tornam dissonantes por meio de sua subordinao melodramtica lgica oculta
habitualmente descrita como igual do preto e branco. Assim, apropriado que a
obra mais explicitamente poltica de Lars Von Trier, Europa (1991) que tambm
melodramtica em quase todos os sentidos dessa palavra frequentemente elstica, e
cujo tema a contestao no corao do corpo poltico adote o preto e branco
como sua tonalidade principal, ao mesmo tempo permitindo que as cores irrompam
na tela em certos momentos (num deles, o sangue jorra literalmente de pulsos
cortados).
O filme de Von Trier (que comentaremos mais abaixo) particularmente
interessante em sua sobreposio com outro tipo de filme que ativa a dialtica
colorido/ monocromtico nos nveis que a teoria estruturalista do cinema chama de
histoire e discours, na histria e na enunciao formal, para demonstrar a realidade
de domnios normalmente considerados fantsticos. Como os exemplos mais
significativos desse modo esto nos filmes de Andrei Tarkovski (especialmente
Solaris, Solyaris, 1972 e O sacrifcio, Offret, 1986), a dvida de Von Trier para com
o russo no surpreende. Se o primeiro filme em cores de Tarkovski enquadra-se no
gnero da fico cientfica e ao mesmo tempo tolera a aparente antiguidade de
trechos em preto e branco, Stanley Cavell, que considera a cor indicativa do futuro,
pode ter enxergado as dvidas do diretor em relao moralidade da explorao
csmica por parte da humanidade como provocao nada surpreendente dos
momentos monocromticos inseridos no filme. Vale destacar que as cores da terra,
cujas formas e ritmos naturais Tarkovski reverencia, so mostradas como se j
tivessem esmaecido na cidade atravessada pelo ex-cosmonauta Berton antes da
decolagem.
Quando os filmes coloridos so a regra, e uma combinao de realismo e
espetculo so a posio padro da narrativa mainstream, a regra para a
representao de um passado definido como diferente torna-se no o monocromtico,
mas uma cor abafada. Tal abafamento sobredeterminado, capaz tambm de
significar formas de alteridade como o rural (o passado de tantos habitantes urbanos
modernos) ou um pas diferente (na sua forma sobredeterminada completa: o pas
como outro pas). o que observamos em Capote (de Bennett Miller, 2005) e A
vida dos outros (Das Leben der Anderen, de Florian Henckel von Donnersmarck,
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2006). No primeiro, isso representa tanto o rural quanto o passado; no ltimo, o
passado e um outro pas. Assim, a equipe de produo de Capote eliminou os azuis e
vermelhos da paleta de cores do filme. De maneira semelhante, Von Donnersmark
criou uma sensao de Alemanha Oriental ao remover estas duas cores dos locais
em que A vida dos outros foi filmado. Os comentrios dos espectadores elogiando o
realismo pouco habitual da imagem resultante da Alemanha Oriental certamente
ilustram a interseco dessa gama de cores abafadas, vistas como realistas, com o
esteretipo projetado do acinzentando do bloco oriental. O filme tambm fundiu essa
ideia de uniformidade com a da onipresena das tonalidades tipicamente abafadas
dos uniformes (camuflados). como se o pblico acreditasse no sem motivo
que uma sociedade sob forte vigilncia s pode ser um ambiente militarizado. A
prpria Repblica Democrtica Alem se torna uma fuso de colorido e
monocromtico cujo escoamento em spia da realidade pode ter buscado anestesiar
a populao, sufocando as oposies que poderiam fomentar mudanas.
Finalmente, vale mencionar uma categoria de possvel interesse em particular
para o j mencionado Tarkovski, com seu fascnio pelo transcendental e pelo
invisvel: aquilo que poderia ser chamado de cor invisvel, j que sua aplicao
imagem por trs da cena e por trs do visto altera seu impacto de maneira material e
invisvel. Assim Tonino Delli Colli, fotgrafo de Mamma Roma (1962), de Pier
Paolo Pasolini, descrevia o efeito de filmar usando um filtro laranja: o branco se
destacava e o preto ficava mais intenso.
Teoria da cor, do preto e branco e do real
Algumas das reflexes tericas mais teis envolvendo a relao entre colorido
e monocromtico podem ser encontradas nos textos de Stanley Cavell, Anne
Hollander e Aldous Huxley. Como as teorias de Cavell e Hollander se soprepem em
vrios aspectos, comentarei primeiro a obra deles. A de Huxley, apesar de anterior,
pode ser ento tomada parcialmente como corretivo ou alternativa para a deles.
As ruminaes envolvendo o colorido e sua relao com o monocromtico
encontrados em The world viewed, de Cavell, so com frequncia penetrantes, ainda
que assistemticas. Embora no as enumere, Cavell distingue trs estratgias da cor,
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todas elas envolvendo a fantasia: 1. a fantasia do conto infantil de O Mgico de Oz
(The Wizard of Oz, Victor Fleming, 1939) ou As aventuras de Robin Hood (The
Adventures of Robin Hood, Michael Curtiz, 1938), com Errol Flynn; 2. o filme que
usa a cor para declarar que seu presente na verdade impregnado de futurismo, como
Deserto vermelho (Deserto Rosso, Michelangelo Antonioni, 1964), Petlia, um
demnio de mulher (Petulia, Richard Lester, 1968) e Bullitt (Peter Yates, 1968); e 3.
o filme cujos sinais de colorao indicam uma fantasia particular, como Um corpo
que cai (Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958) e O beb de Rosemary (Rosemarys Baby,
Roman Polanski, 1968). Infelizmente, a cada categoria sucessiva, a argumentao
associando explicitamente os filmes relevantes cor se torna mais e mais exgua. O
leitor pode apenas adivinhar como a presena de cor no filme ou at a narrativa nele
desenvolvida faz de ttulos como Petlia ou Bullitt futuristas, por exemplo, embora
referncias abstrao ofeream uma dica (em Petlia, a tela inteiramente tomada
pelo sangue uma abstrao do preenchimento do quadro6, assim como Bullitt
oferece um mundo completo e abstrato7). A implicao a de que a abstrao
relaxa o domnio sobre o presente, efeito ampliado pelo destaque dado tecnologia e
talvez mais aparente para os no-americanos, dado o grau de disseminao da
imagem do presente americano como provvel (muitas vezes desejvel) futuro de
boa parte do restante do globo. Embora a fantasia particular de um homem seja
obviamente central para Um corpo que cai, sua relao com a questo da cor
abordada somente por meio da noo um tanto vaga de espao de cor: o filme
estabelece o momento de passar de um espao de cor a outro como se passssemos
de um mundo a outro8 uma ideia de mundos diferentes que poderamos assimilar
ao jogo que o filme faz com os smbolos do sobrenatural. Se fantasia precisamente
aquilo que pode ser confundido com realidade9, o leitor pode apenas supor que o
acrscimo da cor ao arsenal da reproduo flmica a torna incrivelmente mais
propensa ao fantstico, antecipando a preferncia pela fantasia na produo
cinematogrfica americana mainstream no final da dcada de 1970, e a subsequente
6 CAVELL, Stanley. The world viewed: reflections on the ontology of film (edio ampliada). Cambridge/
Londres: Harvard University Press, 1979, p. 82. 7 Ibid., p. 83.
8 Ibid., p. 84.
9 Ibid., p. 85.
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ascenso de Lucas e Spielberg. Mais precisa ainda uma definio posterior do
trabalho da cor em filmes srios como uma despsicologizao ou desteatralizao
de seus temas10, que determina implicitamente a correlao da cor com o futurismo
(na categoria 2) e com a fantasia (categorias 1 e 3). na sua associao da percepo
do drama da monocromia, e do advento da cor despersonalizao dos
personagens que o ensaio de Cavell se mostra mais sugestivo.
Esse elo inaugura na obra a comparao mais bem integrada entre os efeitos do
monocromtico e do colorido. Os intensos contrastes visuais do preto e branco
convencem os espectadores a tratar a realidade de maneira dramtica e, assim, a
aceitar como realidade um mundo de contrastes igualmente acentuados. Isso
esclarece qual o aspecto do cinema que atraiu os limites claros dos tipos e
justificou aquelas dcadas de melodramas, comdias, mquinas e cenas de
explorao, movimentos de aventura e perseguio.11 significativo que o
melodrama, cujo preto e branco moral define os contornos mais claros possveis, seja
o primeiro a figurar nessa lista de formas do filme monocromtico. Entretanto, sua
relao paradigmtica com a lista subsequente no mencionada, enquanto Cavell
hesita de maneira confusa entre fundir drama e melodrama,12
ao considerar o
melodrama como sucessor histrico do drama.13
Ainda assim, a tese segundo a qual a
sociedade e a percepo da sociedade ultrapassam o drama e chegam ao
melodrama14 no final do sculo dezenove exige uma definio mais completa de
melodrama. Tendo em mente as teorias de Peter Brooks, poderamos caracterizar o
melodrama como drama de f e salvao tirado da igreja, que foi a primeira a
promulg-lo.15
No contexto da histria intelectual comprimida oferecida por Cavell,
esse desenvolvimento poderia ser descrito como reatando inconscientemente a
dramtica viso hegeliana e marxista da histria religio que eles haviam afastado
dela. Assim, o cinema, nascido no auge tardio e vitoriano do melodrama, pode ser
visto menos como algo que convence os espectadores a deixar de encarar a realidade
10
Ibid.,p. 89. 11
Ibid.,p. 90. 12
Ibid., p. 90 e 92. 13
Ibid., p. 93. 14
Ibid. 15
BROOKS, Peter. The melodramatic imagination: Balzac, Henry James, melodrama, and the mode of
excess. Nova York: Columbia University Press, 1985.
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dramaticamente16 do que como algo que proporciona uma fuso das superfcies do
real com um melodrama animado por uma fantasia de realidade legvel, num perodo
em que as dvidas envolvendo tal legibilidade so registradas pelo modernismo.
Enquanto isso, as teorizaes do melodrama dos anos 1950 elaboradas por
Thomas Elsaesser e Geoffrey Nowell-Smith17
associam seu desenvolvimento na
poca ao excesso colorstico. Todas essas teorias podem ser correlacionadas com
os comentrios gnmicos de Cavell. Assim, na obra de Griffith em particular, com
sua sacralizao da beleza feminina e as evocaes do Bem e do Mal nos conflitos
dos grupos, as categorias religiosas so cinematizadas (Brooks). De maneira
semelhante, o excesso de cor no melodrama posterior pode amortecer o avano do
drama ao se deleitar nos detalhes do seu retrato, o nivelamento sirkiano da distino
entre personagens e objetos em particular indicando a avassaladora reificao do seu
mundo (Elsaesser e Nowell-Smith). Entretanto, alm de no serem totalmente
compatveis, essas duas encarnaes do melodrama deixam de levar em considerao
a imagem da mulher que se sobrepe parcialmente a ambas. Assim, Cavell tenta
(sem sucesso) definir alguns de seus principais termos. Se tivesse definido melhor a
relao entre drama e melodrama, por exemplo, ele poderia ter se juntado a Anne
Hollander, enxergando na prspera tendncia da mdia em associar o grfico, o
verdadeiro e o sensacional uma caracterstica definidora da modernidade.
As elegantes, eloquentes e aforsticas formulaes de Hollander rastreiam a
linhagem da identificao do monocromtico com a verdade at a tradio ps-
renascentista da reproduo grfica de pinturas na arte popular impressa. A
linguagem da viso monocromtica tem sido a grande lngua franca da arte
ocidental, conclui ela.18 Se grfico significa ao mesmo tempo aquilo que
escrito e tambm semelhante verdade19, consta que ao extrairmos as cores da
imagem, diminuindo sua verossimilhana, elucidamos um original do qual se faz
uma leitura. Uma maior clareza o resultado direto da eliminao das cores,
definidas como distraes enfeitiantes e enganadoras. Numa equao cujas bases
16
CAVELL. Op. cit., p. 90. 17
Ver ELSAESSER, Thomas. Tales of sound and fury. In NICHOLS, Bill (org.). Movies and methods II. Berkeley/ Los Angeles: University of California Press, 1985, p. 165-89, e NOWELL-SMITH, Geoffrey.
Minnelli and melodrama. In NICHOLS, Bill (org.). Op. cit., p. 190-4. 18
HOLLANDER, Anne. Moving pictures. Nova York: Knopf, 1989, p. 33. 19
Ibid.
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protestantes e puritanas Hollander poderia ter enfatizado, o preto e branco irradia
uma verdade livre de adornos.20 Numa dicotomia perturbadora e notvel, ela ope
a verdade do monocromtico realidade da cor e, possivelmente ecoando Cavell,
defende que por extenso, fotografias e filmes em preto e branco so considerados
bons porque so to verdadeiros, e no por serem to reais.21 De fato, o quociente
de semelhana em relao vida disponvel para o colorido inversamente
proporcional a essa veracidade. Se o colorido pode ser chamado de encantador e
ilusrio22, torna-se patente sua adequao fantasia. No entanto, tal fantasia no
tem o carter de quase-sinnimo do subjetivo frequentemente atribudo a ela, j
que a centralidade da luz no monocromtico reala sua capacidade de indicar (...) a
verdade subjetiva do sentimento, que significada pela imagem da luz que recai e
deve sempre iluminar um ponto de vista em particular.23 A narrativa sabe viver sem
a cor, e na arte popular colorida, a cor serve aos interesses do prazer, e no do
significado.24
Apesar de sugestivos, os comentrios de Hollander so limitados por sua
derivao primria em relao a uma tradio grfica cuja centralidade para a arte do
Norte da Europa (Holanda e Alemanha) est ligada ao protestantismo, para o qual o
grfico (textos e leitura) era to importante quanto a imagem, e com a insistncia do
clima em abafar as cores no Norte da Europa. Alm disso, o foco na arte grfica e
seu popular legado cinemtico esconde a verdadeira importncia das prticas
modernistas. uma pena, pois Hollander demonstra ter perspiccia ao analisar
algumas das qualidades do colorido que motivaram os modernistas a dar-lhe
privilgio. Ela comenta, por exemplo, que sentimentos ambguos, fatos
desconfortveis ou determinadas circunstncias podem ser apreendidas somente por
meio do vu sensorial da cor, que d ento ao sujeito uma medida extrnseca do
desgaste ou deleite25, ilustrando o privilgio concedido pelos modernistas forma e
indeciso. Ao comentar que num quadro de Matisse a teia de cores segura a
20
Ibid. 21
Ibid. 22
Ibid. 23
Ibid., p. 34. 24
Ibid. 25
Ibid., p. 37.
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mulher no sof e dentro do cmodo para sempre26 ela parece remeter ao Antonioni
de Deserto vermelho. Cor modernista significa mais do que embelezamento e
distrao. At sua luxria mais do que isso: como destaca sutilmente ric Rohmer,
em filmes como Portal do inferno (Jigokumon, Teinosuke Kinugasa, 1953) ou Lola
Montez (Max Ophs, 1955), a cor um refinamento adicional, um luxo que, para
esses sujeitos luxuriosos, quase uma necessidade.27 O vis de Hollander
provavelmente derivado do seu prprio compromisso maior com as formas narrativas
criticadas pelo modernismo a faz concluir que obras desarticuladas podem ser
irritantes e fceis de esquecer.28 Apesar de ter conscincia do carter aleatrio que
permeia o cinema29
, sua sofisticada negao do realismo cor no se estende a uma
apreciao do antirrealismo modernista. Afinal, s dos filmes mainstream se pode
dizer que at os filmes coloridos so grficos ou seja, essencialmente pretos e
brancos.30 As cores modernistas de Antonioni, Godard ou Kieslowski recusam o
melodrama do grfico.
Embora a identificao do colorido com a fantasia seja comum, tendo sido
teorizada sobretudo por Cavell e Hollander, existe tambm uma identificao oposta,
que atribui a cor realidade slida cotidiana e aos domnios que buscam sobrepuj-
la. Num trecho que mistura misticismo e cincia, Huxley cita sonhos como prova
fundamental de sua teorizao envolvendo duas variedades de simbolizao e a
distncia que elas criam em relao realidade daquilo que dado: a transferncia
do colorido para o monocromtico que prevaleceria na maioria dos sonhos; e a
abstrao da realidade mediada pela linguagem.
A cor revela-se uma espcie de pedra de toque da realidade. Aquilo que
dado colorido; aquilo que nossa imaginao e nosso intelecto criador de
smbolos elaboram sem cor. O mundo externo , portanto, visto como
26
Ibid., p. 38. 27
ROHMER, ric. Of taste and colors. In DALLE VACCHE, Angela; PRICE, Brian (orgs.). Color: the Film Reader. Nova York/ Londres: Routledge, 2006, p. 123. 28
HOLLANDER. Op. cit., p. 49. 29
Ibid., p. 50. 30
Ibid., p. 46.
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colorido. Os sonhos, que no so dados e sim fabricados pelo
subconsciente pessoal, so geralmente em preto e branco (...)31
As imagens do mundo arquetpico so simblicas; mas como ns, enquanto
indivduos, no as fabricamos, em vez disso encontrando-as l fora no
inconsciente coletivo, elas exibem ao menos algumas caractersticas da
realidade dada e so coloridas. Os habitantes no-simblicos dos antpodas
da mente existem por conta prpria e so coloridos, como os fatos dados do
mundo externo. Com efeito, a cor destes muito mais intensa do que a dos
dados externos. Isto pode ser explicado, ao menos em parte, pelo fato de
nossas percepes do mundo externo serem habitualmente nubladas pelas
noes verbais em cujos termos nosso pensamento funciona. Estamos
eternamente tentando converter coisas em signos para as abstraes mais
inteligentes de nossa prpria inveno. Mas, ao faz-lo, roubamos dessas
coisas boa parte de sua consistncia nativa.32
Aqui, smbolo no equivale ao sinnimo romntico para a plenitude, e sim ao
signo. Se no domnio da experincia visionria que Huxley chama de antpodas da
mente os objetos no representam nada alm de si mesmos33, esta
autossuficincia corresponde a uma colorao completa indicando que no h nada
faltando neles, diferentemente da ausncia que constitui o signo. Aquilo que Cavell,
Hollander e todos os materialistas desmereceriam como fantasia para Huxley uma
realidade autossuficiente e transcendental comparvel quela das Formas Platnicas
das quais os smbolos humanos sejam eles sonhos ou palavras so abstraes e
reflexos velados. Se a cor ganha destaque nos textos msticos, sua frequente
associao com a fantasia flmica pode ser uma imagem posterior desbotada e
31
A alegao de Huxley segundo a qual sonhamos em preto e branco era uma crena comum na poca em
que ele escreveu. Eric Schwitzgebel associa isso ao predomnio do preto e branco nas mdias visuais da
primeira metade do sculo vinte. SCHWITZGEBEL, Eric. Why did we think we dreamed in black-and-white?, in Studies in History and Philosophy of Science n. 33, 2002, p. 649-60. Se assim , a fbrica de sonhos produz literalmente nossos sonhos, no sentido de priv-los de cor ou de introduzir cor em
ambientes mentais nos quais esta irrelevante. claro que a possvel presena ou no-presena da cor
nos sonhos no altera sua prolongada associao entre a conscincia expandida e a colorao mltipla e
luxuriante, que neste contexto pode apenas conotar variedade de opes, enquanto a conscincia dividida
to frequentemente abordada no expressionismo pode ter se equiparado ao preto e branco de alto
contraste de seus filmes, que podem t-la engrandecido. 32
HUXLEY, Aldous. The doors of perception and heaven and hell. Londres: Flamingo, 1994, p. 67. 33
Ibid., p. 70.
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secularizada de uma disposio expulsa da esfera pblica sob a modernidade, mas
possivelmente sobrevivendo, como memria e sombra, no inconsciente representado
pela escurido do cinema.34
O preto e branco, o colorido e Siegfried Kracauer
A teoria da cor de Siegfried Kracauer, esboada num breve artigo de 1937
publicado em Das Werk e intitulado Sobre a esttica do filme colorido, comea
com a paradoxal declarao segundo a qual o monocromtico seria mais colorido do
que o colorido. A cor de um filme como O jardim de Allah (The Garden of Allah,
Richard Boleslawski, 1936) no pode expressar nada daquilo que um filme em preto
e branco (...) capaz de expressar sem a sua ajuda. Eles (o preto e o branco)
conjuraram a distncia azul com mais carinho do que ocorre agora com a incluso do
azul; capturaram a luz austera, o calor e os poderosos contrastes da paisagem do
deserto em imagens cujo colorido ultrapassa em muito o visto em O jardim de
Allah.35 Para que ningum pense que o deserto um exemplo demasiadamente
conveniente para tal argumento, com a intensa luz solar eliminando o variado das
cores das entidades vivas, deve-se notar como Kracauer embasa isso em termos
derivados da defesa que Vselovod Pudovkin fez da montagem como construtora de
significado em oposio ao confuso acmulo de acidentes36 encontrado na
reproduo fidedigna dos fenmenos da natureza. A montagem destri semelhanas
insignificantes para trazer tona o verdadeiramente significativo, imbuindo
imagens com o poder da linguagem e pondo de lado a convencional perspectiva
34
Era antigo o interesse de Huxley em movimentos entre o colorido e o preto e branco, e o colorido e a
linha, como pode ser visto num trecho de um de seus primeiros romances, Crome yellow, Londres: Chatto
and Windus, 1969, (1921), p. 22-23: Aquela parte do jardim que se inclinava a partir do p do terrao at a piscina tinha uma beleza que no dependia da cor tanto quanto das formas. Era to bela ao luar quanto
luz do sol. O prateado da gua, as formas escuras do teixo e do azevinho continuam sendo, em todos os
momentos do dia e do ano, as caractersticas dominantes da paisagem. Era um panorama em preto e
branco. Para as cores havia o jardim de flores; jazia numa das margens da piscina, separada desta por uma
imensa parede babilnica de teixos. Ao passar por um tnel na cerca viva, uma pequena abertura surgia
na parede e ento vamo-nos, surpreendente e subitamente, no mundo da cor. 35
KRACAUER, Siegfried. Zur sthetik des Farbenfilms. In WITTE, Karsten (org). Kino: Essays, Studien, Glossen zum Film. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, p. 48-49. 36
Ibid., p. 49.
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de carto postal.37 Para Kracauer, uma independncia do objeto semelhante
quela forjada pela montagem foi alcanada no filme preto e branco graas
ausncia de cores.38
Assim como o cineasta emprega a montagem, o pintor e suas
cores dominam a tarefa de transmitir significado a partir do material colorido, e suas
imagens so eloquentes a ponto de no serem meras reprodues.39 Nesse aspecto,
como em tantos outros40
, Kracauer parece antecipar o Antonioni que literalmente
pintaria objetos naturais em Deserto vermelho. Entretanto, at o ponto em que
Kracauer atribui ao filme colorido uma alegria infantil no tecnicamente factvel,
podemos v-lo como ecoando implicitamente a (compensatria?) associao
europeia entre infantilidade e uma Amrica concebida como fonte de tais inovaes
tcnicas. O filme colorido rende uma difusa multiplicidade que no foi
penetrada41 em outras palavras, moldada, organizada e compreendida. Sua
modalidade de viso banal reduz o mundo a imagens de cartes postais.
Independentemente disso, como a montagem se tornou habitual na produo de
filmes (aqui no est claro se o termo significa a montagem comum ou a montagem
orientada por contrastes ao estilo sovitico), esta aparece at nos filmes coloridos.
Apresentando como opostos os princpios da montagem e da cor, Kracauer
pode ter considerado irrelevante a esttica dos filmes coloridos. Ainda assim, seus
ltimos trs pargrafos no criticam o filme colorido em si, e sim a sua sujeio aos
clichs. O filme colorido precisa avanar a partir de uma base na montagem. Dado o
contraste apontado anteriormente por Kracauer entre esses dois elementos da
produo de filmes, o leitor pode consider-lo improvvel, mas seu afastamento em
relao s consideraes sobre a representao possvel demonstra como isso poderia
ocorrer: por meio da abstrao constitutiva da animao. (O apreo pela animao e
pela montagem indica uma mudana do modelo pudovkiano para o eisensteiniano.)
O cachorro cansado na geleira que recebe conhaque de um So Bernardo passa de
verde a vermelho conforme se recupera.42
Em outras palavras, a cor funciona aqui
37
Ibid., p. 50. 38
Ibid. 39
Ibid. 40
C.f. meu European Film Theory: From crypto-nationalism to transnationalism in Temenuga Trifonova (org.), European film theory. Nova York/ Londres: Routledge, 2009, p. 12. 41
KRACAUER. Op. cit., p. 51. 42
Ibid., p. 52.
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no como propriedade de um objeto, e sim como signo, e a imagem tem a qualidade
lingustica atribuda anteriormente montagem. At o deplorvel O jardim de Allah
demonstra um uso no-banal do colorido em sua sequncia de dana. sem dvida
significativo que Kracauer descreva tal dana como caleidoscpica43, com a
implicao de que, como num caleidoscpio, a rpida sucesso de cores da dana
enfraquece o rido realismo que associa uma cor imutavelmente a um objeto. A
inteno de Kracauer, tanto aqui quanto no seu exemplo de animao, separar os
objetos das cores para sublinhar a abertura dos primeiros metamorfose. Pode-se at
enxergar isso como uma transformao do movimento de avano temporal das
imagens por meio da montagem numa montagem dentro da imagem, o
desdobramento semelhante ao dos fogos de artifcio de uma srie de possibilidades
num mesmo ponto. Ao enfatizar a brevidade de tais passagens,44
ele nos d mais
motivos para ler a cor como algo mais ligado transio e transformao. Isso
pode ser associado caracterstica central da fantasia: a visibilidade da metamorfose.
A cor seria assim um elemento efmero do cinema que recebe destaque temporrio,
como a fantasia que Theory of film, obra posterior de Kracauer, subordina de maneira
resoluta ao realismo. O Kracauer deste ensaio poderia ter encontrado em sua teoria
um lugar de aprovao da sequncia de dana da segunda parte de Ivan, o terrvel
(Ivan Groznyy II: Boyarsky zagovor, 1958), de Eisenstein. Sua afirmao final,
segundo a qual a cor se torna um componente necessrio da montagem global45
quando usada dessa maneira, no representa tanto uma concesso quando
percebemos o quanto ela marginaliza a cor numa mitologia momentnea.
Cor e estrelato
Ao escrever que a regra dos cinco proporciona uma frmula aproximada
para o nmero de estmulos que o olho capaz de captar e integrar
simultaneamente,46 Gerald Mast defende que a simplificao do visual decorrente
43
Ibid., p. 53. 44
Ibid. 45
Ibid. 46
MAST, Gerald. Film/ Cinema/ Movie: A Theory of Experience. Nova York/ Hagestorn/ So Francisco/
Londres: Harper and Row, 1977, p. 91.
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do filme preto e branco liberta nossa concentrao para estmulos como as
evocaes dos rostos dos astros, a riqueza do dilogo verbal e a complexidade da
estrutura narrativa.47 No fim dos anos 1970, poca da redao do texto, ele v esses
trs elementos em decadncia juntamente com o monocromtico.
Afirmar um declnio no estrelato pode parecer incomum em meio onipresente
obsesso cultural pelas celebridades, e Mast destaca a possvel influncia de outros
fatores: a forma com que alm de fixar o arqutipo na cultura, a repetitiva exposio
do pblico a um astro na era do estdio produzia expectativas nos espectadores em
relao ao que cada arqutipo faria.48 (Seguindo um rumo diferente, poderamos
distinguir entre estrelato e celebridade: o primeiro envolve uma elevao inatingvel,
mantida pelos estdios; a segunda, voltas de uma Roda da Fortuna com ascenses e
inevitveis quedas.) Embora Mast no apresente a questo dessa maneira, o apoio
dado pelo estdio a um tipo poderia de fato impulsion-lo condio de arqutipo. O
que liberta o tipo para se tornar arqutipo a ausncia do rudo de aspiraes
como o desejo dos atores em demonstrar versatilidade ao contrariar o tipo, tornando-
se eles prprios diretores, e das fofocas incontrolveis de uma revista de celebridades
buscando no o fortalecimento de uma imagem nica, e sim a sua lasciva subverso.
Mas fatores igualmente importantes podem ser a possibilidade de descrever como
abstrao e eterealizao os processos monocromticos que Mast apresenta
corretamente como simplificadores. Talvez tenha pouca importncia o fato de Don
Lockwood, astro do cinema mudo de Cantando na chuva (Singin in the rain,
Stanley Donen, 1952), no saber atuar, j que ele essencialmente elevado uma
imagem cuja diferena, mobilidade e mortalidade simultneas indicam
provocadoramente a possibilidade de tal forma, apesar de refinada pelo
monocromtico, fazer interseco em algum nvel com a realidade cotidiana dos fs.
Em contraste, o colorido volta a design-lo carne da qual o monocromtico o
extraiu. (O inverso disso , claro, a possibilidade de um monocromtico diferente,
aquele de Von Stroheim, cuja alegria naturalista suga a anima humana, deixando
apenas um resduo do animal, e produzindo feras em lugar de deuses.) O colorido
47
Ibid., p. 91-2. 48
Ibid., p. 92.
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parece substituir as estrelas por figuras que se alternam entre celebridades e atores.
Os astros caem Terra e se afastam mancando do local onde caram.
O grfico, o verdadeiro e o revolucionrio
Ao comentar a antiga tradio europeia de reproduzir pinturas e esculturas
famosas na arte grfica, Anne Hollander destaca duas associaes sedimentadas da
palavra grfico: Grfico significa como a escrita; agora significa tambm
como a verdade.49 Ela ignora uma terceira associao, revelada como primria
numa pesquisa entre meus estudantes de graduao: o sensacional. A deciso de
Hollander de mencion-lo mais tarde, apenas incidentalmente,50
pode ser motivada
pela frequncia com a qual sensao e verdade so vistas como opostas.
Independentemente disso, as palavras costumam se misturar: a ideia de que uma
verdade dita, rompendo regimes de falsidade, por exemplo, pode desencadear uma
sensao. A verdade costuma ser descrita como nua, um ataque sem floreios contra
a neutralizante sofisticao filtrada do nu. Se as buscas pelo sensacional so
muitas vezes identificadas com aquelas pela popularidade, isso se deve ao fato de a
verdade criar uma sensao ao derrubar ordens estabelecidas. Se o seu populismo
tem ambies polticas, estas so as dos ingleses puritanos cujo mundo de ponta
cabea no tinha rei, ou as do Cidado Kane (Citizen Kane, 1941) de Orson Welles
empregando a imprensa marrom como plataforma para alcanar o poder poltico.
Este significado de grfico rene os demais at o ponto em que a verdade em
questo a de uma nova palavra, ou a prpria linguagem dispersando imagens e
idolatria. Para os puritanos, claro, essa nova palavra era o texto bblico no
vernacular. Seu preto e branco ao mesmo tempo preto no branco e a virtuosa
pobreza de seus consumidores, que carecem de riqueza para encomendar e possuir
pinturas coloridas ou para, mais tarde, embarcar no Grand Tour e ver os originais.
Assim, o preto e branco se torna o signo sensacional de revolues da imagem e da
palavra. Sua distncia abstrada em relao ao mundo fomenta nos espectadores a
sensao de no pertencerem a este mundo. Posteriormente, para os revolucionrios
49
HOLLANDER. Op. cit., p. 33. 50
Ibid., p. 35.
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russos, o texto seria o campo da revoluo, e a perniciosa imagem o Tsar, falsamente
semelhante a um cone. Devido prevalncia da suposio de que, nas palavras de
Hollander, se uma imagem em preto e branco ela pode ser apreendida com mais
clareza, embora talvez proporcione menos prazer51, sua aparncia grfica facilita a
compreenso popular, dissipando o hedonismo, as distraes e mistificaes da
classe dominante num s golpe.
Emerge, assim, um contexto no qual podemos considerar dois textos: Sobre a
cor, de Sergei Eisenstein,52 e A Me (Mat, 1926), de Vselovod Pudovkin. Num
nvel, sua justaposio bvia, e o prprio Eisenstein cita A Me como seu principal
exemplo sovitico do preto e branco funcionando como cores. Seu emprego da
palavra cor indica um sofisticado reconhecimento de que todo o debate sobre a cor
flmica no deve apenas debater o preto e branco, mas provavelmente comear por
ele. Assim como pode tambm constituir a afirmao (uma forma de compensao)
de que o cinema sovitico sem cor pode se equiparar a seus principais rivais
ideolgicos, cujas indstrias cinematogrficas estavam comeando a aplicar cor aos
longas metragens no final dos anos 1930. Ao sustentar que o cinema sovitico
tambm tem cor, Eisenstein realiza uma inverso revolucionria do aparente
significado da superioridade tecnolgica do capitalismo americano e do militarismo
alemo. Ao mesmo tempo, tais declaraes so temperadas por um reconhecimento
de certas realidades. A primeira delas diz respeito ao fato de que o esquema de um
avano do preto ao cinza e ao branco no aplicado de maneira acabada em A Me.
Assim, Eisenstein afirma que as trs tonalidades temticas de cor podem ter se
fundido numa coda final na ltima cena: a massa escura de trabalhadores, as
tonalidades cinzentas da polcia e o avano triunfal do gelo branco. Isso no apenas
deixou de ocorrer, como infelizmente o terceiro esquema de cores (o branco) no
foi utilizado na composio geral das cores e nunca foi destacado
fotograficamente.53 Para Eisenstein, no deve ser difcil reconhecer essa realidade
particular, e as polmicas com Pudovkin permeiam sua teoria. Mais difceis e at
traumticas de se aceitar so as falhas pessoais. A autocrtica de Eisenstein pode
51
Ibid., p. 33. 52
EISENSTEIN, Sergei. On colour. In GLENNY, Michael; TAYLOR, Richard (org.). Selected works - vol. II: Towards a theory of montage. Londres: BFI, 1991, p. 254-67. 53
Ibid., p. 264.
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ser impelida por uma mistura de admirvel honestidade com a esperana de que seu
exerccio pudesse evitar as autoflagelaes mais violentas buscadas pelo regime de
Stalin. Ele conclui com a proposta de fazer um filme em preto e branco que
invertesse seu valor moral convencional, pois envolveria uma revolta negra contra a
escravido, com Paul Robeson no papel principal.54
Levando-se em considerao seu
contnuo dilogo com Griffith, surpreende um pouco que a inverso do simbolismo
racista de O nascimento de uma nao (The Birth of a Nation, D. W. Griffith, 1915)
no seja mencionada.
Podemos contudo comentar mais a respeito da presena do grfico em A Me.
Seria possvel destacar que muitas de suas imagens evocam um conjunto de obras de
arte ocidentais que Pudovkin provavelmente viu nas reprodues monocromticas
descritas por Hollander. Jay Leyda traz informaes precisas, embora sua
argumentao de que o filme faz suas fontes parecerem ornamentais possa ser
fruto da comparao do filme preto e branco com os originais coloridos, e da
aceitao de uma identificao estereotipada da cor com a ornamentao:
Em A Me, que apresenta um estilo grfico unificado e incomum, vemos
durante todo o filme imagens que parecem ter sido cientificamente
desprovidas de toda distrao (...) Em comparao com essas imagens
simplificadas, suas muitas fontes parecem quase sobrecarregadas de
elementos visuais, ou ornamentais Bollo, de Velsquez, que deu origem
famosa imagem do policial monumental; o Ptio da priso, de Van Gogh
(inspirado em Dor), refletido na cena da hora dos exerccios na priso; o
realismo cuidadosamente composto de Degas, os caticos quadros da fase
azul de Picasso e as imagens de Kthe Kollwitz, que contriburam para a
representao grfica da me; os trs Juzes de Rouault que ajudaram a
caracterizar os trs juzes de Pudovkin.55
Alm disso, as intenes grficas informam os frequentes ngulos altos e
baixos: os primeiros destacando silhuetas contra o cu; os segundos, aproximando-as
54
Ibid., p. 267. 55
LEYDA, Jay Kino: A history of the Russian and Soviet film. Londres/ Boston/ Sydney: G. Allen and
Unwin, 1983, p. 210.
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de sombras projetadas no cho embranquecido pela luz do sol, neve ou ambos. Os
ngulos grficos reforam a anlise que a obra faz da fora bruta, com as autoridades
ameaando com sua opressiva desumanidade, e os diretores do presdio
espezinhando os detentos. A verdade grfica nesse caso envolve a polarizao da
sociedade na luta de classes: uma realidade que a me no compreende at a priso
de seu filho Pavel. Talvez a derrubada popular dos ricos e poderosos ainda no seja
possvel, pois os manifestantes do filme so aqueles que foram derrotados em 1905,
mas a ocorrncia disso no futuro marcada pela bandeira vermelha cujo movimento
grfico e alegrico no sentido de soletrar implicitamente a palavra revoluo ao
fim da obra.
Por outro lado, no decorrer do tempo surgiram filmes soviticos muito
diferentes, usando o colorido e o monocromtico de outras maneiras. Entre os mais
notveis est Solaris, de Andrei Tarkovski
Solaris, o colorido e o monocromtico
Em vrios momentos de Solaris, de Tarkovski, a cmera passa pela cabea de
um personagem em geral a do cosmonauta Kris Kelvin apontando em seguida
para um vazio ou escuro, com frequncia o de uma escotilha mas, s vezes, o de uma
porta (como ocorre perto do fim da visita que Kris faz me em sonho). Timothy
Hyman associa esse movimento de cmera experincia dos cosmonautas com o
planeta-oceano Solaris: nas primeiras sequncias, quando a cmera passa
frequentemente por janelas at chegar escurido que h alm delas, o oceano
vivenciado como um vazio, uma ameaa que parece mais sria por causa de sua falta
de especificidade.56 Por mais adequado e sugestivo que seja esse comentrio, o
vazio sem dvida multifuncional, sendo multicolorido, variando entre o preto, o
branco e o amarelo-dourado. Essas cores podem marcar o horrio do dia planetrio,
mas representam tambm tonalidades do transcendental, que resiste s
representaes: sua variabilidade encarna a oscilao entre os plos positivo e
negativo que define em si uma transcendncia de tudo o que h entre eles (num certo
56
HYMAN, Timothy. Solaris, in Film Quarterly n. 29, v. 3, primavera de 1976, p. 55-6.
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sentido, da diversidade de cores terrestres; curiosamente, Tarkovski evita a
alternncia entre azul e vermelho do romance de Stanislaw Lem). A associao fica
mais bvia no caso da escotilha iluminada por uma luz dourada que ecoa e avana do
nvel do subconsciente para o da conscincia, com os crculos dourados menores
envolvendo as cabeas da Trindade colocadas de maneira discreta na reproduo de
Andrei Rublev ao fundo do quarto de Kris.
Dentro da lgica onrica da obra, essa exaltao uma descondensao,
enquanto a repetio em vrias escalas encarna a infinita reprodutividade
reencarnante do trabalho onrico do prprio planeta. (Lembremos como o relatrio de
Berton descrevia a reproduo de um beb de dimenses monstruosas e gigantescas.)
Embora a escotilha branca possa parecer simplesmente positiva, a descrio da morte
de Hari como luz branca e vento lhe confere a ambiguidade de uma conjugao
parcial do suicdio dela. Mais ambiciosa a escotilha preta, que evoca o Crculo
Negro da srie cones modernistas de formas geomtricas pretas de Kasimir
Malevich. Essa srie teve incio com seu Quadrado preto de 1915, imagem
emblemtica do movimento Suprematista, que ele pendurou no canto superior de um
cmodo, local tradicionalmente reservado para um cone. Alguns dos comentrios de
Malevich ressoam com fora especial nas noes de fico cientfica que Tarkovski
ativa e revisa. Meu novo quadro, afirmou Malevich, no pertence exclusivamente
terra. A terra foi abandonada como uma casa roda por vermes. E, na verdade, no
homem e na sua conscincia existe uma aspirao rumo ao espao, a inclinao a
rejeitar o globo terrestre.57 Assim, Tarkovski se torna um anti-Malevich, ao
mesmo tempo recordando e revogando seu projeto ao reter o cone negro,
preenchendo-o com imagens da Terra e da casa, e dissolvendo a oposio de
Malevich entre Terra e espao.
Essa dissoluo atinge seu auge durante a explorao que a cmera faz da
imagem-chave da obra: Caadores na neve, de Pieter Brueghel. Dada a alternncia
no filme entre colorido e monocromtico, no surpreende que essa imagem
privilegiada se equilibre entre ambos, sua reconciliao entre diferentes regimes de
percepo prefigurando uma das distintas ordens de ser. O papel-chave
57
DANTO, Arthur. Unnatural wonders: Essays from the gap between art and life. Nova York: Farrar,
Straus and Giroux, 2005, p. 257.
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desempenhado pela pintura de Brueghel nos permite especular que a escassez de
pelcula colorida Kodak na Unio Sovitica, apontada por Richard Misek, pode at
ter sido o libi do diretor para o uso dos dois tipos de filme, condizendo com
intenes descritas numa entrevista de 1966, e no a causa pragmtica dessa
abordagem, sugesto que Misek inicialmente favorece mas, em seguida, complica.58
A contemplao dessa imagem por parte de Hari desperta nela a percepo do que
significa estar na Terra, a qual ela penetra por meio das formas visualmente
simplificadas e despojadas de uma paisagem invernal. (Simbolicamente, isso
tambm uma entrada na emoo a partir daquele que , para ela, o ponto mais
acessvel, aquele marcado como frio" no continuum, significando a proximidade
com a no-existncia, conforme ela adentra nos limiares da humanidade no seu grau
zero perto tambm de onde o prprio Kris retratado emocionalmente.) A cena
tambm prenuncia o final ambguo, quando Kris pode estar realmente no planeta ou
no, pode estar em casa ou no, conforme a imperfeita recriao por parte do planeta
das imagens terrenas descobertas na conscincia de Kris tambm reconcilia filme e
pintura ao reencenar O retorno do filho prdigo, de Rembrandt, como reunificao
entre Kris e seu pai. Alm disso, suas rvores escuras ecoam aquelas que emolduram
a carreira de Tarkovski, comeando com A infncia de Ivan (Ivanovo detstvo, 1962)
e terminando com O sacrifcio, enquanto a perspectiva de Brueghel, postada atrs
dos caadores, indica sua preocupao com as cabeas afastadas em sinal de
resistncia espiritual, teimosamente absortas em si mesmas e misteriosas. Conforme
Hari contempla essa imagem, percorrendo-a com o olhar de uma maneira que
corresponde de seu corpo, flutuando pela biblioteca com Kris no perodo sem
gravidade que se segue imediatamente cena, ela comea a associar as cenas
nevadas do filme caseiro de Kris a uma vida mais ampla. As fuses contnuas
sugerem diferenas coexistentes, e mesmo uma dialtica dentro de um plano
imagtico incubando o salto qualitativo que o associa ao filme caseiro. Pintura e
cinema, imagem e narrativa, estase e fluxo tambm so reconciliados, conforme as
fuses da sequncia geram histria e sucesso a partir da simultaneidade da pintura.
A imagem poderia ser definida como uma materializao dentro de uma escotilha
58
MISEK, Richard. Last of the Kodak: Andrei Tarkovskys struggle with colour. In EVERETT, Wendy (org.). Questions of colour in cinema: from paintbrush to pixel. Berna: Peter Lang, 2007, p. 167-68.
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traindo a afirmao de Snauth segundo a qual a biblioteca no teria janelas e seu
status de preenchimento do vazio enfatizado por sua recorrncia na tela de TV
desligada no sonho de Kris, como um sonho dentro do sonho projetado naquilo
que o psicanalista Bertram Lewin chamaria de tela onrica. (O fato de tais telas
onricas serem associadas ao sono infantil e consideradas smbolo da me ou do
seio59 faz delas uma imagem virtualmente mise en abyme do sonho da me no qual
ela aparece.) Enquanto isso, dentro do sonho, encontra-se um sonho-imagem que
ainda no se expandiu numa identidade plena com a tela na qual ele projetado. A
colocao de uma margem entre a borda da TV e a da pintura combina com a
tendncia de alguns cineastas que comeam a empregar a cor de maneira expressiva,
como Tarkovski faz aqui e como Hitchcock fez em Um corpo que cai, na tentativa de
dramatizar uma capacidade de separao entre superfcie e profundidade, a possvel
duplicidade ou substituio de uma realidade cujo cdigo de cores poderia ter sido
igualmente diferente. Esses dois filmes ecoam um ao outro de outras maneiras,
claro, pois ambos entrelaam memria, luto e a fetichizao de uma mulher numa
verso quase freudiana da viagem no tempo: a fetichizao como recuperao
fantstica do momento pr-traumtico, congelando o segundo ponteiro do relgio
numa repetio trmula e obsessiva. (No surpreende que Cavell descreva o filme de
Hitchcock em termos da futuridade que ele compartilha com a fico cientfica, e
tampouco que seja um filme-chave para a fico cientfica filosfica de Sem sol, de
Chris Marker.)
A contemplao de Caadores na neve por parte de Hari precede
imediatamente o perodo da ausncia de peso. Quando este comea, e o corpo dela se
ergue no ar, um vitral multicolorido se torna visvel logo atrs da cabea dela,
esquerda, enquanto o espao direita dela inclui uma parte azul (a camisa de Kris) e
outra verde (abaixo da reproduo de Bruegel).60
como se o elo estabelecido por
Hari entre os pretos e brancos que predominam no quadro e o filme caseiro da
infncia de Kris permitisse ento que ela associasse o fogo do quadro ao do filme, e
sua recapitulao ontogentica da sequncia filogentica do surgimento dos nomes
59
MOORE, Burness E.; FINE, Bernard D. (orgs.). Psychoanalytic terms and concepts. New Haven/
Londres: American Psychoanalytic Association/ Yale University Press, 1990, p. 58. 60
http://www.youtube.com/watch?v=FcglyhUre4w
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das cores conduzindo-a, e o filme, a uma gama mais ampla de cores, bem como ao
eros sugerido pela ausncia de peso. Isso ocorre com gentileza e discrio, conforme
manchas de branco se misturam aos vermelhos e azuis do vitral, abafando-os, e as
partes de azul e verde so sobrepostas por um espao mais sombreado, marrom-preto
no geral. O desenvolvimento de Hari at o xtase traa uma evoluo, evocando a
deliberada abjurao de Tarkovski em relao proximidade eisensteiniana entre
revoluo e xtase.
Se Caadores na neve representa o ncleo temtico de Solaris, isso ocorre
porque sua temtica invernal o compromete igualmente com o colorido e o
monocromtico, suspendendo a distino entre duas pticas flmicas que precisam se
fundir para que Hari, a emissria do planeta a Kris, possa alcanar a humanidade, e
para que Kris tambm o faa. A contemplao desse quadro por parte de Hari
prefigura uma possvel fuso entre colorido e monocromtico cuja realidade e
no-realidade simultneas so marcadas pela flutuao dela e de Kris
imediatamente depois, um momento dialtico de metfora exttica e rendio efetiva
da perda de gravidade na estao espacial. Dependente de uma suspenso de opostos,
esta possibilidade entra em colapso no subsequente sonho febril de Kris, que tem a
primeira metade colorida, mas cujo restante em preto e branco.
A primeira parte desse sonho apresenta mltiplas imagens de Hari circulando
vertiginosamente num cmodo bem iluminado ao redor da cama de Kris, alternando-
se com uma imagem da me dele quando jovem, e a segunda parte mostra Kris e sua
me sozinhos na casa da famlia. Se a primeira metade desse sonho carregada,
colorida e muda, a segunda metade, ao contrrio, monocromtica e preenchida com
o dilogo contnuo entre Kris e sua me. A ausncia de Hari na segunda metade do
sonho indica um afastamento da indizvel e no-dita contaminao anterior da
imagem da me com o libidinal, durante a qual esposa e me se tornaram
intercambiveis. Assim como o advento da linguagem distancia o processo primrio,
o monocromtico priva a imagem de sua sensualidade. Na medida em que constitui
um momento de negao, ela reprisa a rejeio anterior de Hari por Kris. Entretanto,
nessa ocasio a negao de Hari envolve tambm sua remoo: quando Kris diz que
no consegue reconhecer o rosto da me, ele ecoa um comentrio anterior feito por
Hari envolvendo a viso do prprio rosto, tornando a viso da me passvel de ser
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lida como forma de reconhecimento da prpria Hari por si mesma. Alm disso, a
possibilidade de identificao secreta da me com Hari e o status da segunda como
continuao da primeira por outros meios trada quando ela tambm contempla
Caadores na neve, como faz Hari. O eco das palavras de Hari dentro das de Kris
mede a fora de sua contnua presena dentro dele: afinal, o planeta a tinha destilado
a partir de uma varredura do crebro dele. como se, no fundo, ele se identificasse
com ela, o que permite que diga agora eu a amo, e que os dois se tornem uma
mesma carne. Mas, ao mesmo tempo, o sonho parece intuir a morte de Hari, que
ocorre num ponto no definido do seu andamento. O incio do trecho monocromtico
e o desaparecimento da imagem dela podem registrar num nvel subconsciente o
momento de sua destruio real. Se ela persiste e ressuscitada novamente, desta vez
isso ocorre de maneira invisvel, dentro dos corpos da me e do prprio Kris.
Se Hari consiste em uma dupla viso, suspensa entre humanidade e o no-
humano, os matizes de Caadores na neve com status principal a seus olhos no
sero do preto e branco, atados um ao outro num par binrio, e sim da cor que
Richard Rodriguez descreveu como inerentemente dupla, essencialmente impura: o
marrom, que transborda da linha reta, impossvel de absorver a linha que separa o
preto do branco, por exemplo. O marrom confunde. uma cor que se forma no
limiar da contradio (a capacidade da linguagem de expressar duas ou mais coisas
ao mesmo tempo, a capacidade dos corpos de vivenciar duas ou mais coisas de uma
vez).61 A clusula final particularmente prxima da experincia de Hari: a
experincia de Rodriguez enquanto hispnico (sua auto-designao preferida) pode
valer para a de outro aliengena tolerado. Alm disso, se na medida em que so as
primeiras a serem nomeadas na maioria dos idiomas preto, branco e vermelho
constituem as trs cores primevas e no primrias, claro , o marrom faz a
mediao entre regimes vistos ou classificados como monocromticos e aqueles das
cores que se distribuem como a cauda de um pavo por todo o espectro, que
imaginamos serem cores verdadeiras no aparentemente tautolgico sentido das
mais coloridas. O marrom, cor dos galhos, conduz naturalmente cor alimentada
por ele e por eles: o vermelho do fogo no filme caseiro da infncia de Kris, que ela
61
RODRIGUEZ, Richard. Brown: the last discovery of America. Nova York/ Londres: Penguin, 2002, p. xi.
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associa com o de Caadores na neve. O vermelho que emerge do marrom estabelece
um elo primitivo: a fasca saltitante cujo papel na evoluo de Hari se compara ao do
fogo para a cultura humana (como nos mapas do cru e cozido de Lvi-Strauss, ou
no mito de Prometeu).
A dupla viso de Hari est ao mesmo tempo relacionada bissexualidade de
Tarkovski62
e sua conscincia da censura (e sua quase inevitvel cria, a autocensura).
O elo entre a bissexualidade e a conscincia da censura pode ser feito por meio de
outras reflexes de Rodriguez envolvendo o marrom: minha vantagem (minha
simpatia em relao ao marrom e ao plano bifocal) decorre do fato de, desde tenra
idade, eu viver a necessidade de aprender a cautela, a desviar os olhos, a guardar as
palavras, a me separar de mim mesmo. Ou a me reconstruir de alguma maneira
excntrica.63 Tal reconstruo necessria a Kris Kelvin, e Hari o presente do
planeta seu instrumento. Marido e mulher se tornam realmente a mesma carne,
vendo com pelo menos dois pares de olhos. Na medida em que a bissexualidade
envolve a identificao com a me, Kris est grvido com Hari. E porque essa
gravidez apenas metafrica, seu aborto ocorre to facilmente.
Tarkovski vivenciava as cenas coloridas como de uma falsidade monstruosa e
inacreditvel, especulando que a explicao s pode ser a de que, reproduzida
mecanicamente, a cor carece do toque da mo do artista. Assim, ele argumentava
que seu efeito deveria ser neutralizado por meio da alternncia entre sequncias
coloridas e monocromticas, de modo que a impresso resultante do espectro
completo seja espaada, diluda.64 Em seu cuidadoso estudo de Tarkovski, Vida
Johnson e Graham Petrie o descrevem com algum que trabalha dentro de um
escopo deliberadamente limitado em cada filme, raramente avanando alm dos tons
abafados de marrom, verde, azul, amarelo e cinza, ao mesmo tempo usando preto e
branco como cores em si.65 Observando que parece no haver um sistema claro
regendo a alternncia entre colorido e monocromtico, eles a declaram aleatria,
chegando a atribu-la s vezes a uma escassez de pelcula colorida de boa
62
Cf. JOHNSON, Vida T.; PETRIE, Graham. The films of Andrei Tarkovsky: a visual fugue. Bloomington/
Indiana: Indiana University Press, 1994, p. 17. 63
RODRIGUEZ. Op. cit., p. 206. 64
TARKOVSKI, Andrei. Sculpting in time. Nova York: Knopf, 1987, p. 138. Verso em portugus:
Esculpir o tempo. So Paulo: Martins Fontes, 2010. 65
JOHNSON; PETRIE. Op. cit., p. 189.
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qualidade.66 Mas, para alm da lgica por trs desses movimentos, seu efeito no
espectador e as possveis relaes entre esse efeito e a temtica do filme exigem
considerao. Um bom exemplo disso ocorre na primeira sequncia de Solaris que
continuamente caracterizada por esse aspecto indecifrvel: o passeio de carro de
Berton pela cidade do futuro. Acompanhada por uma trilha sonora eletrnica que
indica ao mesmo tempo o rudo incessante do trfego e o barulho da decolagem de
um foguete, essa sequncia tem como foco principal a estrada diante de Berton.
Breves conjuntos de imagens de Berton mais tarde, ao lado do filho se intercalam
na sequncia, aparecendo em preto e branco. A sequncia tem incio em preto e
branco, mas depois ganha cores, antes de voltar ao preto e branco e finalmente
concluir com imagens coloridas. Os espectadores talvez se perguntem por que o
surgimento de um txi vermelho no lado direito da tela teria motivado a primeira
mudana, j que o vermelho declara uma presena de cor que no chega a ser
perturbadora, estrada e carro so montonos e monocromticos, e o carro passa
repetidamente por tneis e viadutos. Posteriormente, ocorre nova transio para o
preto e branco, mostrando Berton e o filho, antes de um retorno final cor num
crescendo noturno de mltiplos carros, cujas luzes traseiras vermelhas fluem entre
edifcios decorados com non. O corte que rompe com a cacofnica autopista
seguido por uma imagem silenciosa do ambiente rural que precedera a sequncia,
mas desta vez em preto e branco, e no em cores.
Um efeito dessas imagens ininterruptas da autopista enfatizar que at sua cor
montona, repelente. A contnua sugesto aural do trfego e da decolagem combina
a monotonia e o significado ambguos, produzindo um vazio ilegvel. Podemos nos
surpreender com o fato de o corte final no intensificar ainda mais a crescente
sensao de alienao em relao Terra ao projetar-nos para o espao sideral, em
vez disso mostrando-nos a calma do interior. Apesar do alvio de um ambiente rural,
este mostrado sob nova luz. Num certo nvel, sua apario monocromtica
corresponde ao esvaziamento da vibrao por parte do mundo diante do qual o
ambiente rural parecera um osis: nossos sentidos, atacados, continuam zumbindo.
Em outro nvel, ao mesmo tempo, o corte prepara os espectadores para a
66
Ibid., p. 190.
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possibilidade de uma sobreposio da viso deslocada e tecnologizada imagem do
lar, possibilidade tornada real pela concluso da obra. (Uma fuso semelhante entre
estar em casa e deslocamento caracteriza a observao de Hari diante de
Caadores na neve, cujas imagens dissolventes sero ligadas a dissonncias
eletrnicas). A alternncia entre monocromtico e colorido na autopista pode
demonstrar o carter opressivo da experincia tecnologizada, mas, num aspecto mais
positivo, ela tambm participa da desestabilizao na obra das distines entre
realidade e sonho, interior e exterior. O sequenciamento de uma monotonia hipntica
em diferentes tipos de pelcula pode levar os espectadores a indagarem o que esto
vendo afinal, j que as diferenas parecem no trazer significado.
Retrospectivamente, podem duvidar da confiabilidade de suas memrias, sem saber o
que era colorido e o que era monocromtico. A natureza da memria um tema-
chave em Solaris, claro, pois os convidados dos cosmonautas so a
materializao de suas lembranas. A prpria durao da obra sublinha a dificuldade
de recordar, pois poucos espectadores conseguem reter todos os seus elementos e
registrar na primeira exibio as mltiplas interconexes entre eles. (Nesse aspecto, a
arte religiosa de Tarkovski tambm modernista.) Ainda mais importante o papel
desempenhado pela sequncia na evocao que Tarkovski faz de uma humanidade
despersonalizada na frgil fronteira inabitvel do seu mundo.
A vida como uma redoma de vidro multicolorida: Luz silenciosa
Se Luz silenciosa (Stellet licht, 2007), de Carlos Reygadas, pode ser descrito
como mstico, isto no decorre apenas de sua dvida com A palavra (Ordet, 1955), de
Carl Dreyer, cujos interiores presbiterianos e brancos retornam aqui como sendo os
da comunidade menonita mexicana, enquanto o branco da cena da ressurreio de
Dreyer volta a encantar como citao. Talvez mais importante seja o fato desse
evento ser descrito como impossvel por um de seus personagens (Marianne, objeto
do amor adltero de Johan, o protagonista), embora ela tambm faa parte de um
sistema cristo de crenas com base na ressurreio: o retrocesso do tempo (a volta
ao den buscada por Aronofsky?). como se a ressurreio que ocorre aqui
representasse uma resposta csmica tanto ao desejo de Esther, enquanto esta fica ao
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lado de Johan no carro pouco antes de morrer, de que tudo no passasse de um
pesadelo, quanto ao desejo do prprio Johan de recuperar um passado inocente. Os
personagens de Reygadas podem ser cristos, mas sua prpria posio mais
espiritual do que religiosa, e mais individualista do que comunitria ou alinhada a
algum credo. Portanto, no surpreende que seu ttulo traga ao primeiro plano aquele
elemento mstico central para tantas religies, a luz. O interesse de Reygadas est no
sagrado. Na nica ocasio em que a palavra usada, o amigo de Johan, Zacaras,
afirma que seus sentimentos por Marianne podem ter origem sagrada. Mais tarde,
quando seu pai os descreve como vindos do Inimigo, o prprio Johan declara, Acho
que isso obra de Deus. O interesse de Reygadas em filmar interiores usando um
prisma que ao mesmo tempo revela a realidade interior e reflete a exterior indica uma
fantasmagrica dupla exposio, na qual cada realidade material simultaneamente
imaterial e isso, por sua vez, lembra Tarkovski. No surpreende que esse sacrum
seja ambguo, e seu misticismo no se limita a aspirar a uma luz distante, abraando
tambm suas emanaes coloridas, seu viscoso encontro com a materialidade dos
corpos transpirantes. No se trata apenas do Um supra-sensual, mas tambm do
cotidiano sensual: no apenas a irradiao branca da eternidade de Shelley, mas a
redoma de vidro multicolorida que ele chama de vida, e descreve como tingindo
essa irradiao.
Assim, a preocupao de Reygadas no envolve apenas a luz que brilha por
inspiradores seis minutos, como no Gnesis, no incio do filme, perdendo fora ao
fim deste, como se buscando descriar os tropeos do dia medidos por sua passagem
solar: envolve tambm os epifenmenos da luz, a fasca que esta emite. A cmera se
abre para essas emanaes sempre que filma diretamente o sol, o qual envia esferas
translcidas coloridas flutuando atravs da objetiva, luzes que se chocam contra ela,
como uma onda convertendo-se em espuma (as partculas que representam a outra
identidade da luz). Esses efeitos de reflexo dentro da objetiva so particularmente
perturbadores em duas ocasies do misticismo primordial, uma sacro-profana, e a
outra mais obviamente sagrada: quando Johan beija Marianne, e o sol brilha de trs
deles, incidindo diretamente na objetiva; e logo aps a ressurreio de Esther, esposa
de Johan, derrubada na chuva por um ataque cardaco ao saber da contnua
infidelidade de Johan. Em cada caso, o evento parece ser causado por um beijo
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(Johan e Marianne se beijam; Marianne beija os lbios do cadver de Esther). As
esferas de cor vermelha e laranja flutuando por um trigal nesses momentos indicam
verses benignas da malfica bola de fogo de O sol enganador (Utomlyonnye
solntsem, 1994), de Nikita Mikhalkov. Independentemente disso, a dvida primria
de Reygadas para com os russos com Tarkovski: se o tema do retrocesso ou at da
interrupo do tempo remete a O sacrifcio (no comeo, Johan segura o pndulo do
relgio na cozinha da famlia), ainda mais tarkovskiano o equilbrio entre um
misticismo transfigurado em luz como fogo e outro em gua. Aquilo atravs do que
olhamos ao mesmo tempo uma lente de cmera e um olho embaado pelas lgrimas
derramadas pelos trs protagonistas: essa lente no reflete a luz sob a forma de
esferas e raios de variadas tonalidades, dissolvendo em vez disso. A gua tambm
vela os objetos de maneira congruente com o interesse de Reygadas em mostrar as
pessoas e os objetos fora de foco em determinado caso filmando longamente uma
flor roxa enquanto Johan e Esther se banham fora de quadro, embora posteriormente
ela aparea com clareza. como se, numa outra manifestao de misticismo, os
objetos sejam com isto abstrados, perdendo sua forma e assumindo uma identidade
kandinskiana como cor pura. Mesmo quando o sol no est brilhando, h foras
misteriosas em ao, libertando as cores do ponto de sua primeira localizao, numa
infidelidade primordial.
O espao dominado pela luz branca perto do fim do filme, o espao branco da
ressurreio, pode ser descrito da mesma maneira com que Gilles Deleuze
caracteriza a abstrao lrica de Dreyer, em palavras talvez inspiradas por A
palavra, embora isso no seja mencionado explicitamente: assim que essa luz
alcanada, ela nos devolve tudo. Devolve-nos o branco, mas um branco que no mais
confina a luz. Devolve-nos o preto, um preto que no mais a ausncia de luz.
Devolve-nos at o cinza, que no mais incerteza nem indiferena.67 A enigmtica
referncia de Deleuze a um branco que no mais confina a luz pode ser esclarecida
pelo uso que Dreyer faz da superexposio na cena da ressurreio para borrar os
limites das janelas atravs das quais a luz entra. O prprio Reygadas comenta: a
beleza no meu filme o prprio sol. () Tambm gosto da luz branca que ela v ao
67
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: the movement-image. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1986,
p. 117. Verso em portugus: Cinema I: a imagem-movimento. So Paulo: Brasiliense, 2011.
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acordar. Branco puro. Usamos lentes especiais para conseguir este efeito.68 A
dissoluo da moldura da janela no filme de Dreyer (e, no de Reygadas, do mundo
exterior visvel como um espectro atravs dela) pode ser um sinal do mstico, no qual
objetos no mais habitam o domnio da correspondncia, do mensurvel. Em outras
palavras (as de Deleuze), ns passamos, imediatamente, de um espao para o outro,
do espao fsico para o espao espiritual que nos restaura uma fsica (ou uma
metafsica). O primeiro lugar fechado, como uma cela, mas o segundo no
diferente, sendo o mesmo na medida que meramente descobriu a abertura espiritual
que supera todas as suas obrigaes formais e limitaes materiais.69 Como a
palavra abertura" e a meno da luz deixam claro, o papel-chave de algo material
que d acesso ao espiritual pertence janela. Quando Marianne se inclina sobre
Esther para dar-lhe o beijo aps o qual esta acorda, a nica coisa visvel na janela
atrs de Marianne uma luz branca de intenso brilho.
A aluso de Reygadas a A palavra contradiz o filme colorido num
monocromtico que encarna de maneira tangvel os contrastes dentro do ser,
ancorando a necessidade da escolha existencial. Seu prprio filme parece ter sido
submetido aos raios X para revelar o filme de Dreyer subjacente. E, como afirma
Deleuze com acerto, aqui o espao no mais determinado, ele se tornou o espao
qualquer que idntico ao poder do esprito. Para Deleuze, esse poder sinnimo
da deciso espiritual perpetuamente renovada;70 e embora a impessoalidade da
elaborao desse raciocnio torne o evento mais difcil de ser assimilado diretamente
na tradio existencialista crist individualista, como Deleuze busca fazer, a
impessoalidade se enquadra na ideia de um esprito que para usar o subttulo de
outra obra dessa tradio, Um condenado morte escapou (Un condamn mort
sest chapp, 1956), de Bresson de fato um vento que os humanos no sabem
de onde vem nem para onde vai (Joo 3.8). (Um vento desse tipo, ou respirao
amplificada o ruach hebraico significa ambas as coisas , ouvido quando Esther
volta vida.) Reygadas, no entanto, vai um passo alm de Dreyer, indicando que a
68
BADT, Karin Luisa. Silent light or absolute miracle: an interview with Carlos Reygadas at Cannes 2007, in Bright Lights Film Journal n. 57, agosto de 2007. Disponvel em: . Acesso em: 26 de maio de 2009. 69
DELEUZE. Op. cit., p. 117. 70
Ibid.
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ressurreio envolve um retrocesso do tempo que exige logicamente o desfazer de
um dia inteiramente entregue adltera incerteza. A restaurao a respeito da qual
Deleuze escreve de fato exige isso do escuro, que, lido de maneira realista, pode ser
apenas o raiar do dia, mas, no recm revelado domnio espiritual, reverte o alvorecer
que abre o filme, restaurando a poca anterior ao seu incio. No corao do sacrum
cclico e ambguo do filme, o branco regenerativo evoca uma escurido generativa.
Cromofobia?: Narciso negro
Ligado ao gelo e perfeio, o branco raramente imaginado como algo em
movimento. Perfeito e frio, mais comumente o destino em cuja direo outros se
movem, um polo magntico, como as vestes brancas dos santos glorificados no Livro
do Apocalipse, ou o ponto imvel do mundo em rotao de T. S. Eliot. (Como
indicaram os dois filmes analisados anteriormente, a preocupao com o
monocromtico e a preocupao com a transcendncia costumam acompanhar uma a
outra.) Um movimento do branco a sua fragmentao, como ocorre com o gelo ao
final de A Me. Mas, em Narciso negro (Black narcissus, 1947), de Michael Powell
e Emeric Pressburger, o branco sempre mvel, agitado por um vento que pode ser
aquele que sopra continuamente nas alturas do Himalaia ou o efeito da paixo da
freira que corre (sua mobilidade remete da donna mobile). Se para So Pedro ser
jogado para l e para c indica infncia na f, ironicamente, esta qualidade torna as
freiras que buscam fundar um convento da Santa F mais infantis do que os povos
indgenas que elas mesmas chamam de crianas. O vento ininterrupto o movimento
que, no fim, transforma o estado das freiras, com seus hbitos brancos, no sentido da
cor, como aspirao ou memria. Indica o fracasso em fazer as coisas ficarem em
seus lugares no fim, a relutncia da cultura ocidental em reconhecer seus limites,
at ser obrigada a faz-lo e partir e vai culminar no aparecimento de uma cor antes
proibida no rosto de algum que fora freira: o vermelho aplicado aos lbios pela Irm
Ruth sublinha as implicaes de sua deciso de no renovar os votos. Ao mesmo
tempo, ela descobriu o cabelo vermelho que a torna parecida com uma das damas do
palcio pintadas nas paredes a sequncia entrecortada pela imagem de uma delas.
O batom vermelho indica seu cabelo ruivo e vestido escarlate concentrados numa
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essncia. Ao passar o batom ela se torna a dubl renegada da Irm Clodagh, sentada
diante dela enquanto esta se maquia: ambas ligadas por outra cor, o verde (Ruth por
causa do elo entre o verde e a inveja ou cime, e Clodagh por causa da caracterizao
tipicamente irlandesa e as esmeraldas da Ilha Esmeralda que ela teria usado ao se
casar). A fora da diferena entre verde e vermelho indica a da abjurao. Para Ruth,
trata-se da viso totalmente formada da loucura do pesar acumulando-se em Coldagh
ao se lembrar do amor perdido. Ao passar o batom, a fora que Ruth deseja que
aquilo tenha indicada pela caixinha de maquiagem redonda e igualmente vermelha
que ela usa para acompanhar a aplicao. Uma oposio entre cores reforada e
intensificada por uma das formas abstratas: Ruth segura o vermelho e o circular,
enquanto Coldagh segura as costas de um livro preto cuja forma retangular nega o
sensual.
O vermelho marca Ruth desde o comeo, com o sangue de uma mulher doente
manchando seu hbito branco quando ela entra subitamente numa das primeiras
conferncias entre Coldagh, as demais freiras e o Sr. Dean, o ingls que elas sem
dvida descreveriam como algum que passou a viver como os selvagens. Mas,
embora Dean rejeite os avanos dos lbios vermelhos de Ruth no final, torna-se
clara sua atrao por Coldagh , a loucura no est toda do lado de Ruth. Quando ela
o repreende por amar Coldagh, ele responde, no amo ningum. A difuso do
vermelho na tela nesse momento se combina com a qualidade inesperada desse
rompante para indicar que a extravagncia emocional tanto dele quanto dela; que
ambos so marcados por um distrbio para o qual Ruth serve como bode expiatrio
ao final, num certo sentido. Os trs protagonistas so prejudicados e somente o
esforo da vontade conhecido como lbio superior imvel salva os dois do colapso.
A prpria Coldagh chega perto do colapso quando, sozinha na capela, quase desaba
sob o estresse do desaparecimento de Ruth. Se o vento que sopra contra o hbito
branco parecia querer agit-lo at faz-lo revelar as cores que o branco contm, essa
possibilidade se torna virtualmente real quando ouvimos o crescendo de um coro de
vozes enquanto Coldagh se pe de p, resistindo presso da luz ambiente que pinta
parte do seu hbito de azul e, em seguida, de verde. H algo na atmosfera que faz
tudo parecer exagerado, dissera Dean, evocando o esprito do lugar. Esse algo sem
dvida a nfase dada experincia que conhecemos como cor. Ainda assim, o
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