Caras-pretas, de Igor Nascimento

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O objetivo do livro CARAS-PRETAS é dar voz a aos protagonistas da Balaiada, personagens que ficaram perdidos no tempo e não tiveram a chance de deixar os seus depoimentos. A História Oficial difundiu apenas a versão do repressor, cabendo ao escritor procurar outras fontes como dissertações de mestrado e teses de doutorado recentemente publicadas. A Balaiada foi uma Revolta de cunho popular que estourou em 1838. Ela fez parte das Revoltas do Período Regencial (Sabinada, Cabanagem, Guerra dos Farrapos, Revolta dos Malês entre outras) e tem como principal móbile o Recrutamento Forçado para o Exército brasileiro e as injustiças sociais decorrentes do excesso de autoridade dos Juízes de Paz.

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Caras-Pretas

Copyright © 2015 by Igor Nascimento

EdItor

José Lorêdo Fi lho

ProJEto GráFICo E dIaGramação

Carol ine rêgo

rEvIsão

Igor Nascimentoana Carol ina vianamárcio scansani

ILustraçõEs

Waldeir Br ito

Livrar ia resistência Cultural Editoraav. dos Holandeses, Qd. 09, Nº 02, Calhau, 65071-380, sâo Luís - maranhão

(98) 32350879

re s i s t e n c i a c u l t u r a l . c o m . b ri g o rc a f fe . b l o g s p o t . c o m

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Petite Mort teatroapresenta

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CaraS-PretaS de Igor Nascimento

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MoDo De USar

essa peça não segue exatamente a linha cronoló-

gica dos fatos conforme ocorreram. É uma volta

a um tempo que existiu e não existiu. essa obra

é uma estrada cheia de buracos. por isso tantos

solavancos. Hora visitarás o final da guerra,

hora estarás no começo. O que te apresento

serão pedaços salteados, cacos de um espelho

que pode até ser refeito, mas nunca encontrará

seu reflexo primevo. aviso-te que não tenho

preocupação com pureza de gênero

literário ou de fatos históricos. Quem

quiser achar uma peça em todas suas

marcas tradicionais, não o achará. Chamo-te

aqui para uma caminhada e, para tal, reco-

mendo que montes tuas imagens, que arranjes

teus fragmentos e que construas tua jornada

pessoal nesta história. no final, ao montar

o espelho estilhaçado do passado, verás,

talvez, no fundo - distorcida e

recortada - a tua própria figura.

Igor nascimento

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PreFÁCio SeGUNDo CHiCo,

o PerSoNaGeM

O que se fala desse tal de Cara-preta dá pano pra manga que só o diabo.

Uns dizem que ele foi um sanguinário, um desordeiro, analfabeto, bandido,

salteador, cangaceiro, assassino, infame e daí pra pior. Outros já falam que

raimundo Gomes, o Cara-preta, era um libertário, revolucionário, justiceiro

e até messias dos escravos. O certo é: o que quer que ele seja na atuali-

dade, não mudará o que, de fato, ele foi lá no passado. pois para discorrer

sobre o ocorrido e escorrido incidente seria preciso estar presente no

Maranhão em 1839. Dessa forma, nenhuma versão, escrita ou holográfica,

será capaz de apurar o fato em sua milimétrica ocorrência. Optamos,

aqui, portanto, narrar dramaticamente a versão considerada marginal

dessa revolta. Voltamo-nos para os vencidos: os balaios!

senhoras e senhores, nesta peça, nos cabe contar a parte que nÃO foi es-

crita. a palavra falada e a lágrima derramada aqui, neste espetáculo, serão as

do outro lado! e nem venham me falar de verossimilhança, pois pra mim, eu,

Chico, isso é conversa muito da torta. O que temos até então é apenas a

História e as suas interpretações, que podem até serem bem acertadas, ou,

como diz o doutor, ‘fidedignas’; todavia, mesmo que os documentos encon-

trados cheguem no detalhe da ruga presente no detalhe da fuça, a História

será - e sempre será - História, pois, se a “História” fosse Verdade, não carecia

de ser chamada de “História”, e sim, de “Verdade” e ponto final.

então, vamos logo arredondando essa prosa e abrindo a porteira: o que

apresentaremos aqui é uma história verdadeira, só que fictícia. Melhor: uma

história ficcionalmente verdadeira, não só do Cara-preta, raimundo Gomes,

mas de outros “Caras-pretas” que compuseram a Balaiada – esses vocês vão

conhecer mais lá na frente, à medida que as cenas avançarem.

a todos, uma boa viagem!

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1º CICLO

O Cara-Preta

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1º CICLO

O Cara-Preta

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FraGMeNtO I

O Cadáver

PerSONaGeNS:

CHICo

raImuNdo GomEs

soLdado morto

uruBus

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Um SOLDADO MORTO se encontra estirado no chão. Bem de perto, os URUBUS o espreitam. Pouco a pouco, eles cercam o cadáver. No entanto, da esquerda da cena,

surge RAIMUNDO GOMES e os espanta. “Xô, bando de desgraça!”. As criaturas carniceiras partem em revoada, mas não vão muito longe - elas ficam como plateia da cena

que irá se passar. CHICO chega logo em seguida. Os URUBUS observam.

RAIMUNDO. O sertão não tem piedade. Só dá alento aos ossos que ficam pelo chão. Só dá conforto para os urubus que sonham toda noite com a carniça do dia seguinte. Sempre tem uma ... Sempre há de ter um animal morto por aí. Um boi com a barriga colada no lombo, se mantendo de pé até não poder mais, até perder as forças, caindo no lugar onde será seu túmulo... O pior de tudo é que a morte não vem assim: de uma vez! Ela não tem pressa. É como se cerrasse as unhas antes do momento final. A morte deve lá ter seus caprichos de mulher. Bastava apenas uma punhalada e pronto, levava a vida num saco e ia se embora. Mas não: é vaidosa. Enquanto ela se maquila, a criatura, mais morta do que viva, espera que o primeiro urubu lhe rasgue as carnes. A ave carniceira, sem bico afiado, começa, enfim, a refeição pela carne mais mole do corpo - para ela, a mais suculenta. E esta é última coisa que o sujeito vê em vida: a beliscada oportunista de um bico pontudo bem no meio do olho... (para CHICO). Esse aí está morto, Chico! Amarra a boca com um pano, antes que fique duro. Depois que endurece não tem mais jeito. Não tem ferramenta que dê conserto...

CHICO  (amarrando o queixo do cadáver). Esse aqui está mais duro do que tala de goiabeira. Se eu apertar mais, é arriscado rachar...

RAIMUNDO. Morreu, então, faz algum tempo...

CHICO. Do que será que esse sujeito morreu? Será que foi morto por algum bicho? Ou morreu de fome mesmo? Ou quem sabe de sede? Ou será que...

RAIMUNDO. Morreu de sertão, foi isso! É tudo junto ao mesmo tempo... A língua seca, o estômago comendo os intestinos, os bichos espreitando, esse sol dos infernos, essa noite fria do cão...

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CHICO. Para onde será que ele ia tão desnorteado, Raimundo?

RAIMUNDO. É melhor dizer pra onde ele não ia...

CHICO. Um homem para se desatinar em fuga desse jeito ou corre da polícia ou leva carreira da mulher...

RAIMUNDO. Ninguém foge de mulher desse jeito, Chico!

CHICO. É por que você não viu a minha! É o diabo em pessoa!

RAIMUNDO. Então reze que seja apenas Edileusa o diabo que te persegue, pois esse aí fugiu do ‘pega’, do recrutamento forçado, e deu de cara com o sertão...

CHICO. Mais um desertor? Poderia ser também um bandido! Acuado, se danou a fugir e deu no que deu!

RAIMUNDO. Não... Um bandido não teria fugido pra essas bandas... Sem água, sem montaria, sem arma...

CHICO. Sendo bandido ou não, “tá fedendo a carniça”.

RAIMUNDO. Mais um morto...

CHICO. Pois é... Mas com a morte já ocorrida, não podemos fazer nada! Vamos acelerar o passo que daqui a pouco anoitece. Umas três Ave-Marias e um Pai Nosso devem bastar pra alma deste infeliz.

RAIMUNDO. Não se avexe, Chico! Esse aqui vai com a gente...

CHICO. Mas nem morto! Ou quer dizer... Nem vivo! Isso vai dar em compli-cação... O que é que vão falar? Podem até nos prender! Não podemos acolher desertores, o senhor sabe muito bem, ou está ficando biruta?

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RAIMUNDO. É um cadáver. Não tem mais nenhuma obrigação com pátria desde o instante em que encostou a boca na terra... Além do mais, a polícia prende qualquer um por qualquer motivo. Se acharem que um espirro foi meio enviesado, eles prendem. Não tem escapatória. Nessa terra, a lei pertence a quem é dono dela, daí ele faz o que quiser: condena o que julga necessário e não julga o que for de seu interesse. Vamos! Ponha ele no cavalo e vamos andando!

CHICO. A gente reza mais umas cinco Ave-Marias, um Pai-Nosso e, de quebra, um Salve Rainha pra alma do pobre diabo, mas não vamos ficar carregando defunto por aí, Raimundo Gomes!

RAIMUNDO. E você, quando morrer, vai ser carregado por quem?...

CHICO. Por alguém, ué! ...

RAIMUNDO. E então? Por que não carrega o infeliz? Eu te ajudo! Pegue! Ponha nas costas!

CHICO. Mas ...

RAIMUNDO. Deixe de discussão! Vai deixar o homem aí, pro urubu comer como se fosse um bicho, como se fosse gado?

CHICO. Mas os bichinhos estão até magrinhos, olha lá! Não devem comer faz é dia, coitadinhos... Estão parecendo meus filhos, tudo pretinho, ma-grinho, magrinho, só a titela! Vamos deixar o defunto aqui. Nós não vamos comer mesmo. Deixe pra quem come!

RAIMUNDO. No sertão, o único bicho que não passa fome é o urubu! Eles vão achar o que comer, Chico, tenha certeza! Mas esse sertanejo não vai ficar aqui. Vai ter um enterro decente! Tem direito a uma benção como todos! É um semelhante! Quando ria mostrava os dentes, quando chorava soltava lágrima e quando cagava se abaixava que nem todo mundo! Ou vai dizer que é diferente?

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CHICO. Eu não sou vaca pra ficar cagando de pé...

RAIMUNDO. Então largue de ser frouxo e vamos se embora. O padre Ignácio deve estar nos esperando... Ele vai benzer o defunto e, depois, deixe que Deus cuide da alma desse pobre desgraçado.

CHICO. Mas Raimundo, se os urubus não comerem, os vermes vão comer, no final a gente é isso, né? Carne...

Pausa

RAIMUNDO. Tem toda razão, Chico ...

CHICO. O que foi?

RAIMUNDO. Vamos levá-lo para quem deve prestar conta de tudo isso ...

CHICO. Estou sentindo que coisa boa não vem daí ...

RAIMUNDO. Vamos levá-lo para o urubu certo.

CHICO. Eu e minha boca ...

RAIMUNDO. Se apresse, Chico! Não são estes urubus que vão devorar essa carniça: são os outros! Eles, sim! Eles devem saber o gosto daquilo que tanto devoram!

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