Cancioneiro Popular - Jaime Cortesão
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o
BIBLIOTECA LUSITANA
Jaime Cortesão
concioneinIP Antologia Precedida dum Estudo Critico
O õ
EDIÇÃO DA
RENASCENÇA PORTUGUESA
PORTO
k*
Direitos reservados
Cancioneiro Popular
Do autor
:
A Morte da Águia, 1909.
A Arte e a Medicina, 1910.
Esta História é para os Anjos, 1912.
Sinfonia da Tarde, 1912.
. . . Daquem e Dalém Morte, 1913.
Glória Humilde, 1914.
BIBLIOTECA LUSITANA
Jaime Cortesão
Cancioneiro PopularAntologia Precedida dum Estudo Crítico
V
Edição da
Renascença Portuguesa
Porto
ESTUDO CRITICO
I
o FIM DESTA OBRA
PARA que todos os Portugueses possaminteirar-se da sua própria Alma, e fun-
damente sintam a prendê-los e a diri-
gi-los os laços Íntimos do Espírito, para queemfim se forme ou se torne clara a consciên-
cia nacional dando-nos a possível unidade
finalista, é indispensável o conhecimento doCancioneiro popular, porque nele se revela
toda a alma do Povo.
O estudo das canções populares, ramodum outro mais vasto estudo— as Tradições
populares— ha muito que preocupa todas as
nações da Europa, movidas mais pelo senti-
mento nacional, do que pela pura curiosi-
dade scientífica e tanto assim que as primeiras
a iniciar esse movimento foram exactamente
aquelas, como observa Gaston Paris, queprocuravam, em meio da sua hesitação, for-
mar uma consciência histórica.
Essa herdamos nós, e de tão elevada tradi-
ção, que nos deveria inspirar os actos da
10 Cancioneiro Popular
mais pura nobreza e largo interesse huma-nitário.
Mas . . . perdemo-la ! Alguns séculos deabatimento e corrução, de jesuitismo e inépcia
real e embasbacaçâo estólida perante o estran-
geiro deram comnosco nesse ululante doidoda Pátria, que enche a noite de gritos, à
procura da própria Alma.
Bem de nós, que nos resolvemos emfim a
buscá-la na história, na literatura, nas tradi-
ções populares e, o que vale o mesmo, den-
tro daquele espírito que as criou!
•A esse alto fim visa também e principal-
mente este trabalho. Não nos move a pura
curiosidade scientífica, o desejo de alardear
uma estéril erudição, nem sequer o gosto de
serenamente, friamente exercitar faculdades
críticas. Nem esse propósito podia estar emnosso animo. .
É antes a fé nos destinos da Pátria e o
desejo de a comunicar à nova geração pelo
conhecimento das energias latentes no fundo
da Alma popular. Como poderia deixar de
ser assim, se nós vimos de conviver comele, com o Povo, nas mais espontâneas
e sinceras das suas manifestações, se, para
nós esses milhõis de bocas humildes e
sôfregas de amor, cheias de riso ou hir-
tas de angústia, se abriram e nos entre-
garam os hinos da sua esperança, os beijos
trémulos do seu carinho, os lamentos e
os gritos das suas espantosas afliçõis e os
Estudo Critico 11
VOOS doidos da Alma nos arrebatamentos
da Paixão ?
!
Mas vamos devagar.
O estudo das tradiçõis populares entre
nós tem já acumulado um tesoiro riquíssimo
de materiais; faltam apenas por emquantoos bons trabalhos de sintese e interpreta-
ção. Quem quiser, porventura, conhecer a
história dessas investigaçõis, consulte os En-saios etnográficos de Leite de Vasconcelos,
onde o sábio filólogo e etnólogo reuniu as
noticias de muitíssimos desses trabalhos. Pelo
que mais nos importa, o cancioneiro popular,
diremos que é vastíssima a colecção de can-
tigas populares, hoje existentes, pois só os
Cantospopulares portugueses, de Tomaz Pi-
res, contam mais de onze mil cantigas
!
Teófilo Braga calcula em quarenta mil o
numero das que até hoje foram guardadas nas
nossas colecçõis. A selecção das centenas dequadras que constituem este pequeno can-'
cioneiro foi realisada em dezenas de milhares
delas, ainda que escrupulisamos em consultar
apenas as colecçõis, cujos coordenadores
oferecessem garantias de seriedade, tais como:Os cantos populares portugueses, de To-
maz Pires, o Cancioneiro popular e Cantospopulares do Arquipélago açoreano, de Teó-
filo Braga, a Poesia amorosa do povo por-
tuguês, de Leite de Vasconcelos, as Cançõispopulares da Beira e as Velhas cançõis e
Romances populares portugueses, de. Pedro
12 Cancioneiro Popular
Fernandes Tomaz, o Romanceiro e Cancio-neiro do Algarve de Francisco Xavier de
Ataíde Oliveira e as vastas colecçõis disper-
sas pela Revista Lusitana, Revista de Gui-
marãis, Revista do Minho, etc. Algumas,mas poucas, foram por nós colhidas da boca
do Povo, mas, por constituírem excepção,
levarão nota especial.
Quanto aos trabalhos de síntese e inter-
pretação, os melhores, afigura-se-nos que se-
jam os estudos parciais de Leite de Vascon-
celos, como as Cançõis do berço na Revista
Lusitana, a Introdução ás Cançõis da Beira
e o estudo na Poesia amorosa do Povo por-
tuguês.
Esses constituíram para nós um subsídio
valioso, ainda que a índole deste trabalho
tenha de ser muito diferente, dada a feição
mais particularmente scientifica da obra da-
quele escritor.
E, na verdade, ha nos cancioneiros populares
elementos variadíssimos de estudo tanto para
a Etnologia, como para a Filologia, pela re-
velação de costumes, ideias e superstiçõis,
pela investigação de vestígios míticos e pelas
construçõís, particularidades múltiplas de lin-
guagem, que tudo as simples cantigas con-
teem.
O que seria então, se quizessemos fazer
entrar também o nosso cancioneiro na árvore
genealógica das cançõis populares, a enge-
nhosa criação de Gaston Paris!
Estudo Critico 13
«Emfim, diz ele, virá um dia em que o tra-
çado geral da árvore genealógica das nossas
cançõis seja lançado aproximadamente assim,
indo sempre do mais vasto para o mais res-
trito; ir-se-ha da humanidade inteira para a
raça branca,— para os Árias,— para cada
grupo dos povos arianos (slavo, germânico,
greco-romanico, céltico, etc), para cada povo,
para cada província, para cada distrito. Por
outras palavras, sendo dada uma canção po-
pular qualquer, será necessário poder deter-
minar em que percentagem cada um desses
factores entrou na sua formação. Encontrar-
se-hão algumas que não tenham raizes e não
vão além da aldeia, onde se cantem; outras,
pelo contrário, que, durante séculos voaramsobre as bocas dos homens, e que resoavam
já talvez, num tempo anterior a toda a histo-
ria, sobre os planaltos da Ásia central, onde
os nossos primeiros pais guardavam os reba-
nhos.» (^)
Mais modestamente se poderia ainda fazer
aqui o estudo comparativo das cantigas por-
tuguesas, com o cancioneiro das outras na-
çõis, para, assim, fundamentar a originalidade
do espirito, que anima as nossas.
Esse estudo, tornaria demasiadamente eru-
dito este livro, o que o afastava do fim a que
o destinamos. Todavia, antes de chegar a
qualquer conclusão, estudamos também um
(^) Cit. na «Histoire du Lied», Schuré.
14 Cancioneiro Popular
pouco os cancioneiros hespanhol, francês,
alemão e italiano em especial, e podemosafirmar desassombradamente a elevação e es-
pírito original da nossa poesia popular.
O presente trabalho, inédito entre nós, é
uma antologia em que reunimos o que de
melhor encontramos em dezenas de milhares
de cantigas. Pretendemos realisar obra vulga-
risadora e de educação, o que explica algumas
particularidades de plano, a que obedeceu.
O automatismo da linguagem, o incessante
trabalho de criação sofrido pelas cantigas, ao
passar de boca em boca e de época para
época, a sua adaptação intencional a casos
individuais fazem que um só tipo de cantiga
dê de si muitas variantes, quer na essência,
quer na forma, sucedendo até que do mo-delo primitivo se aproveita para muita va-
riante unicamente o fundo construtivo, geral-
mente pelo que de incisivo, espontâneo ou
perfeito ha no arranjo verbal.
O que procuramos aqui foi dar, dentre
muitas variantes, o modelo primitivo, quandoeste é de mais nitida intenção ou, porventura,
alguma daquelas, que durante as remodela-
çõis sucessivas alcançam maior pureza ou
elevação.
Damos apenas as variantes para o caso de
aparecerem dois ou mais sentimentos diver-
sos e egualmente reveladores, verbalisados
dentro do mesmo fundo construtivo.
Acontece também bastas vezes encontrar
Estudo Critico 15
nos cancioneiros algumas cantigas visivel-
mente deturpadas e escritas segundo a pro-
núncia estritamente popular, porque os cole-
cionadôres, em obediência ao dogma dainviolabilidade, na frase feliz da snr/ D.
Carolina Michaêlis de Vasconcelos, entendemdever guardá-las, segundo a exacta versão
colhida. Não procedemos assim nesta antolo-
gia: vamos pela opinião da sábia romanista
:
...«não pode haver lei intransigente que mandeperpetuar erros evidentes e falsificaçõis cons-
cientes ou inconscientes, nem ha necessidade
de o folklorista erudito se fazer escravo dumprincipio. Ninguém está obrigado a aceitar
e imprimir tiitto quanto! Quem emendar umverso visivelmente corrompido ou fragmen-
tário, em harmonia com a fala singela e po-
pular dos romances (e consequentemente dascantigas), cumpre simplesmente o seu dever.
Só quem modifica arbitrariamente e sem ne-
cessidade, falsifica e estraga.» (^)
Entende também a ilustre escritora queem obras destinadas a vulgarisar e educar
se deve imprimir unicamente «uma selecção
das produçõis mais puras e características daalma popular, em redacção limpa de todos
os defeitos.» Se rasõis pessoais não bastas-
sem a decidir-me a proceder assim na redac-
ção de algumas cantigas, essa opinião me
(') «Estudos sobre o romanceiro peninsular, na«Revista Lusitana», tomo ii, pag. 169.
16 Cancioneiro Popular
autorisaria a fazê-lo, guardando, é certo, as
devidas reservas.
Com efeito procurei o mais possivel resti-
tuir aquelas cantigas, que deparei adulteradas
nos cancioneiros, à pureza do ritmo e da di-
ção popular, sem que isso fosse nunca alte-
rar-lhes o sentido. Devo dizer que poucas
vezes fui obrigado a isso, porque as mais
belas cantigas são as que menos estropiadas
aparecem nos cancioneiros, talvez por serem
cantadas também por criaturas de eleição en-
tre o Povo. E se é certo que ha nesses can-
cioneiros por outro lado, muita cantiga de
evidente origem culta, as popiilarisadas,
podendo esses colecionadores abonar a sua
escolha com a opinião da snr.^ Dona Caro-
lina Michaêlis de Vasconcelos, que define
por cantiga popular tudo o que o povo canta,
devo dizer que procurei quanto possivel evi-
tá-las, pois destoam por vezes horrivelmente
em meio daquelas formosissimas flores rústi-
cas e, por belas que sejam, não são tão re-
veladoras da alma popular.
Ao leitor menos dado a estes estudos,
àquele que menos de perto tenha vivido
com o Povo, como nós, e não tenha dadoatenção á beleza dos seus conceitos e viva
naturalidade da linguagem, hão de ainda as-
sim afigurar-se-lhe muitas destas cantigas de
tão rara beleza, que, em sua opinião, não po-
deriam ter sido criadas por essas almas sim-
ples e incultas. Ha, demais, eruditos, que
Estudo Critico 17
professam egualmente essa opinião, prees-
tabelecendo, pelo dogma da imperfeição,
que tudo quanto sai do Povo é imperfeito
e vulgar em todo o sentido.
Contra a opinião desses dirá ainda a in-
signe escritora: «Embora o profanam vai-
gus, que repete boçalmente versos mal en-
tendidos, seja a maioria, ha ao lado dos
destruidores inconscientes uma valiosa mino-
ria, espíritos de excelente memória, de são
critério e senso artístico, que, contrabalan-
çando e detendo a influência dos primeiros,
conservam gostosamente e com verdadeiro
interesse entusiástico de artista, a herança dos
antepassados, posto que sem submissão servil.
Cantam— e contam—com correcção, semque o seu ouvido certeiro deixe escapar dos
tais versos errados, conservando aos textos
a sua pureza e o cunho de primordiais,
mesmo na recitação; teem inteligência sufi-
ciente para cortarem infiltraçõis postiças e
para preencherem habilmente lacunas, sem-pre que a sua aliás admirável memória lhes
falhe, e para modificarem, modernisando-as,
frases e incidentes arcaicos, cujo sentido lhes
escapa. Quando se canta em coro, são eles
que guiam os outros. São emfim verdadeiros
artistas, continuadores dos poetas, que cria-
ram o «Liederschatz» (^) da nação, improvisa-
dores e repentistas de ambos os sexos que
(^) Thesoiro das Canções.
18 Cancioneiro Popular
estabelecem por meio das versõis por eles
escolhidas e adoptados os textos-tipos de
uma certa região, criando assim o Standart-
book (^) de uma aldeia.»
Nós acrescentaremos que muitos desses
improvisadores e repentistas, poetas popu-
lares, alguns duma elevadissima inspiração,
se teem conhecido nestes últimos tempos.
A Revista Lusitana tem dado noticias de
muitos e entre esses poetas humildes, deve-
mos citar o célebre Manuel Alves— o Poeta
Cavador, o Potra e o Cantador de Setúbal.
E' bem claro que todas essas cantigas são
na sua origem de criação pessoal, obra de
poetas anónimos, que um dia inteiro revol-
vem a terra com a enxada, ou lançam as
redes ao mar, ou afeiçoam a pedra e a ma-
deira, pobre gente abandonada, cuja única
educação lhes foi transmitida pela grande
Mãi Natureza, em grandeza, bondade, sin-
geleza e amor.
E porque essas cançõis brotam instintiva-
mente nas suas bocas, com a graça e a fres-
cura natural das flores silvestres, que são
também a canção da Terra, moldadas pelo
ritmo dos braços que cavam o chão ou pelo
ritmo dum peito, que desabafa em soluços,
límpidas, frescas, singelas, mas grandes na
sua humildade, é que todo o Povo as adopta
(^) Livro-modelo.
Estudo Critico 19
e de boca em boca, de aldeia em aldeia as
entrega a todos os seus pobres irmãos, comoa dádiva sagrada do seu amor, tesoiro, orgu-
lho da raça, para que se cantem em toda a
santa terra da Pátria.
Assim, da terra de Portugal, pelas tardes
portuguesas, em que as nossas almas tras-
bordam de sonho e paixão, nas noites emque o Luar, fluindo, arrasta os coraçõis pre-
sos nos límpidos raios, a iluminar tambémem relâmpagos de intuição o doloroso lusco-
fusco da vida, eleva-se para o ceu, repetido
por milhares de bocas trémulas, o mesmocanto eterno de amor, de dor e esperança,
nesta doce e clara lingua lusitana.
E tudo quanto, esses pobretõis, cavadores
e rudes artífices, pescadores e marinheiros,
podem sentir de carinhoso, alegre ou sofre-
dor, podem sonhar de grande ou fantasioso,
— emoçõis, conceitos morais, ironias, senti-
mentos religiosos, tudo nas suas cantigas,
chora, soluça, moteja, ri, afaga e increpa ouala o voo da vidência religiosa num ilimi-
tado espaço de fogo e bruma.Por isso me resolvi a dar neste livro ape-
nas o que é representativo do Povo pelo lado
afectivo, moral e filosófico, isolando as mais
belas cantigas, arrancando esses puros dia-
mantes à torrente de ganga que inunda os
nossos cancioneiros e limpando-as aqui e
acolá da jaca ocasional.
Aqueles que quiserem conhecer o Povo
20 Cancioneiro Popular
português, teem-no aqui, em íntima e pro-
funda virtualidade.
O Povo é hoje o alicerce para todos os
grandes edificios que se queiram construir
nesta Pátria. Sem que se conheçam bem a
naturesa dos fundamentos, a sua fragilidade
ou a sua resistência, as suas afinidades e re-
pulseis, não pode haver edifício sólido, por
mais grandioso que se afigure.
Debruçem-se um pouco sobre o seu cora-
ção, auscultem-lhe os movimentos e o ritmo,
que hão de ganhar com isso a maior das
liçõis.
II
o POEMA DO POVO
ESTE livro, porque o Povo o canta é umPoema, e porque nele está a sua vida,
que uma índole essencialmente afectiva
leva a encarar com seriedade e paixão e que,
mercê do abandono a que o lançaram, temprofundidades amargas, não falando já dolado trágico de toda a Vida, é também e es-
sencialmente um Drama—o Poema dramático
do Povo . . . Com efeito tratámos de coligir e
coordenar algumas centenas de quadras, de
sorte que pela sua disposição natural for-
massem uma obra com entranhas de vida e o
interesse dum drama, em cujo desfecho cola-
boram, conforme julgamos, o Destino im-
presso no sangue e a vontade contrária dos
homens.O homem do Povo aparece primeiro em
meio da Natureza, sobre a qual possui tam-
bém a sua filosofia; canta depois o elogio dotrabalho e revela-nos o sentimento da própria
força, que donde em onde o leva ao crime;
22 Cancioneiro Popular
afirma a sua moralidade por meio de senten-
ças singelas, ironias e sarcasmos ; abre~nos o
seu coração de filho enternecido; e deixa-nos
perceber como um fundo religioso original
reagiu perante os preceitos artificiais duma re-
ligião imposta. Mas o sentimento essencial
em volta do qual gira toda a vida do Povoé o Amor. O desejo, o enleio, o arroubo es-
piritual, a exaltação apaixonada, a saudade, o
carinho e o anseio de eternisar o amor, tudo
a alma popular vai dizendo sucessivamente
em versos inexcediveis de beleza e revelação
íntima.
Depois ou vem o casamento com a felici-
dade conjugal e as alegrias e ternuras do
amor materno, ou a morte e a traição lançam
a vida do amoroso num trágico desespero.
Seguem-se ainda as queixas do homem que
se consome na fadiga dum trabalho mal pago
e essa imensa tristeza dum povo, entregue
aos impulsos naturais, a quem roubaram al-
guns dos mais nobres desejos e motivos de
vida e sobre quem pesa uma imensa desgraça
histórica. Por fim esse Povo vai buscar espe-
ranças à Morte, que encara com serena audá-
cia, na qual vê uma formula suprema da jus-
tiça e que para ele, constitui a possibilidade
e a certeza duma vida superior, dando ao
seu Amor, que é a própria essência de Deus,
em gritos proféticos, as garantias da eter-
nidade !
De canto a canto, o Poema sobe do
o Poema do Povo 23
mesmo passo em emoção, interesse, arrojo e
elevação de pensamento. É que os diferentes
cantos deste Poema não se relacionam comas cantigas em si, mas antes com o homemmoral, amoroso, trágico e religioso por todas
elas revelado.
Afastamo-nos assim do método seguido,
por exemplo, por Tomaz Pires, que classifica
as cantigas, por vezes, segundo uma palavra
—objectos, pedras, metais, vegetais—que aci-
dentalmente apareça neste ou naquele verso,
ou segundo aquele adoptado por Teófilo
Braga, separando as cantigas em grupos pro-
vinciais.
E porque nem só a pureza e correcção daforma nos interessa, mas também a beleza
intrínseca e a inteira documentação do queha de elevado no espírito popular, hão deaparecer ao lado de muitas quadras de tão
pura beleza, que nenhum poeta culto conse-
guiu atingi-la, outras de forma mais hesitante,
ainda que egualmente necessárias ao planodesta obra. Vamos provar agora, de canto
a canto, como ha sequência emotiva, en-
redo dramático e profunda unidade neste
Poema.
I—A Natureza e a Terra Natal. Homem
da beira-mar, em perpétua simpatia com omurmurado ritmo das ondas, o portuguêscanta
:
24 Cancioneiro Popular
Sou gaivota, sou gaivota
E venho da beira-mar. . .
A imensidade e a beleza do Oceano ensi-
naram-lhe a poesia, que ele quer oferecer a
todos os que a não sabem, como uma dádiva
preciosa
:
Trago cantigas na bocaPra quem não souber cantar.
O mar, que banha a «praia ocidental» e
dá a esta pequena cantiga uma frescura sadia
de agua salina e a generosa larguesa dumvoo pela imensa planície oceânica, tinha de
ser uma razão essencial de poesia para o
povo português.
É que ele bem sabe que o destino do
homem é ligado ao da Terra, a qual, em seu
pensamento, tem obrigações morais para como género humano (2) (^) ; sabe que o Sol, por
ser a fonte da vida terrestre é o senhor de
toda a alegria (3); e, em horas de scisma ou
tristeza, comunga a beleza da noite, concava
de escuridão
:
Oh ! noite que vais crescendo,
Tão cheia de escuridão,
Tu és a flor mais bela
Dentro do meu coração
!
(^) Estes algarismos indicam as quadras, se-
gundo a numeração por que se encontram nas
diferentes secçõis da antologia.
o Poema do Povo 25
Não admira, assim, que, num lampejo de
intuição genial, o homem do povo adivinhe
o seu parentesco com todo o Universo e te-
nha um momento de atónita confusão perante
a sua prodigiosa imensidade, para logo adqui-
rir uma tranquila certeza, ao descobrir-lhe umalei íntima— o Amor
:
Eu sou filho das estrelas,
Junto do Céu fui criado,
Perdi-me na noite escura,
Fui em teu peito encontrado
!
Esta pequena cantiga, pela sua puresa cris-
talina, profundeza e plenitude de sentido, é
já de si um poema inteiro.
Desta primeira e notável concepção da
vida derivou logicamente toda uma série de
sentimentos e pensamentos filosóficos : a ad-
miração pela Natureza, que manifesta por
várias formas a alegria de viver (6) ; a com-preensão simplista, mas verdadeira, de queuma lei cósmica geral regula todos os astros
e por consequência toda a vida (10); e a cer-
teza de que uma onda de amor inunda toda
a Terra: amam as aves, os peixes, as flo-
res e até as pedras são susceptíveis de sofrer
(12, 13, 14, 15, 17). O homem reconhece
egualmente a bondade na Natureza e elogia
a árvore— a oliveira, que dá o fruto quealumia, a amoreira, que dá o sirgo para nos
vestirmos, a cheirosa laranjeira, quando se
26 Cancioneiro Popular
cobre de flor, e até a humana tristeza do ci-
preste (19, 20, 21, 22).
Mas em todo o mundo o logar eleito e
mais amado é a terra natal. Essa, ainda queseja uma pobre e ignorada aldeola, é sempre« a mais linda em Portugal » (23) e mais que
isso é o próprio « centro da natureza » (24), à
volta do qual tudo são flores (25). Que prazer
andar ao ar livre, à luz do Sol, correndo os
atalhos das vinhas na terra natal! (26, 27).
Longe dela o português sente-se morrer,
porque lhe falta alguma coisa de essencial à
vida que é « o ceu natural » ; e tão entranhada-
mente ama a sua pátria, que, fiel á tradição
histórica, porque o Sol nasce das bandas de
Castela, queria, ingenuamente, roubá-lo aos
castelhanos! (29,30,32).
II— O Elogio do Trabalho e o Valor He-róico, Junto do Universo, no seio duma Natu-
reza, onde palpita um coração semelhante ao
seu e na terra natal, que lhe deu as primei-
ras lições de beleza, o homem vive e trabalha,
porque o trabalho é uma condição de vida
moral, que a própria mulher lhe exige emnome do seu elevado amor, e que aos olhos
dela, por mais rude que seja o mister, não
faz^senão exaltá-lo (33, 34, 41, 46).
É atentar na rasgada altivez com que
ela proclama a esforçada virtude do na-
morado :
o Poema do Povo 27
Todas me lavam a cara
Do meu amor ser ganhão
;
É bonito, gosto dele,
É honrado e ganha pão.
O homem chega a louvar a mesma po-
breza, num desinteresse de todos os tesou-
ros, porque a fadiga, que todos os dias lhe
verga o corpo, alagado em suor, hade permi-
tir que a morte não tenha contas a pedir-lhe
;
e a mulher afirma-se orgulhosa da rusticidade
do seu trajo, indício duma humilde masnobre condição (35, 47). E perante o esforço
do seu companheiro tem exclamaçõis dumaingénua admiração:
Não sei como os homens podemAs ondas do mar vencer
!
E é por isso que o marinheiro
Anda sempre a trabalhar
Em cima da sepultura!
Mas também.
Se ele não fora do mar.
Não vinha aqui a sardinha.
Noutras profissões ainda a mulher mede a
beleza pela quantidade de perigo, que se
corre (36, 37, 38, 42).
Mas o esforço tempera rijamente o espírito
28 Cancioneiro Popular
do homem e eis que, pelo poder do trabalho,
nele acorda o ímpeto heróico, como no la-
vrador, por cuja virtude, o seio da terra é
fundamente rasgado ou para o contraban-
dista, que luta com os guardas frente a frente,
afrontando pistolas e punhais (39, 40, 45);
ou logo a consciência pura do valor próprio
ergue-o audaciosamente, numa sede de domí-
nio sobre a terra.
E ora se compara a um gavião, ave de luta
e sangue, que.
Quando abaixa até ao chão,
Nunca alevanta sem presa,
ora, na consciência do seu misterioso poder,
desafia os astros a que lhe venham habitar o
peito (49, 50, 51) ou (52) se compara a umaonda de tempestade tão alta e violenta que
Três dias choveu areia.
Toda a praia se arrasou!
III. Ameaça e crime. Neste povo inculto a
afectividade violenta transforma por vezes os
mais belos sentimentos, pelos excessos pas-
sionais, em tragédias de sangue e perdição.
Quem leu os romances de Camilo Castelo
Branco, em cuja obra se agita uma tão
completa série de tipos nacionais e cujo
enredo passional parte frequentemente daque-
les desvios de sentimento, observará como as
suas criaçõis se justificam perante esta som-
o Poema do Povo 29
bria face da alma popular. A nuvem pacifica,
que ainda ha pouco amamentava a terra em-
bebendo-a generosamente em sadia frescura,
carregou-se de negrumes minazes e súbita e
cegamente descarrega o raio impetuoso.
O que era esforço criador e Ímpeto heróico
transformou-se em ameaça sanguinária (53,
55, 56, 58), em visão fatalista de crime e so-
berbo despreso pela morte (59, 60).
Esse fundo passional da alma popular,
criando os destinos trágicos, aparece bemclaro nesta expressiva quadra em que o amorse compara ao crime, tornado fatal, perse-
guidor e irremediável como um remorso:
O meu coração, por artes,
Entrou no teu pensamento; (OÉ como o crime de faca
Que nunca tem livramento.
IV. Máximas e pensamentos. Mas o crime
é a excepção e existe apenas como um des-
vio afectivo. O Povo tem a sua moral, que
transparece nesta ou naquela cantiga e é,
quantas vezes, mais humana e elevada que a
das classes cultas a quem o egoismo ou os
artificialismos da educação perverteram o
senso ético. Também as cantigas revelam ele-
vaçõis de pensamento assombrosas. A musapopular chega a ter a intuição da liberdade e
da inviolabilidade do pensamento (63):
(í) Entrou, no teu pensamento, aqui deve significar en-
trou a pensar em ti.
30 Cancioneiro Popular
Não ha machado que corte
A raiz ao pensamento
proclama ela ; assim como sabe descrever por
uma intuição e forma superior esse encantado
segredo em que vive a Alma e a traz não só
exilada de toda a vida exterior, inas até emdesharmonia com as aparências dum rosto
alegre ou triste (64):
Eu, cantando, estou calada,
Chorando me estou a rir.
Andando fico parada,
Desperta estou a dormir.
E porque tem essa intuição, atinge o me-
lindroso pudor de revelar o seu peito, que
sofre e ama, pois que (65)
Quem o seu peito descobre
É a si mesmo traidor.
Depois o homem pobre exalta a pobreza,
que é amada de Deus (67), pois a fortuna é
vária (68) e a verdadeira riqueza é a felici-
dade moral (69) e condena com um rigor de
Eclesiastes as vaidades e a ostentação (70, 71).
Castiga as murmuraçõis (72); reflecte sobre
o poder que o tempo possui de curar as fe-
ridas do coração (73); nota como à volta da
mulher formosa se acende o coro unanimedos desejos, e proclama até, perante a Natu-
reza, os direitos do Amor, fora de toda a
sanção, pois que a mulher que morre don-
o Poema do Povo 31
zela tem uma morte inglória (74, 75). A pró-
pria mulher deseja casar emquanto é rapa-
riga, para que se não perca a sua fecundidade
(76) obedecendo assim á Natureza, cujas leis
são invioláveis (77).
Ele bem sabe que entra, como parte noAmor, a exaltação dos sentidos (78), assim
como reconhece a sua cegueira desatinada
(79) e adivinha esse estado da alma amorosaa quem incomoda o bulicio da vida exterior
e se compraz com o silêncio e a escuridão da
noite, que mais lhe consente a interiorisa-
ção(80):
Toda a moça que namoraPelos olhos se conhece:São tristes pela manhã,Alegres, quando anoitece.
O amor veemente e sincero funda-se na
livre escolha, (84), porque acima da lei da obe-
diência filial está a lei do próprio amor (85),
o qual deve procurar sempre a mocidadeainda que pobre e a formosura com a condi-
ção de ser aureolada pelo esplendor da sim-
patia (81, 83).
E é tão poderoso o amor, que um pai
comete uma criminosa crueldade, sempre que
abandona uma filha, que se deixou seduzir:
maior que o erro da filha é o crime do pai
que a entrega às tentaçõis e às férreas leis
do mundo (86).
A queda da mulher pode obedecer á con-
32 Cancioneiro Popular
dição da sua própria inocência, que a redimeda culpa, em detrimento do sedutor, cuja almafica para sempre perdida. É o sentimento dadignidade intacta, que arranca à mulher se-
duzida e traída este belo grito de indignação
:
Não cuides, por me deixares,
Que no Céu ganhaste palma;Eu caí por inocente:
Desgraçada da tu'alma!
É talvez, pensando na infidelidade e trai-
ção dos homens, que ela é capaz de chegar
ao curioso caso de narcisismo moral e in-
sensibilidade amorosa, expressa nesta qua-
dra (91):
Vai-se o dia, vem a noite,
Vai-se a noite, o dia vem,S'tou gostosa de mim mesmo.Não quero bem a ninguém.
V. Ironias e gracejos, O prolóquio latino
— « Ridendo csatigat mores», forma superior
de ironia pela intenção moral, seria a melhor
das epígrafes a este capitulo. Nós não temosno génio nacional nada que se pareça com o
humor francês, exercício do espírito pelo es-
pírito, espécie de ironia intelectual, a que o
nosso povo é avesso pela profundidade e até
pelas demasias de sentimento. A nossa ironia
tem geralmente antecedentes morais; não ri-
dicularisa apenas, castiga quasi sempre, e
quando a paixão amorosa, o orgulho ou o
o Poema do Povo 33
desprezo a dita, torna-se invectiva sarcástica,
como havemos de vêr num capítulo à parte.
Aqui o Povo chasqueia o egoísmo dos
ricos, capaz das mais absurdas exigências
(92), a irreflexão dos que repreendem os ví-
cios alheios sem curar dos próprios, e, comoo seu espírito é humilde, chão e natural, mo-teja a vaidade feminina com imagens dumagraça e precisão admiráveis (94, 95, 96), sa-
tirisando com gargalhadas francas a vaidade
das senhoras, 3. quem a moda transforma
em seres de artificio e monstruosidade (98,
99, 100).
Seguem-se alguns gracejos em cantigas de
desafio com expedientes ingénuos e até in-
fantis, a provar a prímitividade dos seus pen-
samentos (101, 102, 103, 104), e outras quedenunciam o poético arrojo da imaginação
popular (105, 106).
VI. Amor filial. Se o Povo, em geral, nãori desintencionadamente, é porque o primeiro
e quasi exclusivo móbil de todas as suas acçõis
é o Amor. Não só o enlevado e estático amorentre indivíduos de sexo diferente, mas tam-
bém o amor filial, de gratidão e respeito pelo
pai (107) mas, mais que isso, de carinho e
exaltado enternecimento pelas Mais, as san-
tas, as sagradas, as puríssimas Mais, cujo co-
ração como uma fonte de amor, se desentra-
nha em ternura, e sacrifícios perenes (108 a
114). Todo este pequeno canto é um formo-
síssimo indicio da riqueza amorosa da alma
34 Cancioneiro Popular
popular, tanta é a singela e pura fragrância
que respira e o religioso enlevo de oração,
em que se exalta.
VIL Religiosidade popular, É este umdos aspectos, sob que o cancioneiro popular
é mais afirmativo de verdades originais. Umpovo que ama a Natureza e a representa
intrinsecamente movida de espírito amoroso,
para se guiar pelos seus ensinamentos, tinha
que reagir contra as hirtas e severas fórmulas
do catolicismo e transformar todas as ascéti-
cas representaçõis da divindade, que lhe pre-
garam,—o Cristo, a Virgem, os Santos,—moldando-as, segundo o seu génio e comarte irreverente, no tosco barro das cantigas,
O povo, sabedor das verdades eternas,
leva todas essas contritas e dolorosas divin-
dades a fazer as pazes com a boa Natureza,
reintegra-as no convívio do homem e.no gososereno das doces alegrias humanas, santifi-
cando apenas a pobreza, a humildade, o ino-
cente desejo, a fecundidade materna e todas
as virtudes do Amor.Já Unamuno, observador do espírito por-
tuguês, proclamou o paganismo e o panteísmo
da nossa religiosidade, contraposto ao cató-
lico espírito castelhano. Essa afirmação docu-
menta-se claramente no nosso cancioneiro.
Até o culto do Sol, comum a todos os po-
vos arianos, cujos vestígios alguns mitólogos
vão buscar às festas de S. João e do Natal,
que coincidem com o Solstício do Verão e o
o Poema do Povo 35
Solsticio do Inverno, existe bem evidente
no cancioneiro, quer isolado, quer fundido
com os símbolos cristãos. Haja em vista esta
curiosíssima cantiga, que nós deparamos na
Revista de Guimarães:
ORAÇÃO AO SOL
Vou-me despedir de vós,
Adeus, oh! Sol que te vais,
Deixais-me ficar sósinha
No meio dos pinheirais.
Oh! Sol, torna amanhã,Eu quero-te ver nascer,
Só a vós é que eu adoro,
Só por vós quero morrer.
A seguir ha esta nota: «Esta oração só
deve ser dita ao pôr do Sol; a qualquer ou-
tra hora é pecado».
Perante este precioso documento não po-
dem restar dúvidas de que existam entre nós
restos daquele culto. Demais, em muitas can-
tigas aparece a expressão Sol divino, comoteremos ainda ocasião de ver. Outro curioso
documento mas este da fusão do mito solar
com o cristianismo ou do reaparecimento da-
quele sob as representaçõis cristãs, posterior-
mente recebidas, é o Terço da Aurora, coli-
gido nas Tradiçõis de Serpa, na Revista
Lusitana, por M. Dias Nunes e cuja notícia
queremos dar tal e qual ali aparece, por ser
muito significativa:
36 Cancioneiro Popular
O TERÇO DA AURORA
<íEsta cerimónia religiosa realiza-se por
ocasião das festas em louvor da Senhora dos
Remédios, Conceição, Prazeres, e tambémpela Páscoa e Quinta-feira de Ascensão. Namadrugada do dia em que a festividade se
celebra, os devotos que prim.eiro chegam á
respectiva igreja, saem em grupo, e vão deporta em porta a procurar os seus confrades
retardatários, cantando
:
A ADORAÇÃO .
Os devotos que hão de vir a rezar o sa-
cratíssimo rosário de Maria Aurora—podemvir que é tempo—para que esta soberana
não diga— que nos entregamos— ao esque-
cimento.—Podem vir que é tempo.
Depois de todos reunidos—todos os ir-
mãos particularmente convidados para toma-
rem parte no terço— percorrem as principaes
ruas da vila entoando repetidas vezes em coro
e num ritmo extremamente arrastado e mo-nótono o padre-nosso, â ave-maria e a gloria-
patri; tendo o cuidado de sempre que se
aproximam de qualquer igreja du de qual-
quer passo fazer um poiso e recitar o
OFERECIMENTO
Soberana, divina AuroraMãe do eterno Sole,
Quem como vós pudera,
Soccorrer-nos melhore!
o Poema do Povo 37
Quando o sol é nado, recolhem á igreja
donde saíram, e ahi pronunciam em altas vo-
zes:
(Voz), Gloria patri, é filho, é desprito
santo,
(Coro). Secundire de príncipe, é de nuncaé semper, é de sedo sécloro. Amei; (^)
É de notar que a cerimónia se realisa de
madrugada até que o Sol é nado e a clara
substituição ou fusão da Virgem com a di-
vina Aurora e de Cristo com o eterno
Sol,
E essa Oração ao Sol nascente, conjura-
ção de bruxa ciumenta, exortando o Sol,
numa rajada de ardorosa paixão, a que lhe
sirva de intermediário e realise, com o divino
poder, os seus desatinados e raivosos dese-
jos!
Vejamos agora como a Virgem é repre-
sentada: atribuem-se-!he todos os encantos
físicos— a beleza carnal, a graciosidade, a
frescura apetitosa (119, 120) e ora aparece
cortando o mar, num barco de flores, comoVénus, ou, pelo Douro acima, como uma Ce-
res, de cestinha no braço, para fazer a vin-
dima (122, 121). Celebra-se-lhe a feminina
condição, que a obriga ás dores do parto, o
seu carinho protector pelo amor das aves, en-
volve-se em disvelos e exalta-se a sua mater-
(^) Tradições de Serpa, «Revista Lusitana»,
volume 4.0 pag. 105 e 106.
38 Cancioneiro Popular
nidade tanto mais santa, quanto é tão pobre
e humilde, que a doce Virgem para lavar o
Menino só tem as lagrimas dos olhos, para o
limpar a manguinha da camisa, e as manti-
lhas do rosto para lhe envolver o corpo pe-
quenino! (125 a 129).
O Cristo raras vezes se evoca na sangrenta
e dramática figura do crucificado, a expiar os
crimes duma raça maldita, e quando isso
acontece, nunca na cantiga solta, mas nalgu-
mas cantilenas de egreja, percebe-se a origem
culta da obra ou a sua restrita aceitação den-
tro dum publico devoto ou fanatisado.
O que o Povo canta carinhosamente é o
menino Jesus e frisando frequentemente (130,
132, 135 e 136) o motivo da sua predileção
-—a humildade do seu nascimento,
Num tempo de tanto frio
Desprezado e pobresinho.
Mas é tão humano esse deus, que tem «bo-
quinha de sangue e leite», «boquinha de re-
queijão», que apetece comer e num dia que
foi á fonte as heréticas moças deram-lhe açoi-
tes e obrigaram-no a chorar (133, 134, 137).
Noutra cantiga ainda (139) que ora se
aplica ao Anjo da Guarda, ora ao Senhor da
Serra, a divindade aparece unicamente comoum pobre deus das selvas, dando aos seus
o Poema do Povo 39
devotos a agua da fonte e a sombra dos cas-
tanheiros.
Os santos mais queridos do Povo, toda-
via, a avaliar pela profusão de cantigas, que
os celebram, são S. João e S. António. Oconflito entre a tradição católica e a po-
pular aparece mesmo numa cantiga, em que
S. João é representado tendo, a custódia
numa das mãos, como convinha ao Precursor,
mas empunhando na outra um ramalhete,
mais próprio duma divindade pagã (142).
Mas é sob este último aspecto, que ele vive
na alma popular, moço e rústico pastor, de
figura e alma tão paganisada, que se permite
todas as aventuras duma divindade do Olim-
po, e partilhando a vida dos mortais, vai aos
montes colher braçadas de giesta para as suas
fogueiras, beija as raparigas, faz uma fonte de
prata para as ver, mistura-se nos seus diver-
timentos e desmanda-se a ponto, o bom dosanto, que lhe chamam velhaco (143 a 151)!
Emfim, o homem fez a divindade á sua
imagem e semelhança e agora, espelho dos
seus devotos, já pode escutar a súplica dumdos fieis que lhe pede para fazer as raparigas
bem doidas (145).
Santo António, no mesmo altar, perde
toda a compostura, para acenar ás raparigas,
quando não vai até ao mato esperá-las (140,
141); e o nosso povo, tal qual o povo romano,
que ha dezenas de séculos maltratava os deu-
ses, quando estes o não atendiam, assim es-
40 Cancioneiro Popular
pança também o santinho, porque ele nãoquer favorecer todas as exigências dos amo-rosos (152).
E desde que os Santos são os intermediá-
rios entre os amores dos homens e eles pró-
prios também amam, desejam e sofrem de
amor, como poderia o Povo deixar de olhar
irreverentemente para os sacerdotes católicos,
a quem a religião impõi preceitos tais, quenern os santos acatam?!
É exactamente, por causa dessa imposição,
observa o Povo, que o padre é o que mais
namora e, vivendo em continua mentira, me-
rece da sua musa os mais acerbos e virulen-
tos sarcasmos (153, 154, 155, 156, 157, 159).
Mas esse protesto contra as falsidades
duma religião, que pretende desmentir a Na-
tureza, pode atingir a veemência lancinante
dum coração dilacerado pelo sofrimento.
É o caso da mulher, a quem roubaram to-
das as alegrias do amor e da maternidade,
para a enclausurar num convento e, que,
louca de dôr e saudade e ansiosa de vida li-
vre, canta essa dolorosissima elegia (160),
composta com o estalar das fibras dum cora-
ção despedaçado pelo desespero e onde de
quando em quando soam gritos sublimes,
como este:
Agora que aqui me achoMetida nesta clausura,
Parece-me noite escura
o Poema do Povo 41
O meio dia,
O meio dia!
Este cântico evidentemente arcaico, ainda
hoje se canta com uma toada tristíssima emtodo o Portugal (^), e Teófilo Braga regista
no seu Cancioneiro popular {edição de 1867)
um outro muito semelhante, em que o mo-tivo elegíaco é a vida do frade. Ainda que
nâo mantenha a unidade daquele, possui noentanto este belíssimo passo:
Eu á força professei
Por meu pai assim querer;
Ser defunto, sem morrerAmortalhado!
VIÍI. A criatura amada. Vamos assistir
agora a uma transformação maravilhosa. Ohomem, que nos seus humildes cantos nós
temos escutado até aqui de entusiasmo sa-
grado perante a Natureza, de louvor ao tra-
balho, de bravura heróica, ternura filial e vaga
religiosidade panteista ou cristã, pode ter
nesta ou naquela estrofe do seu poema he-
sitaçõis de forma e imagem, sempre que a
(^) Na minha terra adoptiva, S. João do Cam-po, junto de Coimbra, o ouvi eu a mais que umapessoa.
42 Cancioneiro Popular
nebulosa criadora não prenda de todo nas
suas espirais o espírito do poeta.
Aqui não. Desde que o homem ama, pre-
sente-se que uma força prodigiosa o anima e
o seu cântico sai numa espontaneidade, fres-
cura, singeleza e rapto líricos duma elevação
sem mácula.
O Amor— eis o primeiro, o maior e talvez
o exclusivo principio de inspiração para o
Povo:
Todas as águas que corremTodas ao mar vão parar;
Todas as minhas cantigas
Ao meu amor vão a dar.
Assim se explica a superioridade lirica da
sua musa. Coligindo e coordenando as can-
tigas em que se pintam as perfeiçõis da pes-
soa amada, conseguimos formar esse exta-
siado retrato, em que a justeza e combinaçãoperfeita das cores se junta a um íntimo e pu-
ríssimo enlevo e que atinge a frescura de
imagens do Cântico dos cânticos, como nes-
tas duas límpidas cantigas
:
És como a prata lavrada,
Como o leite sem a espuma;És perfeita, oh! minha amada,Sem teres falta nenhuma.
o Poema do Povo 43
Os vossos peitos, menina,
Ambos de dois são eguais:
Não são altos, nem são baixos,
São como vós precisais.
IX. Confissão d'amôr. Vem após, pri-
meiro como uma névoa de ante-manhã, ru-
borisada de longínquos clarõis, a revelação
do amor. Que subtil delicadeza aliada ao sen-
timento da grandeza infinita do amor, que ha
neste alvorescente canto dum coração que se
oferta:
Quem embarca, quem embarca,Quem vem para o Mar, quem vem?Quem embarca nos meus olhos,
Que linda maré que tem?! . .
.
Por vezes num peito (e deve ser de mu-lher) o amor e o pudor, a paixão e o respeito
combatem-se (189); até que o amor, comomais forte, vence e afirma-se subitamente coma jurada violência semítica dalguns trechos daBíblia (190), ou então com o clangôr épico
dum clarim, cuja harmonia se espalha por
todo o mundo e se ouve por toda a vida (192)!
O amor do português é essencialmente da-
divoso, define-se claramente como uma oferta
absoluta e constante de toda a vida (195, 203,
206); chega a dar-se no amor correspondido
44 Cancioneiro Popular
uma transfusão de vida, que o génio popular
traduz por imagens como estas
:
O sangue das minhas veias
Gira no teu coração;
Os teus braços são cadeias
E eu entrego-me á prisão.
Amor religioso, que vê o próprio Deus na
pessoa amada (207) e que torna o amantejuntamente, criatura e Criador, não só a es-
cravisada, absoluta pertença de outrem, emcorpo e alma (208), mas também a sua exal-
tação e condição única de vida (196).
X. Desejo e posse. Esse elevadíssimo
amor não é isento de desejo, antes por esse
motivo arranca da alma popular pequenoscantos líricos, em que ele se afirma em ansie-
dade ideal (209) ou em suavíssimas queixas,
em que o amoroso inveja o linho que passa
pela boca da sua amada ou as contas do colar
que lhe descançam no seio, (212, 213) para
logo, em arrojos de imaginação, se julgar, nodesejo da amada, como a verdizela «que se
enleia pelo trigo» (211).
Vêem depois os sonhos, as ternas con-
fidências, os doces pedidos e propostas de
amor (226, 219, 227, 230), as súplicas auda-
ciosas, como nesta cantiga em que a delica-
deza e a malícia se dão as mãos com inexce-
divel perfeição (229):
o PoEM.v DO Povo 45
Deixai-me ir com as mãos ambasAo talho do teu colete,
Á parte mais delicada,
Onde pois o ramalhete.
Por vezes o desejo é duma violência quasi
brutal (233), até que a ideia da posse apa-
rece, como sanção moral do amor (234) e a
seguir a mulher exprime a profunda pertur-
bação dos sentidos causada pelos beijos doamado e este a doçura dum beijo que lhe fica
perenemente a saber nos lábios (235 e 236),
ou a arrebatadora alegria sensual da posse
(238, 240, 244).
XI. Ironias, sarcasmos e pragas de
amor. Do amor, dos ciúmes, das desilusões,
enredos e ingratidõis nascem tanto as iro-
nias de puro gracejo, como a invectiva de in-
dignada veemência. Assim, esta parte é umacontinuação das máximas morais. Atravez dos
sarcasmos e das pragas, entrevê-se o princí-
pio moral— lealdade, constância, fidelidade,
—ditando os seus protestos ou lançando a
maldição sobre os que transgrediram as leis
sagradas do Amor.É de notar aqui a felicidade e riqueza de
imagens (245, 262, 264, etc.) e a violência
da linguagem, que sob a forma popular de
jura ou praga, se pode comparar às desespe-
radas expressõis de génio do Livro de Job
(268, 272, 273).
XII. O Amor, Eis-nos na região das altu-
46 Cancioneiro Popular
ras, e subindo sempre . . . Do alto a paisagem
contemplada vai-se alargando ilimitadamente
e, para alem das últimas fugidias cristas dos
montes, o olhar embebe-se na imensidade
azul. É que o homem, quando espontanea-
mente se revelou a essência do Amor, reco-
nheceu que era dentro de si a divindade.
O amor é uma lei natural: e pelo mesmomotivo que o campo se recama de flores e oCéu é cheio d'astros é que o amor nasce nocoração da mulher (274, 275). Mais: a pró-
pria essência da vida e o Amor (280):
Só amando é que se vive
e quem não ama, triste dele,
Vivo está na sepultura,
E, porque ele é o único valor da vida, an-
tes a morte do que viver sem amar (281):
Mais vale morrer d'amôres,
Do que sem eles viver.
Por via do amor e da pessoa amada é que
os astros gravitam (278):
Nasce o Sol para adorar-te,
Dá volta ao mundo por ver-te,
o Poema do Povo 47
e é pelo amor, e só por ele, também que o
tempo adquire realidade (279):
O dia tem duas horas,
Duas horas, não tem mais:
Uma é quando eu vos vejo,
—
Outra, quando me lembrais.
Uma força misteriosa regula os movimen-tos ocultos dos coraçõis, que se aproximam e
nas mãos do poderoso Destino o coração dohomem vai, arrastado, como um pedaço de
madeira sobre as aguas impetuosas (283).
E então, sob essa omnipotente força, as duas
vidas fundem-se : unem-se os coraçõis, o san-
gue vasa-se na mesma onda, os próprios
olhos se desconhecem de se misturarem na
contemplação (285, 287, 288, 289) e quandoa solicitude do amor é sequiosa de se entre-
gar em carinhos, que arte subtilima! hesita,
porque não sabe a qual dos dois coraçõis se
dirigir (286):
Dois coraçõis, que se amam,Unidos fazem um só;
Ambos eles estão feridos:
De qual dos dois terei dó?!
Fusão de vida, multiplicação de energias,
potenciação súbita do espirito! ... e eis que
o Amor atinge a divindade, com todas as
suas miraculosas virtudes (293):
48 Cancioneiro Popular
Quando António vai à missaA egreja resplandece,
A herva que António pisa,
Se está seca reverdece!
Qual o poeta culto que jamais excedeu a
profundidade lírica deste pequenino poema,latejante dos poderes ocultos do Amor?!Simí ! o Ámôr investe a pessoa amada com as
supremas virtudes de Deus; por ela «se sal-
vam as almas» (296) e ela também, comoCristo, pode dizer a Lázaro (294):
Resuscita que aqui estou
!
E eis que as Almas, na consciência da sua
divindade, partem unidas para o Ceu (292),
voam arrebatadas e pelo esforço das suas
misteriosas energias, o Amor torna-se eleva-
ção épica, levitação deslumbrada pelo éter
azul (298):
Subi com a minha amadaTé onde ninguém se viu;
As nuvens diziam: basta.
Até qui ninguém subiu!
E, atingida a consciência sublime, épica,
divina, o Amor revela-se em violência apai-
xonada, com a presença directa das grandes
forças da Natureza (300) e, trasbordante de
si mesmo, define-se como de essência dadi-
o Poema do Povo 49
vosa (302) e, encapelado e tumultuoso, emseu poder de exaltar a pessoa amada, com-
para-se às temerosas torrentes que alagam de
vida as florestas (303):
Meu coração é um rio,
Cheio d'água, mete medo;Seca-se o meu coração,
Rega-se o teu arvoredo!
Na sede de se dar, o amante quer realisar
os supremos sacrifícios: dar a vida pelo
objecto amado (304, 305); tecer-lhe as ale-
grias com tormentos e lágrimas de sangue
(306); esquecer-se de si a ponto de amar as
mesmas ingratidõis de seu amor ; chorar tris-
tissimamente, quando mulher abandonada,
pela certeza de que o amante não encontrará
nenhuma outra, que lhe queira tanto bem(309); ou oferecer-se, enlouquecida pelo an-
seio de sacrifício, para dilacerar a carne, numgrito lancinante de paixão dolorosa (310):
Se os meus olhos te dão pena,
Tira-os e deita-os ao chão;Não quero ter no meu corpoCoisa que te dê paixão
!
Amor ínexgotavel, sempre inédito e egual-
mente poderoso, florido como uma eterna
primavera (316) e capaz também de en-
cher de flores o coração alheio (311). . .
Este amor exalta a vida interior de modo
50 Cancioneiro Popular
que o amante tem diálogos com o próprio
coração, forma de se dirigir à criatura amada
(318), interiorisa-se, a ponto que deseja viver
a sonhar, encerrado em si mesmo, vendo, de
olhos fechados (319):
Olhos, que sonhando vedes,
Olhos para que acordais?
Se vós, sonhando, estais vendoTudo quanto desejais?!
ou sente, em noites de misteriosa emoção,
um desabrochar de todas as rosas dentro da
Alma extasiada (320)!
A vida íntima do Amor decorre em regiõis
inacessíveis à palavra e daí toda uma lingua-
gem amorosa, que se escuta por adivinhação
ou se lê na Alma, atravez as confissõis trans-
parentes do olhar (321, 322, 323, 324, 325,
etc), quando não é a amaviosa linguagem
das ternuras e carinhos, ora velados e pro-
fundos numa linguagem de mistério e eleva-
ção (348), ora claros e doces como um afago
duma pureza lírica de veio d'água refrige-
rante (346, 347, 349):
Oh! que calma está caindo
Por cima dos ceifadores!
Quem fora ramo de palma,
Que cobrira os meus amores!
XIII. Fidelidade e constância, A firmeza
de sentimentos, condição essencial do cara-
o Poema do Povo 51
cter, foi, ao menos outrora, característica doespírito português. No amor, o que não é de
forma nenhuma menos representativo, vem o
nosso cancioneiro afirmar exuberantemente
essa rijeza austera do caracter popular, tra-
duzindo-se em fidelidade e constância, ca-
paz de afrontar desgraças, perigos, maldiçõis,
a própria morte. Quisemos, assim, formar umcântico à parte,, quanto mais que não des-
merece em beleza dos cantos anteriores. A fi-
delidade no amor encontra por vezes a
sua suprema expressão, oferecendo-se, por
alternativa única, a Morte, como naquela
cantiga (366) em que uma donzela exclama:
Eu fui aquela que disse:
«Ou contigo òu com \a terra!»
Sé não cazasse contigo •
Queria morrer donzda.
Na própria maneira de separar a frase mais
expressiva, ha uma admirável intenção ar-
tística. E a ligação inquebrantável de duasAlmas ligadas pelo Amor, dranaâtisa-sè. pela
ameaça da separação e buscã;''paíá se definir,
a imagem fúnebre da agonia, árripi^nte desagrado pavor (383):
P meu coração dò tçu
É mui ruim de apartar;
É como a alma do corpo,
Quando Deus a quer levar.
52 Cancioneiro Popular
XIV. A felicidade do lar e a ternura
maternal A felicidade do lar, quando alegria
conjugal, raras vezes inspira o Povo, como é
fácil de calcular pelo reduzido numero decantigas, que neste cancioneiro se lhe refe-
rem. A Alegria não é a musa predilecta donosso Povo, muito mais quando, como nocaso presente, se traduz em serenidade e paz
fecunda do casal.
O amor materno, esse, mais dado a trans-
portes e carinhosos delírios, ele, que é umafonte inexgotavel de inspiração moral, tor-
na-se também inspiração poética, trémula,
embaladora, receiosa, na boca das Mais. Can-
tigas de adormecer, beijadas, resadas, cicia-
das. . . tão santas, que as Mais, ao canta-las so-
bre o berço dos filhos, estancam as lágrimas
para não cortarem a voz de soluços (389) e
em seu extasis. maternal, para que alguém as
entenda, falam com os anjos e as aves, suas
irmãs em pureza e amor! (386, 391, 392,
394, 396) (^).
XV. A Saudade, Dizíamos ainda ha mo-mentos que este poema era uma continua
ascenção: mais alto, sempre mais alto...
(') É fértil em cantigas de berço o nosso can-
cioneiro. Nós escolhemos apenas para aqui algu-
mas das mais belas. Se algum dos nossos leitores
desejar mais desenvolvidamente conhecer este ca-
pítulo do cancioneiro, queira ler as Cançõís doBerço de Leite de Vasconcelos, Revista Lusitana,
vol. X.
o Poema do Povo 53
Contemplámos a alma popular em altura;
vel-la-hemos agora em profundidade.
As saudades são raizes,
Que alcançam grande fundura,
diz uma cantiga: são as raizes do amor, cuja
flor de mistério exala o perfume pelas alturas.
A ausência é a tentação da montanha: foi
ao alto e quiz descer o Amor. Com as mãosenclavinhadas esforçou-se demoniacamente
por arranca-lo das puríssimas culminâncias,
mas tão arraigado ele está, que a cada novoempuchão, mais vitoriosamente se lhe ergue
o corpo lacerado (408):
Como o vento é para o fogo
É a ausência pro amor:Se é pequeno apaga-o logo,
Se é grande torna-o maior.
O verdadeiro, o mais alto amor revela-se
pela ausência: é a Saudade; e a musa popular
vai até à afirmação de que (397)
Aonde não ha saudadeNão pode haver bem querer.
E, se o Amor é de essência divina, a sua
divindade tanto pode revelar-se pela presença
corpórea da pessoa amada, como pela Saíi-
dade, que é a sua presença espiritual:
54 Cancioneiro Popular
De qualquer forma que existas
És a mesma Divindade:
Ventura, quando te vejo,
Se te não vejo, Saudade.
As almas conhecem-se, ha laços invisíveis
que as prendem (399) e só se podem revelar
pela Saudade, que é a sua visão directa embeleza e perfeição ideal (404).
A Saudade é definida até como a luta do-
lorosa e feliz pelo ideal (400):
Quem adora o impossível
Que esperança pode ter?
Vive numa saudade,
Gosa pena até morrer.
A sua angustiosa aflição volve-se num es-
tado de visão telepática ; o seu misterioso po-
der destruiu o espaço e a mulher que amapode ver ao longe o seu amado (409) e até,
pelo esforço da vontade, partir, atravessar o
mar e socorrê4o no momento do perigo (410,
414): a Saudade tornou-se o drama épico doAmor!
Fundiu-se a ausência e a presença, a dor e
a esperança (401) e a Saudade é um clarão
de sol-posto (406), é a escuridão aflitiva, nim-
bada dum esplendor ideal (407):
Passei pela tua porta,
Não te vi, oh! alma minha;Fiquei comiO a noite escura,
Metida na nevoinha!
o Poema do Povo 55
Assim como o Povo personifica o Amor,assim personifica a Saudade e dirigindo-se à
criatura amada, chama-llie «minha saudade»tal qual, como diria «meu amor», o que
exemplificamos neste cancioneiro com três
cantigas, que não sendo da mais elevada
inspiração, são, todavia, necessárias para do-
cumentar este facto.
É riquíssimo o cancioneiro da Saudade, já
quando traduz o momento lancinante da des-
pedida nalgumas cantigas, que são puros gri-
tos de agudíssima aflição (427, 430, 432,
etc), ora, tornada solicitude que acompanhaa pessoa amada, em extremos de carinho
(446, 447) ou nos ternos expedientes, queimagina para lhe comunicar os seus cuidados
e pensamentos de amor (448, 449, 450, 451,
452, etc).
A Saudade, expressão suprema do Amor,não se rende às violências do Destino, e ar-
dendo na pura chama do sentimento, a alma
popular prefere a morte— morrer de sau-
dade— a ter que negar o divino Amor. Mor-rer de amor e morrer de saudade são casos
passionaes quasi vulgares nas nossas cantigas
(417, 418, 419, 420, 421, 422, 424, 425,
426).
É que a Saudade, não é, como vimos, umsentimento acidental, mas sim o esplendor
ideal do Amor, a sua face religiosa que só
por si constitui para a metafísica popular umafonte de imortalidade (560).
56 Cancioneiro Popular
Que admira, assim, que nos seus anseios
atinja imagens poéticas sublimes e, inebreada
da sua deliciosa tortura, crie o desejo de
poisar nos altos, e exalar o melindroso per-
fume, como a flor agreste da esteveira, ao
vento da imensidade (467)
:
Quem me dera estar tão alto,
Como a esteveira na serra,
Que avistara o meu amor,
Onde quer que ele estivera.
XVI. Desgraça de amor, Á elevada e
aguda sensibilidade, à melindrosa delicadeza
de Alma corresponde, como era de razão,
o amor desgraçado, ensombrando a poesia
popular dum tom elegíaco dominante. Adesgraça do amor traído, maltratado ou fe-
rido de morte, vasa a sua dor nos moldes da
elegia. São queixas duma infinita plangência
revestindo as formas delicadíssimas (469,
473, 485) dum coração que se lamenta, mas
não acusa, ou adoçando-se na resignação ex-
trema de quem se entrega nas mãos de Deus
(490), ou subindo até à piedade pelos males
do coração que nos agravou (475), logo ve-
lado de humildade e receio de maguar, quei-
xando-se (478)
:
Já os atalhos tem herva
Depois que aqui não vieste;
Dize-me, amor da minh'alma,
Que agravo de mim tiveste?
o Poema do Povo 57
enfim, turvo de tão maguado abandono, que
nos sentimos invencivelmente tomados da
mesma pungente agonia, pelo poder do seu
doloroso queixume, cuja sublime inspiração
é tão molhada de lágrimas (495)
:
A minha amada morreu,
Eu já não a torno a ver
;
A flor no campo renasce,
Ela não torna a nascer!
XVIL Tristeza, A delicadíssima impressio-
nabilidade, gerando os amores desgraçados,
pode também por infortúnios de toda a na-
tureza lançar as almas na tristeza. Somos de
opinião que as grandes desgraças nacionais
que desde o fim do XVI século tem afligido
a Pátria, roubando-nos as grandes alegrias
colectivas dos Povos que de facto vivem,
teem contribuído profundamente para criar
esse fundo de tristeza, que entenebrece a
poesia do Povo.
É bem verdade que essa tristeza pode ser
mui diversamente motivada. É algumas vezes
o sentimento da inferioridade a que um fadi-
goso e mal recompensado trabalho condenatanto o homem como a mulher (518, 519);
outras vezes a fealdade e a pobreza reunidas,
que inspiram a uma rapariga este sentido
queixume contra o Destino (522):
58 Cancioneiro Popular
Sou feia, não tenho graça,
É disforme o corpo meu,Não tenho bens de fortuna:
Mas que culpa tenho eu?!
ou o abandono da engeitada, que nunca co-
nheceu carinhos de Mãe e cuja alma, infinita-
mente deserta, grita a sua sede de morte (533):
Oh! quem me dera ter mãi,
Embora fosse uma silva,
Inda que ela me arranhasse.
Sempre eu era sua filha!
Mas, em geral, não é esta a tristeza das can-
tigas do Povo: é, sim, uma tristeza, que des-
conhece a sua origem, profunda e brumosa,
subindo do coração e abafando a voz, comoa névoa dos rios que empana a luz da manhã.
Ainda assim, não é aqui, na alma do Povo,
que se deve procurar a «apagada e vil tris-
teza», porque a sua é nobre e alevantada.
Nalgumas dessas cantigas (527, 528), comoesta, mistura de desafio e revolta (529):
Oh! triste sombra acompanha-me,Desgraçados dai-me a mão;Venha tudo o que for triste
Afligir meu coração!
a alma afronta a Desgraça e compraz-se coma imensidade da Dor porque lhe admira a
grandeza.
o Poema do Povo 59
Mas um Povo, que criou este canto do seu
Poema, sente-se que tem grandes e seculares
feridas no coração e que essa brava energia
com que afronta as próprias dores, bem esti-
mulada e dirigida, seria o melhor remédio
para as cicatrizar de vez.
XVIII. A Morte e a Eternidade do Amor,Eis-nos chegados ao último, ao supremocanto deste Poema. Aqui, a alma do Povovence as mais elevadas culminâncias e junta-
mente abisma-se nas derradeiras profundida-
des; aqui, a Morte representa-se como a
suprema Justiça; aqui, perante esse mal irre-
mediável, afrontando o inimigo invencível, o
coração do homem, pelo poder épico da
Saudade, ergue o Amor vitoriosamente para
além da própria Morte; aqui, o homem, no
rapto da inspiração dramática, fantasmisa-se
e na figura pávida dos desenterrados, vem,
já de Alem-Mundo, afirmar a eternidade, a
essência religiosa do Amor!•Tal como o Amor, a Morte é uma lei na-
tural, perante a qual o ser corpóreo tem de
se curvar com resignação (538), mas essa lei
inspira-se num pensamento de elevada justiça,
e todas as ostentações, vaidades, diferenças
sociais, desaparecem, misérrimamente eguala-
das pela Morte (544, 545, 548):
Debaixo da terra fria
Todos nós somos eguais.
60 Cancioneiro Popular
de sorte que dos restos do homem, tornados
cinza, fundidos no pó comum, não resta o
mais humilde sinal sobre a face da Terra
(539, 546)!
Por um momento, ao lembrar-se que a
terra vai comer a carne formosa da amada,
que foi o gostoso alimento dos seus desejos,
o homem tem um assomo de revolta (541);
e se atenta, porventura, em que essa mesmaterra irá devorar a tenra e mimosa delicadeza
dum corpo de criança, dum anjinho, a sua
alma desata-se numa queixa, que é um fio
puríssimo de lágrimas, de piedade, carinho e
amargura (542):
Oh! adro, terra de egreja.
Onde se enterram anjinhos,
Oh! terra, que estás comendoCorpos tão delicadinhos!
Mas quê! que importa a piedade humanaà terrível e impiedosa Morte, se a sua foice
pode também ceifar na ceara dos mundos e
a nossa Terra, sob a infinita lamina, é como a
chama, que mal bruxuleou, já vasqueja para
morrer (549):
Nós cuidamos que este mundoQue nos dura para sempre;É uma luz que se acendeE se apaga de repente!
o Poema do Povo 61
Sim! tudo é vão, efémero, transitório pe-
rante a Morte; mas, esperança suprema! oPovo afirma numa iluminação íntima, tradu-
zindo-se em formas riquíssimas, que o Amorvencerá a Morte, dilatando-se para alem daTerra e do Tempo, por toda a Eternidade.
Toda a Eternidade . . . repare-se, porque
Antes da noite ser noite,
Antes do dia ser dia.
(552) na caótica indecisão do Cosmos, ou noseio de Deus, já os coraçõis dos amantes an-
siosamente se buscavam e morriam um pelo
outro
!
Essa sublime cantiga é o complemento daoutra célebre quadra, traduzida por Byron e
Musset, uma das mais belas do nosso Can-cioneiro:
Chamaste-me tua vida,
E eu tu'alma quero ser;
A vida acaba co*a morte,A alma eterna ha de ser!
Mas como estas, ha um feixe de formosís-
simas cantigas, com que este Poema termina,
egualmente repassadas dessa insaciabilidade
amorosa, pequeninas epopeias, batidas dumsopro religioso e rimadas com o próprio vôo
62 Cancioneiro Popular
arrebatado de duas asas, que escalam vitorio-
samente o Ceu.
Pela essência e sublimidade emotiva nãosão inferiores àquela e nem pela essência, nempela pureza da forma lhe cedem essas, em queo homem, já afirmada a eternidade do Amor,se queixa, na sepultura, dos males que os vi-
vos lhe causam (562) ou surge d'alêm túmulo,
espectro, transido d'Amôr, para dar o último
adeus à pessoa amada (563):
Já morri, já me enterrei,
E agora já estou aqui;
Nem a terra me comiaSem me despedir de ti!
O drama tornou-se epopeia; mas os actos
do herói, transcendendo a Vida, realisam-se
no Mistério. É a victoria definitiva do Espí-
rito, o triunfo do Amor invencivel. A alma
despiu-se de todas as aparências, desfez-se
o corpo em cinza, sumiram-se as riquezas, tom-
baram de rastos no pó as ambições e as
vaidades e sobre a destruição de todas as
coisas efémeras o Amor ergue a voz e canta
a sua eternidade.
Ah! mas nós podemos ainda, acompa-
nhando os voos dessa imaginação arrebatada,
assistir ao desaparecimento da própria Terra,
que aliínentou os nossos sonhos, e, chama de
luz passageira, tão depressa se ergueu, logo
o Poema do Povo 63
se extinguiu, e, quando, como um deus es-
tranho à sorte dos astros, contemplamos as
cinzas do Mundo, vemos que ha uma braza
ainda, que lampeja, entre os destroços fume-
gantes, clarões de relâmpago:— é o coração
dos portugueses, que ha de ficar por toda a
Eternidade ardendo em puro Amor!
III
CONCLUSÃO
CHEGADOS que somos ao fim do nosso
estudo,— a que chamamos crítico, à
falta de palavra melhor, e que, a
não ser a demasia das palavras, melhor-
mente seria chamado estudo de interpretação
e análise estética,— escarvoado a largos tra-
ços, podemos resumir ainda algumas obser-
vaçõis gerais sobre o Cancioneiro do Povo.
Certas conclusõis a que chegamos deviamser conjugadas com os elementos epo-histó-
ricos fornecidos pelo Romanceiro e com os
elementos musicais, que o estudo das melo-
dias populares nos ha de certamente trazer
a confirmar as afirmaçõis do Cancioneiro.
Infelizmente quanto ao Romanceiro, ha
ainda muitos problemas a resolver, sem o que
se não devem inferir conclusõis fáceis da sua
leitura, e quanto às melodias populares, reco-
lhidas apenas numa pequeníssima parte, estão
quasi inteiramente por estudar. Para o com-pleto estudo da poesia épica do nosso Povo, é
66 Cancioneiro Popular
indispensável o estudo dalguns romances, cuja
originalidade é em parte ainda muito debatida.
Uma primeira conclusão nos dá a leitura
deste cancioneiro: a extrema simplicidade
morfológica das nossas cantigas. Quasi po-
deríamos dizer que o tipo único de versos é
a redondilha maior e da estrofe, a quadra.
Originalidade? Não, porque a quadra emredondilha maior é comum, a quasi todas as
naçõis da Europa. Pobreza? também não,
porque, se é certo que ha no Cancioneiro
dos outros povos maior variedade morfoló-
gica, talvez em nenhum outro a quadra atin-
gisse a perfeição do nosso. No hespanhol,
por exemplo, em que ha maior variedade de
formas poéticas, a quadra não atinge a per-
feição do nosso Cancioneiro : as rimas toantes
são em muito maior número que nas nossas,
chegando quasi a egualar o numero das rimas
consoantes e até as próprias toantes são
muito mais imperfeitas. Também o nosso
Povo, quasi reduzido unicamente a esse tipo
de verso e estrofe, conseguiu o máximo de
emoção e pensamento no mínimo de frases
poéticas. Ora na mesma quadra se formula a
pergunta e se dá a resposta, num começo de
realisação teatral, como por exemplo:
Oh! meu amor, meu amor.Quando me has de tu esquecer?— Quando Deus me não der vida
Nem olhos para te ver.
Conclusão 67
ora se exprime um pedido, seguido da sua
imediata realisação:
Deita-te daí abaixo,
Meu sol, minha luz, meu bem.Eu te apararei nos braços.
— Ai! Jesus, que ela lá vem!
ou todo um pequenino drama se resume
numa cantiga:
Abre-me a porta que eu morro;
Não abras que eu já morri:
Já que foste assim ingrata,
Fica-te agora sem mim!
Já morri, já me enterrei
E agora já estou aqui . . .
Quanto à essência, as maiores conclusõis
a tirar são as que dizem respeito ao senti-
mento religioso e ao Amor. Existem nonosso Cancioneiro elementos vários para o
estudo do religiosismo popular lusitano. Oque desde já podemos afirmar é que esse
religiosismo está em oposição ao catolicismo,
pois é antes, nas suas mais elevadas manifes-
taçõis, de forma panteísta. Para o português
o Amor é de essência divina e manifesta-se
em toda a Natureza; e o próprio Amor ou a
Saiidade é a origem da imortalidade da Alma,que se eternisa para amar eternamente dum
68 Cancioneiro Popular
Amor, divino na sua humanidade, e nuncapara os perpétuos castigos do Inferno ou as
perenes glórias do Ceu.
Se é certo que o cancioneiro do Povo re-
vela egualmente o amor à Natureza e ao tra-
balho e virtudes de esforço sofredor e heróico
aliadas a um superior sentido moral, a
verdade é que o tema predilecto da sua
poesia é o Amor e um amor único, ja-
mais sentido ou cantado pelos outros povos.
De velha data que estrangeiros e nacionais
observaram o natural amoroso, o tempera-
mento amaviôso, o exclusivo ou predomi-
nante sentir da saiidade e o «morrer d'amor»
dos portugueses. Seriam demoradas e quiçá
fastidiosas as citaçõis duns e outros, desde
Cervantes a Edgar Quinet e de D. Duarte ou
D. Francisco Manuel de Melo á Senhora
D. Carolina Michaêlis de Vasconcelos. A umcaso único não fugiremos.
Pela leitura deste cancioneiro conclui-se
que o amor dos portugueses é sentimento
religioso e de essência divina, e em conse-
quência de caracter absoluto. O Amor tem
em si mesmo a sua causa e fim: amar por
Amor e para o Amor, sem que outro fim seja
necessário invocar a legitimá-lo. Ha ainda no
nosso amor uma ternura bem nossa, em que
um delicadíssimo desejo dos sentidos se alia
a uma profunda ansiedade ideal, traduzin-
do-se em tímido encantamento, em volúpia
sagrada e extática adoração. Em certas canti-
Conclusão 69
gas d'amôr o desejo ergue-se como umanuvem de místico incenso e os versos can-
tam, arrulham, ciciam com o murmúrio com-binado das orações e dos beijos.
A Saudade, «sentido do coração», no ilu-
minado dizer de D. Duarte, é o mais alto
amor, porque vê em espírito e perfeição e o
seu drama épico, por ser a contínua vitória,
continuamente dolorosa, porque, iludindo o
espaço, vence na Vida e, transcendendo o
tempo, vence na Eternidade. E como é abso-
luto, o Amor não tem princípio nem fim: en-
volve-se abismalmente num círculo eterno.
Jamais esse profundo anseio de eternisar
o Amor se nos revelou com tamanha agu-
duza e profundidade, como na poesia portu-
guesa e designadamente na popular: apenas
uma vez esse mesmo alto pensamento nos
surgiu animando versos sublimes em obra
estrangeira: foi nalguns sonetos de Mrs.
Elisabeth Barret-Browning, a maior de quan-
tas Poetisas conhecemos. Um deles termina
assim
:
I love thee with breath,
Smiles, tears, of ali my life! and, if God choose,I shall but love thee better after death.
SON. XLII
Amo-te com o sopro da respiração, com ossorrisos e as lágrimas, com toda a minha vida! E,se Deus o permitir, amar-te-hei ainda mais depoisda morte.
70 Cancioneiro Popular
E outro:
But love me for love's sake, that evermoreThou may'st love on trough Iove's eternity.
SON. XIV
Antes me ames pelo amor de amar, para quepossas amar-me eternamente, na eternidade doamor.
Mas a esses sonetos, a autora do poemetoCatarina to Camoens, adeus de Saudade,
dirigido por Catarina ao poeta exilado, deu o
título de Sonnets from the Portuguese, so-
netos portugueses, indicando assim clara-
mente a origem do profundo espirito que os
animou.
Que seja este o núcleo mais resistente e o
rosto original e inconfundível do espírito por-
tuguês é para nós induvídavel verdade. Aarte popular, primeiramente é a mais original
por menos influenciavel; nem escolas, nemcorrentes, nem ideais literários e até, desgra-
çadamente, uma isoladora ignorância secular
tem furtado o nosso Povo à mínima parcela
de cultura do espírito. Se alguma influência
houvéssemos de buscar-lhe teríamos que se-
guir-lhe a memoria ancestral, atravez do san-
gue, até às remotas origens étnicas. Essa
influência deve existir, mas não virá provar,
assim o julgamos, nada contra os assertos
da nossa originalidade espiritual. A arte po-
Conclusão 71
pular é, pois, por mais original, a mais ver-
dadeira.
E, como tal, a virtualidade íntima e aparte,
que surge do nosso cancioneiro popular está
confirmada na literatura e realisada na histo-
ria. Quanto á história, considerai: o mesmoanseio de eternisar o amor que alarga e bate
as azas na cantiga popular é que leva o alu-
cinado D. Pedro a escrever sobre o túmulo
de Inês, na pedra, religiosamente lavrada pela
sua paixão aquele trágico adeus: «Até ao fim
do mundo » ; mais tarde o Conde de Avran-
ches a exclamar para o infortunado amigo e
Infante D. Pedro : «... Se as almas no outro
mundo podem receber serviço uma das ou-
tras; no dia da vossa morte, a minha irá
acompanhar e servir para sempre a vossa!»
e ha de um dia fazer com que esse Povo,
porque lhe roubam a glória, durante séculos
fique sonambulamente fiel ao último rei quea representou!
Trabalho, virtude, amor, heroísmo e reli-
gião, tudo aqui está.
Poetas, navegadores, heróis e santos, todos
eles, os lusíadas, vieram aqui beber o san-
gue no coração do Povo.
Estes são os Lusíadas do Povo, os Lusía-
das eternos, porque daqui nascem e nasce-
rão os fastos de todas as nossas epopeias.
Vejam que o sentido épico existe latente noespírito do Povo: quando ao seu esforço
arrancaram a epopeia nacional, fez do último
72 Cancioneiro Popular
herói um culto religioso de Saudade e por-
que lhe deixaram para a actividade supremado espírito unicamente o Amor, fez desse
sentimento uma epopeia!
Venham aqui os heróis e os poetas d'hoje:
leiam, decorem este Poema.Sente-se por vezes que estamos nos cumes
duma montanha: elevação, pureza d'ambien-
te, o largo sopro que toca as alturas, a verti-
gem e o frémito dos sublimes entusiasmos,
tudo nos afirma que nos acercámos dalgumagrande verdade eterna e entra comnosco á
orgulhosa convicção da própria grandeza.
Tudo quanto pode tornar excelso um poeta
aí está: é o relevo da imagem directa, a vio-
lência aguda da expressão, a verbalisação de
estados d'alma indefenidos, a exactidão doconceito, a leveza na ironia e a largueza no
voo, enfim o que torna a forma clara, concisa,
própria, a única capaz de definir certa emo-
ção ou pensamento. Esse mesmo poder se
revela na excelência dos afectos e elevação
dos pensamentos;ique profundidade e fir-
meza no sentir, que intima e melindrosa deli-
cadeza nos impulsos da alma, que extra-
nha consciência das mais ocultas forças doespirito, que instinto directo da grandeza doUniverso, da imensidade da Vida que passa e
que sublime intuição do mistério divino que
nos rodeia!
Não! Não é decerto a bárbara e dramática
violência do hespanhol, não é também a ele-
Conclusão 73
vação metafísica, que, a espaços, ilumina al-
guns cantos franceses ou o instincto da li-
berdade, a comunicação com a Natureza, o
poder imaginoso da Germânia ou o alado
arrojo de certos cantos italianos.
Mas nós temos uma segurança e energia
tão funda de Amor, de tão carinhoso e timido
enleio, e um tão alado [anseio de o eternisar,
como nenhum outro. Criámos também umfundo sombrio ao nosso espírito em que entra
o receio de quem aperta ao coração o objecto
amado, a defendê-lo da morte, e a elevada me-lancolia da Alma que comunica secretamente
com o Mistério.
.Dissemos, a principio, que este livro daria
aos que atentamente o lessem, uma grandelição. Voltamos a afirma-lo: este livro é umabela lição de Esperança : quando surgirá en-
fim a geração, que reconhecendo a seriedade
e arraigada profundidade afectiva deste povolha saiba encaminhar para os nobres desti-
nos?!
ANTOLOGIA
A NATUREZA E A TERRA NATAL
1
Sou gaivota, sou gaivota
E venho da beira-mar;
Trago cantigas na bocaPra quem não souber cantar.
Oh! terra, que tudo crias,
Oh! terra, que tudo comes,Oh! terra que has-de dar conta
Das mulheres mais dos homens.
Quem disser que o sol que chora.
Digam todos que é mentira;
Como pode o sol chorar.
Se ele é o rei da alegria?!
Oh! noite que vaes crescendo.
Tão cheia de escuridão.
Tu és a flor mais bela
Dentro do meu coração!
78 Cancioneiro Popular
Eu sou filho das estrelas,
Junto do Ceu fui criado,
Perdi-me na noite escura,
Fui em teu peito encontrado.
Já chove água das nascentes
Já correm os regatinhos;
Já os campos são contentes,
Já cantam os passarinhos.
Desceram do ceu á terra
Dois anjos embaixadoresA buscar a Primavera,
Que lá no ceu não há flores.
8
Embarquei-me no mar largo,
Já perdi vistas á terra,
Já não vejo senão CéoAgua e vento que me leva!
9
Minha mãe é uma ribeira.
Meu pai um rio corrente;
Sou filho das aguas claras,
Não tenho nenhum parente.
10
Oh! linda estrela do norte
Para onde caminhais?
Caminho para o nascente
Pra onde correm as mais.
A Natureza e a Tei^ra Natal ?§
11
Muito lindo é o Ceu,Todo cheio d'alegria;
Lá não ha noite, nem sombra,Tudo é um claro dia!
12
O passarinho no bosqueBusca algum da sua cor;
Mostra em tudo a NaturezaA doce união do amor.
13
O rouxinol canta alegre
Por ter a dama no ninho;
Olhem como é constante
O amor dum passarinho.
14
Até os peixes no mar,
Aqueles lá mais no fundo,
Também têm os seus amores,Como nós cá neste mundo.
15
A flor do manjaricãoNão abre senão de noite,
Para não dar a saberOs seus amores a outrem.
16
Até o milho miúdoTem sua velhacaria
Conserva a água no bico
Para beber todo o dia.
80 Cangioneii^o Popular
17
As pedras, com serem pedras,
Senfos golpes que lhe dáo;
Como não hei-de eu sentir
Essa tua ingratidão.
18
É o Sol um lavrador
O Sete-estrelo abegãoA Lua é o celeiro
Onde o sol recolhe o pão.
19
Não cortes a oliveira,
Não lhe metas o machado,Que dá fruto que alumia
A Jesus crucificado.
20
Chamais á amoreira triste: ,
Mas que tristeza lhe achais?!
A amoreira cria o sirgo
Com que vós vos enfeitais.
21
Deitei-me e adormeci
Debaixo da laranjeira,
Caiu-me uma flor no rosto:
Ai! Jesus, que também cheira!
22
Oh! ciprestre, verde-triste.
Cofre cia minha figura.
Verde qual minha esperança,
Triste qual minha ventura.
A Natureza e a Terra Natal 8^1
23
Lisboa por ser Lisboa
E ter navios no mar,
Não é como a minha terra,
A mais linda em Portugal
24
Adeus bairro de Silvalde,
Em te deixar bem me peza;
Inda espero de tornar
Ao centro da natureza.
25
D'aqui para a minha terra
Tudo é caminho é chão;
Só ha rosas só ha cravos
Que eu puz pela minha mão.
26
Chamaste-me trigueirinha,
Isto é de andar ao sol;
Toda a fruta, que é sombria,
Nem por isso é da melhor.
27
Oh! que vida regalada
Hei-de eu levar este verão
Pelos atalhos das vinhas
Com meu amor pela mão!
28
Adeus campos, adeus vales.
Adeus amor que eu amei;Inda hoje adoro o sitio.
Onde comtigo falei.
82 Cancioneiro Popular
29
Pena triste, pena triste,
Oh! quem não ha-de chorar!
Ver-me assim em terra alheia,
Fora do céo natural
30
Oh! ares da minha terra
Vinde por aqui, levai-me.
Que os ares da terra alheia
Nâo fazem senão matar-me.
31
Oh! Brazil, terra de enganos,
Quantos lá vão enganados;Tantos lá vão por três anos
E lá ficam sepultados.
32
O sol nasce de Castelã:
Queres amor que nós lá vanios?
Não quero que o sol esteja
Em poder dos castelhanos.
II
o ELOGIO DO TRABALHO E O VALORHERÓICO
33
Trabalhai, dobrai o corpo,
Se quereis ter algum bem
;
Olhai que nas eras de hoje
Quem não trabalha não tem.
34
Toda a moça que não temSeu amor trabalhador
Não é moça, não é nada,
Não tem prenda de valor.
35
Eu quero bem à pobreza,
A riqueza não me importa;
Trabalho, mato o meu corpo.
Não devo contas à morte.
36
Oh! Mar, tu és um leão,
Que a todos queres comer;Não sei como os homens podemAs ondas do Mar vencer.
84 Cancioneiro Popular
37
A sorte do marinheiro
É uma verdade pura:
Anda sempre a trabalhar
Em cima da sepultura.
38
Meu amor é marinheiro
E' do Mar, por vida minha,
Se elle não fora do Mar,
Não vinha aqui a sardinha.
39
Eu sou ganhão de manzeira,
E lavro em terras de barro,
Trago junta carreteira,
Onde passo tudo esgarro.
40
Eu sou ganhão de manzeimE não no posso negar,
Trago junto carreteira
Que faço a terra estalar.
41
Todos me lavam a cara
Do meu amor ser ganhão;É bonito, gosto dele,
É honrado e ganha pão.
42
O meu amor é carreiro,
Tem uma vida arriscada,
Ao descer uma ladeira,
Ao cerrar duma carrada.
o Elogio do Trabalho e o Valor Heróico 85
43
Alfaiate ou sapateiro,
Isso sim que é bom artista
Trabalha ganha dinheiro,
Sempre está à nossa vista.
44
Eu hei de abalar pr'à eira
Só p'ra casar c'um ratinho Q),
Só pr'a andar de feira em feira:
«Quem merca pano de linho!»
45
Contrabandista valente,
Corri campinas e vais
Com guardas na minha frente.
Com pistolas e punhais.
46
Trigueirinha e engraçada,
Sou filha dum lavrador.
Vou ao mato vou à lenha,
Assim me quer meu amor.
47
Não quero saia de chita,
Que me hão de chamar senhora,
Quero saia de estamenha.Que é traje de lavradora.
C) Ratinho é o nome que no Alentejo se dá aos jorna-
leiros, que do Minho ou da Beira para ali vão trabalhar.
86 Cancioneiro Popular
48
O meu amor foi à lenha
De sapatos e de meias,
Tamanho foi o carrego,
Arrebentaram-lhe as veias!
49
Viva a malta e trema a terra,
Daqui ninguém arredou;
Quem ha-de temer a guerra,
Sendo homem como eu sou?
50
Eu sou como o gavião.
Que no ar faço firmeza.
Quando abaixo até ao chão,
Nunca alevanto sem presa.
51
Oh! sol! oh! lua! oh! estrelas!
Andae dae luz em meu peito.
Vinde achar morada firme
Em palácio tão estreito.
52
Eu fui a primeira onda,
Que no mar se levantou
Trez dias choveu areia.
Toda a praia se arrazou!
III
AMEAÇA E CRIME DE MORTE
53
Se ha por ahi alguém,
Que na estrada se atravesse,
Traga mortalha a vestir
E confessor que o confesse.
54
Olha como ficam bemNa minha mão cinco dedos
Para jogar bofetadas
A quem andar com enredos.
55
Oh! cantador corta as barbas
E semeia-as numa leira;
Inda hoje has-de ficar
Aos pés desta cantadeira.
56
Canta, camarada, canta,
Canta que ninguém te afronta.
Que esta minha espada corta
Dos copos até à ponta.
Cancioneiro Popular
57
Oh! rapaz enrola a esteira,
Mete a espada na bainha;
Não has-de fazer poeira
Em casa de gente minha.
58
Oh ! quem me dera encontrar-te
No caminho mais estreito
Para eu brigar comtigo
Com faca de peito a peito.
59
Tenho sina de morrer
Na ponta d'uma navalha;
Tod'á vida ouvi dizer
Morra o homem na batalha.
60
Eu hei-de morrer d'um tiro
Ou d'uma faca de ponta,
Se hei-de morrer amanhã,Morra hoje, tanto monta.
61
Oh ! meu amor quem me dera
Uma faca bem agudaPara dar uma facada
Na minha triste ventura!
62
O meu coração por artes
Entrou no teu pensamento;
E' como o crime de faca
Que nunca tem livramento.
IV
MÁXIMAS E PENSAMENTOS
63
Não ha machado que corte
A raiz ao pensamento,Não ha letrado que diga
O que tenho no intento.
64
Eu cantando, estou calada,
Chorando me estou a rir,
Andando, fico parada,
Desperta, estou a dormir.
65
Ninguém descubra o seu peito
Por maior que seja a dor.
Quem o seu peito descobreÉ a si^^mesmo traidor.
66
Oh! mar largo, oh! mar largo,
Oh ! mar largo sem ter fundo.Mais vale andar no mar largo
Que andar nas bocas do mundo.
90 Cancioneiro Popular
67
Desprezaste-me por pobre,
A pobreza Deus a amou
;
Não me penteio por ti,
Assim pobre como sou.
68
Oh! meu amor não desprezes
O pobre por nada ter,
Pode a riqueza faltar-te
E o pobre não te querer.
69
Oh ! alta serra da neve.
Onde se pinta a lindeza
;
Quem tem a alma no CéoPara que quer mais riqueza?
70
Como alcatruzes da nora.
São as vaidades do mundo;Os que enchem vão acima,
Os que vasam vão ao fundo.
71
Valha-me Deus tanto luxo
Com tanta ostentação!
Tanto calote no povo;
Quem ganha é o esrivão.
72
Oh! meu amor, se tu queres
Toda a vida viver bem,Has-de ouvir, has-de calar,
Não dizer mal de ninguém.
MÁXJMAs E Pensamentos 91
73
Fui chorar ao pé da águaLágrimas de sentimento,
A água me respondeu
:
Nada cura como o tempo.
74
Tod'a moça que é bonita
Mais valera não o ser,
É como a pêra madura,Todos a querem comer.
75
Rapariga dá-te ao mundo,Não queiras morrer donzela,
Não queiras levar teu brio
Para debaixo da terra.
76
Minha mãe case-me cedo.
Enquanto sou rapariga.
Que o milho sachado tarde,
Não dá palha nem dá espiga,
77
A rosa quer-se apanhada,Antes de sair o sol,
O cravo ao meio dia
P'ra seu cheiro ser melhor.
78
Quem pintou o amor cegoNão o soube bem pintar,
O amor nasce dos olhos.
Quem não vê não pode amar.
92 Cancioneiro Popular
79
Quem pintou o amor cegoSoube bem o que pintou
;
Amor firme a nada atende,
É pr'a onde se inclinou.
80
Toda a moça que namoraPelos olhos se conhece
:
São tristes pela manhã,Alegres quando anoitece.
81
Rapariga se casares
Toma conselho primeiro;
Mais vale um rapaz sem nadaDe que um velho com dinheiro.
82
Namorados falai baixo
Que as paredes tem ouvidos, •
Os segredos mais secretos
Esses são os mais sabidos.
83
Oh! amor procura agrado,
Não procures formosura.
Formosura sem agrado
É peor que a noite escura.
84
Foste pedir-me a meu pai,
Sem saberes o querer meu;Em tudo meu pai governa,
Mas nisso governo eu.
Máximas E Pensamentos 93
85
Como pode um pai p^ribir
Que uma filha queira bem ?
Se a lei do pai é sagrada,
O amor mais força tem.
86
Ó pais bárbaros, cruéis,
Que uma filha abandonais;
Por ela cair num erro
Já ao mundo a entregais.
87
Quem tiver filhas no mundo,Não fale das malfadadas,
Pois as filhas da desgraça
Também nasceram honradas.
88
Não se riam de quem chora,
Que podeis chorar também;* Quem chora também se ria
Dos males que agora tem.ÍN
i'
Não cuides, j>Qgpre deixares.
Que no céâá|IWbaste palma.Eu caí pllrífíocente
:
;graçada da tu'alma!
90
Quem nasce no triste fado
Nunca pode ter bom fim;
Quem mal anda mal acaba,
Ponham os olhos em mim.
94 Cancioneiro Popular
91
Vai-se dia, vem a noite,
Vai-se a noite, o dia vem,S'tou gostosa de mim mesmo.Não quero bem a ninguém.
V
IRONIAS E GRACEJOS
92
Quatro coisas quer um amoDum criado que o serve,
Erguer cedo, deitar tarde,
Comer pouco, andar alegre.
93
Minhas faltas me nomeias,
Só para ás tuas não olhas;
Oh! Hngua, que não semeias
Semente, que não recolhas!
94
Aquela menina cuida
Que não ha outra no mundo!Não é o poço tão alto
Que se lhe não veja o fundo.
95
Além vem a presunçosa
Rua cheia, sem ninguém.Ela cuida que é bonita,
Ela nada disso tem.
96 Cancioneiro Popular
96
Além vem a presunçosa,Até no andar tem brio,
Lá vem o assucar em ponto,De doce mete fastio.
97
Entendo que na mulherA pequenez é um dom;Uns dizem do mal o menos,Outros dizem pouco e bom.
98
As senhoras da cidadeTeem grande opinião;
Não sabem como hão-de andar,Nem poisar os pés no chão.
99
Coitadinhas das mulheres.Já vivem tão desgraçadas!Pra passearem nas ruas.
Vão com as pernas atadas.
100
As senhoras com as modasParecem umas serpentes;
Andam metidas em sacos,
Metem medo aos inocentes.
101
Diz-me lá tu cantador
Quantas penas tem um pato,
Quantos picos um ouriço.
Quantos cabelos um gato.
Ironias e Gracejos 97
102
Está bem feita a pergunta,
Agora respondo eu:
Penas, picos e cabelos
Só tem os que Deus lhe deu.
103
Tu dizes que és poetaNa matéria do cantar;
Pois diz-me lá, por cantigas,
Quantos peixes ha no mar?
104
Quantos peixes ha no marEu to vou já a dizer:
São metade e outros tantos,
Fora os que estão por nascer.
105
Eu já vi um valentão
A brigar c'uma cidade;
Logo ao primeiro encontrãoDerrubou mais de metade.
106
Chovam raios de toucinho,
Centelhas de queijo mole,Venham quartilhos de vinhoQue este maltez tudo engole.
VI
AMOR FILIAL
107
Oh! minha mãi da minh'alma,
Oh! meu pai do coração,
Duzentos anos que eu viva
Não lhes pago a criação.
108
Minha mãi, minha mãisinha,
Minha mãisinha do Céo,
Que me trouxe nove mezesDebaixo do seu mantéo.
109
Minha mãi, minha mãisinha,
Oh! minha mãi, minha amiga,
Quem perde o amor de mãi
Perde tudo nesta vida.
110
Minha mãi que me criou
Ao peito com tanto mimo,Se um dia lhe pagar mal.
Não foi por falta de ensino.
Amor Filial 99
111
Não ha amor de mulher,
Por mais pura e virtuosa,
Não ha amor que eu compareAo duma mãi carinhosa.
112
Já me morreu minha mãi,
Minha doce companhia,Caixinha dos meus segredos.
Espelho aonde eu me via.
113
Minha mãi era uma santa.
Por quem sempre chorarei.
Porque amor egual ao dela
Nunca mais encontrarei.
114
Quando deixei minha aldeia,
Olhei para traz chorando:Minha mãi do coraçãoTão longe me vais ficando.
115
Oh! morte, tirana morte,Que mataste minha mãi!Deixaste-me ao desamparo,Sem abrigo de ninguém.
VII
RELIGIOSIDADE POPULAR
116
ORAÇÃO AO SOL
Vou-me despedir de vós,
Adeus, oh ! Sol, que te vais,
Deixais-me ficar sósinha
No meio dos pinheirais.
Oh! Sol, torna amanhã,Eu quero-te ver nascer.
Só a vós é que eu adoro,
Só por vós quero morrer. Q)
117
DO TERÇO DA AURORA (2)
Sob'rana, divina Aurora,
Oh ! Mâi do eterno Sole,
Quem como vós poderá
Soccorrer-nos melhore.
(') Veja-se a pag. 34
(2) Veja a pag. 35, 36 e 37.
Religiosidade Popular 101
118
ORAÇÃO AO SOL NASCENTE
Deus te salve, Sol divino
!
Tu corres o mundo inteiro
;
Viste lá o rneu marido?Se tu o viste não mo negues,
Não mo negues, não negues, não.
Esses raios que vens deitando.
Ao teu nascimento,
Sejam dores e facadas.
Que atravessem o seu coração;
Que ele por mim endoudeçaQue ele não possa comer,
Nem beber, nem andar, nem amar,
Nem com outra mulher falar,
Nem em casa particular.
Todas as mulheres que ele veja
Lhe pareçam cabras negras,
E bichas feias.
Só eu lhe pareça bem no meio delas!
119
Nossa Senhora da VeigaÉ pequenina e airosa;
Vai a gente de tão longe
Só p'ra ver tão linda rosa.
120
Nossa Senhora da Póvoa,
Minha boquinha de riso,
Minha maçã vermelhinha,
Criada no Paraíso.
102 Cancioneiro Popular
121
Nossa Senhora da VeigaEla lá vae Douro, acima,
Com a cestinha no braço
Fazer a sua vindima.
122
Além vem a barca nova,
Que fizeram os pastores,
Nossa Senhora vem dentro.
Toda coberta de flores.
123
Oh ! mar largo, oh ! mar largo
Cheirava que rescendia:
Era o manto da Senhora,
Que um marinheiro trazia.
124
A Senhora do SameiroDá um cheiro que rescende:
É o manto da Senhora,
Que pelo mundo se estende.
125
A rola que vai rolando,
Onde irá fazer o ninho?
Aos pés de Nossa Senhora
No mais alto do raminho.
126
Esta noite ç noite cheia,
Não é noite de dormir.
Das onze pra meia noite
Stá a virgem pra parir.
Religiosidade Popular 103
127
Pastor do gado branco,
Não arranques rosmaninho,Pois é onde a Virgem pura
Estende os seus cueirinhos.
128
Cantai anjos ao Menino,Emquanto a Virgem dorme.Mas cantai-lhe de mansinho,Com que a Virgem não acorde.
129
ORAÇÃO DE NATAL
A Virgem Nossa SenhoraStá no portal de BelémCo seu menino nos braços,
Jesus ! que está tanto bem
!
Cantou-lhe uma cantiguinha:
Filho meu, que te farei ?
Não tenho cama nem berço.
Em braços te embalarei.
Com as lágrimas dos olhos,
Filho meu, te lavarei.
Na manguinha da camisa.
Filho meu, te aUmparei.
Nas mantilhas do meu rosto.
Filho meu, te embrulharei. (^)
(1) Esta pequenina poesia lembra na forma os roman-ces populares. Teófilo Braga classifica-a até de romancesacro. Não a julgamos, todavia, descabida no Cancioneiro.
104 Cancioneiro Popular
130
Eu hei-de ir para o presépio
Assentar-me a um cantinho,
Só p'ra ver o Deus meninoA nascer tão pobresinho.
131
No presepe de BelémQuiz nascer o Deus meninoNum tempo de tanto frio,
Desprezado e pobresinho.
132
Pastores do verde prado,
Deitai o gado á verdura
;
Vinde ver o Deus meninoNos braços da Virgem pura.
133
Oh! meu amado Menino,Boquinha de sangue e leite
;
Vossa mãi é uma rosa.
Vosso pai um ramalhete.
134
Oh! meu amado Menino,Boquinha de requeijão
;
Quem vo-la comera toda
C*um bocadinho de pão.
135
Oh! meu amado Menino,Oh! minha tão bela flor;
Quizestes ser pequenino.
Sendo tão alto senhor.
Religiosidade Populaí^ 105
136
O Menino está dormindoNas palhinhas despidinho
;
Os anjos lhe estão cantando
:
Pobre amor tão pobresiuho.
137
Eu hei de dar ao MeninoCinco pedras preciosas,
Cada pedra cinco quinas,
Cada quina cinco rosas.
138
Oh! meu menino Jesus,
Quem vos deu, porque chorais?
Deram-me as moças na fonte,
Não hei-de lá tornar mais.
139
Oh! Anjo da minha guarda,
Que dais aos vossos romeiros?
Dou-lhe água da minha fonte.
Sombra dos meus castanheiros. (^)
140
Santo António me acenouDe cima do seu altar;
Olha o maroto do santo.
Que também quer namorar
!
(í) Esta quadra canta-se na romaria anual do Anjo da
Guarda em Alpedrinha (Beira-Baixa).
106 Cancioneiro Populaf^
141
Fui ao mato cortar lenha,
Santo António me chamou,Quando o santo chama a gente,
Que fará quem já pecou
!
142
Lá vem o Baptista abaixo,
Vestido de azul ferrete.
Numa mão traz a custódia
E na outra um ramalhete.
143
Além vem o barco novo,
Que fizeram os pastores,
Trazem dentro S. João,
Todo coberto de flores.
144
Para fazer as fogueiras
Na noite da sua festa,
S. João traz lá do monteUm braçado de giestas.
145
Ai! meu rico S. João,
Ouve as trovas dos festeiros
Faz as moças bem doidas
E os velhos bem gaiteiros.
146
S. João, quando era novo,
Tinha uns sapatinhos brancos,
Pra visitar as raparigas
Domingos e dias santos.
Religiosidade Popular 107
147
S. João era bom moço,Se não fora tão velhaco,
Foi com três moças á fonte,
Foi com três, veio com quatro.
148
S. João, por ver as moças,Fez uma fonte de prata;
As moças não vão à fonte
S. João todo se mata.
149
S. João se adormeceuNas escadinhas do coro,
Deram as freiras com ele
Depenicaram-no todo.
150
Lá vem o Baptista abaixo.
Comendo num cacho d'uvas,
Dando os bagos ás solteiras,
Os engaços ás viuvas.
151
Lá vem o Baptista abaixo,
Subindo aquellas ladeiras,
Dando abraços ás viuvas,
E beijinhos ás solteiras.
152
Minha avó tem lá em casa
Um Santo António velhinho;
Em as moças não me querendo.Dou pancadas no santinho.
108 Cancioneiro Popular
153
Canta o pardal no loureiro,
O rouxinol na silveira;
Os padres cantam no coro,
Rogam a Deus por dinheiro.
154
Todos os padres de missa
Aos infernos são chamados;Inda eles tem mais filhos
Que os homens que são casados.
155
Não ha padre que não seja
Amigo de namorar:É desforra que lhe tiram
Prós não deixarem casar.
156
Menina se fores á missa
Põe-te para o pé do coro.
Que o padre é muito ratão,
Também busca o seu namoro.
157
O padre quando namoraLogo põe a mão na crôa,
Namora padre, namora.Que Roma tudo perdoa.
158
O meu amor é um padre.
Padre a quem eu quero tanto;
Inda hei-de ir a pé a RomaPedi-lo ao Padre Santo.
Religiosidade Popular 109
159
Tomei amores com um padre,
Nunca melhor coisa fiz:
Logo me fez uma saia
Da sua sobrepeliz.
160
ELEGIA DA VIDA DE FREIRA
Já não ha, não pode haverUma vida tão penosa
!
Sendo eu a mais formosa,
Me encerram, me encerram.
A meu pai aconselharamQue me não desse o meu dote,
Que era a minha melhor sorte
O ser freira, o ser freira.
Avisaram a Rodeira,
E juntamente a Abadessa,Que me metesse em cabeçaQue casaria, que casaria.
Eu como tolinha cria.
Cuidando que era verdade,Que qualquer freira ou frade
Casar podia, casar podia.
Cuidando que assim seria.
Que, depois de professar,
Inda podia casar.
Caí no laço, caí no laço.
110 Cancioneiro Popular
Agora que aqui me achoMetida nesta clausura,
Parece-me noite escura
O meio-dia, o meio-dia!
Já não tenho alegria.
Que alegria posso ter?!
Lembrar-me eu que hei-de ir comerAo refeitório, ao refeitório!
Á sombra do dormitório.
Onde dormem outras madresSuspiram por seculares
Cá entre nós, cá entre nós.
Cuidar que dormimos sós
Nos causa grande agonia.
Sempre toda a noite fria
Me alevanto, me alevanto.
Acordo, faço o meu pranto
Toda me lavo em choro,
Em ouvir tocar ao coro
E às matinas, e às matinas.
Resando resas divinas
Lá por certos corredores.
Me lembram os meus amoresPor quem morro, por quem morro!
Toda a minha cela corro,
E vejo-me ao meu espelho
;
Vejo o meu rosto já velho ...
Malfadada! malfadada!
Religiosidade Popular IH
O regalo das casadas
É lograr os seus amores,
De contínuo os seus favores,
Mas eu nada, mas eu nada
!
Antes ser mulher casada,
De noite embalar meninos,
Do que ser freira professa
Tocar os sinos, tocar os sinos! (O
0} Ha outros cantos populares com esta mesma forma,
como a Elegia da Vida de frade, no Cancioneiro Popularde Teófilo Braga e a Paródia do Pelo Sinal, canto patriótico,
cheio de sarcasmo, que se refere ás invasõis dos franceses,
no Cancioneiro politico de Tomaz Pires. É até um dos raros
cantos patrióticos ou políticos, dignos de menção.
VIU
A CRIATURA AMADA
161
Todas as águas que correm,Todas ao mar vão parar;
Todas as minhas cantigas
Ao meu amor vão a dar.
162
Toda a moça que é solteira
Pelo andar se conhece;Poisa o pé à miudinha,Todo o corpo lhe estremece.
163
Graças a Deus para sempre!Já vi a quem eu queria;
E já se defez a nuvem,Que o meu coração trazia.
164
Deus te salve rosa branca,
Já que foste aparecida!
Ha tanto tempo que andavasEntre as nuvens escondida.
A Criatura Amada 113
165
Muito bonita é a chita,
Amor, do teu avental;
És a cara mais bonita,
Que passeia em Portugal!
166
O meu amor é mais lindo
Do que a rosa quando abre.
Todo o mundo mo cubica.
Nossa Senhora mo guarde!
167
És como a prata lavrada.
Como o leite sem a espuma;És perfeita, oh! minha amada.Sem teres falta nenhuma!
168
No dia em que tu nasceste
Todas as flores brotaram,
Té na pia do batismoLindos rouxinóis cantaram.
169
Uma estrela se perdeu,
Que no céo não aparece,
No teu peito se meteu,No teu rosto resplandece.
170
Vossos cabelos, menina,É que vos dão toda a graça
;
Parecem meadas de ouroAonde o sol se embaraça.
114 . Cancioneiro Popular
171
Lindos cabelos que tendes,
Qúe vos dão pela cintura,
Á noite servem de cama,
De dia dé formosura.
172
Que o teu cabeio entrançado
Diz bem de toda a maneira,
Quem me dera te-lo breve
Sobre a minha travesseira.
173
Tens o rosto cor de rosa.
Os olhos da cor do Céo,
Tens o cabelo tão Hndo,
Não precisas de chapéu.
174
Tua boca me parece
Um botãosinho de rosa;
Tenho visto bocas lindas,
Mas nenhuma tão airosa..
175
Os olhos do meu amorSão dois navios de guerra;
. Quando vão para o mar largo.
Alumiam toda a terra.
176
Hei de te mandar dourar
Os arcos das sobrancelhas;
São laços de finas fitas,
Que prendem duas estrelas.
A Criatura Amada 115
177
Quando abres os teus olhos,
Parece que nasce o dia;
Fui céguinho até agora,
Antes de os ver nada via.
178
Graças a Deus para sempreQue já ouvi tua fala:
Parece que vem do céo
E os anjos a acompanha-la.
179
Cantas bem, não cantas mal,
Garganta de pura neve,
Fonte d'agua cristaHna,
Onde o Sol divino bebe.
180
Tendes garganta de neve.
Nela se pode escrever;
Quem me fora estudantinho
Que nela aprendera a ler!
181
Vossos ombros engraçados,
(Engraçados que eles são!)
São apoio desses braços,
Firmeza das vossas mãos.
182
Tuas mãos são branca neve.
Teus dedos são lindas flores
Teus braços cadeia douro.Laços de prender amores.
116 Cancioneiro Popular
183
A forma desse colete
E' o que mais me namoraRevela coisas bonitas,
Cá por dentro e lá por fora.
184
Esses vossos lindos peitos
Ambos de dois são eguais,
Não são altos, nem sáo baixos,
São como vós precisais.
185
Nunca vi cara mais linda,
Nem corpo mais delicado,
Nem andar com mais decência.
Nem falas com mais agrado.
186
Vossos pés são doiro fino.
São doiro puro e mais não,
Doiro toda sois formadaPrenda do meu coração.
187
Com fios doiro eu entrei
A notar vossos sinais.
Pois que menina sois doiro.
Oiro sois e assim ficais.
IX
CONFISSÃO D'AMOR
188
Quem embarca, quem embarca,
Quem vem para o mar, quem vem?Quem embarca nos meus olhos?
Oh! que linda maré tem!
189
Entre o dizer e o calar
Ha guerra viva em meu peito,
O amor manda que fale,
Que cale diz o respeito.
190
Se eu te não amo deveras,
Deus do céo me não escute,
Estrelas não m'alumiem,A terra me não sepulte!
191
Eu amo-te sem mau fim
E' nobre a minha paixão
Sigo a lei da Natureza,
Oiço a voz no coração.
118 Cancioneiro Popular
192
Nas partes que o sol descobre,
Nas que o sol não chega a ver,
Em toda a parte do mundoHei-de amar-te até morrer!
193
Tenho dentro do meu peito
Mil velas, mil castiçais,
No altar onde tu morasEstás tu e ninguém mais.
194
Olhei pró meu lado esquerdo,
Não achei meu coração;
De repente me lembrei
Que estava na tua mão.
195
Aqui tens meu coração
E a chave para o abrir;
Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.
196
Aqui tens meu coração,
Se o queres matá-lo podes;Olha que estás dentro dele.
Se o matas também morres.
197
Oh! meu Deus dai-me juizo
E dai-me força e valor,
Que não posso resistir
Contra a força deste amor.
Confissão d'Amor 1 19
198»
Ribeirinha, ribeirinha
Ao largo é ribeirão,
Também tu és pequenina.
Mas chegas ao coração.
199
Quanto mais fundo é o poço,
Mais frescas lhe são as águas,
Quanto mais falo contigo,
Mais te aprecio as palavras.
200
Quem me dera a liberdade.
Que a restea do Luar tem
:
Entrava pela janela,
Ia falar ao meu bem.
201
Quem me dera ser pombinhoOu rolinho do sertão,
Que queria fazer o ninho
Dentro do teu coração.
202
Os meus olhos estão cegos
Mas não o sei confessar.
Se foi o Sol que deu neles,
Se será de te fitar.
203
Aqui tens a minha mão,Ajunta-a palma com palma.
Domina o meu coração,
Toma posse da minfi' alma.
120 Cancioneiro Popular
204
O sangue das minhas veias
Gira no teu coração;
Os teus braços são cadeias,
Eu já me entrego à prisão.
205
Passei pela tua porta,
Meu coração se assustou
;
Poisei os olhos em terra,
Toda a gente reparou.
206
Que queres, meu bem, que queres
Que queres tu deste meu peito ?
Se queres o meu coração,
Mete a mão, tira-o com geito.
207
Em te ver eu vejo a DeusNão sei se peco ou se não
;
Trago a Deus na minh'alma,
A ti no meu coração.
208
O coração, alma e vida,
'
Tudo, tudo eu já te dei
;
Se tens tudo o que me anima.
Como sem ti viverei?
DESEJO E POSSE
209
Oh! fonte, quem te chegara,
Oh! água, quem te bebera.
Oh! cravo, quem te cheirara,
Oh! rosa, quem te colhera!
210
Oh! mina, quem te minara.Toda por baixo do chão,
Oh! amor, quem te lograra
Sem haver murmuração
!
211
A verdizela é enleio,
Que se enleia pelo trigo
;
Ai! quem fora verdizela.
Que se enleara contigo.
212
Quem me dera ser o Hnho,Que vós menina fiais,
Que vos dera tanto beijo,
Como vós no linho dais.
1 22 Cancioneiro Popular
213
Quem me dera ser as contas
Desse teu lindo colar
Para dormir em teu seio
E nunca m^ais acordar.
214
Tendes o cravo na bocaCom a raiz na garganta,
Quem vo-lo tirara a beijos
Á hora em que o galo canta.
215
Eu venho a esta função
Pra lograr os teus carinhos:
É chegado o gavião,
Fujam, fujam passarinhos.
216
Francisquinho, cacho d'uvas,
Oh! quem te depenicara,
De baguinho em baguinho,
Nem um bago te deixara. .
217
Quando eu te vi logo disse
Lindos olhos para amar,
Linda boca para beijos . .
.
Ai ! quem tos pudera dar
!
218
Oh minha pombinha branca,
Oh! minha branca pombinha.Quando ha-de chegar a hora
Em que te hei-de chamar minha ?
Desejo e Posse 123
219
Se o teu retrato falasse,
Se o teu retrato sentisse,
Ele mesmo te dizia
O que fiz e o que lhe disse.
220
Cravo roxo em teu peito,
Que sepultura tão rica
!
Quem morre nesses teus braços
Não morre, que ressuscita
!
221
O meu coração é terra,
Hei-de manda-lo lavrar
Para dispor os desejos,
Que eu tenho de te lograr.
222
Defronte de mim estão olhos,
Olhos que me estão matando,Que contas darão a DeusDas penas que m'estão dando ?
223
Eu aonde estou bem vejo
Olhos que me estão matando
;
Matai-me devagarinho,
Que estou morrendo, penando.
224
Os meus olhos mais os vossosDe longe se estão mirando
;
Os vossos dizem-me: sim;
Os meus perguntam-lhe: quando?
1 24 Canconeiro Popular
225
Daqui onde estou bem vejo
Correr as bicas da fonte
;
Ai ! de mim que morro à sede,
Tendo o remédio defronte.
226
Esta noite sonhei eu
Que te estava dando beijos;
Acordei, achei~me só,
Tive dobrados desejos.
227
Dai-me uma gotinha d'água,
Da Hngua fazei a bica;
Quanto mais água me dais,
Tanto mais sede me fica.
228
A silva é prendediça
Prende na terra lavrada.
Também os meus olhos prendemNa parte mais delicada.
229
Deixa-me ir com as mãos ambasAo talho do teu colete,
Á parte mais delicada.
Onde pus o ramalhete.
230
Os pombinhos inocentes
Namoram-se e dão beijinhos:
Façamos amor, façamos.
Como fazem os pombinhos.
Desejo e Posse 125
231
Aperta-me esses meus dedosTé que eu diga: deixa, amor;Quem mais aperta m.ais quer,
Quem mais quer mais sente dor.
232
Amor com amor se pagaE não ha coisa mais justa;
Paga-me comtigo mesmo,Meu amor, pouco te custa.
233
Boa herva é o poejo,
Que se deita na açorda,
Racha-me a cara com beijos,
Tem cautela não me mordas.
234
António vem a meus braços
Unirmos peito com peito;
Ao depois dessa uniãoTer-te amor não é defeito.
235
Quando o meu amor me beija,
Não sei dizer o que sinto;
Fico parva, fico doida,
P^alo verdade, não minto.
236
O beijo, que tu me deste,
Nunca mais me ha-de esquecer:Inda tenho a boca doce,
Inda me está a saber.
126 Cancioneiro Popular
237
Oh! madre-silva cheirosa,
Aonde deixaste o cheiro?
Nas ondas do mar, lá longe.
Nos lábios dum marinheiro.
238
Esta noite estive, estive,
Á conversa com o amor,
Co'a tua boca na minha,
Como o orvalho na flor.
239
Quem vive junto ao seu bemNão pode ter mais desejos;
Mata a fome com amor,
Apaga a sede com beijos.
240
Meu amor, dei-te os meus beijos.
Tu com beijos me pagaste.
Ai! Deus te pague a alegria.
Todo o bem que me causaste!
241
Não posso comer sem dar-te.
Nem beber sem dar a ti:
Nem fazer a minha camaSem dizer: deita-te aqui.
242
Vê lá meu bem se te lembras
Daquela noite de vento
Que te tive desmaiada
Nos meus braços tanto tempo.
Desejo e Posse 127
243
Lembras-te daquela noite,
Que contamos, ao Luar,
Eu as areias do chão,
Tu as estrelas do ar?
244
Dois amantes que se amam,Quando chegam a unir seu rosto.
Morrem de consolação;
Não pode haver melhor gosto.
XI
IRONIAS, SARCASMOS E PRAGAS DE AMOR
245
És água, náo matas sede,
És pimenta, não queimais;És uma, pareces outra,
Quando comigo falais.
246
Náo te quero bern nem mal.
Coração no mesmo ser,
Nem morro por te adorar,
Nem desgosto de te ver.
247
Perguntais-me como passo;
Obrigado passo bem.Ando com os pés pelo chão.
Como vós andais também.
248
Oh! senhor juiz de fora,
Faça justiça brincando;
Prenda-me aqueles dois olhos,
Que me estão desafiando.
Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 129
249
Já furtaram ao moleiro
A sua filha Isabel,
Cuidando que era o cortiço
Que estava cheio de mel.
250
O amor diz que é firme,
Que é firme no amar,Com'ó vento no bulir,
Com'ó vidro no estalar.
251
O amor do estudante
É como a pomba ferida;
Pelo ar derrama o sangue.
Chega à terra, acaba a vida.
252
São tantas as saudadesQue eu tenho de ti ás vezes;
Em sendo os dias pequenos,Não como senão trez vezes.
253
Dizes tu que tenho amores,Jesus! cruzes! anjo bento!Nem os tenho, ném espero,
Nem me vem ao pensamento.
254
O teu pai diz que não quer,
Porque eu não tenho fazenda;Nem o teu pai é tão rico.
Nem tu és tão boa prenda.
130 Cancioneiro Popular
255
O meu amor, de polido,
Não assenta o pé no chão;Assenta, meu bem, assenta.
Não dês passadas em vão.
256
Menina, não te namores,De homem que já viuvou.
Uma fala, duas falas:
Mulher que Deus me levou!
257
Dois pobres a uma porta
Ambos co'a mesma tenção,
Qual será o desgraçado,
Que levará o perdão?
258
Toda a vida meu pai disse:
Filho não sejas maroto.
Foge sempre das mulheres.
Como a camisa do corpo.
259
Se pensas que eu por ti morro.
Eu nem por ti adoeço.
Já me teem oferecido
Panos de mais alto preço.
260
No domingo fui á missa.
Vi os teus olhos em praça;
Disse prás minhas amigas:
Lancem naquela fogaça.
Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 131
261
És bonita como a morte,
Alegre como um enterro,
Direita como um anzol,
Delicada como um cerro.
262
Chamaste pobre ao meu pai,
Tu és rico, és abonado.Tens uma terra no campo,Onde cabe um cão deitado. Q)
263
O meu amor me deixouPara amar outra mais rica;
Menos honra, mais fazenda,
Tudo em casa lhe fica.
264
Foste dizer mal de mimAo meu amor por desprezo.
Deitaste azeite no lume,
Inda ficou mais aceso.
265
Ingrato, que me vendeste.
Quanto te deram por mim?Que é das galas que comprasteCo dinheiro que eu rendi?
(^) Recolhida por mim em S. João do Campo.
132 Cancioneiro Popular
266
Ès íalsa, trez vezes falsa,
Que assim te quero dizer;
Quanto te deram por mim,Quando me foste vender?
267
Murmurai, murmumdeims,Murmurai todas de mim,Deus vos dará o castigo,
Uma pena sem ter fim.
268
A sepultura se me abra,
A vida me caia dentro,
Se eu tenho outros amores.
Senão tu no pensamento.
269
Justiça de Deus te caia,
Do Céo te venha o castigo,
Pois se tens novos amores,
Para que falas comigo?
270
Olhos, que me querem mal.
Tirados os visse eu,
Apresentados num prato.
Pedindo perdão aos meus.
271
Apartada eu veja a vida
E o corpo do coração
A quem foi o causador
Da nossa separação.
Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 133
272
Meu amor abandonou-me,Não sei qual fosse a razão:
Ao beber lhe falte a água,
Ao comer lhe falte o pão.
273
Já que és ingrata comigo,Contra ti o tempo vejas,
A fortuna de ti fuja,
Não logres o que desejas.
XII
AMOR
274
O Mar pediu a Deus peixes,
O campo pediu-lhe flores,
O Céo pediu as estrelas
E a mulher pediu amores.
275
Não devia amar-te e amo-te,
Confesso a minha fraqueza
;
A culpa não é só minha,É também da Natureza.
276
O Céo se vista de galas,
As estrelas tenham véo,
Se já tenho amores novos,
É justo se alegre o Céo.
Amor 135
277
Já fui cravo, já fui rosa,
Já stive num alegrete,
Agora stou no teu peito,
Servindo de ramalhete.
278
Nasce o Sol para adorar-te.
Dá volta ao mundo por ver-te,
Quando o sol deseja amar-te.
Como não hei-de eu querer-te.
279
O dia tem duas horas.
Duas horas não tem mais
;
Uma é, quando vos vejo.
Outra, quando me lembrais.
280
Quem não ama e não adoraVivo está na sepultura
;
Só amando é que se vive.
Sem amar não ha ventura.
281
Dizem que o amor é morteOh ! quem me dera morrer
!
Mais vale morrer de amores,Do que sem eles viver.
282
Para que quero eu os olhos.
Senhora Santa Luzia,
Se não hei de ver meu bemA toda hora do dia.
136 Cancioneiro Popular
283
Eu sou cavaco do rio,
Veio a cheia e levou-me;A água fez um remanso,Á tua porta deixou-me. Q)
284
Cantae-me uma cantiguinha,
D'essas tantas que sabeis:
Espalhai folhas de rosa,
Que nessa boca trazeis.
285
O Sol posto vai doente
E se o sangram logo morre.
Pois o sangue é como o amor.
Por todas as veias corre.
286
Dois corações que se amam.Unidos fazem um só: .
Ambos eles estão feridos
De qual dos dois terei dó ?
287
Ai, que linda troca de olhos
Fizeram agora ali
!
Trocaram dois olhos pretos
Por dois azues, que eu bem vi.
(1) Recolhida por mim em S. João do Campo.
Amor 137
288
Amor, se queres, façamos,
Uma troca sem lezão,
É trocar alma por alma.
Coração por coração.
289
Costumei tanto os meus olhos
A namorarem os teus.
Que de tanto confundi-los,
Nem já sei quais são os meus.
290
Oh! água tem-te nos vales
Não sejas tão corredia
;
Quem namora não se ausenta,
Quem quer bem não se desvia.
291
Dizes que amar é pecar . . .
Ai de mim que já pequei
!
Se em amar se perde o Céo,Ai ! não se salva ninguém.
292
Repara meu bem, repara,
Olha cá p'ró peito meu:Unamos as nossas almas.
Vamos ambos pró céo.
293
Quando António vai à missa
A igreja resplandece;
A terra que António pisa.
Se está seca reverdece.
138 Cancioneiro Popular
294
Anda cá meu amor morto,
Dize lá quem te matou;Se te matou minha ausência,
Ressuscita que aqui estou.
295
Aqui tens meu coração.
Mete a mão tira-o com geito;
Lá verás que amor tão grande
Em palácio tão estreito.
296
Oh! bela rosa encarnada,
Como tu nenhuma cheira;
Por ti se salvam as almas
E a minha seja a primeira.
297
Oh! coração, toma azas,
Oh! azas, tomai valor,
Que havemos de ir esta noite
Ao resgate duma flor.
298
Subi com a minha amadaTé onde ninguém se viu;
As nuvens diziam: basta.
Até que ninguém subiu!
299
Oh ! mar, que andas tão bravo.
Que assim andas furioso
Oh! mar, se fosses casado.
Serias mais amoroso.
Amor 139
300
Os meus olhos não são olhos,
Quando os teus estão defronte:
São dois rios de água turva,
Quando vão de monte a monte.
301
Amar e saber amarSão dois pontos dehcados.
Os que amam são sem conta,
Os que sabem são contados.
302
O amor nasce de dar,
Meu amor, que te darei?
O amor que não dispende,
É certo que não tem lei.
303
O meu coração é rio,
Cheio d'água mete medo:Seca-se o meu coração,
Rega-se o teu arvoredo
!
304
Eu, vivendo, por vós morro,Vós por mim viveis, morrendo,Quizera acabar a vida
Para ficares vivendo.
305
Tira-me a seta do peito,
Deixa o meu sangue correr;
Se tu por mim dás a vida.
Eu por ti quero morrer.
140 Cancioneiro Popular
306
Choro lágrimas de sanguePara teu divertimento;
Quero que vivas alegre,
A custa do meu tormento.
307
Se os meus olhos te encomodamQuando estão na tua frente,
Eu prometo de arranca-los
Para te amar cegamente.
308
Eu quero tanto ao meu bem,Amo-o com tanta paixão,
Que até chego a adorar
Sua própria ingratidão.
309
Não choro por me deixares.
Que o jardim mais flores tem.
Choro que não has-de achar
Quem te queira tanto bem.
310
Se os meus olhos te dão pena,
Tira-os e deita-os ao chão;
Não quero ter no meu corpo
Coisa que te dê paixão.
311
Trago dentro do meu peito
Um botão de rosa a abrir:
São os olhos do meu bem,Que pra mim se estão a rir.
Amor 141
312
Tenho dentro do meu peito
Uma capela de flores,
Rosas, cravos, violetas,
Martírios, chagas e amores.
313
Não ha flor como a perpétua,
Que nasce de madrugada.Nem amor como o primeiro.
Porque nasce dentro d'alma.
314
Oliveira arreda a rama.
Que eu quero passar além.
Trago o meu peito a arder,
Não quero queimar ninguém.
315
És espelho, onde me vejo
Cada vês que te visito.
És egual ao meu desejo.
Não ha nada mais bonito.
316
Tudo o que é verde se seca.
Em vindo o pino do v'rão.
Só meu amor reverdece
Dentro do meu coração.
317
Anoiteceu-me no campoNum sitio desconhecido
;
Abracei-me à própria terra.
Cuidando que era contigo.
1 42 Cancioneiro Popular
318
Chamaste-me fala só,
Oh! que falsa opinião,
Estava a falar contigo,
Falando ao meu coração.
319
Olhos, que sonhando vedes.
Olhos, para que acordais?
Se vós, sonhando, estais vendoTudo quanto desejais!
320
Esta noite buliu ventoCom pontinhos de suão;Abriram-se as rosas todas
Dentro do meu coração. (O
321
Suspiro, que nasce d'alma,
Que à flor dos lábios morreu,
Coração, que o não entende,
Não o quero para meu.
322
Ontem era meia noite,
A meia noite seria.
Ouvi cantar um anjinho
No coração de Maria.
Q) Colhida por mim em Ançã.
Amor 143
323
Cartas, cartas são papeis,
Os papeis falsos serão,
Mas as palavras dos olhos
São vozes do coração.
324
Amavas-me e não dizias,
Junto a mim ficavas mudo
;
Tua boca não falava,
Os olhos diziam tudo.
325
Tenho dentro do meu peito
Um frasquinho de licor.
Quando o coração tem sede
Diz o frasco bebe amor.
326
Os teus olhos, oh! menina,Quando se encontram co'os meus.Dizem coisas, dizem coisas . .
.
Ai ! Jesus ! valha-me Deus ! . .
.
327
Toma lá colchetes doiro,
Aperta o teu coletinho:
Coração, que é de nós dois.
Deve andar conchegadinho.
328
O amor, quando se encontra,
Causando pena, dá gosto,
Sobresalta o coração,
Faz subir a cor ao rosto.
144 Cancioneiro Popular
329
Eu passei e bem te vi
Stavas à janela lendoAs cartinhas do amor ...
Tu a chorar e eu vendo.
330
Já que me chamaste estrela,
Dai-me Ceo, onde eu me ponha,Que as estrelas neste mundoPadecem muita vergonha.
331
No tronco da verde faia
O teu nome fui gravar;
A mesma faia chorou,
Só de me ver suspirar.
332
Como juntos e unidosOs teus cabelos estão,
Permita o Ceo que se unaO meu ao teu coração.
333
A sombra d'esse teu corpoQuando eu a vejo no chão . .
.
Aperto, pra não fugir,
O meu pobre coração.
334
Aqui tens meu coraçãoVinga nele os meus delitos,
Crava-lhe um punhal agudo.
Não te embaracem meus gritos.
Amor 145
335
A roseira com a rosa
Toda se humilha ao chão,
Quando a rosa se humilha,
Que fala meu coração?!
336
Cada vês que vou á missaE no adro te não vejo,
Enchem-se-me os olhos d'água.
Fico cego, nada vejo.
337
Amar e não ter ciúmes.
Isso não é querer bem
;
Quem não zela o que bem amaMuito pouco amor lhe tem.
338
Pergunta a quem sabe amarQual é mais para sentir?
Se é amar, vivendo ausente.
Se é ver e não possuir.
339
Rosa, que estás em botão,
Deixa-te estar fechadinha.
Que eu vou para a minha terra.
Quando eu vier serás minha.
340
Olhos verdes, côr de esperança.Olhos verdes, côr da hera,
Quem espera sempre alcança.
Por isso minha alma espera.
10
146 Cancioneiro Popular
341
Quatro coisas são precisas
Para saber namorar,Olho vivo e pé leve,
Cautela, saber falar.
342
O meu amor é tão lindo
!
Com quem o compararei?Com as estrelas não posso,
Com Jesus do Ceo não sei.
343
Eu não sei que simpatia
Minh'alma contigo tem
;
Quando te vejo a chorar,
Meto-me a chorar também.
344
Meu amor, se tu te vires
No deserto sem ninguém.Dá um ai com sentimento
Que eu sou contigo, meu bem.
345
Não se cance a Natureza
A criar coisas em vão
;
Se não é para te amar.
De que serve o coração ?
346
Oh! que calma está caindo,
Á sombra me estou queimando;Que será do meu amorLa na eira trabalhando.
Amor 147
347
Põe-te, põe-te Sol divino,
Mas não te ponhas parado,
Meu bem é trabalhador
E chega à noite enfadado.
348
Vem cá minha pequeninaQue o vento quer-te levar,
Pela manhã vento norte,
Á noite vento do mar.
349
Oh! que calma está caindo
Por cima dos ceifadores!
Quem fora ramo de palma,
Que cobrira os meus amores!
350
Menina tu és a tumba,Eu serei o corpo morto;Não se me dava morrer,
Sendo tumba o vosso corpo.
XIII
FIDELIDADE E CONSTÂNCIA
351
Oh ! meu amor, meu amor,Quando me has-de tu esquecer?— Quando Deus me não der vida,
Nem olhos para te ver.
352
Esta noite sonhei eu
Que me morria o meu bem
;
Sonhando, pedi a DeusQue me levasse também.
353
Jurei pelo junco verde.
Que é a jura dos pastores,
Que, enquanto tu me quizeres.
Serei firme aos meus amores.
354
A neve na serra alta.
Faz a maior assistência
;
O amor quanto mais firme.
Mais querido é na ausência.
Fidelidade e Constância 149
355
Bem pode a Terra mover-se,
Bem pode o Mundo acabar,
Tudo pode ter mudança,Menos eu em te adorar.
356
O meu coração é teu
Aqui e em toda a parte;
Antes cegar que não ver-te,
Antes morrer que deixar-te.
357
Já fui roseira caída,
Três anos stive no chão
;
De todos fui esquecida
E só do meu amor, não.
358
Se querer-te bem é delito,
Venha o juiz que me prenda.
Abra as portas da prisão,
Que eu não quero ter emenda.
359
No mais terrível deserto
Contigo q'ria viver,
E juro-te pela minh'almaDe ser firme até morrer.
360
Para amar-te eternamenteEu eterno q*ria ser;
Ja que eterno ser não posso,
Hei-de amar-te até morrer.
150 Cancioneiro Popular
361
Se te aborrece eu querer-te,
E é forçoso desprezar-te,
Ensina-me a aborrecer-te,
Que eu não sei senão amar-te.
362
O amor que nasce d^alma
Nunca poderá ter fim;
Aí tens tu a razão
De me não 'squecer de ti.
363
Hei-de amar-te, que é meu gosto,
Ninguém nisso tem que ver;
Amar-te e casar com outro,
Mais me valera morrer!
364
Tenho o meu peito fechado,
Stâo as chaves no Brazil;
O meu peito não se abre,
Sem as chaves de lá vir.
365
Amar, emquanto atendido.
Não é fineza de amante:
Amar, depois de ofendido.
Só o faz quem é constante.
366
Eu fui aquela que disse
:
Ou contigo ou com a terra,
Senão cazasse contigo,
Queria morrer donzela.
Fidelidade e Constância 151
367
Firme, por firme, me assino
Firme, constante serei,
Firme, leal 'té à morte,
Por ti firme morrerei.
368
Se cuidas que eu amo outra
Perde essa desconfiança;
Antes sepultar-me em vida
Que eu em amor ter mudança.
369
Oh! olhos de amante firme.
Bem te entendo o teu olhar;
Podes viver-no seguroQue eu outro não sei amar.
370
Meu amor chorando disse.
Com lágrimas prometeu:Emquanto o mundo existir.
Não deixarei de ser teu.
371
O meu leal coraçãoAo teu falso obedece,Se o meu leal te não lembra,O teu falso não me esquece.
372
Inda que meu pae me mateMinha mãe me tire a vida
Minha palavra está dadaMinh'alma está promettida.
152 Cancioneiro Popular
373
Teu pai, tua mãi, não queremCara linda que te logre;
Queira eu e queiras tu,
Contra o amor ninguém pode.
374
Nunca o amor se conheceSenão depois da tormenta;
Quanto mais se contraria.
Mais ele, o amor, aumenta.
375
Bem pode o norte ventar,
A nau fazer-se em pedaços,
Mas p'ra deixar de te amar,
Nem que haja mil embaraços.
376
Quando as pedras soltem gritos
E o sol deixe de girar
E o mar deixe de ter água,
Deixarei eu de te amar.
377
No prazer sinto tristeza,
Parece-me a noite o dia,
O mesmo dia é um pranto.
Sem a tua companhia.
378
Triste sorte foi eu ver-te,
Atrevimento falar-te,
Delito era pretender-te.
Pena de morte deixar-te.
Fidelidade e Constância 153
379
Eu, se te não amo, morro.
Se te adoro, ha quem me mate,
Se de toda a sorte morro,
Quero morrer e adorar-te.
380
Impossível, sem ser Deus,Haver quem de ti me aparte,
Se ele tem esse poder.
Antes venha a mim, me mate.
381
p meu coração do teu
É mui ruim de apartar,
É como a alma do corpo.
Quando Deus a quer levar.
XIV
A FELICIDADE DO LAR E A TERNURAMATERNAL
382
O casal que é bem unidoVive bem e com prazer;
Por pouco que o homem ganhe,
Sempre chega pra comer.
383
Minha sogra quer-me muito,
Minha cunhada também.Meu sogro muito me quer
E o filho mais que ninguém.
384
Eu casei-me e cativei-me,
Inda não me arrependi
;
Quanto mais vivo contigo,
Menos posso estar sem ti.
385
No tempo em que era solteira
Usava fitas e laços.
Agora que sou casada
Uso os meus filhos nos braços.
A Felicidade do Lar e a Ternura Maternal 155
386
O meu amado meninoTem soninho e quer dormir,
Venham os anjos do CéoAjuda-lo a dormir.
387
Quando uma creança dorme,Estão os anjos a sorrir,
Abrem-se as portas do CéoPara Deus a ver dormir.
388
Lindo cantar é o dos anjos . .
.
Quem cantara como eles,
Quem estivera cantando,
Cantando no meio deles!
389
Quem tem meninos pequenosPor força lhe ha-de cantar
:
Quantas vezes as mais cantam.Com vontade de chorar
!
390
Quem tem meninos pequenosAlivia o coração
:
De dia tem-nos nos braços,
Á noite no coração.
391
O menino está no berço,
Coberto co'o cobertor.
Os anjos lhe estão cantando
:
— Bemdito seja o Senhor
!
156 Cancioneiro Popular
392
O meu menino tem sono,
Tem soninho e quer dormir,
Venham os anjos do'CéoCom roupa para o cobrir.
393
Uma mãi que um filho embala.
Todo o seu fim é chorar,
Só por não saber a sorte,
Que Deus tem para lhe dar
!
394
O meu menino é um anjo,
E o teu é um passarinho,
O meu voa para o Céo,E o teu voa para o ninho.
395
Oh ! meu filho, dorme, dorme,Olha o papão que alem está . .
.
— OJi ! papão vae-te embora,Que o menino dorme já
!
396
Vae-te embora, passarinho.
Deixa a baga ao loureiro,
Deixa dormir o menino.Que está no sono primeiro.
XV
SAUDADE
397
Desgraçado malmequer,Onde vieste nascer!
Aonde não ha saudades,
Não pode haver bem querer.
398
De qualquer sorte que existas.
És a mesma divindade,
Ventura, quando te vejo.
Se te não vejo, Saudade.
399
Quero dar-te as despedidas,
Quero da-las e não posso;
Tenho o meu coração prezo
Por um fio d'oiro ao vosso.
400
Quanto se sente na morte,
Quanto se sente na ausência,
A morte é ausência eterna,
A ausência, morte aparente.
158 Cancioneiro Popular
401
Uma saudade me mata,
Uma ausência me detém,
Uma esperança me anima:Sobre tempo tempo vem.
402
Quanto se sente na morte,
Quanto se sente na ausência,
A morte é ausência eterna,
A ausência, morte aparente.
403
Tudo quanto o mar encerra,
Tudo quanto a terra cria.
Tudo é nada no Mundo,Sem a tua companhia.
404
Oh! meu amor, meu amor.
Nada me alegra o sentido,
Ninguém sabe o bem que perde.
Senão depois de perdido.
405
Se fossem pedras as lágrimas.
Que eu por ti tenho chorado.
Já formavam um castelo
No centro do mar salgado.
406
Ausente dum bem que adoro.
Não posso viver com gosto
;
Nasce o Sol e põe-se o Sol,
Para mim sempre é Sol posto.
Saudade 159
407
Passei pela tua porta,
Não te vi, oh! alma minha,
Fiquei como a noite escura,
Metida na nevoinha.
408
Como o vento é para o fogo,
É a ausência pro amor.
Se é pequeno apaga-o logo.
Se é grande torna-o maior.
409
Vejo mar, não vejo terra.
Vejo espadas a luzir;
Vejo o meu amor em guerra
E não lhe posso acudir.
410
Oh ! meu amor, se te vires
Nas ondas do mar aflito.
Brada por mim que eu irei
Logo ao teu primeiro grito.
411
Atrevido pensamento,Onde me foste levar?
Além do mar outro tanto,
Como é daqui ao mar.
412
Se o meu coração tivera
Azas, que fora voando.Achavas tu quem stivera
Sempre contigo falando.
160 Cancioneiro Popular
413
Nas azas do pensamentoVai beijinho, vai voando,Visitar o meu amor.Que por mim stá esperando.
414
Quando eu te chamar, acode,
Manda cá teu coração,
Não queiras tu que eu padeça.
Tendo o remédio na mão.
415
A pena do meu martírio
Mais cruel não pode ser:
Ter boca não te falar,
Ter olhos e não te ver.
416
Este meu coraçãosinho,
Tão pequenino que é;
É um mar de saudades,
Onde não entra a maré.
417
O meu amor me deixouSosinha neste deserto
;
Hei de me ir deitar ao mar,
Levam-me as ondas decerto.
418
Abra-se uma sepultura
Na terra forte e valente;
Var mais estar sepultado
Que viver de ti ausente.
Saudade 161
419
Se ouvires tocar os sinos,
Não perguntes quem morreu,Ausente do meu amor,
Ninguém morreu senão eu.
420
Abre este meu peito à lança
Verás meu coração morto,
E verás a tua ausência
O estado em que me tem posto.
421
Eu não quero viver maisQue o tempo que tu existes
;
Que me serve viver tanto,
Se os dias serão tão tristes ?
422
Se tu fores, eu hei-de ir
Se ficares, ficarei
;
Quando não, tira-me a vida,
Que eu apartar-me não sei.
423
Oh! olhos, preparem lenços.
Oh! lenços, preparem fios;
É chegada a ocasião
De os meus olhos serem rios.
424
Mal o haja o querer bem,A mim própria me praguejo!Não ha um Deus que me leve
Nas horas que te não vejo!
u
162 Cancioneiro Popular
425
Quem disser que uma saudadeQue não leva à sepultura
Coma pouco, viva triste,
Verá o tempo que dura.
426
Ai! Jesus, arde-me o peito
Em labaredas de fogo;
Se eu não vejo um bem que adoro,
Ai! Jesus do Céo, que morro.
427
Nesta cruel despedida
Diz amor, que hei-de fazer
;
Levar-te não é possivel,
Deixar-te não pode ser.
428
Diz alguém que a despedida
Nada custa ao coração;
Quem tal diz que se despeça
E verá se custa ou não.
429
Amor, não digas adeusCom esse adeus me matais;
Parece que mé dizeis
Adeus para nunca mais.
430
Meu amor na despedida
Nem só um ai poude dar;
Apertou-me a mão ao peito
E depois pôz-se a chorar!
Saudade 163
431
Se os meus suspiros podessemTua jornada impedir,
As lágrimas dos meus olhos
Não te deixavam lá ir.
432
Vai-te que o teu bem cá fica,
Suspirando, amor, por ti
;
Vai tu a ver outros climas.
Mas não te esqueças de mim.
433
Oh ! triste segunda-feira
Da semana que ha-de vir?
O meu amor diz que embarca:Quem o ha-de ver sair
!
434
Meu amor diz que me deixa,
Digam-me o que hei-de eu fazer?
Deixa-me, vai para* longe.
Não o torno mais a ver
!
435
Estes campos por aqui
Talvez já os não aviste
;
Adeus amor da minh'alma.Que despedida tão triste!
436
Quem me dera ver agoraQuem a minh'alma deseja;Quem os meus braços apertam,Quem a minha boca beija.
164 Cancioneiro Popular
437
Já lá vai de barra fora
Quem no meu colo dormia!Deus te leve, Deus te traga
Para a minha companhia.
438
Ausente dum bem que adoro,'
Não tenho gosto de nada.
Na solidão em que vivo
Somente o chorar me agrada."^
439
Adeus, meu pai, minha mãiAdeus, oh ! minha saudade.
Eu vou a servir o rei.
Cativar a liberdade.
440
Adeus, oh ! minha saudade.
Espelho do meu sentido;,
Por ver vossa magestadeEu ando cego e perdido.
441
Adeus, oh ! minha saudade,
Já você por cá não vem?Venha como vinha dantes.
Não lhe importe de ninguém.
442
Cada vez que considero
Que de ti me hei-de apartar.
Meus olhos se arrazam d'água,
Não faço senão chorar.
Saudade 165
443
Vistam-se os campos de luto,
Toquem os clarins de prata,
Saiba-o quem o não souber:
Meu amor de mim se aparta.
444
Dei um ai entre dois montes,Responderam-me as montanhas;Ai! Jesus, que eu já não possoSofrer ausências tamanhas.
445
Abre-te centro da terra
Que me quero meter dentro,
Na ausência do meu amorQuero mostrar sentimento.
446
Amor, Deus te dê saúdePrás terras aonde fores,
A água, que tu beberes.
Ela se cubra de flores.
447
O meu amor foi-se embora,Sem se despedir de mim,O mar se lhe torne em rosas,
O navio num jardim.
448
Oh! Sol, que te vais cair
Lá para as bandas de Chaves,Dize ao meu amor que venha,Porque eu morro de saudades.
166 Cancioneiro Popular
449
Oh! rio, que vais correndo,
Passa a ver o bem que adoro;
Se te faltarem as águasLeva as lágrimas que eu choro.
450
Carta, vae onde te eu mando,Lindos olhos vais a ver;
Carta pôi-te de joelhos.
Quando te quiserem ler.
451
Vai-te carta, vai-te carta,
Entra na primeira sala.
Se te não quiserem ler,
Abre-te carta e fala.
452
Vai-te carta venturosa,
Olha se sabes falar.
Os olhos que te escreveram
Cá ficaram a chorar.
453
Vai-te embora dia de hoje
Não queiras mais dia ser.
Que estou à espera do amor.
Que à noite me ha-de vir ver.
454
Triste sou, triste me vejo,
Sem a tua companhia.Tanto é que nem me lembro
Se fui alegre algum dia!
Saudade 167
455
Tanto ai, tanto suspiro,
Do fundo d'alma me vem!Não são ais nem são suspiros,
São ausências do meu bem.
456
A ausência tem uma filha,
Que se chama saudadeEu sustento mãi e filha.
Bem contra minha vontade.
457
O meu amor foi à ceifa
P'ra lá de Campo Maior,Mandei-lhe um lenço encarnadoPara ahmpar o suor.
458
Oh ! meu amor, se tu fores,
Leva-me na tua alminha;Eu sou como a primavera,
Onde quer vou metidinha.
459
Eu ausente e tu ausente.
Qual de nós mais penas tem?Se o que vae para voltar,
Se o que espera por quem vem?
460
Eu hei-de mandar fazer
Torres com altas varandas,Já que te não vejo amor.Vejo as terras por onde andas.
168 Cancioneiro Popular
461
Puz-me a chorar saudadesAo pé d'uma fonte fria;
Mais choravam os meus olhos
Que a triste fonte corria.
462
O meu amor foi-se, foi-se,
Foi-se para não voltar;
Deus lhe deparasse um rio,
Que o não pudesse passar.
463
Não chores amor, não chores
Eu inda aqui stou contigo,
Chorarás, quando me vires
No mar largo e em perigo.
464
Coitadinho de quem temSeu amor pra lá do rio,
Vai pra falar e não pode,
Faz do coração navio.
465
O cego, que nascer cego,
A sua vida é cantar;
Eu que te via e não vejo,
A minha vida é chorar.
466
Meu amor, que estás tão longe,
Chega-te cá para o perto;
Já me doi o coração
De te ver nesse deserto.
Saudade 169
467
Quem me dera estar tão alto,
Como a esteveira na serra,
Que avistara o meu amor.Onde quer que ele estivera.
XVI
DESGRAÇA DE AMOR
468
Os nossos dois corações,
Uni-los o Céo não quiz,
É forçoso separa-los,
Pouco tempo fui feliz.
469
Deixaste-me, amor, por pobre
Outra falta não na tinha
;
Como hade o Sol romperUma manhã de neblina?
470
Á entrada desta rua
Levantei meus olhos, vi
Meu amor nos braços doutro,
Não sei como não morri!
471
Eu me queixo, tu te queixas.
Qual de nós terá razão?
Tu te queixas dos meus erros,
Eu da tua ingratidão.
Desgraça de Amor 171
472
Oh! que ai tão dolorido
Que o meu bem agora deu!Meu coração estava mortoDeu um gemido, tremeu.
473
Já não tenho coração,
Já o dei ao meu amor,E ele foi da-lo a outro!
No seu logar fica a dor!
474
Amar a quem me não amaNão ha caso mais tirano:
Conhecer o próprio erro
E viver do mesmo engano.
475
Se eu te via bem casada,
Que gosto seria o meu!Vejo-te mal empregadaChoro o meu mal e o teu.
476
Oh! rio dos desenganos.Engrossa, faze-te mar;Que eu desejo em tuas águasO meu amor afogar.
477
Eu sofro, se te não vejo,
E se te vejo também;Primeiro sofro da ausência
E depois do teu desdém.
172 Cancioneiro Popular
478
Já os atalhos tem herva
Depois que cá não vieste;
Dize-me, amor da minh'alma,Que agravo de mim tiveste?
479
Nem contigo, nem sem ti
Tem remédio o pesar meu;Contigo porque me matas,
Sem ti porque morro eu.
480
Oh! ingrato quem poderáViver sem ter coração
!
Eu arrancaria o meuP'ra não sentir a paixão!
481
Aqui tens meu coração.
Todo ensanguentado;Ingrato, pelos teus erros,
É que ele anda maltratado.
482
Coitadinho do meu peito,
Que deita sangue pisado;
A culpa tive-a eu
Em te amar demasiado.
483
Eu sou sombra e tu és Sol,
Qual de nós será mais firme?
Eu, como sombra a buscar-te,
Tu, como o Sol a fugir-me?
Desgraça de Amor 173
484
Por te amar perdi a Deus,Por teu amor me perdi
;
Agora vejo-me só,
Sem Deus, sem amor, sem ti.
485
Oh! meu amor não maltrates
Uma mulher que foi tua;
Para castigo já basta;
Se é teu gosto continua.
486
Eu puz-me a chorar, chorei.
Este rio fiz correr.
Em me pôr a imaginar
Onde o meu brio foi ter.
487
Perdi-me, fiquei perdida.
Mal haja quem me perdeu!
Venceu-me, fiquei vencida
Dum amor, que era só meu.
488
Minha mãi chamou-me RosaPara eu ser mais desgraçada,
Que não ha rosa no Mundo,Que não seja desfolhada.
489
Sou casada, vivo triste,
Casara eu a meu gosto,
Mais vale pobre e alegre
Que rico e viver sem gosto.
174 Cancioneiro Popular
490
Qrido filho, porque choras?Por tua mãe ser errante?
Se teu pai te desprezar
O Deus do Céo é bastante.
491
Inda que o lume se apague,Na cinza fica o calor;
Inda que o amor se ausente,No coração fica a dor.
492
O Céo se cobriu de luto,
A mesma Terra tremeu;Os ares se escureceram,
A minha jóia morreu
!
493
Abre-te, porta, que eu morro;Não abras que eu já morri;
Jâ que és assim tão ingrata
Fica-te agora sem mim.
494
Sepultura, sepultura.
Quantos corpos tens em ti?
Já lá tens o meu amor.Quando me levas a mim?
495 ^
Minha amada já morreu.Eu já não a torno a ver;
A flor no campo renasce.
Ela não torna a nascer.
XVII
TRISTEZA
496
Nem só de alegre se canta,
Nem só de triste se chora,
De alegre tenho eu chorado,
E de triste canto agora.
497
Oh! penas não venhais tantas.
Vinde mais poucas e poucas;
Vinde mais bem repartidas,
Dai logar umas às outras.
498
Passarinhos meus amigos,
Eu também sou vosso irmão:
Vós tendes penas nas azas,
Eu tenho-as no coração.
499
Passarinhos, que cantais
Nas manhãsinhas serenas,
A todos aliviais.
Só a mim dobrais as penas.
176 Cancioneiro Popular
500
As nuvens no Céo se tingemNum arco de sete cores;
São sete as dores de Maria,
São setenta as minhas dores.
501
Oh ! fonte, que estás correndo.
Não tardarás a secar;
Também meus olhos são fontes,
Que não param de chorar.
502
As ondas do Mar coalhamEm perlas todos os dias,
E, se o meu pranto coalhasse,
Que lindo colar fazias.
503
Oh ! meu amor, pede a DeusTerra para um pomar,Os meus olhos são dois rios.
Dão água para o regar.
504
Abre-te penha constante.
Serás minha sepultura
E se os meus. ais não te abrandam,Fecha-te penha, que és dura.
505
Oliveiras, oliveiras.
Ao longe são olivais,
Trago o coração mais negro
Que a azeitona que vós dais.
Tristeza 177
506
A serpente larga a pele,
Também larga a lá o gado,
Só a mim nunca me largam
Os meus dias desgraçados.
507
Oh! olhos da minha cara
Não olheis para ninguém;Já que perdestes a graça,
Perdei o olhar também.
508
Hei-de embarcar os meus olhos
Para o Rio de Janeiro,
Olhos mal afortunados
Que váo pra reino estrangeiro.
509
A alegria dos meus olhos,
Nem eu sei quem ma levou,
Táo alegre que era dantes,
Tão triste que agora sou!
510
Penas, que eu tenho no peito.
Não as dou a conhecer;
Eu as fiz, eu as causei.
Eu as quero padecer.
511
O coração mais os olhos
São dois amantes leais.
Quando o coração tem penas.
Logo os olhos dão sinais.
12
178 Cancioneiro Popular
512
Oh! coração, coração,
Oh! coração, coitadinho!
Andas coberto de penas.
Pareces um passarinho.
513
Quando eu nasci, nasceram,
Nascemos quatro num dia:
Nasci eu, nasceu desgraça.
Tristeza, melancoHa.
514
Hei-de subir a um outeiro,
Onde a terra for mais dura.
Para enterrar os meus olhos.
Olhos de pouca ventura.
515
Ternas aves, que me escutam.
Chorosas me vem cantar;
Não ha mortais que não chorem.
Depois de me ver chorar.
51-6
O Sol para todos nasce.
Só para mim escurece;
Desgraçada criatura.
Que até o sol me aborrece.
517
É tal a minha desgraça
Que nem a esperança me resta
De ver um dia acabar
A minha sorte funesta,
Tristeza 179
518
Se queres saber a glória
Que alcança um pobre ganhão,
É a mão cheia de cabos
Do cabo do enxadão.
519
Ando desde pequeninoPelas casas a servir,
Não tenho nada de meuMais que a roupa de vestir.
520
Quem me dera dar um ai,
Que chegasse à minha terra,
Que dissesse a minha mãi
Que tal filho não tivera.
521
Órfã, sósinha no mundo,Vida assim será viver?
Para quem é desgraçada
Mais lhe valera morrer.
522
Sou feia, não tenho graça,
É disforme o corpo meu.Não tenho bens de fortuna
Mas que culpa tenho eu?!
523
Oh! quem me dera ter mâiEmbora fosse uma siíva,
Inda que ella me arranhasse.
Sempre eu era sua filha!
180 Cancioneiro Popular
524
Tudo o que é triste no Mundo,Tomara que fosse meu,Para ver se tudo junto
Era mais triste do que eu.
525
Das lágrimas faço contas,
Por onde rezo às escuras;
Oh! morte, que tanto tardas,
Oh! vida, quo tanto duras!
526
Alegria não a tenho.
Sou um poço de paixão;
Toda a tristeza tem fim.
Só a minha, essa, não.
527
Eu quero bem à desgraça
Que sempre me acompanhou,E tenho ódio à ventura,
Que no melhor me deixou.
528
Mas que me quer a desgraça.
Que atraz de mim corre tanto?!
Hei de parar e mostrar-lhe
Que de vê-la não me espanto.
529
Oh! triste sombra, acompanha-me,Desgraçados dai-me a mão;Venha tudo o que for triste
Afligir meu coração.
Tristeza 181
530
Meus males, minhas desditas
Remédio não podem ter;
Só deixarei de ser triste,
Quando acabar de viver.
531
Oh! alcachofra, tu ardes,
Ardes para florescer.
Eu sou diversa de ti
Ardo só para morrer.
532
É de noite, é de noite. .
.
Quer seja noite, quer não,Para mim sempre é de noite
Dentro do meu coração.
533
Desgraça e pouca venturaSó em mim caiu a sorte!
Haja quem me tire a vidaQue eu lhe perdoarei a morte.
534
Quem era, como eu era,
E se vê como eu me vejo!
Da vida não faço caso,
A morte já a desejo.
535
Se pensas que, por cantar,A vida alegre me corre,
Eu sou como o passarinho.Que até canta, quando morre.
XVIII
A MORTE E A ETERNIDADE DO AMOR
536
Já fui alegre, cantei,
Agora sou desta sorte :
Já fui retrato da vida
Agora o serei da morte.
537
Meu coração já não bate
Não sei o que quer dizer,
Devem ser sinais de morte:
Amor, vem-me ver morrer.
538
Devo a minha vida à morte,
A alma a Deus que me criou,
O meu corpo à terra forte:
Ai! Jesus que nada sou!
539
Debaixo do frio chão,
Onde o Sol não tem entrada,
Abre-se uma sepultura,
Mete-se uma desgraçada.
A Morte e a Eternidade do Aíwor 183
540
Oh ! morte, traidora morte,
Contra ti tenho mil queixas
;
Quem has-de levar, não levas.
Quem has-de deixar, não deixas.
541
Com o bálsamo cheiroso
Hei-de embalsamar meu bem
;
Não quero que a terra comaTão lindos sinais que tem.
542
Oh ! adro, terra de egreja,
Onde se enterram anjinhos.
Oh ! terra, que estás comendoCorpos tão delicadinhos.
543
Quando eu morrer enterrai-me
Ao pé dum vale sombrio.
Onde não chova, nem vente
Não dê sol, nem faça frio.
544
O dinheiro e mais dinheiro
Faz a paz e mais a guerra
;
Belos condes e marquezes,Em morrendo, tudo é terra.
545
Não ha nada como a mortePr'ácabar a presunção,Com quatro varas de chita
E sete palmos de chão.
184 Cancioneiro Popular
546
Abre-se uma sepultura
Na terra mais recalcada,
Enterra-se a criatura,
Fica a terra como estava.
547
Oh ! morte, para que levas
Desejosos de viver?
Oh ! morte, leva-me a mimQue bem desejo morrer.
548
Não te faças mais do que eu
Que não és menos nem mais
;
Debaixo da terra fria
Todos nós somos eguaes.
549
Nós cuidamos que este mundoQue nos dura para sempre,
É uma luz que se acende
Que se apaga de repente.
550
Se Deus me agora levava.
Depois da palavra dada.
Nem a terra me comiaQue o amor cá me ficava.
551
Quando eu era pequeninaQue minha mãi me embalava.
Já uma voz me dizia
Que eu para ti me criava.
A Morte e a Eternidade do Amor 185
552
Antes da noite ser noite,
Antes do dia ser dia,
Já meu coração te amava,Minli'alma por ti morreria.
553
Eu não amo como os mais,
Que eu no amar sou diferente;
Todos amam por emquanto,Eu amo eternamente.
554
Ferros d'El-rei são grilhõis,
Inda o amor é mais forte;
Para os ferros inda ha lima,
Para o amor nem a morte.
555
Quanto mais estou contigo,
Menos posso estar sem ti.
Que a paixão, que nasce d'alma,
Tem principio e não tem fim.
556
Hei de amar-te até à morte,
Até depois de morrer.
Até lá, na outra vida.
Te hei-de amar, podendo ser.
557
Amar-te na sepultura,
Oh ! meu amor, quem poderá
!
Seria a última coisa,
Que por teu amor fizera.
186 Cancioneiro Popular
558
Hei-de deixar que me enterrem
Aonde tu fores à missa,
Que inda depois de enterrado
Quero estar à tua vista.
559
Puz um pé na sepultura,
Uma voz me respondeu
;
Tira o pé que estás pisando
Um amor, que já foi teu.
560
Quem disser que a vida acaba,
Digo-lhe eu que nunca amou:Quem morre e deixa saudadesNunca a vida abandonou.
561
Chamaste-me tua vida
E eu tua alma quero ser,
A vida acaba co'a morte,
A alma não pode morrer!
562
Pelo amor de Deus te peço:
Move de vagar teus passos
;
Debaixo desses teus pés
Anda meu corpo em pedaços.
563
Já morri, já me enterrei
E agora já estou aqui:
Nem a terra me comia,
Sem me despedir de ti!
ERRATAS PRINCIPAIS: -
a pag. 58, linha 8 (533) em vez de (523)
a pag. 137, quadra 292,
Vamos ambos pró ceií.
em vez de
Voemos ambos pró ceu.
a pag. 142, quadra 320,
Com pontinhos de suão
:
em vez de
Com pontinhas de suão
;
a pag. 145, quadra 335,
Que fala meu coração?!
em vez de
Que fará meu corav;áo ? !
índice
Estudo Critico
I—O Fim desta Obra 8
II—O Poema do Povo . . . . ^ 21
III— Conclusão 65
Antologia
I—A Natureza e a Terra Natal 77
II— O Elogio do Trabalho e o Valor Heróico ... 83
III—Ameaça e crime de Morte 87
IV—Máximas e Pensamentos 89
V— Ironias e Gracejos 95
VI—Amor filial 98
VII— Religiosidade Popular 100
VIII—A Criatura Amada 112
IX— Confissão d'Amôr 117
X— Desejo e Posse 121
XI— Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor .... 128
XII—Amor 134
XIII— Fidelidade e Constância 148
XIV—A Felicidade do Lar e a Ternura Maternal . . 154
XV— Saudade 157
XVI— Desgraça de amor 170
XVII— Tristeza 175
XVIII—A Morte e a Eternidade do Amor 182
BIBLIOTECA
RENASCENÇA PORTUGUESA
A Águia (2/ série) — Revista mensal — 10 centavos.
A Vida Portuguesa— Boletim— l.** volume de 162 páginas, 40 centavos.
Regresso ao Paraíso— Teixeira de Pascoaes~\ yol., 50 centavos.
A Evocação da Viási— Augusto Casimiro— \ vol., 40 centavos.
Esta Historia é para os kn]Os-- Jaime Cortesão— ^ vol., 10 centavos.
O Espírito Lusitano
—
Teixeira de Pascoaes— 1 vol., 10 centavos.
A Sinfonia da l^iráo.—Jaime Cortesão— \ vol., 10 centavos.
O Criacionismo— Leonardo Coimbra— 1 vol., 80 centavos.
Romarias— /4. Correia d'Oliveira—\ vol., 10 centavos.
A Educação dos povos peninsulares— Ribera y Rovira— 1 vol., 10 centavos.
A Primeira ^2in— Augusto Casimiro— 1 vol., 10 centavos.
Cinixdi- Mário Beirão— \ vol., 10 centavos.
O Doido e a Morte — Teixeira de Pascoaes— \ vol., 20 centavos.
. . . Daquem e dalém Morte— (Contos com ilustrações de Cervantes de Haro e
Cristiano de Carvalho)— Jaime Cortesão— \ vol., 60 centavos.
O Último Lusíada— Mário Beirão— l vol., 50 centavos.
O Génio português na sua expressão poética, filosófica e religiosa — Teixeira de
Pascoaes— 1 vol., 20 centavos.
Elegias
—
Teixeira de Pascoaes— 1 vol., 30 centavos.
Camilo Inédito — Prefácio e notações de Vila-Moura—l vol., 50 centavos.
Só — António Nobre {3.^ edição, esgotada).
A Morie— Leonardo Coimbra—] vol., 40 centavos.
A Teoria da lAutaç^o —Armando Cortesão—] vol., 70 centavos.
Doentes da Beleza — Vila-Moura—l vol. de 160 páginas, 50 centavos.
Glória Humilde — Tíz/m^ Cortesão— ^ vol. de 192 páginas, 50 centavos.
Verbo Escuro— r^/.v^/ra: de Pascoaes— l vol., 50 centavos.
Á Catalunha— ^«^«5/0 Casimiro— l vol., 20 centavos.
Miss DoWy — Costa Macedo— ] vol,, 10 centavos.
O Problema da Cultura— ^/z^dmo Sérgio — l vol., 20 centavos.
A Era Lusíada— Teixeira de Pascoaes— 1 vol., 20 centavos.
Cancioneiro Popular
—
Jaime Cortesão— 1 vol. 40 centavos.
O Génio PeuhisiúdT - Ribera y Rovira (No prelo).
A Saudade Portuguesa — Cíi/'o////a Micaclis de Vasconcelos (No prelo).
Humor e VúosoWa— Vila-Moura (No prelo).
Nova Teoria do Sacrifício— José Teixeira Rego (No prelo).
^oh(òmio<à— Visconde de Vila-Moura—i^o prelo).
Crónica de D. Duarte, de Rui de Phm—Alfredo Coellio de Magalhães —{^o prelo).
ACABOU DE SE IMPRIMIRNA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA
>
PRAÇA DA REPUBLICA, 160, 161, 162. PORTO.AOS 6 DE JUNHO DE 1914,
TÍRANDO-SE DEZ EXEMPLARESEM PAPEL DE LINHO
NUMERADOS E RUBRICADOS PELO AUTOR.
SOB A DIRECÇÃODE
]RIME CORTESnO e ALFREDOCOELHO DE MRQRLHHES
COM A COLABORAÇÃODE
CD C3 CD CD C3 CD CD CDTeófilo Braga
D. Carolina Micaelis de VasconcelosCD CD CD CD CD CD CD CD
CD CD CD CD
CD CD CD
Ricardo JorgeCD CD Leite de Vasconcelos c^ cd
]osé Pereira de Sampaio (Bruno)a CD Joaquim de Vasconcelos ^ cd
CD CD Teir^eira de Pascoaes a cd
fintónio 5érgio
Plfonso Lopes Vieira
Virgílio Correia cd cd a cd
José Teijceíra Rego a cd cd
Francisco Torrinha o a cd
CrZD t=D C=D CD etC.| etC. CD C=D C=D C=»
A SEGUIR
CROífICâOEO. DUARTE dei DE P!lCOM ESTUDO CRÍTICO, NOTAS E GLOSSÁRIO
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fliíredo Coelho de Haíalliães
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