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Catarina de Lencastre

João II de Castela (1405–1454)

c.

Isabel(1470–1498)

c.

Joana(1479–1555)

Filipe de Habsburgo

Casa de Trastâmara

Manuelde Portugal

Catarina(1485–1536)

c.

João(1478–1497)

c.Margaridade Áustria

João I de Castela(1358–1390)

Fernando I de Aragão(1379?–1416)

c.

Henrique III de Castela(1379–1406)

c.1) Maria de Aragão 2) Isabel de Portugal

João II de Navarra e Aragão(1397–1479)

c.1) Branca

de Navarra2) Joana Henriques

Henrique IV de Castela(1425–1474)

Alfonso (1453–1468)1) Branca de Navarra

2) Joana de Portugal

Joana, La Beltraneja(1462–1530)

Carlos de Viana (1421–1461)

FERNANDO DE ARAGÃO

(1452–1516) c.

1) Afonso de Portugal2) Manuel de Portugal

c.1) Artur de Gales2) Henrique VIII

c.

Henrique II de Castela (1333–1379)

Maria(1482–1517)

ISABELDE CASTELA

(1451–1504)

Castela Aragão

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P R Ó L O G O

1454

Ninguém acreditou que eu estivesse destinada à glória.

Vim ao mundo em Castela, na povoação de Madrigal de las

Altas Torres, e fui a primeira filha do segundo casamento do

meu pai, João II, com Isabel de Portugal, cujo nome recebi; era uma

infanta saudável e invulgarmente sossegada, cujo nascimento foi cele-

brado com o repicar de sinos e com as felicitações a que os costumes

obrigam, mas sem festejos. O meu pai já tinha gerado um herdeiro

aquando do seu primeiro casamento — o meu meio-irmão Henrique

— e quando a minha mãe deu à luz o meu irmão Alfonso, dois anos

após o meu nascimento, assegurando assim a continuidade da Casa

de Trastâmara, todos julgaram que eu viveria fechada num convento a

costurar até me conseguirem um casamento que fosse vantajoso para

Castela.

Mas, como tantas vezes acontece, Deus tinha outros planos.

Ainda me recordo do momento em que tudo mudou.

Ainda não fizera quatro anos. Há semanas que o meu pai sofria de

uma febre terrível, permanecendo fechado nos seus aposentos no alcá-

cer de Valladolid. Eu não conhecia bem aquele rei com quarenta e nove

anos a quem, graças à sua forma de governar, os súbditos tinham posto

o cognome de El Inutil. Ainda hoje, apenas me recordo de um homem

alto e magro, de olhos tristes e sorriso vago, que certa vez me chamou

aos seus aposentos e me ofereceu um pente incrustado de pedras pre-

ciosas e esmaltado ao estilo dos mouros. Durante todo o tempo em que

ali estive, um nobre baixo e de tez escura permaneceu de pé atrás do

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trono do meu pai, com a sua mão de dedos rechonchudos possessiva-

mente apoiada nas costas do assento e o seu olhar fixo em mim.

Poucos meses depois, ouvi as damas que viviam com a minha mãe

segredarem que aquele nobre baixote fora decapitado e que a sua morte

deixara o meu pai inconsolável.

«Lo mato esa loba portuguesa», segredavam. «A loba portuguesa

mandou matar o Condestável Luna porque ele era o favorito do rei.»

E então, uma delas sussurrou:

— Calai-vos! A menina está a ouvir!

Ao verem-me sentada ali na alcova ao seu lado, a olhá-las e a ouvi-

-las, muito atenta, as outras imobilizaram-se como figuras numa tape-

çaria.

Apenas alguns dias depois de as ter ouvido, fui acordada à pressa,

envolta num manto e levada sem demora pelos corredores do alcácer

até aos aposentos reais, mas desta vez conduziram-me a uma câmara

abafada, cheia de braseiros acesos, onde as vozes sussurradas dos mon-

ges ajoelhados a rezar se espalhavam a toda a divisão por entre uma

espiral de fumo de incenso. O brilho suave e vacilante das candeias

de cobre suspensas do teto por correntes douradas iluminava os nobres

de rosto carregado e trajados de cores escuras.

À minha frente estava uma enorme cama de dossel com as cortinas

afastadas.

Parei à porta, procurando instintivamente à minha volta o nobre

baixote, embora soubesse que ele estava morto. E então, vi o falcão-

-real favorito do meu pai na alcova, preso ao seu poleiro de prata.

As suas pupilas dilatadas voltaram-se para mim, opacas e iluminadas

pelas chamas.

Imobilizei-me. Pressentia algo horrível que não queria ver.

— Avançai, minha filha — disse-me Doña Clara, a minha aia.

— Sua Majestade, o vosso pai, chamou por vós.

Recusando aproximar-me, voltei-me para me agarrar às suas saias,

escondendo a cara nas suas dobras poeirentas. Ouvi passos pesados nas

minhas costas e uma voz grave perguntou:

— É esta a nossa pequena Infanta Isabel? Vamos, criança, deixai

que vos veja.

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Algo naquela voz forçou-me a erguer o olhar.

Um homem avultava-se diante de mim, alto e de peito largo, ves-

tindo o traje escuro de um nobre de elevada estirpe. Tinha uma cara

redonda, uns penetrantes olhos castanho-claros e usava pera. Não era

bonito — parecia um gato de palácio estragado com mimos —, mas

o trejeito da sua boca rosada cativou-me; parecia estar a sorrir apenas

para mim, com uma atenção focada que me fez sentir ser a única pes-

soa que ele desejava ver.

Estendeu-me então uma mão surpreendentemente delicada para

um homem do seu tamanho.

— Sou o Arcebispo Carrillo de Toledo — disse. — Vinde comigo,

Alteza. Nada tendes a temer.

A medo, dei-lhe a mão; os seus dedos eram fortes e quentes. Senti-

-me segura quando a sua mão se fechou sobre a minha e ele me levou

por entre os monges e os cortesãos trajados de negro, cujos olhos anó-

nimos brilhavam com frio interesse, como os do falcão na alcova.

O arcebispo pôs-me em cima de um escabelo junto à cama, para

eu poder chegar ao meu pai. Ouvi a respiração do rei arranhar-lhe os

pulmões; a sua pele parecia colada aos ossos e exibia já uma estranha

palidez de cera. Tinha os olhos fechados e as mãos de dedos finos cruza-

das sobre o peito, como se fosse uma efígie num dos muitos elaborados

túmulos que enchiam as nossas catedrais.

Devo ter exclamado de medo, porque, então, Carrillo me murmu-

rou ao ouvido:

— Deveis beijá-lo, Isabel. Abençoai o vosso pai para que ele possa

deixar em paz este vale de lágrimas.

Embora fosse a última coisa que eu queria fazer, sustive a respira-

ção, inclinei-me e dei-lhe um beijo na cara, de fugida. Arrepiei-me ao

sentir a febre na sua pele. Quando recuei, o meu olhar ergueu-se para

o lado oposto da cama.

Vi ali uma silhueta. Por um horrível instante, julguei que fosse

o fantasma do condestável morto, que, diziam as damas, assombrava

o castelo em busca de vingança. Mas então, a luz das candeias ilumi-

nou-lhe o rosto e reconheci o meu meio-irmão mais velho, o Príncipe

Henrique. Sobressaltei-me; em geral, ele mantinha-se longe da corte,

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preferindo a sua amada casa real em Segóvia, onde, dizia-se, vivia pro-

tegido por uma guarda de infiéis e rodeado de uma coleção de exóti-

cos animais ferozes que ele alimentava pessoalmente. No entanto, ali

estava ele agora, no leito de morte do nosso pai, envolto num manto

negro; um turbante escarlate escondia-lhe os cabelos louros em desa-

linho, real çando-lhe o invulgar nariz achatado e uns olhos pequeninos

e juntos, que o faziam parecer um leão despenteado.

O sorriso astuto que ele me lançou deixou-me arrepiada.

O arcebispo pegou-me ao colo e deixou a câmara num passo deci-

dido, como se já nada ali nos pudesse interessar. Por cima do seu ombro

possante vi os cortesãos e os nobres juntarem-se em volta da cama; ouvi

os cânticos dos monges subirem de tom e vi Henrique a inclinar-se

resolutamente, quase com avidez, sobre o rei moribundo.

Nesse momento, o nosso pai, João II, exalou o último suspiro.

Não regressámos aos meus aposentos. Segurando-me com força

contra o peito largo do arcebispo, olhei, desorientada, enquanto ele cha-

mava com um gesto brusco a minha aia, que nos esperava à entrada

dos aposentos, após o que descemos por uma escada em caracol nas

traseiras, que levava à torre de menagem. No céu noturno, um anémico

luar mal atravessava o véu de bruma nebulosa.

Quando deixámos a sombra protetora do castelo, o arcebispo olhou

na direção da poterna — um quadrado escuro recortado na muralha.

— Onde estão eles? — perguntou numa voz tensa.

— Eu… não sei — respondeu Doña Clara numa voz trémula.

— Enviei-lhes uma mensagem, tal como ordenastes, pedindo a Sua

Alteza que viesse ter connosco aqui. Só espero que nada lhe tenha

aconte…

O arcebispo ergueu a mão.

— Julgo estar a vê-los.

Avançou um pouco; senti-o retesar-se quando se escutaram pas-

sos leves e apressados no empedrado. Ao ver os vultos que avançavam

para nós, com a minha mãe na dianteira, suspirou de alívio. A minha

mãe estava muito pálida, com o capuz do manto a cair-lhe sobre os

ombros estreitos e os cabelos arruivados molhados de transpiração e a

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escaparem-se-lhe da coifa. Atrás dela vinham as suas damas de compa-

nhia portuguesas, todas de olhar esgazeado, e Don Gonzalo Chacón, o

tutor do meu irmão de um ano, a quem segurava nos braços possantes.

Perguntei-me porque estaríamos todos ali fora a meio da noite. O meu

irmão era muito pequeno e estava frio.

— Ele já…? — perguntou a minha mãe, ofegante.

Carrillo assentiu. Um soluço deixou-a sem voz e, então, os seus

intensos olhos azul-esverdeados fixaram-se em mim, ainda ao colo do

arcebispo. A minha mãe estendeu-me os braços.

— Isabel, hija mía.

Carrillo pôs-me no chão. Para minha surpresa, não queria separar-

-me dele. Mas avancei devagar, o meu manto grande demais a envol-

ver-me como um casulo disforme. Fiz uma vénia, tal como aprendera

que devia fazer sempre que comparecesse perante a minha bela mãe,

e como sempre fizera nas raras ocasiões em que fora levada à sua pre-

sença na corte. Ela puxou para trás o meu capuz e os seus olhos azul-

-esverdeados afastados no rosto fixaram-se nos meus. Toda a gente dizia

que eu tinha os olhos iguais aos dela, apenas de um tom mais escuro.

— Minha filha — murmurou ela. Dei-me conta do desespero na

sua voz trémula. — Minha filha querida, agora só nos temos uma à

outra.

— Alteza, deveis concentrar-vos no que é importante — ouvi

Carrillo dizer. — Os vossos filhos devem ser mantidos em segurança.

Com a morte do vosso marido, o rei, eles agora são…

— Eu sei o que os meus filhos são — interrompeu a minha mãe.

— O que eu quero saber é: quanto tempo nos resta, Carrillo? Quanto

tempo até termos de abandonar tudo o que conhecemos e ir para um

refúgio esquecido no meio do nada?

— Algumas horas, se tanto — respondeu o arcebispo sem rodeios.

— Os sinos ainda não dobraram porque um tal anúncio demora tempo

a preparar. — Fez uma pausa. — Mas acontecerá em breve, o mais tar-

dar pela manhã. Tereis de confiar em mim. Prometo-vos assegurar que

nada acontece, quer a Vossa Alteza, quer aos infantes.

Olhando para ele, a minha mãe levou uma mão à boca, como se

para conter o riso.

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— E como fareis isso? Henrique de Trastâmara está prestes a ser

proclamado rei. Se os meus olhos não me enganaram durante todos

estes anos, ele vai-se revelar tão suscetível aos seus favoritos como João

era. Que segurança podeis oferecer-nos para lá de um destacamento

da vossa guarda e do asilo sagrado num convento? Sim, porque não?

Sem dúvida que viver com as freiras é o que mais se adequa à odiada

viúva estrangeira e à sua prole.

— As crianças não podem ser educadas num convento — disse

Carrillo. — E tão-pouco devem ser separadas da mãe ainda tão no-

vas. O vosso filho Alfonso é agora, por lei, o herdeiro de Henrique até

que a mulher dele lhe dê um filho. Asseguro-vos que o Conselho não

irá impugnar os direitos dos infantes. De facto, concordaram em per-

mitir que eduqueis o príncipe e a sua irmã no castelo de Arévalo, em

Ávila, que vos será dado como parte dos bens a que tendes direito por

viuvez.

Fez-se silêncio. Imóvel, vi o olhar vítreo da minha mãe ao repetir:

«Arévalo», como se tivesse ouvido mal.

— O testamento de Sua Majestade deixa ampla provisão para os

infantes; cada um deles receberá umas quantas cidades ao completar

treze anos — prosseguiu Carrillo. — Prometo que nada vos faltará.

A minha mãe semicerrou o olhar.

— João mal via os nossos filhos. Nunca quis saber deles. Nunca

quis saber de ninguém a não ser daquele homem horrível, o Condestá-

vel Luna. E agora vós dizeis-me que ele deixou provisões para ambos.

Como podeis saber isso?

— Eu era o confessor dele, não vos recordais? O rei ouvia os meus

conselhos porque temia o fogo eterno do Inferno caso não o fizesse. —

A súbita intensidade na voz de Carrillo fez-me olhar para ele. — Mas

não posso proteger-vos se não confiardes em mim. Em Castela, é cos-

tume a rainha viúva retirar-se da corte, mas não é habitual ficar com os

filhos, sobretudo quando o novo rei não tem herdeiro. É por isso que

deveis partir esta noite. Levai apenas os infantes e aquilo que puderdes

carregar. Eu enviar-vos-ei o resto dos vossos pertences logo que possa.

Depois que estiverdes em Arévalo e que o testamento do rei for conhe-

cido, ninguém se atreverá a tocar-vos, nem mesmo Henrique.

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— Compreendo. Mas eu e vós nunca fomos amigos, Carrillo.

Porquê arriscardes-vos por mim?

— Digamos que vos estou a oferecer um favor em troca de outro

— retorquiu ele.

Desta vez, a minha mãe não conseguiu conter uma risada amarga.

— E que favor posso eu conceder ao prelado mais abastado de

Castela? Sou uma viúva a viver de uma pensão, com duas crianças

pequenas e uma casa inteira para alimentar.

— Sabê-lo-eis quando chegar a altura. Ficai tranquila, que em

nada saireis prejudicada.

Com estas palavras, Carrillo voltou-se para dar indicações às

criadas dela, que tinham ouvido toda a conversa e agora nos fitavam de

olhos arregalados, de medo.

Devagar, ergui a mão para a da minha mãe. Antes nunca me atre-

vera a tocar-lhe sem permissão. Para mim, ela sempre fora uma figura

bela mas distante que usava vestidos esplendorosos e sorria constante-

mente aos admiradores que não a largavam — uma mãe para ser ama-

da à distância. Mas agora ela parecia ter percorrido muitos quilómetros

daquela paisagem pedregosa e a sua expressão era tão angustiada que

me fez desejar ser maior, mais adulta; queria, de alguma forma, ser

suficientemente forte para a proteger do cruel destino que lhe roubara

o meu pai.

— A culpa não é vossa, mamã — disse-lhe. — O papá foi para

o céu. É por isso que devemos partir.

Ela assentiu, com os olhos cheios de lágrimas, perdidos na dis-

tância.

— E vamos para Ávila — acrescentei. — Não é longe, pois não,

mamã?

— Não — respondeu ela, baixinho. — Não é longe, hija mía, de

maneira nenhuma…

Mas eu percebi que, para a minha mãe, essa distância era a de toda

uma vida.

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P R I M E I R A P A R T E

A Infanta de Arévalo

1464-1468

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C A P Í T U L O U M

–Segurai as rédeas com firmeza, Isabel. Não o deixeis sentir

o vosso medo, senão ele vai achar que é ele quem manda e,

então, tentará fazer-vos cair.

Sentada sobre um elegante garanhão negro, assenti, segurando as

rédeas com força. Conseguia sentir a rijeza do couro sob os dedos coça-

dos das minhas luvas. Já tarde demais, arrependi-me de não ter deixado

o pai de Beatriz, Don Pedro de Bobadilla, oferecer-me umas luvas novas

pelo meu décimo terceiro aniversário. O orgulho — um pecado que

me esforçava muito por vencer, geralmente sem sucesso — não me

deixara aceitar tal presente, porque isso seria admitir a nossa penúria,

muito embora ele vivesse connosco, pelo que saberia perfeitamente até

que ponto éramos pobres. O mesmo orgulho não me permitira recusar

o desafio do meu irmão, que dizia que era tempo de eu aprender a mon-

tar um cavalo digno desse nome.

Por isso, ali estava eu sentada, com as mãos protegidas por umas

velhas luvas de couro que pareciam finas como seda, sentada no dorso

de um magnífico animal. Embora não fosse um cavalo muito grande,

ainda assim era assustador; ia-se sacudindo e dando com os cascos no

chão como se estivesse prestes a arrancar a galope — quer eu conse-

guisse continuar montada quer não.

Abanando a cabeça, Alfonso debruçou-se do seu ruão para me

afastar um pouco os dedos, de maneira a que as rédeas ficassem folga-

das entre os mesmos.

— Assim — explicou ele. — Firme, mas não tão firme que lhe

firais a boca. E lembrai-vos de ficar direita quando fordes a meio galope

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e de vos inclinardes para o galope. O Canela não é uma dessas mulas

estúpidas que vós e Beatriz costumais montar. É um puro-sangue ára-

be, digno de um califa. Tem de sentir que quem o monta está sempre

no comando da situação.

Endireitei as costas, assentando bem as nádegas na sela de couro

trabalhado. Sentia-me leve como um cardo. Embora estivesse numa

idade em que a maioria das raparigas começa a desenvolver-se, conti-

nuava tão magra e com o peito tão liso que a minha amiga e dama de

companhia Beatriz, a filha de Don Bobadilla, estava sempre a tentar

fazer-me comer mais. Naquele momento ela olhava-me com apreensão,

mantendo a sua figura bem mais curvilínea do que a minha tão gracio-

samente direita sobre o seu capão malhado que era como se montasse

a cavalo desde sempre; sobre as suas feições aquilinas, um véu com fita

prendia-lhe os espessos cabelos pretos encaracolados.

— Suponho que Vossa Alteza se terá assegurado de que esse vos-

so principesco ginete já foi convenientemente domado — disse ela

a Alfonso. — Não queremos que nada de calamitoso aconteça à vossa irmã.

— É claro que já foi domado. Eu mesmo e Don Chacón tratámos

isso. Não vai acontecer nada a Isabel, pois não, hermana?

Assenti, embora me visse dominada por uma incerteza quase pa-

ralisante. Como podia eu querer mostrar àquele enorme animal que era

eu quem mandava? Como se me tivesse lido os pensamentos, o Canela

empinou-se para um lado. Arquejante, puxei as rédeas. Ele parou com

um resfolegar, baixando as orelhas para trás, claramente desagradado

com o puxão que eu lhe dera no freio.

O Alfonso piscou-me o olho.

— Vedes? Ela consegue dar conta dele. — Olhou para Beatriz.

— E vós, minha senhora, precisais de ajuda? — perguntou num tom

brincalhão que evocava anos de esgrima verbal com a obstinada filha

única do administrador do nosso castelo.

— Eu dou conta do recado, obrigada — replicou Beatriz, com aci-

dez. — Na verdade, tanto Sua Alteza como eu ficaremos perfeitamente

logo que nos acostumemos a estes vossos corcéis mouros. Não esque-

çais que já montámos antes, ainda que, tal como dizeis, se tratasse ape-

nas de estúpidas mulas.

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Rindo, Alfonso fez o seu ruão voltar-se com destreza, apesar de

ainda só ter dez anos. Os seus brilhantes olhos azuis cintilaram; os seus

espessos cabelos louros, cortados a direito pelos ombros, realçavam-lhe

o rosto redondo e bonito.

— E vós não deveis esquecer — replicou então — que eu monto

diariamente desde os cinco anos. Os bons cavaleiros fazem-se com a

experiência.

— É verdade — disse na sua voz cavernosa Don Chacón, o tutor

de Alfonso, do alto do seu enorme cavalo. — O Infante Alfonso é já um

hábil cavaleiro. Para ele, montar é como respirar.

— Não duvidamos — intervim, antes que Beatriz lhe pudesse res-

ponder. Forcei um sorriso. — Creio que estamos prontas, irmão. Mas,

por favor, não vades demasiado depressa.

Alfonso fez o seu ruão avançar, abrindo caminho para fora do pá-

tio interior do castelo, passando sob o gradeado de ferro subido e saindo

pelo portão.

Lancei um olhar desaprovador a Beatriz.

Tudo aquilo era culpa dela, claro. Farta do nosso regime diário de

lições, orações e bordados, anunciara naquela manhã que devíamos

fazer algum exercício físico, caso contrário ficaríamos velhas antes do

tempo. Estávamos enfiadas no castelo há demasiado tempo, dissera,

o que era verdade, visto o inverno ter sido particularmente rigoroso

naquele ano. E quando pediu permissão à nossa tutora, Doña Clara,

a minha aia concordou porque, para nós, montar resumia-se invaria-

velmente a sairmos nas mulas mais velhas que ali havia para, durante

uma hora antes do jantar, darmos um descontraído passeio ao longo da

muralha e pelo povoado adjacente ao castelo.

Mas, depois de vestir as roupas de montar e de ir ter com Bea-

triz ao pátio, dei com Alfonso ali parado com Don Chacón e com dois

garanhões de respeito à nossa espera — um presente do Rei Henrique,

o nosso meio-irmão. O cavalo preto era para mim, disse ele. Chamava-

-se Canela.

Contive o medo ao subir para o garanhão com a ajuda de um de-

grau de madeira. Mas, então, fiquei ainda mais alarmada ao perceber

que teria de montar com uma perna para cada lado, à la gineta, como

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os mouros faziam, sobre aquela estreita sela de couro com os estribos

subidos — uma sensação desconhecida e inquietante.

— Que nome estranho para um cavalo — comentei, tentando es-

conder o receio — A canela tem uma cor clara e este animal é escuro

como a noite.

O Canela sacudiu a crina e voltou a sua bela cabeça, tentando mor-

der-me a perna, o que não me pareceu um bom augúrio para a tarde

que tínhamos pela frente.

— Beatriz — sussurrei, enquanto seguíamos em direção à planície

—, porque não me avisastes? Bem sabeis que não gosto de surpresas.

— Foi exatamente por isso que não vos disse nada — sussurrou-

-me ela de volta. — Se o tivesse feito, não teríeis vindo. Teríeis dito que

devíamos ler, fazer costura ou rezar novenas. O que quer que digais,

temos de nos divertir um pouco de vez em quando.

— Não vejo como ser-se atirado de um cavalo poderá ser divertido.

— Ora! Apenas tendes de pensar nele como um cão que cresceu

a mais da conta. Ele é grande, sim, mas é perfeitamente inofensivo.

— E como sabeis vós isso, podeis dizer-me?

— Porque, de outro modo, Alfonso jamais deixaria que montás-

seis o Canela — retorquiu Beatriz com um rebelde sacudir de cabeça,

revelador da firme autoconfiança que fizera dela a minha companhia

mais chegada e também a minha confidente, embora, como de cos-

tume, eu me visse dividida entre o entusiasmo e o desconforto ao ser

confrontada com o seu feitio irreverente.

Tínhamos três anos de diferença e temperamentos opostos. Beatriz

comportava-se como se o reino para lá dos portões do palácio fosse um

lugar vasto e inexplorado, cheio de potenciais aventuras. Doña Clara

dizia que a sua atitude imprudente se devia ao facto de a mãe de Beatriz

ter morrido pouco depois de ela nascer; o seu pai criara-a sozinho em

Arévalo, sem supervisão feminina. Tão morena quanto eu era loura,

cheia de curvas enquanto eu era uma tábua, Beatriz era também rebel-

de, imprevisível e demasiado franca para seu bem. Chegava mesmo a

contrariar as freiras do Convento de las Agustinas quando lá íamos para

as nossas lições, deixando a pobre Irmã María de cabeça perdida com

as suas perguntas incessantes. Beatriz era uma amiga leal e também

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divertida, sempre pronta a ver o lado mais cómico daquilo a que os

outros não achavam graça nenhuma; mas era também uma constante

dor de cabeça para os mais velhos e para Doña Clara, que em vão ten-

tara ensinar-lhe que as senhoras bem-educadas não cediam a qualquer

impulso que lhes viesse à cabeça.

— Devíamos ter dito a verdade a Doña Clara — comentei, olhando

para as minhas mãos. Estava outra vez a apertar muito as rédeas e, por

isso, forcei-me a descontrair. — Não me parece que ela vá achar apro-

priado termos saído por aí a deambular a cavalo.

Beatriz apontou para adiante.

— E que interesse tem o que é apropriado? Olhai só à vossa volta!

Relutante, assim fiz.

O sol ia mergulhando no horizonte, enchendo o céu esbranqui-

çado de um vibrante brilho cor de açafrão. À nossa esquerda, Arévalo

erguia-se sobre uma colina baixa, uma cidadela de tom pardo com seis

torres e uma torre de menagem com ameias, adjacente a uma rústica

cidade mercantil com o mesmo nome. Do lado direito tínhamos a estra-

da principal que ia dar a Madrid, e a toda a nossa volta, estendendo-se

até perder de vista, estava Castela — um território sem fim, salpicado de

campos de cevada e de trigo, de hortas e de aglomerados de pinheiros

de tronco torcido. Não soprava vento e o ar estava carregado da fragrân-

cia da resina, com um toque subtil de neve derretida à mistura — um

odor que sempre associei à chegada da primavera.

— Não é espetacular? — sussurrou Beatriz, de olhos a brilhar.

Assenti, admirando aqueles campos que eram o meu lar praticamente

desde que me lembrava. Claro que já os vira muitas vezes, tanto da torre

de menagem de Arévalo como nas nossas idas anuais com Doña Clara

até à povoação vizinha de Medina del Campo, onde tinha lugar a maior

feira de animais de Castela. Mas, por alguma razão que não teria sabido

explicar, naquele dia pareceram-me diferentes, como quando nos da-

mos subitamente conta de que o tempo transformou um quadro que já

vimos muitas vezes, escurecendo as cores, dando-lhes um novo brilho

e aumentando o contraste entre claros e escuros.

A minha natureza prática assegurou-me que tal impressão se devia

a estar a ver a paisagem de um ponto mais alto — o dorso do Canela,

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em vez do da mula que costumava montar. Ainda assim, vieram-me lágrimas aos olhos e, sem aviso, recordei subitamente uma imponente sala cheia de pessoas vestidas de veludo e de seda. A imagem esfumou--se logo de seguida, apenas um fantasma do passado, e, quando Alfon-so, que seguia lá mais adiante com Don Chacón, me acenou, esqueci de imediato que estava sentada sobre um animal desconhecido e poten-cialmente traiçoeiro, e dei-lhe com os calcanhares nos flancos.

O Canela lançou-se em diante, obrigando-me a apoiar-me na curva do seu pescoço. Instintivamente, agarrei-me à sua crina, erguendo-me da sela e retesando as coxas. O Canela respondeu com um resfolegar satisfeito. Acelerou ainda mais, passando a galopar por Alfonso e levan-tando atrás de si um remoinho de poeira ocre.

— Dios Mío! — ouvi Alfonso exclamar, quando passei por ele a toda a velocidade. Pelo canto do olho vi Beatriz a seguir-me a toda a brida, gritando ao meu irmão e a um atónito Don Chacón:

— Com que então, anos de experiência?Explodi em gargalhadas.

Era maravilhoso, tal como eu imaginava que voar devia ser — dei-xar para trás as preocupações das lições e do estudo, as geladas lajes do castelo, as cestas sempre cheias de roupa para cerzir e o constante resmungar preocupado por causa do dinheiro e da saúde frágil da mi-nha mãe; ser livre, poder gozar a sensação do cavalo em movimento por baixo de mim e admirar a paisagem de Castela.

Quando parei, ofegante, num cume de onde se avistava a planície, o capuz de montar caíra-me para as costas e os meus cabelos ruivo--claros estavam a soltar-se das tranças. Descendo do Canela, afaguei-lhe o pescoço suado. Ele esfregou o focinho na palma da minha mão e de-pois pôs-se a mastigar os espinheiros secos que espreitavam por entre as rochas. Sentei-me num amontoado de pedras ali ao pé e fiquei a ver Beatriz subir velozmente ao meu encontro. Quando ela parou, corada do esforço, comentei:

— Afinal tínheis razão. De facto, precisávamos de exercício.— Exercício? — arquejou ela, descendo do cavalo. — Tendes no-

ção de que acabámos de deixar Sua Alteza e Chacón para trás, no meio

de uma nuvem de poeira?

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Sorri.

— Beatriz de Bobadilla, será que, para vós, tudo tem de ser uma

competição?

Ela pôs-se de mãos nas ancas.

— Sim, quando se trata de provar o nosso valor. Se não formos nós

a fazê-lo, quem o fará?

— Portanto, é a nossa força que desejais provar — concluí.

— Hum. Explicai-me isso.

Deixando-se cair ao meu lado, Beatriz ficou a admirar o crepúscu-

lo. Naquela altura do ano, o sol punha-se devagar em Castela, oferecen-

do-nos uma visão de tirar o fôlego — nuvens orladas a dourado e céus

em tons violeta e escarlate. O incipiente vento do anoitecer revolveu-lhe

os cabelos pretos todos emaranhados; os seus olhos expressivos, tão

rápidos a revelar-lhe os pensamentos, tornaram-se melancólicos.

— Quero provar que somos tão capazes como qualquer homem

e que por isso deveríamos ter os mesmos privilégios.

Franzi o sobrolho.

— E para quê?

— Para podermos viver como quisermos sem termos de pedir des-

culpa por isso, tal como Sua Alteza.

— Alfonso não vive como quer. — Ajeitei o meu capuz, enfiando

os atilhos no corpete. — Aliás, ele tem muito menos liberdade do que

julgais. Tirando hoje, mal o tenho visto, de tão ocupado que anda com

a esgrima, com o arco e flecha e com os torneios, já para não falar nos

estudos. Ele é um príncipe. Tem muitas obrigações.

Beatriz fez cara feia.

— Sim, obrigações importantes e não apenas aprender a costurar,

a fazer manteiga e a levar as ovelhas para o curral. Se pudéssemos vi-

ver como homens, seríamos livres de correr mundo por causas nobres,

como um cavaleiro andante ou como Joana d’Arc.

Escondi a excitação inesperada que as suas palavras me provoca-

ram. Treinara-me para esconder o que sentia desde que a minha mãe,

Alfonso e eu fugíramos de Valladolid naquela terrível noite há dez anos;

com o tempo, ficara a compreender muito melhor o sucedido. Não es-

távamos tão isolados em Arévalo que eu não fosse sabendo aos poucos

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as ocasionais notícias que corriam a meseta vindas das residências reais

em Madrid, Segóvia e Valladolid; a nossa criadagem trocava mexericos

sobre tudo isso, e era fácil ouvi-los — bastava fingir que não se estava

atento. Sabia que, com a subida de Henrique ao trono, a corte se tornara

um lugar perigoso para nós, sendo governada pelos seus favoritos e pela

sua avarenta rainha. Nunca esquecera o medo palpável que sentira na

noite da morte do meu pai, nem a longa viagem por campos e florestas

escuras, evitando as estradas principais não fosse Henrique ter enviado

guardas atrás de nós. Essa memória ficara gravada em mim — uma

lição indelével de que as mudanças ocorrem quer estejamos ou não pre-

parados, e de que devemos tentar adaptarmo-nos protestando o menos

possível.

— Joana d’Arc morreu na fogueira — acabei por dizer. — É esse

o fim grandioso a que devemos aspirar, minha amiga?

Beatriz suspirou.

— Claro que não; essa é uma morte horrível. Mas gostaria de pen-

sar que, surgindo uma oportunidade, poderíamos liderar exércitos em

defesa do nosso país, tal como ela fez. Como as coisas são agora, antes

de vivermos já estamos condenadas. — Estendendo os braços, excla-

mou: — É sempre o mesmo, dia após dia, uma semana atrás da outra,

um enfadonho mês atrás do outro! Será que todas as damas são educa-

das assim? Seremos tão burras que os nossos prazeres só possam ser

receber convidados, agradar ao nosso futuro marido e aprender a sorrir

entre dois pratos sem nunca darmos a nossa opinião? Nesse caso, mais

vale saltarmos o casamento e os filhos e passarmos diretamente à velhi-

ce e à santidade.

Olhei para ela. Beatriz estava sempre a fazer perguntas para as

quais não havia resposta simples e a tentar mudar aquilo que já era

assim, antes de termos nascido. Desconcertava-me o facto de também

eu andar ultimamente a pôr-me questões parecidas; jamais o admitiria,

mas afligia-me uma inquietação semelhante. Não gostava da impaciên-

cia que me dominava ao pensar no futuro, pois sabia que até mesmo

eu, uma princesa de Castela, teria um dia de me casar com quem me

mandassem e de me conformar com a vida que o meu marido enten-

desse dar-me.

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— Casar e cuidar do nosso esposo e dos nossos filhos não é en-

tediante nem nos rebaixa — afirmei. — É isso o que cabe às mulheres

desde o começo dos tempos.

— Estais apenas a recitar o que vos ensinaram — replicou Beatriz.

— As mulheres têm filhos e os homens garantem o sustento. Mas eu

pergunto: Porquê? Porquê só essa opção? Quem disse que uma mu-

lher não pode empunhar uma espada, erguer a cruz e marchar sobre

Granada para derrotar os mouros? Quem disse que não podemos to-

mar as nossas decisões ou gerir a nossa vida tão bem como qualquer

homem?

— Não importa quem o disse; as coisas são assim e pronto.

Ela revirou os olhos.

— Ora, Joana d’Arc não casou. Não fez limpezas, nem costura

nem enxoval. Vestiu uma armadura e foi lutar pelo seu delfim.

— Que, então, a entregou aos Ingleses — recordei-lhe, fazendo

depois uma pausa. — Beatriz, Joana d’Arc foi chamada a servir Deus.

Não podeis comparar o seu destino ao nosso. Ela foi escolhida por Ele

e sacrificou-se pelo seu país.

Beatriz bufou rudemente mas eu sabia que tinha marcado um

ponto indiscutível nesta discussão que vínhamos travando desde a in-

fância. Mostrei-me imperturbável, como sempre fazia quando Beatriz

se punha a pontificar, mas, ao imaginar a minha entusiástica amiga

vestida com uma armadura ferrugenta, a instigar uma companhia de

nobres a lutar pela pátria, deixei escapar um risinho.

— E agora ris-vos de mim! — protestou ela.

— Não, não. — Contive-me o melhor que consegui. — Não fazia

isso. Estava apenas a pensar que, se Joana d’Arc se tivesse cruzado con-

vosco, ter-vos-íeis juntado a ela sem hesitar.

— E teria mesmo. — Beatriz ergueu-se, de um pulo. — Teria ati-

rado os meus livros e bordados pela janela e saltado para o primeiro

cavalo livre que encontrasse. Como deve ser maravilhoso fazer o que se

quiser, lutar pelo nosso país e viver só com o céu por teto e com a terra

por cama!

— Exagerais, Beatriz. As cruzadas envolvem mais sofrimentos

do que nos conta a História.

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— Talvez, mas pelo menos estaríamos a fazer qualquer coisa!

Olhei-lhe para as mãos, que estavam cerradas como se ela estives-

se a empunhar uma arma.

— Com essas vossas enormes mãos, sem dúvida que consegui-

ríeis manejar uma espada — gracejei.

Ela ergueu o queixo.

— Sois vós a princesa e não eu. Seríeis vós a empunhar a espada.

Senti-me cheia de frio, como se o dia tivesse dado lugar à noite,

sem aviso. Estremeci.

— Não creio que alguma vez conseguisse liderar um exército —

retorqui em voz baixa. — Deve ser terrível vermos os nossos compatrio-

tas esquartejados pelos nossos inimigos e sabermos que a nossa própria

morte poderá vir a todo o instante. — Ergui a mão, antecipando-me

ao protesto de Beatriz. — Tão-pouco concordo que citeis Joana d’Arc

como um exemplo a seguir. Ela lutou pelo seu príncipe e isso só lhe

valeu uma morte cruel. Não desejaria tal destino a ninguém. Decerto

não o quero para mim. Por aborrecido que isso vos pareça, prefiro casar

e ter filhos, como é o meu dever.

Beatriz lançou-me um olhar penetrante.

— O dever é para os fracos. Não me digais que nunca pusestes

tudo isso em causa. Devorastes aquele livro dos reis nas cruzadas que

está na nossa biblioteca como se fosse maçapão.

Forcei uma risada.

— Sois incorrigível.

Nesse momento chegaram Alfonso e Don Chacón, que parecia

muito aborrecido.

— Vossa Alteza, minha Senhora de Bobadilla, não devíeis ter fugi-

do a galope daquela maneira. Poderíeis ter-vos magoado, ou pior. Quem

sabe o que espreita nestes campos ao anoitecer?

Apercebi-me do medo na sua voz. Embora o rei Henrique tivesse

entendido por bem deixar-nos em paz em Arévalo, isolados da corte,

a sua sombra pairava nas nossas vidas. A ameaça de ser raptada era um

risco a que há muito me habituara, tanto que passara a ignorá-lo. Mas

Chacón era devotado à nossa proteção e levava muito a sério qualquer

possibilidade de ameaça.

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— Perdoai-me — retorqui. — Foi um erro. Não sei o que me deu.

— O que quer que tenha sido, estou impressionado — disse

Alfonso. — Quem vos teria imaginado uma tal amazona, querida irmã?

— Eu, uma amazona? De maneira nenhuma. Apenas quis testar

o Canela. Ele saiu-se bem, não achais? É bem mais veloz do que o seu

tamanho sugere.

Alfonso abriu um sorriso.

— Pois é. E sim, de facto, saístes-vos muito bem.

— E agora temos de regressar — disse Chacón. — Já é quase noi-

te. Vinde, iremos pela estrada principal. E, desta vez, nada de arrancar

a galope. Fui claro?

De novo a cavalo, eu e Beatriz seguimos o meu irmão e Chacón,

crepúsculo adentro. Aliviada, percebi que Beatriz resolvera não fazer

das suas, seguindo recatadamente ao meu lado. Mas quando íamos che-

gando a Arévalo, com o céu tingido de listas em tons de coral, não pude

evitar recordar a nossa conversa e, contra vontade, perguntar-me como

seria ser-se um homem.

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C A P Í T U L O D O I S

A torre de menagem estava deserta, o que era anormal àquela

hora, e, mal entrámos no salão de banquete e vimos que a com-

prida e lascada mesa central ainda não fora posta para a refei-

ção da noite, pressenti que algo se passava. Alfonso e Chacón estavam

nos estábulos a desselar e a escovar os cavalos. Enquanto Beatriz me

despia o manto, olhei para a lareira; nem tão-pouco fora acesa. A única

luz era a dos archotes na parede, que iam cuspindo fagulhas.

— Onde estará toda a gente? — perguntei, massajando as mãos

esfoladas pelas rédeas e tentando soar indiferente. — Julguei que Doña

Clara fosse estar na torre de menagem à nossa espera, com a sua chiba-

ta e as suas reprimendas.

— Também eu. — Beatriz franziu o sobrolho. — Está tudo calmo

demais.

Perguntei-me se a minha mãe teria adoecido de novo enquanto

andáramos a cavalgar. Senti uma pontada de culpa. Deveria ter ficado

ali, em vez de sair de forma tão súbita, sem dizer uma palavra.

A minha tutora entrou e veio apressadamente ter connosco.

— Aí vem ela — sussurrou Beatriz, mas eu percebi de imediato

que a preocupação no rosto da minha aia não tinha a ver connosco. Se

Doña Clara ficara zangada com a nossa fuga, algo mais importante aca-

bara entretanto por se sobrepor a isso.

— Até que enfim — disse ela, sem a severidade do costume. — Onde

vos metestes? Sua Alteza, a vossa mãe, tem estado a perguntar por vós.

A minha mãe estivera a perguntar por mim. O meu coração acele-

rou e, como se de longe, ouvi Beatriz dizer:

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— Estávamos com Sua Alteza, o príncipe. Não vos lembrais, Doña

Clara? Dissemos que íamos…

— Eu sei com quem estáveis, criança impertinente — interrom-

peu a minha aia. — O que eu perguntei foi onde. Saístes há mais de três

horas, caso não tenhais dado por isso.

— Três horas? — Olhei para ela. — Mas não pareceu sequer… —

Ao dar com o seu olhar severo, a voz morreu-me na garganta. — Há

algum problema? A mamã…?

Doña Clara assentiu.

— Enquanto andáveis a passear chegou uma carta que a deixou

muito aflita.

Com um nó no estômago, dei a mão a Beatriz. Doña Clara conti-

nuou:

— A carta veio da corte. Eu mesma a recebi do mensageiro, por

isso vi o selo. O mensageiro não esperou por resposta; disse que não era

necessário. Ao lê-la, a minha senhora ficou tão perturbada que tivemos

de preparar uma infusão de malmequer e ruibarbo. Doña Elvira tentou

que ela a bebesse mas Sua Alteza não queria ninguém de volta dela. Foi

para os seus aposentos e bateu com a porta.

Beatriz apertou-me a mão; ambas estávamos a pensar no mesmo.

Se chegara uma carta da corte, as notícias, quaisquer que fossem, não

podiam ser boas.

— Uma carta a esta altura — continuou Doña Clara. — Podeis ima-

ginar? Após dez anos de silêncio! Claro que ela ficou perturbada. Vivemos

aqui todo este tempo sem nunca recebermos uma ordem ou um convite

para nos apresentarmos na corte, como se fôssemos parentes pobres, um

embaraço a manter longe da vista de todos. Só Carrillo entendeu por bem

enviar-nos os pagamentos prometidos para o nosso sustento, e nem mes-

mo ele, um príncipe da Igreja, consegue que o rei abra os cordões à bol-

sa. Sem o nosso gado e as nossas colheitas já teríamos morrido à fome.

E olhai em redor: precisamos de novas tapeçarias e de tapetes para o chão,

já para não falar em roupas. Sua Majestade, o rei, sabe disso; sabe que

duas crianças não se criam só com ar e esperanças.

Aquela sua veemência não era novidade; as suas queixas sobre

a nossa penúria eram tão comuns que, em geral, eu nem as ouvia.

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Mas naquele momento foi como se Doña Clara me tivesse de súbito ar-

rancado um véu dos olhos. Vi as paredes do salão de banquete como de

facto estavam — cheias de bolor e com as tapeçarias todas desbotadas.

O soalho estava todo empenado e a mobília decrépita. A nossa era uma

casa de camponeses pobres e não o lar da rainha viúva de Castela e dos

seus filhos reais.

Ainda assim, era a minha casa, a única de que me recordava. Com

um sobressalto, recordei abruptamente a visão fugaz que tivera no

cume — o salão com as figuras vestidas de veludo. Parecia que não me

esquecera daquela corte distante onde a minha família outrora vivera…

Desejei poder ir para a capela para poder refletir a sós durante

algum tempo. Embora fria e austera, a capela do castelo trazia-me sem-

pre alívio quando enfrentava alguma dificuldade; o simples ato de me

ajoelhar e juntar as mãos dava-me consolo e um fito, mesmo se nunca

me acalmava o suficiente para conseguir rezar.

— Ide ter com ela — pediu Doña Clara. Assenti, resignada. Com

Beatriz a meu lado, atravessei o salão de banquete em direção às es-

cadas que levavam ao segundo andar. No patamar encontrámos Doña

Elvira, a matrona-mor da minha mãe, sentada num banco. Ela ergueu-

-se de imediato.

— Oh, Isabel, minha filha! — Levou à boca a mão cheia de man-

chas castanhas, fazendo por conter as lágrimas. A pobre Doña Elvira

estava sempre à beira das lágrimas; nunca conhecera uma mulher que

chorasse tão copiosamente ou com tanta frequência como ela.

Afaguei-lhe o ombro magro, tentando tranquilizá-la. Elvira era

uma servidora devota que viera de Portugal com a minha mãe e que se

mantivera ao seu lado durante todas as nossas provações. Nervosa por

natureza, não tinha culpa de não saber como lidar com os episódios da

minha mãe. Na verdade, ninguém no castelo sabia, exceto eu.

— Não deveis preocupar-vos — disse-lhe com brandura.

Elvira limpou as lágrimas das faces enrugadas.

— Quando aquela carta chegou, Virgem Santíssima, devíeis tê-la

visto; parecia possessa, aos gritos e invetivas. Oh, foi terrível de ver!

Depois… bateu com a porta e recusou-se a deixar entrar fosse quem fos-

se, até mesmo eu. Supliquei-lhe que bebesse a infusão, que repousasse

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e que se acalmasse até vós regressardes a casa, mas ela mandou-me sair.

Disse-me que agora ninguém a pode ajudar senão Deus.

— Eu ocupo-me dela — retorqui. — Ide, preparai outra infusão.

Mas dai-me algum tempo antes de a trazerdes. — Lancei-lhe novo sor-

riso tranquilizador e depois fiquei a vê-la afastar-se a arrastar os pés

antes de me voltar para a porta do quarto. Não queria entrar. A minha

vontade era fugir.

— Eu espero aqui — disse-me Beatriz. — Pode ser que preciseis

de mim.

Inspirei para me acalmar e depois estendi a mão para o trinco. Há

já algum tempo que a fechadura fora tirada, depois de a minha mãe se

ter trancado ali dentro durante um dos seus episódios. Passara mais

de dois dias ali isolada. Por fim, Don Chacón vira-se obrigado a deitar

a porta abaixo.

Mal entrei, deparei com as consequências do seu acesso. Espalha-

dos pelo chão estavam frasquinhos partidos, papéis e objetos caídos de

baús revirados. Pestanejei para ajustar o olhar à obscuridade e depois

avancei resolutamente um passo. O meu pé tocou em algo que fez baru-

lho ao rebolar para longe, brilhando ligeiramente e deixando um rasto

húmido.

Era a taça onde Doña Elvira trouxera a infusão.

— Mamã? — chamei. — Mamã, sou eu, a Isabel.

Senti um vago cheiro a bafio — uma constante naquele castelo

antigo, por causa do rio que corria ali por baixo. Por entre a escuri-

dão, comecei a distinguir objetos familiares. Vislumbrei a cama de dos-

sel meio afundada e as cortinas de brocado a roçarem os juncos que

cobriam o chão; vi o tear e a roca diante da janela fechada; vi o braseiro

apagado e, na alcova, o trono — uma relíquia abandonada por baixo

de um dossel com o timbre que combinava as armas de Castela e de

Portugal, onde a minha mãe nascera.

— Mamã? — A voz tremeu-me. Cerrei os punhos. «Não há nada

a temer», disse a mim mesma. Já o fizera. Sozinha, eu salvara a minha

mãe do precipício mais de uma vez. De toda a gente na nossa casa,

apenas eu tinha a capacidade de a acalmar, de a trazer de volta à razão

quando se davam aqueles episódios. E ela nunca me fizera mal.

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Escutei um ruge-ruge. Perscrutando as sombras junto à cama,

vislumbrei-a. Tive uma terrível recordação da noite em que o meu pai

morrera, quando eu julgara ver o fantasma do condestável.

— Mamã, sou eu. Saí daí. Dizei-me o que vos assustou tanto.

Ela avançou a medo. Os cabelos desgrenhados emolduravam-lhe

o rosto pálido e as suas longas mãos brancas amarfanhavam o vestido.

— Hija mía, ele está aqui. Voltou para me atormentar.

— Não, mamã. É só o vento. — Aproximei-me do aparador;

quando risquei a pederneira junto da vela que ali estava, ela gritou:

— Não, luz não! Ele vai ver-me! Ele… — O seu grito interrom-

peu-se quando me voltei para ela a segurar na vela acesa, cujo trémulo

círculo de luz projetava sombras alongadas pelas paredes.

— Vedes, mamã? Só aqui estamos vós e eu.

Arregalando os seus olhos verde-azulados, a minha mãe inspecio-

nou o quarto como se esperasse dar com o seu algoz à espreita nalgum

canto. Estava prestes a recuar um passo para me precaver quando, de

repente, ela ficou apática. Com um suspiro de alívio, enfiei a vela num

castiçal e ajudei a minha mãe a sentar-se. Puxando um banco para junto

dela, tomei as suas mãos geladas nas minhas.

— Eu sei que não acreditais em mim — disse ela, a sua voz ainda

com uma nota de frenesim assustado. — Mas ele estava aqui. Vi-o junto

à janela a olhar-me fixamente, como costumava fazer quando ainda era

vivo e queria demonstrar o poder que exercia sobre o vosso pai.

— Mamã, o Condestável Luna está morto. Não está aqui ninguém

para vos fazer mal, juro.

Ela soltou a sua mão da minha.

— Como podeis jurar uma coisa dessas?! Vós não sabeis a verdade;

não entendeis. Ninguém entende. Mas ele sim. Ele sabe que há uma

dívida de sangue a saldar.

Fiquei arrepiada.

— Mamã, estais a falar de quê? Qual dívida?

Ela pareceu não me ouvir.

— Eu não tive escolha — continuou. — Ele tirou-me o vosso pai.

Era uma abominação, um demónio; seduziu o meu próprio marido e le-

vou-mo. E culparam-me a mim por isso. Os nobres, o povo e até o vosso

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pai disseram que a culpa era minha. João disse-me que desejava ter

também morrido naquele dia, para poder ficar com o seu amado amigo.

E assim foi; ele morreu. Nem tão-pouco tentou viver, por mim ou pelos

filhos. Preferiu aquele… aquele homem aberrante.

Não queria ouvir aquilo. Não era conversa para os meus ouvidos;

eu não era o seu confessor. Mas, não estando ali mais ninguém, cabia-

-me acalmá-la o suficiente para a minha mãe pelo menos deixar que

cuidassem dela. E ali estava a carta, a razão daquela crise nervosa. Tinha

de descobrir o que dizia.

— O papá morreu de uma doença — retorqui, hesitante. — Não

foi de propósito. Ele estava doente. Tinha febre e…

— Não! — Ela pôs-se de pé. — Ele queria morrer! Escolheu a mor-

te para poder fugir de mim. Virgem Sagrada, é por isso que não consigo

descansar e vivo dia após dia num tormento sem fim. Se eu não tivesse

feito o que fiz, talvez João tivesse vivido. E eu ainda seria rainha. Tería-

mos ainda tudo o que é nosso de direito!

Então, ouvi as palavras que as damas tinham sussurrado há tanto

tempo, como se elas estivessem ali connosco: Foi a loba portuguesa… ela

matou Luna.

A minha mãe destruíra o amigo do meu pai. Era por isso que acre-

ditava que o fantasma dele a assombrava; era por isso que estava sem-

pre a ter aqueles terríveis episódios. A minha mãe acreditava naquela

dívida de sangue que ela mesma contraíra.

Forcei-me a pôr-me de pé.

— Está frio aqui. Deixai-me acender o braseiro.

— Sim! Porque não? Acendei a lareira. Ou, melhor ainda, trazei

archotes e pegai fogo ao castelo. Isso será uma amostra do que me es-

pera no Inferno. — Começou de novo a andar de um lado para o outro.

— Deus do Céu, o que posso eu fazer? Como posso proteger-vos? —

Pôs-se às voltas sem sair do lugar. Imobilizei-me, pronta para o que aí

vinha. Mas ela não gritou; não se pôs com invetivas nem a esgatanhar-

-se como fizera noutras vezes. Em vez disso, levou a mão ao bolso do

vestido e atirou-me um papel amarrotado. Apanhando-o do chão, voltei-

-me para a vela. Dei por mim com a respiração suspensa. Enquanto

eu lia fez-se silêncio, apenas entrecortado pelo carpir do vento lá fora.

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A carta era do rei Henrique. A sua mulher, a Rainha Joana, dera à luz

uma menina. Tinham-lhe posto o nome da mãe.

Então, a minha mãe disse-me:

— Henrique conseguiu o impossível. Tem um herdeiro.

Ergui o olhar, confusa.

— Decerto isso é motivo para festejarmos.

Ela riu-se.

— Oh sim, vai haver festa! Vão todos festejar o meu fim. Tudo

aquilo por que lutei está perdido; não tenho coroa nem corte; o vosso

irmão Alfonso vai ser deserdado. E eles virão. Levar-vos-ão, a vós e a

Alfonso. Deixar-me-ão aqui sozinha a apodrecer, esquecida do mundo.

— Mamã, isso não é verdade. Esta carta apenas anuncia o nas-

cimento da criança. Nada diz a respeito de irmos seja para onde for.

Vinde, estais exausta. Busquemos alívio as duas.

Guardei a carta no bolso e aproximei-me do genuflexório. Aque-

le era um conforto que a minha mãe me ensinara a buscar ainda em

criança, um ritual de que ambas gostávamos; todas as noites dizíamos

juntas as nossas orações.

Ao estender a mão para a caixinha de madrepérola onde ela guar-

dava o rosário, ouvi-a dizer:

— Não, basta de orações. Deus já não me ouve.

Imobilizei-me.

— Isso… isso é blasfémia. Deus ouve-nos sempre. — Mas, nes-

se momento, as minhas palavras soaram-me sem convicção, o que me

aterrorizou. Senti o peso de coisas que ainda mal entendia a criar um

abismo entre nós; quase gritei quando ouvi um bater hesitante à porta.

Vi Elvira ali parada, segurando uma taça; quando lha tirei das mãos, ela

lançou-me um olhar inquiridor. Ao voltar-me, a minha mãe pusera-se

de novo junto à cama, a observar-me.

— Ah — disse —, chegou o meu olvido.

— É uma infusão para vos ajudar a dormir. Mamã, agora tendes de

descansar. — Aproximei-me. Ela não resistiu; bebeu a infusão e depois

deitou-se sobre os lençóis enrodilhados. Pareceu-me muito velha, com

uns olhos grandes demais para o rosto esquelético; a sua boca outrora

macia estava agora cheia de rugas. Com apenas trinta e três anos, era

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o juramento da rainha

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ainda uma mulher nova, mas dir-se-ia que já estava naquela fortaleza

abandonada há mil anos.

— Descansai — pedi. — Eu estou aqui; não vos vou deixar. Des-

cansai e tudo ficará bem.

As suas pálpebras estremeceram. Comecei a cantar baixinho uma

cantiga de embalar que todas as crianças conhecem: Duerme, pequeña

mía; duerme feliz. Los lobos aúllan fuera pero aquí me tienes a mí. «Dorme,

pequenina, dorme feliz. Lá fora os lobos uivam mas eu estou aqui.»

Os seus olhos fecharam-se. Com um último retesar do corpo, a sua

agitação esgotou-se. Começou a murmurar. Aproximei-me para ouvir.

— Fi-lo por vocês — dizia ela —, por vós e por Alfonso. Matei Luna

para vos salvar.

Fiquei imóvel a seu lado, recordando aquela noite há tantos anos

em que fugíramos. Valladolid. Nunca refletira nos acontecimentos que

tinham levado ao nosso exílio mas agora entendia o terrível segredo

que dilacerava a alma da minha mãe.

Vi-a dormir. Queria rezar por ela; estava errada, tinha de estar.

Deus sempre nos acudira, sobretudo nas horas de desespero. Mas ape-

nas fui capaz de me perguntar se chegaria um dia em que também eu

me veria forçada a fazer o impensável, para depois viver durante toda

a eternidade assombrada pelas minhas ações.

Beatriz estava à minha espera lá fora. Quando saí, ela ergueu-se;

o meu irmão viera entretanto fazer-lhe companhia.

— Ouvi dizer que a mamã não está bem — disse ele. — É…

Assenti.

— Foi mau. Temos de a distrair, de não a deixar só. Ela agora pre-

cisa de nós.

— Claro. Tudo o que disserdes — retorquiu ele. Mas eu sabia que

o meu irmão preferia manter-se à distância, entretendo-se com as suas

armas e com os cavalos. Alfonso nunca compreendera por que razão

a nossa mãe se comportava assim, o porquê de os seus abraços fer-

vorosos e de a sua alegria poderem de súbito tornar-se violentos, tal

como as tempestades de inverno que uivavam pelas planícies. Sem-

pre me apercebera do medo que ele tinha da nossa mãe e fizera todos

os possíveis para o proteger dos ataques dela. Depois de ele me beijar

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c. w. gortner

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desajeitadamente a face e de descer as escadas, olhei para Beatriz.

A carta amarrotada pesava-me no bolso como uma pedra.

Eles virão. Levar-vos-ão, a vós e a Alfonso.

Embora quisesse negá-lo com todas as forças, sabia que talvez

fosse verdade.

Tínhamos de nos preparar.

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