Catalogo Carlos Zílio: Paisagens 1974 > 1978

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Catálogo da exposição Carlos Zílio: Paisagens 1974 > 1978. Galeria Cândido Portinari, Campus Maracanã, UERJ. Set, 2011

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27 setembro a 21 outubro 2011segunda a sexta, 9h às 20h

Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (2011-2012)Departamento Cultural, Galeria Cândido Portinari, UERJRua São Francisco Xavier 524 . Maracanã . Rio de Janeiro RJ

curadoria Sheila Cabo Geraldo e Luiz Cláudio da Costa

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A Galeria Cândido Portinari é espaço privilegiado de difusão das artes reconhecendo – nas mais variadas linguagens – valores que distinguem cada uma delas como instância legitimada, e le-gitimadora da arte.

Nesse sentido, constitui-se em importante instrumento de democartização das práticas institucionais que, sem criar hierarquizações entre saberes e fazeres distintos, oferece opor-tunidades iguais àqueles que têm nas artes matéria-prima de expressão de projetos, anseios, verdades.

Por meio desta galeria, a UERJ dá visibilidade a artistas de diversos campos, ao abrir espaço para a exposição de conceitos como: erudito, popular, contemporâneo, moderno, expressões individuais e coletivas. Linguagens como: desenho, pintura, escultura, instalação, vídeo e perfor-mance que proporcionam ao público multiplicidade de gestos, olhares, percepções.

São oportunidades que, se por um lado únicas, por outro se constituem, no conjunto, em uma mesma totalidade, pois se relacionam num mesmo contexto, se comunicam, influenciam, renovam, dinamizam no diálogo, na troca de experiências. |

A Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, cujo objetivo principal é contribuir para o desenvolvimento da pesquisa em arte no país, promove como parte de seu 20o Encontro a exposição Carlos Zilio: paisagens 1974-1978 na Galeria Cândido Portinari.

Apresentando trabalhos da década de 1970, Carlos Zilio: paisagens 1974-1978, sob curadoria de Sheila Cabo Geraldo e Luiz Cláudio da Costa, pode constituir importante revelação para quem anda pensando as possibilidades de resistência.

Esperamos que a exposição possa contribuir com o 20o Encontro da Anpap, cujo tema é Subjetividades, utopias e fabulações, fortalecendo iniciativas fabuladoras e subjetivantes na arte contemporânea, o que não deixa de ser um desejo de concretizar as utopias várias e diversas. |

aPRESENTaÇÃO | Sheila Cabo Geraldo e Luiz Cláudio da Costa

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MÉMORIa e FaBULaÇÃO | Sheila Cabo Geraldo

É preciso furar a madeira onde é mais grossa.Friedrich Schlegel1

Fragmentos de paisagem consiste em vidro de cor mar-rom − como os usados nos laboratórios farmacêuti-cos − contendo pregos, lacrado e rotulado. Fez parte da exposição que Carlos Zilio apresentou na Galeria Luiz Buarque de Hollanda e Paulo Bittencourt, no Rio de Ja-neiro, em 1974, sua primeira mostra de trabalhos depois que deixou a prisão por ter participado da luta armada contra a ditadura militar no período 1969-70. Da exposi-ção, quase totalmente reapresentada agora, constavam ainda os seis desenhos em nanquim da série Paisagem, de 1974, uma série de pinturas sobre tela, a instalação Espaço-Vida e as fotografias Para um jovem de brilhante futuro, assim como a mala que gerou a performance fo-tografada. Toda a exposição girou em torno da constata-ção de impossibilidades, mas também de um conjunto

heterogêneo que engloba discursos de memória, crítica institucional, projetos de transformação da vida, o dito e o não dito, assim como o que se possa tecer entre eles, ou seja, um dispositivo que, como escreveram Deleuze e Guattari, leva a uma política de expressão.2

No sentido mais imediato, o vidro parece recolher o que teria restado da cena artística e política brasilei-ra. Os pregos agenciam redes simbólicas de vida em sua múltipla e contraditória condição: perigosamente perfurante, asseguradamente controlada, compulsiva-mente subjetivante. Recolhê-los como projeto de arte funcionou, assim, quase como um processo deleuziano de clínica.

Deleuze pensa a arte como questão de saúde, pois é um problema político da alma individual e coletiva. En-quanto clínica, o artista, um sonhador diurno e em bus-

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açadora distância entre homem e mundo natural, terí-amos agora que perguntar: o que seriam as paisagens desenhadas e pintadas por Zilio em uma época em que o mundo natural foi definitivamente submetido à cultura e, mais precisamente, à instrumentalização das relações em sociedade levando à planarização das subjetividades enquanto individualidades?8 A resposta pode ser vislum-brada de maneira quase exemplar no trabalho Para um jovem de brilhante futuro. A mala, que foi na década de 1970 um símbolo dos jovens executivos – que nos anos 80 serão conhecidos como yuppies – carrega em seu in-terior a mesma paisagem dos seis desenhos à nanquim: ordenação árida e desértica de uma série de pequenos pregos, registrando metaforicamente a crise do sujeito e a constatação de que nada restara na arte que pudesse ser identificado com a função salvadora da humanidade,

ca da expressão, produz a força capaz de agenciar uma forma de real.3

O vidro seria, então, um lugar real de salvaguarda e memória em tempo no qual a relação da arte com a vida, em processo de esgarçamento desde as vanguar-das modernas, daria as primeiras mostras de ruptura irreconstituível − sobretudo no Brasil, onde, mais do que espetacularização4 da arte, o aniquilamento da vida de-sarticulava o binômio.

A mostra, porém, não foi só um dispositivo de me-mória. Como escreveu Paulo Sergio Duarte,5 enquanto

“crítica da razão executiva”, levou ao que Zilio descreve como “sair do mutismo e do subjetivismo”,6 proporcio-nando intenso processo de estratégias de construção de sentido, tanto para sua vida quanto para a arte e o cir-cuito de arte entre nós.

A exposição Carlos Zilio: paisagem 1974-1978, que apresentamos agora, inclui, ainda, outros trabalhos, como as fotografias Atensão e Identidade Ignorada, de 1976, e uma série de desenhos de 1976 e 1977. Ao deno-minar essa mostra paisagem, palavra que aparece em vários trabalhos, Zilio nos aponta inicialmente para as interrogações sobre a atividade tradicional da arte, já que por muito tempo o termo foi usado para designar certo gênero de pintura.7 No transcorrer do uso, en-tretanto, de maneira ambígua, a palavra foi sendo em-pregada tanto para designar a representação pictórica como o próprio ambiente natural. O termo, no entanto, corresponde efetivamente não a uma realidade física, mas a uma imagem construída. Até a representação, ou até a construção das vedutas, não havia propriamente

como também não restaria nenhuma possibilidade de ligar a arte à vida.

Enquanto constructo, ou seja, enquanto uma ficção, a paisagem teria, como sugere Maria Angélica Melen-di,9 a enorme capacidade de alinhavar recordações, mas também de construir iluminações, o que torna a aproximação entre homem e natureza imprecisa, deri-vante, mas possível, como a vislumbrada por Baudelai-re10 para a poesia na moderna cidade de Paris: ocor-rendo nas brechas. A paisagem a que Zilio se refere, tanto no objeto-vidro (Fragmentos de paisagem) quanto nos desenhos (Paisagem, Paisagem com vestígio e Pai-sagem de memória) e sobretudo na citada série Paisa-gem, com desenhos em nanquim, delineia-se, assim, não apenas enquanto uma cartografia mnemônica do

contemplação do entorno, o que viria a acontecer com a prática do registro enquanto desenho e pintura. Mas um pintor de paisagens, como Canaletto, não só registrou topograficamente os canais de Veneza em magníficas pinturas, como também construiu uma cidade imaginá-ria e fantasiosa, o que se evidenciou quando na pintura Capricho com edifícios palladianos, em que dois edifícios projetados por Palladio e não construídos em Veneza – Palazzo Chiericati e Palazzo della Ragione – aparecem como parte do cenário do Canal Grande. A paisagem para Canaletto foi, assim, um entrelaçamento do obser-vado, da memória e da fantasia do pintor.

Se entre os pintores românticos, como Caspar Frie-drich, a paisagem, enquanto narrativa, se configuraria como uma afirmação do subjetivo na superação da ame-

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entorno artístico-cultural e político encontrado depois de passar dois anos preso, mas como desejo de ficção, que o artista chamou de “retomada com a vida”.11 Ali os trabalhos não correspondiam mais a uma utopia, mas à possibilidade de alcançar uma linha de transfor-mação através da expessão, que, segundo Deleuze,12 é possível como fabulação em situações históricas nas quais aparentemente não haveria possibilidade de tal transformação. Desde que se tornara, como disse,

“militante político organizado”,13 em 1969, sua produção em arte havia sido de alguma maneira interrompida. O próprio Zilio, contudo, se referiu a sua performance em ações armadas como uma espécie de “comportamento estético”, estendendo para a política o universo da arte. Fazer arte já não era, então, fazer objetos de arte, mas entender a potência que esses objetos, assim como o pensameto estético, carregam enquanto processo de transformação.14

Mesmo tendo voltado a desenhar e pintar no período da prisão, é a série de trabalhos apresentada naquela mostra de 1974, assim como na exposição do MAM, em 1975, que melhor reúne uma espécie de ação fabuladora responsável pela refundação da relação entre a vida e a ficção em um ato de arte, como uma narrativa simu-lante, o que foi especialmente concretizado no trabalho Espaço-Vida.

Se nos anos 60 Carlos Zilio havia participado de in-tensa movimentação cultural e artística, tendo exposto nas seminais mostras Opinião 66 e Nova Objetividade, de 1967 − que teve como lema “Da adversidade vive-mos”, como escreveu Hélio Oiticica no catálogo −, em 1974, depois de uma experiência traumática em que sua

vida esteve em alto risco, retomá-la só poderia ser re-tomar o binômio arte-vida que se configurou como jogo, mas um jogo de interrogações em que, apesar do desejo da reinvenção livre de si, os jogadores se apresentavam no limite entre o possível e o impossível, fosse da arte, fosse da vida.

Na trama de reflexões entretecida como rede entre a arte e a vida, os desenhos dos anos 1976 e 1977, em que ainda aparecem os pregos, mas também agulhas e lixas, ativam de maneira oscilante e múltipla a memória de anos precedentes e a vontade de transformação. Em Paisagem de memória, uma negra e adensada concen-tração de ásperas recordações constitui um retângulo de tal profundidade, que nos atira para um quase niilis-mo, assim como no trabalho Espaço-Vida. Neste, que se aproxima do conceito de non-site de Robert Smithson,15 uma placa de madeira branca ocupava o chão da galeria. Delimitado em sua superfície, com grossa linha preta, um retângulo-vida fechado. Dentro, os mesmos pregos jogados na ordem/desordem da instabilidade do artista, da arte, da cultura e da política.

Robert Smithson, ao descrever seu conceito de non-site explica que ‘entender a linguagem dos sites é apreciar a metáfora entre a construção sintática e o complexo de ideias’. Frederico de Morais, citando Carlos Zilio, diz que a exposição foi concebida como um “projeto de intervenção crítica no circuito de arte”.16 Se, porém, na instalação o retângulo da vida está fechado, nas te-las brancas em que são pintados desenhos-esquemas abrem-se infindáveis possibilidades, como as que Smi-thson chamou de ‘complexo de ideias’ em ‘construções sintáticas metafóricas’ e que identificamos como um

1 Schlegel, Friedrich. Fragmentos críticos: Lyceum [10] In. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. Tradução Marcio Su-zuki, p. 22.2 A potência política da arte como expressão corresponde a um agenciamento em que os atos de escrever, pensar, falar, como devir, se-riam emissões de corpos reais propulsores de transformação. É assim que os atos políticos fundamentais estariam para além das teorias de Estado e das doutrinas do consenso (De-leuze, Gilles; Guattari, Felix. Mil Platôs. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996).3 Deleuze, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janei-ro: Editora 34, 1997.4 Cf. Bürger, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.5 Duarte, Paulo Sergio. Crítica da razão executi-va. In Carlos Zilio. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Organização editorial de Paulo Venancio Filho.6 Zilio, Carlos. Apresentação da Exposição. Ga-

leria Luiz Buarque de Hollanda e Paulo Bitten-court. Rio de Janeiro, 1974.7 Cf. Cauquelin, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Matins Fontes, 2007.8 Guattari, Felix; Rolnik, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.9 Melendi, Maria Angélica. Entre jardins e pân-tanos: paisagens alteradas. In Paisagem: des-dobramentos e perspectivas contemporâneas. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2010.10 Benjamin, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Benjamin, Adorno, Horkheimer, Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Os Pensadores.11 Carlos Zilio. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Organização editorial de Paulo Venancio Filho, Catálogo. p. 40.12 Deleuze, Gilles. La imagen-tiempo: estúdios sobre cine 2. Barcelona/Buenos Aires/México: Ediciones Paidós, 1987.

processo de fabulação. ‘Se não desconstroem’ definiti-vamente o discurso do circuito, apontam para a metá-fora da possível sobrevivência da arte enquanto pensa-mento e transformação, assim como para a resistência da vida, enquanto experiência de liberação.

Segundo Rancière,17 com o fim do projeto utópico moderno passou-se a tentar novos modos de agir e pen-sar que apontassem para uma zona de indeterminação acionada pelo jogo, em que as experiências da vida e da

arte pudessem encontrar expressão. As quatro telas que agora são expostas carregam essa tentativa. De alguma maneira, refletem o retângulo do chão, mas como dis-cursos sobre a arte e sobre a vida, vez por outra abrem-

-se como espaços de transbordamento, frestas de resis-tência. O desnível do retângulo em que o número 2.489 corresponde a pessoas, e que tem a direção marcada pela seta ascendente, agencia exatamente esse possível lugar de expressão, uma paisagem em que seria possí-vel uma brecha para a arte e para a vida. |

13 Zilio, Carlos. Entrevista: Fernando Cocchia-rale. Paulo Sergio Duarte. Vanda Mangia Klabin e Maria Del Carmen Zilio. In: Carlos Zilio: arte e política. 1966-1976.14 Para Rancière, a condição dos objetos de arte é o devir, ou seja, não é em si, mas em transformação. Assim é que fazem parte de agenciamentos de mudanças sociais e políti-cas. Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org. Editora 34, 2005.15 Smithson, Robert. A Provisional Theory of Non-Sites. In Select Essays of Robert Smithson. http://www.robertsmithson.com/essays/provi-sional.htm. Consultado em 20/08/2011.16 Morais, Frederico. O cerco e o circuito. In. Carlo Zilio: arte e política. 1966-1976. Rio de Ja-neiro: MAM-Rio, 1996. Catálogo.17 Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org. Editora 34, 2005.

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Em Carlos Zilio: Paisagens 1974-1978 não vemos ne-nhuma representação da Terra ou da natureza, nem mesmo abstrata. Apenas signos, esquemas gráficos, sistemas de descrição. Há ainda materiais recolhidos: lixas, agulhas, pregos. A recusa de representar o mundo visível confronta-se com o desejo de descrever o espaço da vida e elaborar uma topografia dos afetos que pos-sam resistir e ressoar. Dos retângulos aos esquemas de coordenadas, das fotos aos artefatos pontiagudos, esses trabalhos constituem paisagens porque registram um território entre dois espaços, o da vida e o da arte. Desse ambiente intermediário recolhem-se os signos gerados na intimidade da troca.

Ainda que o medo e a dor apareçam como signo das paisagens expostas, essas em nada retomam a visuali-dade pictórica do imaginário sublime romântico. Paisa-gem aqui é antes conceito, e como tal podemos apro-

TOPOGRaFIaS da vIda | Luiz Cláudio da Costa, UERJ

ximá-la das vistas topográficas de terras ultramarinas que encontramos na pintura holandesa dos séculos XVI e XVII, arte relacionada mais com a descrição gráfica do que com a persuasão retórica da Renascença italiana.1 Para compreender o conceito de paisagem em Carlos Zilio: Paisagens 1974-1978 poderíamos aludir também aos fotógrafos norte-americanos da segunda metade do século XIX, como Timothy O’Sullivan ou William H. Jack-son, cujas descrições fizeram a fama de acidentes geo-lógicos de seu país, incluindo o Grand Canyon, ao utilizar não tanto a perspectiva, mas a grade cartográfica, na estruturação visual dos dados geológicos dos territórios visados.2 O conceito de paisagem nos trabalhos desta exposição pressupõe a prática descritiva dos cartógra-fos e dos topógrafos, que determina medidas de área, orientação e variação de acidentes geográficos. São, porém, os afetos, a memória e os mecanismos psicoló-gicos que se apresentam em gráficos de direção, movi-

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mento e alteração de sentidos nas paisagens de Carlos Zilio. Enquanto as vistas topográficas realizam a descri-ção física de determinado território, essas paisagens traçam as linhas do espaço distendido pelos afetos em sua relação com o mundo.

Falar em afetos do mundo não significa defender a ideia de obra de arte como expressão de um imaginário individual, tampouco a descrição aqui alude a represen-tações objetivas dos sistemas sociais. Trata-se de pen-sar uma zona de fronteira plena de contradições, hete-rogênea. Ainda que as obras aqui apresentadas tenham seus signos descritivos enunciados em dado momento da trajetória pessoal do artista, bem como da produção de arte e da história política do país, elas vibram na atu-alidade e dão a ver um espaço de modulação que faz variarem o individual e o social na arte, o opaco da tela e a transparência dos esquemas de representação como territórios reversíveis. As paisagens de Zilio operam re-versibilidades entre os materiais incorporados e os sis-temas de conhecimento, articulando a arte no ambiente das contradições. As legendas atuam viabilizando a co-municação rápida, e, enquanto operam a clarividência nos esquemas gráficos, as paisagens articulam a aspe-reza das lixas e o perigo da perfuração. A permeabilida-de entre os dados dos esquemas genéricos e a intimida-de dos afetos materiais faz-se pelo tenso contato dessas dimensões.

A argúcia crítico-conceitual de Carlos Zilio era já evi-dente em sua primeira individual, em 1975 na Galeria Luiz Buarque de Hollanda e Paulo Bittencourt. Dos vá-rios trabalhos aqui retomados daquela exposição, Frag-mentos de paisagem aprisiona pregos em um recipiente,

crítica do momento histórico da sociedade, bem como do circuito de arte.

A fotografia Atensão impõe nesta exposição certa lei-tura da ideia de paisagens como espaço e tempo sob tensão. Na mostra da Sala Experimental do MAM, o ar-tista manipulava certos procedimentos formais da mini-mal art norte-americana com o propósito de questionar processos internos à arte em visada mais conceitual do que minimalista. A compreensão da arte como sistema social cujos valores são impostos pelo mercado não impede que ela seja afirmada como espaço discursivo singular, em que os afetos se articulam para descrever o mundo mais ou menos distante sob a perspectiva da intimidade. Nas obras incluídas em Carlos Zilio: Paisa-gens 1974-1978, os esquemas do conhecimento – nú-meros, setas e legendas – impõem a clarividência das vistas topográficas dos geólogos: os números surgem como dados de um arquivo; as legendas, como explica-ções de mapas; as setas e os retângulos, como signos de grades e coordenadas que revelam um mundo que não vemos, porque distante e ausente. É a vida, entretanto, que está em questão – pessoas, corpos, subjetividades. É o medo que está registrado, a hesitação, as manifes-tações psicológicas. Em Quatro situações de vida, os grá-ficos descrevem coordenadas de três direções possíveis, como se colocassem a arriscada pergunta: que caminho seguir? Aqui a escolha aparece como tema fundamental da vida. Em outras telas da época, o espaço-vida abarca números, no interior de retângulos envolvidos por outros retângulos, de delineamento mais rude e escuro. Nes-sas telas com esquemas gráficos, uma legenda explica os signos. O que, porém, nos é solicitado, a partir des-sas poucas marcas, senão imaginar sentidos possíveis e

enquanto Espaço-Vida deixa-os soltos, ainda que enqua-drados em retângulo sobre a folha de eucatex encon-trada no chão do espaço expositivo − objetos destinados a fixar, em profusão os pregos concretizam o risco da perfuração, mas também o da imobilidade que os re-tângulos e os esquemas descritivos de coordenadas das telas parecem representar para o espaço da vida. Aten-são é o único aqui exposto que provém da individual do artista de 1976 na Sala Experimental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Elaborados com materiais de construção – tábuas, tijolos, cabos de aço, pedras –, aqueles trabalhos pareciam, todos, prestes a desabar. O sistema de arte e o momento histórico estavam critica-mente implicados no discurso escultórico de Zilio. As efêmeras obras apresentadas eram privadas do status de objeto de arte para o mercado posto que seriam des-feitas. Marcadas pela condição de desequilíbrio e ins-tabilidade, elas mobilizavam o espectador à observação

criar relações para o pequeno espaço vazio e a imensi-dão de pessoas envolvidas pelo medo?

A arte conceitual de Carlos Zilio nunca esteve dis-tante de uma perspectiva afetiva sobre o mundo. Desde o início de sua trajetória, nos idos dos anos 60, ele não visava à integração funcional construtivista da arte no ambiente social, mas ao acirramento das contradições desse mesmo ambiente, sempre buscando recolher a potência dos sentidos que nascem da intimidade com essa zona de conflito. Quando se relacionou com o sis-tema formal da Pop, sua produção assinalava a luta e a militância política. Da atividade política resultou o iso-lamento na prisão durante dois anos, entre 1970 e 1972. Libertado, o artista retomou seu trabalho, realizando o emblemático Para um jovem de brilhante futuro. A mala de pregos fixados em seu interior, acompanhada de um conjunto de oito fotografias do jovem executivo em si-tuações de trabalho ou na rua, reproduzia uma grade quadriculada. Estrutura exemplar da ambição moder-nista nas artes visuais da pintura cubista do pré-guerra na França, a grade reaparece na Rússia com Kazimir Malevitch, chega à Holanda na produção que vai do ne-oplasticismo de Theo van Doesburg a Mondrian. Nas artes visuais do início do século XX a grade anunciava o desejo de exclusividade e a hostilidade contra a lite-ratura, a narrativa, a palavra. É o que Rosalind Krauss reconhece como tarefa bem-sucedida: “A barreira que ela (a grade) ergueu entre as artes visuais e as da lin-guagem teve quase total sucesso em encerrar aquelas em campo exclusivo da visualidade, protegido do espaço da palavra”.3 Contra esse cerco do plano geométrico an-timimético e antirreal da suposta autonomia do campo da arte distante das dimensões do real é que Carlos Zilio

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alcançava os esquemas por volta de 1974: “Cheguei à ideia de código não por uma formulação teórica, mas por uma necessidade prática.”4 − necessidade aflorada na década anterior.

Nos anos 60 Zilio mostrava verve política que ab-dicava do projeto construtivo de estetizar a vida. Seu objetivo com a arte naquele momento era convocar o espectador. Lute (marmita) é significativo desse mo-mento. Após a prisão, o olhar crítico se mantém, mas o artista investe conceitualmente na problematização do aspecto institucional da arte, seus códigos de re-presentação, o lugar de exposição da obra, bem como o valor de mercado do objeto artístico. Desse modo, o propósito do uso da grade em Para um jovem de bri-lhante futuro estava longe dos interesses dos artis-tas do início do século XX. É o que se pode entender a partir da estrutura esquemática de suas paisagens em que o espaço da vida surge como projeções carto-gráficas. A grade e os esquemas de Carlos Zilio não formulam um espaço de autonomia para a arte. Ao contrário, visam tão somente a uma imagem do terri-tório da vida como lugar de conflito em suas relações entre a arte e o mundo, uma e outro com seus códigos e convenções. Suas paisagens descrevem o momento em que o mundo atinge o espaço da arte; são vistas de um território difícil de ser topografado porque reversí-vel, móvel, fronteiriço. O mapa, a representação car-tográfica, as coordenadas, os retângulos, os números são todos signos gráficos convencionais. Pertencendo a um código, eles formam igualmente imagem cujos contornos demandam decodificação. As paisagens de Zilio desenham a imagem de um território de tensão entre a arte e a vida.

No ano em que produziu Para um jovem de brilhante futuro, o artista também pintou três telas com represen-tações de materiais cortantes ou perfurantes que, em-bora ausentes desta mostra, a esclarecem. Utilizam o vocabulário formal pop presente em seus trabalhos dos anos 60, mas portam deslocamento que dialoga com Carlos Zilio: Paisagens 1974-1978. Uma delas, Atenção, recebe título sonoramente semelhante ao da fotografia feita para a exposição da Sala Experimental do MAM. Descrições em três cores, as telas representam um alicate (Atenção), uma lâmina de barbear Gillette (Sem título) e uma paisagem com pregos (Cuidado). Simula-cros de objetos do consumo, essas imagens atestam o poder da vida de atravessar a opacidade da tela para encarar o espectador com a força do real. Reproduzindo e reiterando objetos que se apresentam acompanhados de uma mancha de sangue, elas lembram a despreten-siosa produção dos anos do cárcere, que o artista con-siderou simples ocupação documentária.5 Uma série de desenhos com caneta hidrográfica, outra de guache sobre papel e a última de pratos de porcelana pintados com tinta industrial, esses trabalhos desconhecidos do público até os anos 90 registravam vivência estritamen-te individual. “Fazia parte de meus fantasmas”,6 informa o artista. Por que então Carlos Zilio decide mostrar o conjunto? Porque, em dado momento, passou a per-ceber certa continuidade em seu trabalho.7 É possível que um documento pessoal converta-se em trabalho de arte? Talvez a pergunta pudesse ser: qual a diferença entre um simples arquivo e a memória transfigurada em sentido na arte? Rotina dilacerante (1971), desenho de uma das séries da prisão, mapeia os dias da semana em grade quadriculada delineada sobre massa verme-lha em forma de tubos orgânicos. O desenho identifica,

além das “visitas”, a sequência maquinal do tempo com a palavra “idem” e articula a mancha de sangue, perso-nagem de toda a produção da prisão. Aqui o documento realiza artificialmente a vida, transformando o arquivo em memória que extrapola o sentido do registro.

Os registros descritivos em Carlos Zilio: Paisa-gens 1974-1978 são sistemas gráficos articulados a lixas, agulhas e pregos que buscam a subjetividade na intimidade da pele, esse forro que guarda os perigos e os medos, os afetos e a memória. Entre a arte e a vida o movimento é paradoxal e instaura tensa zona de reversibilidades e extrapolações indeterminadas. Pressupõe-se certa tática na arte das descrições rei-terativas de Carlos Zilio: a necessidade de alcançar no-vos territórios mentais. Afinal, qual o limite entre as notações que registram eventos do mundo e os acon-tecimentos quando se trata dos efeitos de um traba-lho de arte? Quando o espaço da vida, áspero, tenso e com extremidades agudas, atravessa e descortina o lugar da arte, algo aponta para um possível. Na produ-ção de Carlos Zilio esse lugar mostrou ser também o

da pintura discursando sobre sua própria história, de Cézanne a Barnett Newmann, de Tarsila a Guignard. Seria, porém, insuficiente compreender que o espaço intelectualizado da arte de Carlos Zilio foi substituído pela materialidade da tinta e da tela, ainda que suas pinturas manifestem uma “real verdade empírica e fe-nomenológica”.8 A verdade, na produção pictórica do artista, remete sempre à vida em sua relação íntima com a arte. A paisagem é, assim, sobretudo um espa-ço crítico do conhecimento, o lugar do questionamento das condições, convenções e estratégias que permitem algo tornar-se visível, as armadilhas da arte, da vida e do poder. Basta lembrar as pinturas de 1973 em que o sangue não era simples simulacro, mas imagem pro-veniente do real, registro da experiência traumática. O sangue em imagem era apelo literal à vida, transfor-mação operada pelo trabalho de arte no contexto das relações de poder. São as ocorrências do mundo sob a perspectiva da intimidade do afeto que constituem sen-tidos transfigurados na arte, acontecimentos que po-dem, sim, surgir das imagens da história da arte, mas enquanto efeitos da vida. |

1 Alpers, Svletana. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999, p.241-317.2 Krauss, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p.41.3 Krauss, Rosalind. The originality of the avant--garde and other modernist myths. Cambridge/London: The MIT Press, 1994, p.9.4 Brito, Ronaldo. O estranho dono de uma mala cheia de pregos. In: Venancio Filho, Pau-lo (org.). Carlos Zilio. São Paulo: Cosac Naify,

2006, p.50.5 Cocchiarale, Fernando et al. Entrevista. In: Venancio Filho, Paulo (org.). Carlos Zilio. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.37. 6 Id. Ibid., p.30.7 Idem.8 Venancio Filho, Paulo. Carlos Zilio. Retra-to do artista (antes e depois da pintura). In: ______ (org.). Carlos Zilio.São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.20.

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Reitor | Ricardo vieiralves de CastroVice-Reitora | Maria Christina MaioliSub-Reitora de Extensão e Cultura | Regina Lúcia Monteiro HenriquesDiretor do Departamento Cultural | Ricardo Gomes LimaCoordenadora de Exposições | Cáscia Frade

associação Nacional de Pesquisadores em artes Plásticas

diretoria anpap - Biênio 2011-2012Presidente | Sheila Cabo Geraldo | ART/UERJVice-Presidente | Luiz Cláudio da Costa | ART/UERJ1º Secretário | Luiz Sérgio da Cruz de Oliveira | IACS/UFF2ª Secretária | Christine Pires Nelson de Mello | MAV/FASM1º Tesoureiro | Mauricius Martins Farina | IAR/UNICAMP2ª Tesoureira | Maria Luiza Pinheiro Guimarães Fragoso | EBA/UFRJ

CuradoriaSheila Cabo Geraldo | ART/UERJLuiz Cláudio da Costa | ART/UERJ

Projeto GráficoLygia Santiago

FotosLeonardo Carneiro (10 / 13)Mario Grisolli (capa / 4-9 / 18-20)Paulo Rubens Fonseca (26)Pedro Oswaldo Cruz (segunda capa / 16-17 / 27)

Comunicação SocialMargareth dias e Rafael NacifPauline Suarez e Pedro Cavalcante (bolsistas)

IluminaçãoWilian Sales e adriano Pintor Apoio a Montagem (bolsistas)ana Carolina Maia, ana Carolina Mendonça, ana Paula Martins, andiara Pereira, Eduardo Pinho, Érica Castilho, Hayssa Tostes Leal, José antônio Castlillero e Olívia amaral Luna

Equipe Técnico-Administrativaalexander de Souza, andré Carvalho, andré Ruffier, Liza Costa e Paulo Moraes

ProduçãoNara Reis | Coletiva Projetos Culturais

Assistência de Produçãoana Beatriz Cascardo, Gustavo Corrêa e Salete Pena

CapaFragmentos de Paisagem | 197412 X 6 cm | Objeto, vidro e pregos

Segunda CapaEspaço-Vida | 1974 122 x 276 cm | Vinil sobre eucatex e pregos Coleção Pinacoteca do Estado de São Paulo (reprodução autorizada)

Páginas 4-5Série de seis desenhos: Paisagem | 197446,5 x 72 cm | Nanquim sobre papel

Paisagem | 197446,5 x 72 cm | Nanquim sobre papel

Páginas 6-7Série de seis desenhos: Paisagem | 197446,5 x 72 cm | Nanquim sobre papel

Paisagem com Sombra | 197446,5 x 72 cm | Nanquim sobre papel

Páginas 8-9Série de seis desenhos: Paisagem | 197446,5 x 72 cm | Nanquim sobre papel

Paisagem | 197446,5 x 72 cm | Nanquim sobre papel

AgradecimentosMuseu de arte Moderna do Rio de JaneiroPinacoteca do Estado de São Paulo

Página 10Atensão | 1976 44 x 60 cm | fotografia

Página 13Identidade Ignorada | 1976 40 x 60 cm | fotografia Páginas 16-17Quatro Situações de Vida | 1974 94 x 144 cm | Acrílica sobre tela

Sem Título, 197494 x 140 cm | Acrílica sobre tela

Páginas 18-19Sem Título | 197494 x 144 cm | Acrílica sobre tela

Sem Título | 197494 x 144 cm | Acrílica sobre tela

Página 20Mecanismos Psicológicos, 197657 x 76 cm | Agulha sobre papel

Página 26Série de fotos: Para um jovem de brilhante futuro | 1974 48 x 64 cm (cada) Página 27Para um jovem de brilhante futuro | 1973 7,5 x 33 x 40,5cm Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM RJ

parceria

CATALOGAçãO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC

Z69 Zilio, Carlos, 1944- Carlos Zilio : paisagens 1974-1978 / Curadoria, Sheila Cabo Geraldo e Luiz Cláudio da Costa. – Rio de Janeiro : UERJ, DECULT, 2011. 32 p. : il.

ISBN 978-85-85954-28-4 Catálogo da exposição realizada no período de 27 de setembro a 21 de outubro de 2011, durante o XX Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas.

1. Zilio, Carlos, 1944- – 1974-1978 – Exposições. 2. Artes – Brasil – Exposições. I. Geraldo, Sheila Cabo. II. Costa, Luiz Cláudio da, 1961- . III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Departamento Cultural. III. Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Brasil). IV. Congresso Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (20. : 2011 : Rio de Janeiro, RJ)

CDU 069.9:7.071(81)”1974/1978”

Page 17: Catalogo Carlos Zílio: Paisagens 1974 > 1978

realização