Caso de Ética - Maus Tratos

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195 BIOÉTICA CLÍNICA – REFLEXÕES E DISCUSSÕES SOBRE CASOS SELECIONADOS Resumo Menina de cinco meses é levada pelo pai e outros familiares a PS com história de “engasgo”. Chega apresentando convulsões genera- lizadas. Exame mostra hematoma no couro cabeludo e anisocoría. Tomografia feita em seguida mostra fratura extensa no crânio, hematoma extradural, gran- de área de contusão parenquimatosa, com região isquêmica perilesional. É realizada neurocirurgia para salvar a vida do bebê. Familiares ne- garam qualquer história de traumatismo. Exposição dos detalhes Bebê de cinco meses chega a Pronto Socorro (PS) com convul- sões generalizadas, atribuídas a um “engasgo” pelo pai, mãe e avós maternos. Ao realizar exame clínico, pediatra constata hematoma no couro cabeludo e desigualdade entre as pupilas (anisocoría). Para orientar o diagnóstico, solicita tomografia computadorizada que mostra fratura ex- tensa no crânio, hematoma extradural e extensa área de contusão parenquimatosa, com área isquêmica perilesional. Nesse momento, desconfia de maus-tratos contra a criança e tenta levantar, junto aos familiares, episódio de espancamento. Inseguros, caem em algumas contradições, mas negam veementemente a hipótese. As con- tradições talvez tenham sido geradas pelo fato de a criança não ter como cuidador um único parente: parte do dia passava com o pai; parte, com a CASO 18 Maus-tratos

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Maus tratos, condutas que se configuração na classificação.

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BIOÉTICA CLÍNICA – REFLEXÕES E DISCUSSÕES SOBRE CASOS SELECIONADOS

ResumoMenina de cinco meses é levada pelo pai e outros familiares a PScom história de “engasgo”. Chega apresentando convulsões genera-

lizadas. Exame mostra hematoma no couro cabeludo e anisocoría. Tomografiafeita em seguida mostra fratura extensa no crânio, hematoma extradural, gran-de área de contusão parenquimatosa, com região isquêmica perilesional.

É realizada neurocirurgia para salvar a vida do bebê. Familiares ne-garam qualquer história de traumatismo.

Exposição dos detalhesBebê de cinco meses chega a Pronto Socorro (PS) com convul-sões generalizadas, atribuídas a um “engasgo” pelo pai, mãe e

avós maternos.Ao realizar exame clínico, pediatra constata hematoma no couro

cabeludo e desigualdade entre as pupilas (anisocoría). Para orientar odiagnóstico, solicita tomografia computadorizada que mostra fratura ex-tensa no crânio, hematoma extradural e extensa área de contusãoparenquimatosa, com área isquêmica perilesional.

Nesse momento, desconfia de maus-tratos contra a criança e tentalevantar, junto aos familiares, episódio de espancamento. Inseguros, caemem algumas contradições, mas negam veementemente a hipótese. As con-tradições talvez tenham sido geradas pelo fato de a criança não ter comocuidador um único parente: parte do dia passava com o pai; parte, com a

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mãe e o restante com uma tia.Porém, de todos os presentes, o mais assustado é o próprio pai, dono

de temperamento aparentemente irritável – chega a se descontrolar quandoo pediatra insinua agressão. “Ele é um excelente pai, dedica-se mais doque eu mesma aos cuidados com a nossa filha. Nunca daria uma palma-da sequer” garante a mãe, em opinião compartilhada pelos avós da cri-ança. No entanto, durante a anamnese, a avó relembra haver visto “algu-mas vezes, manchas roxas no abdome” da neta.

O quadro gera necessidade de operação, que, apesar da gravidadedo caso, corre de maneira satisfatória e tem pós-operatório adequado.

Apesar das suspeitas levantadas, como há a negativa por parte detoda a família quanto a eventuais maus-tratos – e, portanto, não existecerteza absoluta de que estes aconteceram – médico não sabe se devedar alta e se deve ou não denunciar sua suspeita à polícia.

Afinal, considera: “minha obrigação é tratar de doenças, e não atuarcomo detetive”, opinião reforçada quando o profissional considera asconseqüências traumáticas que uma denúncia pode causar, principal-mente se for injusta e infundada.

Eixo CentralMaus-tratos contra criançasPerguntas-bases: Se não há certeza de violência, é ético denunciar?Trata-se de uma obrigação?

Argumentos■ O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante à crian-ça, entre outros pontos, primazia de receber proteção e socorro

em quaisquer circunstâncias.■ Art. 5º do ECA: nenhuma criança ou adolescente será objeto de

qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, poração ou omissão, aos seus direitos fundamentais; Art. 13: os casos desuspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente

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serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectivalocalidade, sem prejuízo de outras providências legais.

■ De acordo com Gaudêncio, em texto publicado no site da Socieda-de Brasileira de Pediatria, “cerca de 10% das crianças que dão entrada emserviços de urgência/emergência por trauma são vítimas de maus-tratos.Se não houver um acompanhamento multidisciplinar posterior, 5% delasprovavelmente morrerão nas mãos dos agressores (...) Estatisticamente, cadacriança que morre vítima de maus-tratos já passou por mais de cinco aten-dimentos em salas de urgência/emergência pela mesma causa.”

■ O artigo do Código de Ética Médica mais diretamente aplicável àsituação de maus-tratos a crianças é o 49, que veda ao médico “partici-par da prática de tortura ou outras formas de procedimentos degradantes,desumanos ou cruéis, ser conivente com tais práticas ou não denunciarquando delas tiver conhecimento”.

■ Pode ser vinculado a este caso, ainda, os Arts. 102, que veda aomédico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercíciode sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização ex-pressa do paciente e o Art. 44, que proíbe ao médico que deixe de cola-borar com as autoridades sanitárias ou infringir a legislação pertinente.

Eixos Secundários● Sigilo sobre atendimento● Verdadeiras atribuições de um médico (denunciar é uma delas?)

● Responsabilidade social do médico

Situações que poderão ser levantadas◆ Caso houvesse suspeita de violência contra um idoso, em vezde violência contra a criança, a situação seria diferente, consi-

derando-se sua vulnerabilidade?◆ Quando se suspeita de doença mental (ou vício de alcoolismo) do

agressor, não seria ético encaminhá-lo para tratamento, no lugar dedenunciá-lo à polícia?

◆ Em que situações o médico pode transferir o sigilo à esfera legal?

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DiscussãoPor: Lisbeth Ferrari DutchO presente caso diz respeito a bebê levado ao Pronto Socorro pelo

pai, com evidentes sinais de ter sofrido agressão física e com a historia clíni-ca relatada absolutamente incompatível com o quadro clínico evidenciado.

Este breve relato já parece trazer motivos suficientes para embasar sus-peita de maus-tratos. Começa, assim, o dilema do médico que recebe acriança para diagnóstico e tratamento e está diante de evidências de maus-tratos sofridos por bebê, ciente da necessidade de providências. Como agir?

Certamente, apesar das evidências que levam a forte suspeita de terhavido maus-tratos, a equipe de atendimento à criança não obterá a confir-mação do pretenso agressor nem de seus familiares que se mostram, decerta forma, omissos, pois é sabido que a avó materna, na seqüência doatendimento, revelou já haver observado “manchas roxas” na criança.

Em casos como este, o médico tem, de um lado, seu compromissocom o sigilo profissional e, de outro, com a legislação vigente.

Quanto ao sigilo profissional, o Código de Ética Médica, em seu Art.102, diz: “É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimentoem virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, deverlegal, ou autorização expressa do paciente”.

Em relação à legislação e ao seu compromisso social há normas aserem observadas, confira-se no Estatuto da Criança e do Adolescente(ECA), Art.13: “Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos con-tra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Con-selho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providên-cias legais”; Art. 18: “É dever de todos zelar pela dignidade da criança edo adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, vio-lento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

Cabe aqui a discussão sobre “justa causa” que, de acordo com Fran-ça, “é o interesse de ordem moral ou social que autoriza o não cumpri-mento de uma norma, contanto que os motivos apresentados sejam rele-vantes para justificar tal violação. Fundamenta-se na existência de estadode necessidade”.

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O objetivo primordial de todo médico é a preservação do bem maior:a vida. Portanto, todo atendimento médico envolve, basicamente, diag-nóstico, tratamento e, sempre que possível, orientação para prevençãode novos eventos, principalmente em se tratando de doença potencial-mente recorrente.

Ora, se um indivíduo é agredido em casa, possivelmente por fami-liar próximo, sofre lesões graves e é tratado, poderá receber alta retornandopara o mesmo ambiente onde a agressão ocorreu, sem que qualquer pro-vidência seja tomada? Como fazer o trabalho preventivo?

Gaudêncio apresenta dados estatísticos que mostram que cada cri-ança que morre vítima de maus-tratos já havia sido atendida mais de 5vezes pela mesma causa.

Esta informação reforça a enorme necessidade da prevenção que, nocaso de maus-tratos, só será efetiva por meio da comunicação aos órgãoscompetentes (entre nós, o Conselho Tutelar e, na falta deste, o Juizado daInfância e Juventude).

No caso em tela, os fatos sugestivos de agressão são muito fortes,pois exame (tomografia) mostra fratura associada a contusão cerebral ehematoma, em contraponto a história clínica relatada de “engasgo”, oque já induz à grande suspeita de ocultação de fatos (diagnóstico de trau-ma de crânio com história “inocente” de engasgo), parecendo relativa-mente fácil tomar a decisão de uma denúncia. Mas, em grande parte dasvezes, a situação não se apresenta de forma tão clara. Apesar disso, sus-peitas de “maus-tratos” surgirão na prática médica e, nessas situações, omédico, juntamente com a equipe de atendimento, necessitará estar for-temente embasado para poder efetivar qualquer denúncia.

Como em todo atendimento médico, aqui, mais do que nunca, faz-se necessária a construção de uma relação médico–paciente e médico–familiar, pautada pela sensibilidade e pela franqueza do profissional,conquistando, desta forma, a confiança, chave para obtenção e consoli-dação de informações.

A possibilidade de uma denúncia fútil, inverídica, tem que ser totalmen-te rejeitada, tendo em mente que nem sempre o que nos parece corresponde

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à realidade. Lembre-se de que se trata de situação de extrema delicadeza,em que qualquer passo em falso poderá levar a malefício irreparável.

Porém, visando à proteção da criança, o médico deve, no limite dapossibilidade, investigar a suspeita de maus-tratos. Na falta de condiçõespara isso, o profissional deve encaminhar o caso aos órgãos competen-tes, para maior averiguação.

Se consideramos “dilema ético” a necessidade de escolha entre umaação eticamente correta e outra eticamente questionável (violar o sigilofazendo a comunicação dos maus-tratos), cabe a seguinte reflexão: o obje-tivo da comunicação (violação do sigilo) tem como alvo direto o bem-estardo nosso paciente em seu sentido mais amplo. Além da justa causa, oCódigo de Ética Médica, em seu Art. 2º diz: “O alvo de toda a atenção domédico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com omáximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.

O sigilo profissional médico é compromisso indiscutível que temoscom o paciente ou com seu responsável; porém, em caso de evidênciasbem embasadas de “maus-tratos”, o respeito ao segredo em desfavor dadenúncia acarretará danos ao paciente, alvo de toda a nossa atenção.

O médico não tem o papel de polícia ou de juiz mas tem, por deverde ofício, o papel de guardião da saúde e da vida.

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