Carvalho -Carvalho - 2011 - O Reino do Ndongo no Contexto da Restauração Mbundu
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Sankofa. Revista de Histria da frica e de Estudos da Dispora Africana Ano IV, N 7, Julho/2011
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O Reino do Ndongo no Contexto da Restaurao: Mbundus, Portugueses e Holandeses na frica Centro Ocidental
Flvia Maria de Carvalho1
Resumo:
O principal objetivo do artigo analisar as relaes estabelecidas entre os governadores e funcionrios da Coroa portuguesa e as autoridades locais do reino do Ndongo, no perodo de 1640 (Restaurao portuguesa) a 1671 (fim da autonomia poltica da regio). O perodo foi marcado por uma srie de conflitos como as invases holandesas nos territrios que posteriormente passaram a ser chamados de Angola, e embates travados entre religiosos da Companhia de Jesus e capuchinhos italianos que contestavam o monoplio do missionarismo portugus na frica Centro Ocidental. Palavras-chaves: Histria de Angola, reino do Ndongo, elites polticas africanas, administrao portuguesa. Abstract:
The main purpose of this paper is to analyze the relations between governors and officials of the Portuguese Crown and local authorities of the kingdom of Ndongo, between 1640 (Restoration of Portugal) to 1671 (end of the political autonomy of its region). The period was marked by a series of conflicts as the Dutch invasion in the territories that later came to be called Angola, and clashes between religious caught the Society of Jesus and Italian Capuchin who were contesting the monopoly of Portuguese missionarism in Western Central Africa. Key-words: History of Angola, the kingdom of Ndongo, African political elites, Portuguese administration.
Apresentao
A partir da dcada de quarenta do sculo XVII o ento reino do Ndongo passa a
ser o cenrio de importantes embates internacionais. Em um primeiro plano os
colonizadores portugueses, estabelecidos nos territrios da frica Centro Ocidental desde
finais do sculo XV, so desafiados por invasores holandeses que tinham pretenses
ntidas, e at mesmo bvias, de tomar o controle do fornecimento de escravos. O
momento tambm o cenrio da Restaurao portuguesa2, marcando a retomada da
soberania poltica portuguesa e a ascenso da Casa de Bragana sobre o reino e sobre suas
possesses coloniais.
Simultaneamente, a Coroa portuguesa e o Vaticano entram em embates sobre o
controle das atividades missionrias. Conflitos protagonizados por inacianos portugueses e
capuchinhos italianos, que no concordavam com o monoplio lusitano da evangelizao.
1 Doutoranda em Histria da Universidade Federal Fluminense desenvolve pesquisas sobre as relaes entre os governadores e demais funcionrios da Coroa portuguesa e as elites polticas de Angola nos sculos XVII e XVIII, com projeto intitulado Elites poltica angolanas: ngolas, sobas, macotas, macunzes e tandalas na dinmica dos governos portugueses sculos XVII e XVIII, orientado pela Prof Dr Mariza de Carvalho Soares. Mestre em Histria pela mesma instituio, com dissertao intitulada Violncia e corpo escravo: impasses nas experincias coloniais ilustradas - Rio de Janeiro e Angola na segunda metade do sculo XVIII, orientada pelo Prof. Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo. 2 Adotamos como referncias principais para as anlises sobre a Restaurao portuguesa os trabalhos de Eduardo DOliveira Frana. Portugal na poca da restaurao. So Paulo: Hucitec, 1997; e de Fernando Bouza lvarez. Portugal no tempo dos Filipes. Poltica, cultura, representaes. (1580-1668). Lisboa: Edies Cosmos, 2000.
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Internamente a situao dos portugueses tambm no era estvel. Intrigas e guerras
marcam esse perodo da presena portuguesa nos territrios dos povos mbundus, em
contraponto com o discurso vigente no perodo anterior da Unio Ibrica, onde as
instrues filipinas defendiam relaes pacficas entre colonizadores e as lideranas locais.
Sustentados pelo discurso missionrio, os agentes da Coroa deveriam resgatar almas, ao
mesmo tempo em que os corpos deveriam ser vendidos nos mercados americanos. O
perodo posterior da Restaurao portuguesa marca a redefinio de estratgias junto as
principais lideranas locais, perodo de guerras e de grande violncia principalmente nos
governos de Salvador Correia de S, Joo Fernandes e Andr Vidal de Negreiros, perodo
dos governos braslicos em Angola.
Nesse contexto uma das principais prioridades entre os administradores
portugueses era a meta de legitimar seu poder frente s ameaas internas e externas que
fragilizavam o seu governo e seus objetivos nas regies do reino de Ndongo, que no ano de
1671 perde sua autonomia, sucumbindo aos interesses metropolitanos, e passando a ser
denominado Angola.
Em sntese, o recorte cronolgico adotado mostra os desafios assumidos pelos
portugueses para legitimar sua soberania nos territrios da frica Centro Ocidental, mais
especificamente no reino do Ndongo, terra do povo mbundu.
Dividimos o trabalho em trs partes:
1 O reino do Ndongo: a corte africana do Ngola entre os mbundus;
2 O Ndongo e as disputas internacionais;
3 Angola braslica: os governos de Salvador Correia de S, Andr Vidal de
Negreiros e Joo Fernandes.
1 parte: O reino do Ndongo: a corte africana do Ngola entre os mbundus
1.1. Territorialidade e identidade mbundu
Os territrios do ento chamado reino do Ndongo compreendiam faixas de terra
entre dois importantes rios da regio: o Kwanza e o Bengo. Cercado por importantes
reinos da frica Centro Ocidental como o Congo e a Matamba, o Ndongo era habitado
pelos mbundus3, povo de origem banto, falante de kimbundu, que segundo Jan Vansina
teria migrado para a regio buscando reas com melhores potenciais agrcolas4.
3 A regio era habitada majoritariamente pelo povo mbundu, tambm chamado e grafado em alguns textos e fontes como umbundu. 4 VANSINA, Jan. Paths in the Rainforests. Toward a History of Political Tradition in Equatorial Africa. Madison. Wisconsin, 1990.
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A principal autoridade entre os mbundus era o Ngola5, ttulo que deu origem a
designao portuguesa Angola para suas conquistas. Contudo o poder do Ngola era restrito
e limitado. Muitos dos sobas que viviam em seus domnios eram totalmente independentes,
ou por razes geogrficas que dificultavam o acesso a esses sobados, ou pela ausncia de
legitimidade do poder poltico do Ngola junto a esses chefes locais. Alguns sobas
reconheciam o Ngola somente por seus poderes msticos, como por exemplo, em relao
ao dom de fazer a chuva6, mas no o viam como autoridade poltica.
O sistema poltico e administrativo do reino do Ndongo nesse perodo era diferente
do modelo vigente no reino do Congo, como esclarece Birmingham:
Contrariamente ao Congo, onde, por exemplo, um mani Mbata era governador da provncia de Mbata, um mani Mbamba governador da provncia de Mbamba e assim por diante, no Ndongo no havia governadores de provncias. [...] Cada uma dessas regies dividia-se em numerosos chefados (sobados), na sua maioria autnomos7.
Essa diferena organizacional entre Congo e Ndongo foi determinante para a
definio da meta dos portugueses na regio. Seria mais vantajoso concentrar os esforos
para a contestao da soberania do Ngola do Ndongo junto aos seus sobas, do que do
Mani Congo junto aos manis provinciais.
A presena dos portugueses na regio, e seu relacionamento com os mbundus,
implicaram na necessidade da decodificao de smbolos e procedimentos relacionados ao
exerccio do poder, itens totalmente desconhecidos pelos pioneiros, mas que aos poucos
foram se tornando familiares aos sucessores da empreitada africana nos territrios do
Ndongo.
O historiador Luiz Felipe Barreto8 analisou essa questo de forma genrica em seus
estudos sobre as etapas multisseculares do processo de colonizao portugus. A
contribuio salienta como um imperativo do aprendizado da realidade colonial para a
definio de estratgias e de metas especficas para cada regio do ultramar portugus.
Os descobrimentos antropolgicos seriam produtos da aquisio de informaes e da
compreenso dessas linguagens e simbolismos variados sobe os modelos de organizao e
5 HEINTZE, Beatrix. Angola nos sculos XVI e XVII. Estudos sobre fontes, mtodos e Histria. Luanda: Ministrio da Cultura, 2007. De acordo com a historiadora, outra terminologia utilizada para o ttulo dos reis do Ndongo era Kiluanji. 6 Era comum os sobas enviarem pagamentos para o Ngola em troca de chuvas. Era responsabilidade dos sobas fazerem com que esses tributos chegassem s mos do Ngola, no existiam cobradores de impostos na corte do Ngola. HEINTZE, Beatrix. Op cit. 7 BIRMINGHAM, David. Alianas e conflitos. Os primrdios da ocupao estrangeira em Angola (1483-1750). Luanda: Arquivo Histrico de Angola, 2004. 8 BARRETO, Luiz Felipe. Os Descobrimentos e ordem do saber uma anlise scio cultural. Lisboa: Ed. Gradiva, 1989. Luiz Felipe Barreto no analisa casos especficos da colonizao portuguesa, mas insere a noo das Descobertas Antropolgicas para a compreenso da presena portuguesa nos territrios ultramarinos portugueses.
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identificao de hierarquias e dos canais de comunicao teis na construo de uma
relao entre colonizadores e as autoridades locais.
A ocupao portuguesa na regio, iniciada no sculo XV, forneceu esses pr-
requisitos aos agentes colonizadores, o que fez com que no sculo XVII, em comparao
com seus rivais estrangeiros, os portugueses levassem vantagens em alguns itens. Essa
bagagem cultural favoreceu os deslocamentos dos lusitanos pelo interior, a comunicao
com pombeiros e tangomaos9, assim como a compreenso de terminologias lingusticas
kimbundus, porm no bastou para que posteriores alianas entre os mbundus e
estrangeiros fossem evitadas, quando estes sinalizavam com vantagens comerciais no trato
negreiro.
Do estabelecimento de feitorias, passando pela adoo do sistema de capitanias
hereditrias efetivado por Paulo Dias Novais10, at os investimentos militares para a
subordinao do reino do Ndongo, os portugueses experimentaram mtodos diversificados
na tentativa de tornar Angola uma pea funcional em seu sistema colonial.
O sistema de capitanias foi implementado por uma Carta Rgia no ano de 1571,
definia os limites dos territrios localizados nas margens do rio Kwanza. De acordo com
essa Carta Rgia essa capitania deveria ser dividida em duas partes: uma moldada nos
moldes tradicionais das capitanias implementadas na Amrica Portuguesa, outra parte que
deveria ser posteriormente devolvida Coroa portuguesa. Aps a morte de Paulo Dias
Novais, vrias tenses passaram a tomar conta dos territrios de Angola motivadas pelas
disputas de sucesso, esses desentendimentos passaram a ser uma preocupao para os
colonizadores, o que levou a Coroa anular o sistema de capitanias e implementar o sistema
de governo-geral no ano de 1592, e no ano de 1595 foi criado o asiento privilgio de
fornecimento de escravos por parte dos traficantes portugueses para os mercados da
Amrica Espanhola11.
A instruo da Coroa portuguesa que estava voltada para a reduo do poder do
Ngola tinha propsito claro: ampliar as reas de fornecimento de escravos para o crescente
9 ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e Tangomaos, intermedirios do trfico de escravos na frica sculo XVI. In: II Colquio Internacional sobre mediadores culturais. Lagos: Centro de Estudos Gil Eanes, 1999, p. 15-38. Segundo o historiador a grafia da palavra pumbeiro se aproxima do termo do dialeto africano kimbundo pumbu, da mesma forma que mpunbu, que significam originalmente trs pontos comerciais, relacionados aos grandes mercados da frica Centro Ocidental. 10 O sistema de capitanias foi implementado no ano de 1571 atravs de uma Carta Rgia do mesmo ano. 11 O trabalho de Maria de Ftima Gouva fornece um importante mapeamento do quadro administrativo das heterogneas possesses do Imprio Ultramarino Portugus, analisando o papel dos privilgios e das redes clientelares na formao desses quadros burocrticos. GOUVA, Maria de Ftima. Poder Poltico e Administrao na Formao do Complexo Atlntico Portugus (1645-1808). In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima (Orgs.). O Antigo Regime nos trpicos: a dinmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 285-315.
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mercado atlntico de meados do sculo XVII, alm de assegurar uma importante aliana
previamente defensiva s possveis, e anunciadas, invases holandesas na frica Centro
Ocidental.
Os Ngolas tinham seu poder marcado pelo sobrenatural, seriam os grandes
responsveis por trazer a chuva. Sua funo era estratgica para a manuteno da unidade
do reino, mesmo quando para muitos sobas essa vertente mstica era a nica reconhecida.
Para os mbundus o controle da natureza era uma atribuio do Ngola, relacionando essa
prtica ao dom de comunicao com os ancestrais, elemento estranho aos colonizadores
portugueses, que precisaram de tempo para compreender a forte presena da ancestralidade
e do componente mgico da figura real no processo de reconhecimento de seu soberano.
As hipteses explicativas sobre as origens do primeiro Ngola foram analisadas por
Miller12. De acordo com seus estudos o primeiro Ngola no teria sido uma pessoa concreta,
mas sim o princpio abstrato da organizao poltica baseada no Ngola, que
originalmente teria constitudo um emblema de linhagem em forma de um pedao de ferro.
Um componente cultural marcante do povo mbundu foi a valorizao das
tradies, e a fora da oralidade na preservao de valores e crenas. Graas a isso, a
tradio do rei ferreiro foi preservada em vrias regies da frica Centro Ocidental, ponto
que pode ser percebido tambm no uso de insgnias comuns em diferentes regies.
Frente a isso os portugueses constataram a funo mltipla do Ngola, que, portanto
deveria ser mantido no poder, desde que fosse um aliado portugus. Esse objetivo foi
conquistado no ano de 1626, quando auxiliado pelos portugueses assumiu o ttulo mximo
do Ndongo, Ngola Ari13, que se manteve durante toda sua vida um aliado incondicional
dos portugueses.
1.2. A hierarquia do Ndongo em meados do sculo XVII
O reino do Ndongo era formado por uma sociedade altamente hierarquizada, onde
papis eram muito bem definidos, e a prestao de servios ao Ngola levou formao de
uma complexa corte.
Alm do Ngola e dos sobas, existiu no Ndongo um grupo extremamente poderoso:
os makotas. Esses eram homens descritos como idosos, que exerciam a funo de
12 MILLER, Joseph C. Poder poltico e parentesco. Os antigos Estados mbundus em Angola. Luanda: Ministrio da Cultura, 1995. 13 Ngola Ari auxiliou em vrios momentos os portugueses, entre seus feitos exemplificamos a vitria dos portugueses auxiliados por suas tropas, na vitria sobre a rainha Nzinga, entre 1626 e 1627. BIRMINGHAM, David. Op cit. HEINTZE, Beatrix. Op cit.
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aconselhar o Ngola. Sua influncia era tamanha que chegava a limitar o poder dos sobas e
at mesmo a interferir nos processos de sucesso dos Ngolas.
A sucesso real entre os mbundus deveria seguir os princpios baseados na
matrilinearidade, vlido na poligmica sociedade do Ndongo. De acordo com os relatos de
Cadornega14 o sucessor do Ngola deveria ser filho da esposa principal do rei, caso esta no
tivesse filhos, o herdeiro deveria ser o filho da segunda esposa. Os filhos do rei com
escravas no tinham direito a pleitear o cargo, princpio vlido tambm para as sucesses
entre os sobas. O que Cadornega nos mostra o papel decisivo dos makotas no processo
sucessrio.
Atravs da anlise entre velhice e conhecimento identificamos a valorizao da
experincia de vida, alm do peso da oralidade na divulgao e preservao ancestral desses
aconselhamentos entre a cultura mbundu.
De acordo com Beatrix Heintze15 a hierarquia dos mbundus era formada por vrios
outros grupos. Abaixo dos Ngolas e dos makotas, estavam os sacerdotes supremos
chamados mani-ndongos, abaixo vinham os tandalas, espcie de primeiros ministros, em
seguida os tandalas de cari, ministros secundrios, na sequncia vinham as lideranas
militares representadas pelos ngolambole, que eram os chefes dos exrcitos, depois os
ferreiros, grupo tambm ligado aos poderes sobrenaturais em funo da relao entre a
origem do Ngola e o mito do rei ferreiro, e as especializaes funcionais do squito do
Ngola: o criado (mordomo): mwene lumbu, o roupeiro: mwene musete, o chefe de cozinha:
mwene quizoula e os embaixadores que representavam a autoridade real nos acordos que
exigiam deslocamentos: os macunzes16.
A estratificao social entre os mbundus tambm comprovada pela existncia de
grupos que poderiam ser escravizados e de outros que no poderiam. Na lngua kimbundu,
os murindas eram pessoas que no poderiam perder sua liberdade, evidenciando os
privilgios e as desigualdades nos estatutos sociais.
As terminologias podem variar quando as fontes so confrontadas, como o que
ocorre na anlise do Dirio annimo de uma viagem s costas dfrica e as ndias espanholas17.
14 A obra de Cadornega uma das mais importantes fontes para a histria da presena portuguesa em Angola. Descrevendo com detalhes muitos hbitos e feitos da colonizao angolana, Cadornega sem dvida uma referncia essencial para os estudos africanistas. CADORNEGA, Antnio de Oliveira. Histria Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Divises de Publicaes e Biblioteca, 1942. 15 HEINTZE, Beatrix. Op cit. 16 Idem. 17 Dirio annimo de uma viagem s Costas dfrica e s ndias Espanholas. Organizado e comentado por Gilberto Ferrez. In: Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, vol. 267, abril-junho de 1965. Esse manuscrito tem como ttulo original: Journal dun vouyage sur ls costes dafrique et aux Indes dEspagne avec une description particulire de la rivire de la Plate, de Buenosayres, e autres lieux; commenc en 1702 et fini en 1706, editada em
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Trabalhando com esse fascinante relato nos deparamos com outros termos para a
designao do squito do Ngola.
O documento, transcrito na Revista do IHGB e editado junto a um comentrio de
Gilberto Ferrez, descreve a incrvel trajetria de um espio annimo enviado frica
para fiscalizar, e reportar, para um amigo em Paris todas as etapas do trfico. O objetivo
de sua viagem era obter escravos na costa africana e transport-los para Buenos Aires. A
embarcao cedida pelo rei francs Compagnie Royale de lAssiente saiu das regies de La
Rochelle no ano de 1702 e partiu em direo as terras de Loango e posteriormente de
Cabinda.
Ao chegar s terras de Cabinda o espio se deparou com quatro embarcaes: uma
holandesa, duas portuguesas e uma inglesa. Essa afirmao nos mostra a abertura
internacional do trfico na costa Centro Ocidental no incio do sculo XVIII, e a
dificuldade encontrada pela Coroa portuguesa para estabelecer um controle efetivo sobre o
fornecimento de escravos para Europa e para as colnias.
Os trechos mais ricos do documento so os que descrevem os procedimentos
necessrios para se estabelecer os contatos iniciais com o principal soba das terras de
Cabinda. Assim como em outros relatos, a moradia do soba descrita como um local
isolado, que exigia um deslocamento aproximado de quatro lguas em relao costa.
David Birmingham18 mostra que o isolamento dos Ngolas era um comportamento
comum. Os reis permaneciam em suas propriedades mantendo contatos restritos somente
com alguns de seus funcionrios, que eram incumbidos de represent-los junto aos
estrangeiros interessados em estabelecer alianas e obter a permisso prvia para a
instalao dos barraces no litoral. Esse hbito do Ngola refora o carter mstico da
autoridade do chefe mbundu, ao mesmo tempo em que descentralizava o poder decisrio
do Ngola, j que suas ordens eram transmitidas por terceiros, em funo da opo pela
ausncia de contatos com os colonizadores e demais autoridades locais que por ventura
necessitassem estabelecer acordos e alianas.
Amsterd em 1723. Na Biblioteca Nacional existe outra edio dessa fonte rara, que foi trabalhada por Affonso dEscragnolle Taunay, que utilizou o Dirio em seus trabalhos Na Bahia Colonial 1610-1764 e Rio de Janeiro de antanho, no captulo Oficial negreiro publicado pela RIHGB, no tomo 90, vol. 144. Taunay tambm utilizou a preciosa fonte em seu clssico Subsdios para a Histria do trfico africano no Brasil Colonial. A verso lida por Taunay foi editada na mesma cidade, s que sua data de edio varia para 1730. Alm dele Regine Pernous fez um estudo sobre esse documento que foi publicado com o ttulo LAmerique du Sud au XVIII sicle no Cahiers dHistoire et de Bibliographie n 3, Nantes, 1943. Para esse trabalho a pesquisadora teve acesso outra edio do manuscrito tambm datada de 1723 e editada em Rouen. 18 BIRMINGHAN, David. Op cit.
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No j citado Dirio annimo o rei designado como Angoye19, e o chefe responsvel
pelo comrcio como mafougne que acompanhado por um capito portugus deveria
conduzir os franceses at o rei Angoye. Nas palavras do viajante annimo:
Entraram ento para ver o rei do pas. O rei Angoye residia a quatro lguas de Cabinda, e recebeu-nos no dia 21. Para isso enviaram uma embaixada que foi levada por um capito portugus e o Mafougne, ou chefe do comrcio; aguardava-os em terra com redes e negros que deveriam conduzi-los at o rei. A duas lguas dali, encontraram vrios oficiais e guardas que o rei enviara para receb-los. Todos incorporados chegaram ao palcio (se tal nome se pode dar a uma cabana feita de bambus e coberta de palha). Graas a oferta de magnficos presentes, um manto escarlate, um robe-de-chambre e um chapu com penacho de plumas brancas, o rei prometeu ajud-los a obter os negros que precisava. Tiveram tambm licena para construir uma feitoria ou barraco para depsito das mercadorias trazidas da Europa, com que deveriam adquirir os 500 negros que pretendiam levar; isso requeria tempo, muita diplomacia, sagacidade e pacincia, presentes e uma srie de complementos20.
Nas palavras do annimo nunca se despede sem antes beber. Por isso preciso
trazer algumas garrafas de cachaa, que a alma da conversa e sem o que seria bem difcil
chegar a algum acordo com os negros 21.
Nas pginas do Dirio surgem outros cargos dos africanos que compunham esse
cenrio de trocas variadas. O rei tinha secretrios e conselheiros, sendo que alguns falavam
at portugus. Entre eles os destacados pelo autor foram: o mambuc, que era o primeiro
ministro e sucessor do rei; o maure, que era o segundo ministro e chefe do Conselho, e o
macinge, que era o capito da costa, que alm de outras funes abastecia os navios
negreiros.
Entre os intermedirios do trfico destacamos os pumbeiros e os tangomaos22. Os
pumbeiros representavam os interesses portugueses nos negcios do trfico, eram os
agentes legais da operao, enquanto os tangomaos eram os atravessadores que
negociavam escravos sem a permisso da Coroa portuguesa, que desde o sculo XVII j
havia instaurado regulamento para o controle das atividades de resgate, venda e transporte
dos africanos. Os tangomaos em contrapartida eram mais integrados s comunidades com
que mantinham relaes, passando a ter um vnculo maior com os hbitos e as formas de
viver dos africanos. Outra diferena entre os dois grupos era a forma com que eles se
inseriam nos grupos locais. Os pumbeiros se aproximavam das populaes africanas com o
interesse definido voltado para obteno de informaes sobre quais seriam as melhores
possibilidades de trocas para a aquisio dos cativos.
19 Precisamos estar atentos quanto utilizao literal desses termos, j que temos a noo de que eles foram transcritos por um francs, a partir do que ele ouvia nas terras de falantes de kimbundu. 20 FERREZ, Gilberto (org.). Dirio annimo.... Op cit 21 Idem. Identificao de determinados itens valorizados nas etapas que garantiam o contato com as autoridades nativas. 22 ZERON, Carlos Alberto. Op cit.
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Essa aproximao dos tangomaos, ou lanados, com a cultura africana foi
comentada pelo jesuta J. Tavares, que vivia em Angola mostrando como a lgica do trfico
repercutiu em variados procedimentos comportamentais, alterando at mesmo suas
caractersticas:
Vestindo-se como nativos, entalhando no rosto as marcas das etnias locais, os lanados foram os primeiros europeus a se adaptarem aos trpicos. Andam nus e para mais se acomodarem, e com o natural usarem o gentio da terra onde tratam, riscam o corpo todo com um ferro [...] e fazendo nele muitos lavores [...] que ficam parecendo em vrias figuras, como de lagostas, serpentes [...] andam por todo aquele Guin tratando e comprando escravos por qualquer ttulo que os pode haver23.
As marcas tatuadas pelos tangomaos representam prticas relacionadas ao uso do
corpo como um veculo de comunicao. Os registros corporais tinham como propsito
identificar esses indivduos como membros das sociedades locais, expressando visualmente
que eles compreendiam suas linguagens e seus cdigos.
Aventureiros, cristos-novos, ou degredados, os tangomaos viam no negcio
negreiro uma possibilidade rentvel de negcio, passando a adotar as colnias africanas
como moradia, onde poderiam deixar de lado seus estigmas marginalizados e se integrar de
uma forma ativa na economia e na vida social local.
Essas variaes na nomenclatura do squito sinalizam para questes referentes as
diferentes tradues das variantes de lnguas do tronco lingustico banto, ao mesmo tempo
nos permitem hipoteticamente questionar a variao de cargos, e de suas denominaes, no
governo de diferentes Ngolas. Beatrix Heintze24 em sua coletnea de artigos sobre Angola
no sculo XVII dedica cinco captulos introdutrios para a discusso de possibilidades
metodolgicas, e da importncia da crtica de fontes utilizadas nas pesquisas sobre Angola
colonial. Discute pontos relevantes como a produo de fontes ser em sua maioria produto
da viso europeia, e da utilizao de registros extrados da tradio oral dos povos
mbundus. A historiadora defende a utilizao cuidadosa e o confronto de fontes para a
aquisio e utilizao de informaes seguras.
Seguindo algumas dessas sugestes metodolgicas, traando paralelos cuidadosos,
podemos concluir que a sociedade do Ndongo possua um vasto squito dedicado aos
servios do Ngola, funcionrios estes que muitas vezes representavam a autoridade real
desempenhando importantes funes nas etapas africanas do trfico negro, principalmente
nas negociaes que intermediavam o contato entre as lideranas mbundus e os agentes
responsveis pela aquisio dos negros no interior dos reinos da frica Centro Ocidental.
23 Palavras do cronista J. Tavares, citado por Luiz Felipe de Alencastro em seu livro O Trato dos viventes : Formao do Brasil no Atlntico Sul. So Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 48. 24 HEINTZE, Beatrix. Op. cit.
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1.3. Nos bastidores do trfico: acordos e barganhas na busca pelas peas da ndia
As trocas de mercadorias por corpos marcaram as primeiras etapas do trfico.
Desse ponto podemos discutir as transformaes ocorridas nas sociedades mbundus aps a
abertura do mercado atlntico. Um item significativo foi a introduo de novos valores
materiais entre essas comunidades.
Entre os gneros mais apreciados pelos agentes africanos do trfico estavam
objetos de estanho, objetos de cobre, espelhos, miangas, armas, munies, rolos de tabaco
e tecidos. Segundo Pierre Chaunu: Certas culturas africanas pagaram o luxo dos panos de
cor que a sua indstria no sabia produzir, mas que o gosto desejaria, pelo preo elevado
duma exportao de homens 25.
A cachaa tambm era muito apreciada, mas normalmente ela era fornecida aos
intermedirios como cortesia, no sendo usada na troca por escravos. Todos os negcios
tinham como medida de equivalncia a referncia de uma pea, e as suas fraes que eram
as meias-peas e as braas, que equivaliam a um quarto da pea.
O termo pea da ndia, por sua vez, valia vrias peas. A definio, negro pea da
ndia, era a representao em mercadorias do que se considerava como valor mximo de
um escravo, podendo ser tambm convertido de acordo com o gnero e, ou a idade dos
cativos. O significado desse termo vem sido trabalhado pela historiografia. Na definio de
Regine Pernoud26 o termo negro pea da ndia era um africano entre 15 e 35 anos sem defeitos
fsicos e de boa constituio. J para Roy Glasgow a definio aplicada ao escravo de
primeira [...] entre os 18 e os 24 anos de idade, com cerca de seis ps (mais ou menos) de
altura e sem nenhum defeito fsico27.
Affonse dEscragnolle Taunay relaciona o uso dessa expresso ao hbito de se
empilharem os escravos da mesma forma que os tecidos indianos, em suas palavras:
arrumando a mercadoria humana como se tratasse de fardos, a empilhar as suas vtimas de tal modo que ainda lhes sobraria espao para os clandestinos escapos dos rigores da taxa de exportao. [...] Assim ao nosso ver o nome pea da ndia originou-se de uma comparao de valores entre escravos e peas de pano de procedncia indiana28.
25 CHAUNU, Pierre. A civilizao da Europa das Luzes. Lisboa: Ed. Estampa, 1985, vol. II, p. 48. 26 Gilberto Ferrez escreve que para Regine Pernoud, uma pesquisadora que analisou anteriormente o documento buscando uma identificao de seu autor, o termo negro pea da ndia era um africano entre 15 e 35 anos sem defeitos fsicos e de boa constituio. FERREZ, Gilberto (org). Dirio.... Op. cit. 27 GLASGOW, Roy. Nzinga. Resistncia africana ao colonialismo portugus em Angola. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1982, p. 54. 28 TAUNAY, Affonso de Escragnolle. Subsdios para a Histria do trfico africano no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Imp. Nacional, 1941, p. 589.
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No reino de Cabinda, localizado nos arredores das possesses portuguesas de
Angola, um escravo pea da ndia valia, em mdia, dez peas e uma braa; enquanto uma
escrava pea da ndia valia, tambm em mdia, oito peas e uma braa; j as crianas
escravas, independente do sexo, valiam em torno de seis a sete peas e uma braa29. Uma
pea podia ser negociada por determinados objetos, como por exemplo, dez bacias de
cobre, ou por seis canecas pequenas de estanho, ou por vinte e quatro facas, mas nem
todos os produtos poderiam ser usados no escambo, quando o africano que estivesse
sendo negociado era uma pea da ndia, nesse caso somente os itens mais desejados
entravam nas transaes30. Essas eram cotaes dos mercados negreiros que variavam de
acordo com os traficantes, fornecedores e futuros senhores.
Como salientou Marina de Mello e Souza:
O comrcio com os portugueses e as mercadorias que introduzia forneciam novos e abundantes signos de prestgio. Dessa forma, os chefes envolvidos no trfico, principalmente de escravos, tornavam-se mais poderosos e expandiam seus territrios e aldeias tributrias. Essas expanses davam-se por meio de guerras que mediam o poder dos chefes, estabeleciam novas composies polticas e territoriais e produziam escravos, disputados pelos mercados interno e externo, com um gradual predomnio deste31.
Partindo desses acordos comerciais vrias redes foram formadas, em muitos casos
aproximando as duas margens do Atlntico portugus e permitindo que grupos particulares
realizassem seus negcios margem da fiscalizao metropolitana. Essas alianas exigiram
dos colonizadores estratgias cuidadosas, onde o embate direto, conflitos fsicos e as
guerras, no deveriam ser os principais recursos para viabilizar os negcios, mas que foram
mais constantes do que os discursos da Coroa idealizavam.
2 parte: O Ndongo e as disputas internacionais
2.1. Quem manda? Quem obedece? Interesses e projetos mltiplos para a administrao do reino
do Ndongo
O Portugal dos Filipes no se tinha construdo sobre a residncia do rei, mas sim sobre uma ausncia (Bouza lvarez)
29 As braas entram no preo dos escravos como taxa dada aos intermedirios que cotavam esses valores. Cf. FERREZ, Gilberto. Dirio annimo.... Op. cit. 30 De acordo com o relato do viajante annimo os intermedirios, pumbeiros e tangomaos, determinavam quais eram os produtos que iriam ser trocados, e que deveriam ser envolvidos em cada etapa no mximo dois itens. Idem. 31 SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista. Histria, mito e identidade na festa de coroao de rei congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
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A afirmao de Bouza lvarez pode ser ampliada tambm para questes
relacionadas administrao colonial. Partindo dela podemos pontuar tanto a existncia de
dificuldades na afirmao da soberania portuguesa tanto junto aos mbundus, quanto aos
estrangeiros que cobiavam o lucrativo mercado atlntico de escravos.
Durante o perodo da Unio Ibrica (1580-1640) as possesses coloniais
portuguesas foram governadas pelo Conselho de Portugal instituio sediada em Madri,
que posteriormente teve suas atribuies transferidas para o Conselho Ultramarino.
Nesse perodo a poltica filipina discursava sobre a importncia das atividades
missionrias junto s almas pags dos africanos, e defendia o estabelecimento de contatos
pacficos com as autoridades africanas. Nas entrelinhas dessas intenes identificamos nos
ideais evangelizadores do resgate uma excelente oportunidade para a obteno de escravos
destinados aos mercados atlnticos. Os tratados teolgicos procuraram durante todo o
perodo escravista justificar e normatizar a captao e o cativeiro africano32.
Logo aps a Restaurao portuguesa, no ano de 1642, foi criado o Conselho
Ultramarino33, importante instituio responsvel pela conduo da administrao colonial,
com meta de normatizar as aes e nortear a conduo dos negcios ultramarinos
portugueses. Interpretamos a criao do Conselho Ultramarino como um reflexo da
poltica portuguesa restaurada pela Casa de Bragana com pretenses de reafirmar sua
soberania nos territrios coloniais.
O perodo posterior Restaurao representou uma virada determinante no que diz
respeito ocupao dos territrios da frica Centro Ocidental. A Coroa portuguesa, agora
sobre o governo de Dom Joo IV, tinha pela frente trs desafios principais no que diz
respeito ao reino do Ndongo. O primeiro objetivo era restabelecer a soberania nos
territrios coloniais, aps sessenta anos da administrao filipina, o segundo era impedir a
perda desses territrios para estrangeiros interessados no negcio negreiro, o que
enfraqueceria consequentemente a economia da Amrica portuguesa, e o terceiro objetivo
era a implementao de uma bem sucedida poltica junto s autoridades dos mbundus.
32 Entre os principais tratados teolgicos destacamos a obra de Manuel Ribeiro da Rocha, e suas definies sobre o que viria a ser o resgate humanitrio. Ethope resgatado... Lisboa: Of. patriarcal de Francisco Luiz Amaro, 1758. Jorge Benci e os ensinamentos sobre as metodologias crists para o castigo de escravos em A economia crist dos senhores no governo dos escravos. So Paulo: Ed. Grijalbo, 1977. E o sermo do padre Antnio Vieira sobre a condio escrava dos corpos cativos e a conquista da liberdade de suas almas. VIEIRA, padre Antnio. Maria Rosa Mystica. Excellncias poderes e maravilhas do seu Rosrio. Compendidas em trinta sermes ascticos e panagyricos sobre os dois Evangelhos desta Solenidade, Novo e Antigo. Lisboa: Imp. Craesbeckiana, 1688. 33 O Conselho Ultramarino assumia as antigas funes do Conselho das ndias das Conquistas Ultramarinas, de acordo com Maria de Ftima Gouva a retirada do termo ndias representou o crescimento das colnias atlnticas em detrimento das possesses asiticas. GOUVA, Maria de Ftima. Op. cit.
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Um importante embate, que teve como cenrio o reino do Ndongo, em meados do
sculo XVII, foi promovido pelas diferenas entre os jesutas portugueses e os capuchinhos
italianos. No ano de 1622, o papa Gregrio XV criou a Propaganda Fide, instituio que
defendia o fim do exclusivismo portugus nas atividades missionrias. Eram favorveis
abertura dos trabalhos de evangelizao para outras ordens religiosas, contrariando dessa
forma os interesses da Companhia de Jesus. Esse conflito evidenciava os atritos entre a
Coroa portuguesa e o Vaticano, e teve desdobramentos decisivos para histria da frica
Centro Ocidental, evidenciando as alianas entre os poderes locais e os membros religiosos,
muitas vezes defensores dos interesses de seus pases.
Um dos casos mais relevantes foi a disputa entre esses grupos pela converso da
rainha Nzinga34, personagem clebre e polmica citada e debatida pelos mais variados
autores. A histria da cruel rainha extrapola a questo da evangelizao e fornece
tambm uma perspectiva para os estudos sobre as alianas e as disputas de poder
envolvendo portugueses, holandeses, jagas e mbundus na segunda metade do sculo XVII.
Nzinga reivindicava o trono do Ndongo, de acordo com seus argumentos ela seria a
legtima herdeira do reino por ser a neta de um antigo soberano da regio chamado
Chiluangi Chiamdambi Angola (Kiluanj Kia Ndambi a Ngola). Os portugueses no viam
com bons olhos essa pretenso de Nzinga, em funo de seu temperamento difcil e de
seus hbitos jagas. Travaram com ela muitas batalhas, que marcaram o mandato de
alguns governadores, como por exemplo, a administrao de Joo Correia de Sousa, de
Ferno de Sousa, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha e Lus Mendes Chichorro.
Nesse contexto, as instrues da Coroa portuguesa, repassada e endossada pelos
governadores, visavam coroao de um Ngola aliado dos portugueses. Esse projeto foi
finalmente bem sucedido no ano de 1626, com a coroao de Ngola Ari, rei do Ndongo,
que durante toda a sua vida foi leal aos interesses dos portugueses. Ngola Ari forneceu
apoio militar aos portugueses em uma batalha que isolou Nzinga e a levou s terras de
Matamba, onde conseguiu junto aos jagas ter sua soberania reconhecida. Dessa forma
assumiu o posto de rainha de Matamba.
No ano de 1621, Nzinga foi convertida ao catolicismo pelos portugueses passando
a ser chamada Ana de Sousa, converso extremamente poltica, que em momento algum
significou uma real adoo dos princpios cristos. Fato esse comprovado pela negao dos
34 Muitos autores escreveram sobre Nzinga. Charles Ralph Boxer foi um dos primeiros estudiosos a dedicar ateno aos poderes africanos, principalmente no captulo Angola, a me preta, de seu livro Salvador Correia de S e a luta pelo Brasil e Angola. Outros autores tambm pesquisaram a trajetria de Nzinga, como Roy Glasgow e Luiz Felipe de Alencastro que, em seu j citado O Trato dos Viventes, analisa as referncias rainha em textos de Hegel e do Marqus de Sade.
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princpios religiosos, de acordo com relatos de missionrios da poca, Nzinga transforma
o reino de Matamba em um reino de luxria e de perversidades 35. Posteriormente Nzinga
volta a se converter, sendo que dessa vez sob a tutela dos capuchinhos italianos, gerando
um profundo descontentamento entre os portugueses, sinalizando mais uma vez a
utilizao da possibilidade de converso como fator para obter vantagens com os colonos
estabelecidos nos territrios da frica Centro Ocidental.
A luta contra as investidas de Nzinga eram pautas recorrentes na correspondncia
entre os administradores e a Coroa portuguesa. Entre vrios embates uma de suas irms foi
feita prisioneira pelos portugueses, o que serviu como elemento de barganha para vrias
tentativas de acordo.
2.2. As vsperas da ocupao holandesa
No ano de 1641, os holandeses tomaram Angola do controle da Coroa portuguesa.
O mrito por esse feito foi creditado recm fundada Companhia das ndias Ocidentais
(WIC), uma instituio definida por Luiz Felipe de Alencastro como semi-privada que
atuava no cenrio internacional, conquistando territrios e dominando reas estratgicas
para a aquisio de escravos, fortalecendo dessa forma a presena poltica e os interesses
econmicos dos holandeses nos territrios coloniais das duas margens do Atlntico.36
Ainda no perodo da Unio Ibrica, Espanha e Holanda assinaram um acordo que
pretendia uma trgua entre esses pases pelo perodo de doze anos. A dita Trgua dos Doze
anos vigorou entre 1609 e 1621, no coincidentemente ano de criao da WIC. O fim dessa
trgua reaviva hostilidades hispano-holandesas e altera o acesso dos Estados Gerais s
mercadorias coloniais, desagradando e atrapalhando as ambies holandesas. Esse fator no
contexto das disputas europeias foi decisivo para a realidade colonial nesse perodo. A
partir desse perodo os holandeses passam a investir nos domnios coloniais, investindo
principalmente nas colnias nordestinas da Amrica portuguesa e nos territrios angolanos.
Os holandeses, mesmo sem a vivncia portuguesa secular nas colnias, tinham
claras suas metas de conquistar as duas margens atlnticas para a efetivao de um modelo
sistmico de explorao agrcola: ocupao territorial e fornecimento de escravos.
Em 1624, durante o governo de Ferno de Sousa, os holandeses conseguem
estabelecer um bloqueio naval nas regies de Benguela e Luanda, alm de conquistar por
um curto perodo regies da Bahia, que foi recuperada no mesmo ano. As tropas do
35 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p. 278. 36 A Companhia das ndias Ocidentais foi fundada no ano de 1621, no contexto de ampliao dos investimentos neerlandeses nas atividades coloniais do Atlntico portugus. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op cit.
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governador Ferno de Sousa evitaram o desembarque dos holandeses nos territrios
angolanos, sinalizando para a Coroa a necessidade de fortalecer as defesas nesses limites da
costa africana. O episdio evidencia as pretenses dos holandeses, e as dificuldades dos
portugueses para a manuteno de seus domnios.
No ano de 1635, os holandeses conquistam a Zona da Mata pernambucana, e no
ano seguinte Maurcio de Nassau nomeado governador da Nova Holanda37. Em 1641,
tomam os territrios de Angola, enfraquecendo muito a posio portuguesa na regio, que
ficou praticamente reduzida as terras de Massangano.
A poltica implementada pelos holandeses em Angola nos leva a uma discusso
conceitual sobre o modelo de governo indireto utilizado por Luiz Felipe de Alencastro para
definir a relao entre portugueses e as autoridades locais. O autor identifica que a
prioridade dos portugueses era o estabelecimento de acordos que visavam cooperao,
evitando ao mximo guerras, vistas como reveses ao bom andamento dos negcios
negreiros na regio.Comparando o pragmatismo dessas aes consideramos que esse
conceito se aplica muito mais aos mtodos de governo utilizados pelos holandeses, do que
de fato pelos portugueses.
Analisando fontes do perodo, Beatrix Heintze38 fornece importantes sugestes
metodolgicas para a leitura e interpretao de discursos seiscentistas. Percebemos que
muitos sobas de territrios adjacentes aos territrios de Luanda consideravam a presena
holandesa como uma alternativa em contraponto com a presena portuguesa. Nesse
mesmo recorte o ento rei do Congo, Garcia II, escreveu para Maurcio de Nassau
disponibilizando fortalezas e outras facilidades comerciais. Afirmava que estava desiludido
com os perversos e ambiciosos portugueses, que tinham planejado conquistar o seu reino
embaixo da capa da amizade 39.
Apesar das crticas aos portugueses, Dom Garcia deixava claro que permaneceria
catlico e que no aceitaria missionrios, embaixadores ou colonos em seu reino. A fora
do catolicismo congols superava as alteraes polticas nos territrios da frica Centro
Ocidental40. A marca do catolicismo no Congo um importante fator desencadeador de
embates entre os inacianos portugueses e os missionrios capuchinhos italianos.
37 Luiz Felipe de Alencastro cita o termo statthalter para o cargo assumido por Maurcio de Nassau no governo dos territrios dominados. Idem. 38 HEINTZE, Beatrix. Op cit. 39 Correspondncia do rei do Congo Garcia II, citada por BIRMINGHAM, David. Op cit., p. 120. 40 Marina de Mello e Souza analisa essa questo com profundidade em seu j citado Reis negros no Brasil escravista.
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Outro ponto desfavorvel para os lusitanos nesse contexto, mas que no chega a
ser surpreendente, foi a aliana entre os holandeses e a rainha Nzinga, que via nessa
conquista a possibilidade de obter vantagens comerciais e principalmente para enfraquecer
o rei do Ndongo, Ngola Ari, vassalo dos portugueses.
De acordo com a interpretao de Birmingham, os holandeses se aproximaram
muito mais do modelo de administrao indireta, firmando acordos de cooperao com as
autoridades africanas, estabelecendo as bases conceituais do governo indireto. Partindo da
noo de que para obter escravos no era necessrio a implementao de um domnio dos
grupos locais, nem mesmo gastos com conquistas militares. Preocupao recorrente entre
os governadores portugueses que objetivavam o domnio do Ndongo. A articulao valeria
mais do que a fora na lgica dos holandeses, que poupavam seus esforos para os embates
com os portugueses.
No ambiente restaurador posterior a 1640, mesmo com as metas portuguesas para
reaver a sua soberania em seus domnios ultramarinos, a presena holandesa alm de
enfraquecer os vnculos econmicos entre metrpole e colnias, representou um obstculo
ao reconhecimento da legitimidade da Casa de Bragana.
Vale ressaltar que a anlise desses discursos de africanos que defendiam as
investidas holandesas deve ser cautelosa, visto que podemos considerar que essa aparente
preferncia para negociar com os holandeses esteja relacionada ao fato de estarem em uma
posio privilegiada naquele momento. A cordialidade em relao aos neerlandeses,
evidenciada pelas crticas aos portugueses, pode ser considerada uma manobra para obter
sua simpatia.
Por volta de 1646 o foco de resistncia estava concentrado nos arredores de
Massangano, o que preocupava os holandeses. A situao dos portugueses em Angola foi
revertida com a chegada de Salvador Correia de S, que expulsou os holandeses
inaugurando uma nova fase na administrao de Angola, marcada pela governana de
homens extremamente vinculados aos seus interesses particulares enraizados
principalmente na Amrica portuguesa. Uma das primeiras medidas tomadas por Salvador
Correia de S foi a punio dos sobas que haviam se aliado aos holandeses.
O historiador Charles Boxer, em sua obra Salvador Correia de S, analisa a trajetria
que levou o governador a enraizar interesses em variadas regies do Imprio Ultramarino.
Das atividades familiares tradicionais exercidas no Rio de Janeiro, passando pelos
investimentos nas minas de prata de Potos, chegando aos interesses escravistas nos
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territrios angolanos, Salvador Correia de S um caso tpico da terceirizao dos sistemas
de defesa da Coroa portuguesa para as mos de particulares.
Alm de todos os detalhes e da riqueza de fontes trabalhadas, Boxer inova trazendo
para o debate o papel dos africanos como peas fundamentais para o desencadeamento da
ocupao e posterior expulso dos holandeses de Angola. Analisa o caso da converso da
rainha Nzinga, discute a organizao dos sobados e oferece pistas para a compreenso da
complexa hierarquia dos povos mbundus do Ndongo.
3 parte: Angola braslica: os governos de Salvador Correia de S, Andr Vidal de
Negreiros e Joo Fernandes
3.1. Identidades braslicas nos governos portugueses em Angola
O perodo posterior a expulso dos holandeses caracterizado como um perodo
de intensificao das guerras e de aumento nas tenses entre os governadores portugueses
e as autoridades locais.
A administrao de Salvador Correia de S marca um perodo de crescimento na
exportao de escravos. Apesar da assinatura de um Tratado de Paz com o rei Garcia II do
Congo, foram travadas batalhas com esse reino visando aumentar a influncia da Coroa
portuguesa em territrios adjacentes, conflitos esses que culminaram na guerra entre a
Luanda portuguesa e o Congo.
Todos os investimentos de Salvador Correia de S eram coerentes com seu projeto
de acumular riquezas particulares, ao mesmo tempo em que defendia os interesses da
metrpole portuguesa. Ele e a gerao que o sucedeu, definidos por Luiz Felipe de
Alencastro como governadores braslicos, estiveram envolvidos nas lutas pela expulso e
pela defesa dos territrios da Amrica portuguesa, o que os levava a crer que eram
merecedores de privilgios que deveriam ser extrados nas oportunidades geradas pela
concesso de cargos administrativos em variados territrios do Imprio Ultramarino
Portugus.
Essas redes de privilgios, tpicas das sociedades do Antigo Regime, foram
analisadas por Antnio Manuel Hespanha41. Em seus trabalhos Hespanha relaciona
aspectos da administrao colonial com as teias de relaes, parentescos e recompensas que
41 XAVIER, ngela B. & HESPANHA, Antnio M. "A Representao da Sociedade e do Poder". In: MATTOSO, Jos (dir.). Histria de Portugal, volume 4: O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
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muitas vezes determinaram a configurao dos quadros burocrticos das possesses
ultramarinas.
O sucessor de Salvador Correia de S foi Rodrigo Miranda Henriques, que
governou Angola de 1652 a 1653. Destacamos como metas de sua administrao o plano
de reabrir a carreira comercial: Luanda Rio de Janeiro Buenos Aires. Evidenciando a
importncia de Angola para os negcios comerciais lisboetas e fluminenses na bacia do
Prata, projeto que foi uma das prioridades de Salvador Correia de S.42
Rodrigo Henriques chegou Luanda com instrues para incrementar o comrcio e
cobrar o antigo tributo anual de escravos, que todos os chefes mbundus submetidos
tinham sido anteriormente obrigados a pagar Coroa Portuguesa. Morreu um ano aps a
sua chegada, segundo David Birmingham43, realizando poucas tarefas.
Na sequncia da administrao portuguesa em Angola, assumiu o governo
Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, em um perodo marcado pelos conflitos com a rainha
Nzinga. Foi contrrio s reivindicaes de Nzinga em relao ao trono do Ndongo, e
visando facilidades no acesso ao interior do Ndongo, barganhou a rendio de sua irm
Mukambu (Brbara), prisioneira portuguesa. Exigia em troca da libertao facilidades para
abrir uma rota comercial em direo Matamba territrio dominado pelos jagas, vassalos
de Nzinga.
A origem e a composio do que chamamos de jagas alvo de vrias discusses
entre os africanistas. Para Beatrix Heintze os termos jagas e imbangalas so sinnimos, j
para David Birmingham os imbangalas so os componentes majoritrios entre os
acampamentos jagas. Em nossa pesquisa seguimos a definio de Birmingham em funo
da anlise sobre o comportamento jaga de agregar em seus exrcitos homens adultos de
origens variadas.
Dando sequncia governana braslica, desembarcou em Luanda Lus Mendes de
Sousa Chichorro, que governou no perodo de 1654 a1658. Uma das principais
singularidades de sua administrao foi a aliana com os rebeldes jagas. Os jagas eram um
grupo multi-tnico, de maioria imbangala, formado por homens que viviam de atividades
relacionadas guerra. Seus hbitos violentos eram sinnimos de ameaas entre os reinos e
sobados da frica Centro Ocidental.
Chichorro deu continuidade ao projeto de seu antecessor que pretendia estabelecer
negociaes com Nzinga. Apesar de ter recebido ordens expressas do rei Afonso VI para
42 Uma das consequncias desse movimento foi o avano dos representantes da Coroa portuguesa em direo ao litoral sul, que posteriormente resultou na fundao da Colnia de Sacramento. Cf. BOXER, Charles Ralph. Op. cit. 43 BIRMINGHAM, David. Op cit.
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no declarar nenhuma guerra, com exceo de um motivo forte, originado por alguma
atividade delituosa, tal como a implicao com comerciantes ou missionrios, seu governo
no fugiu a tendncia braslica de enxergar na guerra um mtodo seguro para a efetivao
de seus projetos.
Entre os feitos de Chichorro citamos as campanhas militares que pretendiam tornar
os sobas de Quissama vassalos portugueses. A respeito dessa questo, a Cmara Municipal
de Luanda foi contrria aos feitos do governador, temendo que Luanda ficasse
desprotegida e vulnervel a um possvel ataque holands. Aps um ano e meio em
campanha, Chichorro resolveu regressar e concentrar seus esforos nas fronteiras de
Angola e do Congo. Durante o governo de Sousa Chichorro, as tensas relaes entre o
Congo e Luanda resultaram em uma guerra intermitente, que persistiu por dez anos, at a
batalha de Mbwila, em 1665, decretando o fracasso do Tratado de Paz assinado anos antes
por Salvador Correia de S junto s autoridades congolesas.
Joo Fernandes Vieira, que governou Angola no perodo de 1658 a 1661, tambm
encarava a nomeao para o cargo como uma recompensa pelos servios prestados Coroa
Portuguesa na luta de reconquista de territrios da Amrica Portuguesa contra os
holandeses. Foi coerente com seus antecessores no que diz respeito ao uso de exrcitos e
da fora, avesso ao modelo de um governo indireto, e mais prximo do que seria o fomento s
rivalidades tnicas para aumentar o fornecimento de escravos para o mercado atlntico.
Joo Fernandes comandou trs campanhas militares durante o seu mandato,
provavelmente por altura das estaes de seca. Joseph Miller44 defende em um de seus
artigos a relao estabelecida entre as alteraes nos fatores climticos, prejudiciais
produo de alimentos nos territrios da frica Centro Ocidental, ao aumento das fomes e
das guerras.
A primeira foi um ataque em regies prximas a Luanda, nos rios Bengo e Dande,
contra um chefe local chamado Ngoleme a Kaita. Nesse ataque os portugueses contaram
mais uma vez com o apoio de Ngola Ari. Joo Fernandes foi acusado mais tarde de ter
destrudo o chefado de Ngoleme a Kaita, sdito dos portugueses.
A segunda campanha militar de Joo Fernandes foi contra os Ndembus (Dembos),
buscando evitar a fuga de escravos para terras do sul do Congo, de onde no podiam ser
recuperados. A terceira campanha militar de Joo Fernandes foi contra os ovibumdus, em
territrios ao sul, nas regies do Libolo e Hako, enviou exrcitos para proteger as rotas
44 MILLER, Joseph. The significance of drought, disease and famine in the agriculturally marginal zones of West-Central Africa. In: The Journal of African History, vol. 3, n1, p. 17-61. Cambridge University Press, 1982.
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comerciais na regio garantindo o comrcio de escravos e de marfim, j que a regio estava
sujeita a invases dos imbangalas e de chefes libolos.
De acordo com Luiz Felipe de Alencastro, Joo Fernandes encetou preparativos
militares para invadir o Congo logo que desembarcou em Luanda: o Congo era perigoso
no por suas capacidades ofensivas, mas porque constitua um plo de atrao
antiescravista, acoitando escravos dos angolistas 45.
O governo de Andr Vidal de Negreiros (1661-1666) defendia a ao militar direta
e o envio de seus homens de confiana ao interior para obter escravos pela fora. No
perodo de seu governo a guerra entre a Luanda portuguesa e o Congo, em 1665, assumiu
seus contornos definitivos. Os portugueses alegavam que o rei do Congo, Dom Antnio I,
se recusava a entregar as minas de ouro que haviam sido prometidas de acordo com o
Tratado de Paz assinado por Salvador Correia de S e do rei do Congo, Garcia II.
Negreiros levou as ofensivas de Chichorro e de Joo Fernandes s ltimas consequncias.
Aps a morte de Ngola Ari I, rei do Ndongo e fiel vassalo dos portugueses,
sucedeu no trono do Ndongo, Ngola Ari II. O novo rei colocou muitos obstculos aos
interesses da Coroa portuguesa. Essa resistncia presena portuguesa no Ndongo leva os
colonizadores a organizarem uma reconquista, lutando contra Ngola Ari II, que foi
derrotado, dando fim a realeza independente dos mbundus ocidentais.
Concluses:
Aps a Restaurao, os territrios africanos dominados pelos portugueses foram
palco de vrios conflitos envolvendo interesses e motivaes diversas.
A ameaa holandesa, e a sua efetiva ocupao, exigiram que os portugueses
organizassem estratgias para minimizar os efeitos gerados pela aliana de alguns reis e de
vrios sobas que, nesse contexto, preferiram negociar com os agentes da WIC. A
resistncia nas terras de Massangano foi fundamental para a garantia das alianas com
Ngola Ari, rei do Ndongo e fiel vassalo portugus, e para o contra ataque liderado por
Salvador Correia de S, que deu incio um perodo de governos, que em suas aes
destoaram, e muito, dos discursos da Coroa que pregavam a cooperao e o
estabelecimento de alianas pacficas com as lideranas africanas.
A ao de ordens missionrias religiosas fomentou outro foco de conflitos nos
territrios do Congo e de Angola. Inacianos e capuchinhos refletiram na colonizao do
ultramar portugus divergncias entre os direitos sobre a evangelizao e sobre os mtodos
45 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op cit, p. 285.
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para a conduo dessa catequese-cativeiro, representando tambm um feixe dos conflitos
entre o Vaticano e a Coroa portuguesa. O missionarismo como um dos braos da
colonizao estabeleceu sua marca na converso, e principalmente na legitimao da prtica
escravista dos lusitanos, dos luso-africanos e mesmo entre os nativos convertidos, que viam
no resgate das almas um bom negcio avalizado pela conscincia dos feitos cristos.
Em sntese, a pluralidade de grupos distintos fez com que o antigo reino do
Ndongo fosse cenrio de embates polticos, disputas por promissores negcios, ao mesmo
tempo em que se tornava um lugar de intensas trocas culturais.
O recorte cronolgico adotado engloba um perodo onde ameaas internas e
externas foram simultneas, e onde a prpria hierarquia dos mbundus se refinava para
atender s demandas das negociaes, como, por exemplo, a especializao das funes de
chefe de comrcio, embaixadores e de vrios componentes do squito do Ngola.
A crescente abertura do mercado atlntico, e a busca pela afirmao da soberania
portuguesa nos territrios mbundus alterou de forma significativa a realidade dos grupos
africanos e exigiu das autoridades portuguesas uma versatilidade em seu sistema defensivo
entre vrias frentes distintas.
Bibliografia:
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ARTIGO RECEBIDO EM: 20/05/2011
ACEITO PARA PUBLICAO EM: 24/06/2011