Caderno de Estudos Introducao as Sonoridades Do Cinema
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UNIVERSIDADE FUMEC-FCHS
PROPIC – 2012/2013
Curso: Publicidade e Propaganda
CADERNO DE ESTUDOS
Introdução às sonoridades do cinema:
história, conceitos, paradigmas e experimentações
Coordenador: Prof. Rodrigo Fonseca e Rodrigues
Aluno bolsista: Bernardo Sze
Belo Horizonte - 2013
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Sumário
Introdução.....................................................................................................................03
I – Os sons do cinema: breve sobrevoo histórico........................................................05
1 – Os primórdios da tecnologia do cinematógrafo e o kinetófono................................07
1.1 - A conquista da sincronicidade audiovisual............................................................11
1.2 – A Golden Age hollywoodiana e o advento da televisão.......................................21
1.3 - As inovações tecnológicas: o sistema óptico-sonoro, a fita magnética e o sistema
Dolby Stereo....................................................................................................................22
1.4 - O som no cinema sob a égide da informática audiovisual.....................................24
II – Som, ruído, música e silêncios no cinema: aproximações conceituais..............26
2. - Sonoridades diegéticas, meta-diegéticas e extra-diegéticas....................................28
2.1 - Paradigmas e reinvenções na edição sonora do cinema, segundo Walter Murch...30
2.2 - Sons e ruídos como elementos realistas e expressivos...........................................35
2.3 - A música e o cinema...............................................................................................41
2.3.1 - As ligações iniciais entre a música e o cinema...................................................54
2.3.2 - A concepção musical cinematográfica.................................................................59
2.4 – As sonoridades reinventaram o silêncio no cinema?..............................................65
2.5 - As aventuras sonoras de cineastas experimentalistas..............................................68
2.5.1 - As conexões cinematográficas entre a visualidade e a escuta, segundo Robert
Bresson............................................................................................................................76
Epílogo............................................................................................................................78
Referências.....................................................................................................................80
Anexos.............................................................................................................................88
3
Introdução
As matrizes curriculares de cursos que, além da própria graduação em Cinema, abarcam
disciplinas teóricas ligadas às artes do audiovisual e do cinema, nem sempre almejam
contemplar com suficiência, nos seus planos de conteúdo, uma abordagem mais detida
sobre a criação das sonoridades e os diferentes regimes da escuta na história do fazer
cinematográfico. Nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo, Design, Belas
Artes, entre outros, a disciplina que aborda conceitos de cinema e vídeo é usualmente
ministrada em um período de tempo insuficiente para percorrer o desenvolvimento de
uma prática cultural e artística complexa, há mais de um século. Pode-se afirmar sem
temeridade que o cinema se tornou um dos setores mais abrangentes da cultura no
século XX e que persiste neste século, afetando e sendo afetado por diversas expressões
audiovisuais. Ele aglutina muitos saberes, tanto na gramática de sua realização quanto
em seus modos de compreensão conceitual. O assunto é muito vasto e não há uma
especialização é possível em toda a gama de conhecimentos que compõe a arte do
cinema: historiografia, conceitos de imagem (percepção, semiótica, memória visual,
iconografia), filosofia da arte, linguagem, fotografia, artes cênicas, teoria e composição
musical, design sonoro, regimes de escuta, tecnologias do audiovisual, além de
abordagens em comunicação midiática, indústria cultural, marketing, jornalismo
cultural etc. Em nosso caso específico - a trilha sonora dos filmes - que engloba a
concepção musical, os diálogos e as falas, os sons e ruídos de todas as naturezas, as
técnicas de captação e de edição sonoras e as maneiras de consubstanciação audiovisual
no cinema, será o objeto deste Caderno de Estudos. A nossa proposta, de um modo
didático, tentará tornar o estudo da trilha sonora uma das chaves para se compreender
um pouco melhor, no âmbito específico da formação do profissional em Publicidade e
Propaganda, os princípios criativos, o pensamento teórico e a experiência estética do
cinema. Iremos problematizar paradigmas e experimentações da trilha sonora e da sua
escuta na história do cinema, mencionando técnicas e invenções artísticas implicadas
em situações exemplares de sonorização fílmica. Apoiado em um breve escopo
historiográfico e em certos parâmetros conceituais, o texto procura demonstrar as
possibilidades de reinvenção dos papéis da trilha sonora em produções emblemáticas do
cinema. É por este prisma que nos dedicamos a entender os modos pelos quais diretores,
roteiristas, montadores e fotógrafos precisam trabalhar estreitamente com músicos,
4
sonoplastas, designers, editores, engenheiros e técnicos de som, no intuito de
explorarem novas maneiras pelas quais um filme pode afetar a sensibilidade e a
imaginação do espectador.
Tentaremos compreender, na Parte I, de que modo ocorreu a assimilação, tanto pelos
profissionais quanto pelo espectador, da música, do som e do ruído no processo de
sedimentação de paradigmas formais para a trilha e a edição sonoras nos filmes, bem
como de codificação de pressupostos técnicos para engenheiros de som, editores e
designers sonoros (no Brasil, sonoplastas) no decorrer da história do cinema. O papel
das tecnologias sonoras dentro da cultura cinematográfica será considerado no trabalho
de compreensão das formas de articulação do universo da cultura da escuta com o das
imagens. Na Parte II, iremos abordar conceitualmente, a partir de exemplos de
procedimentos no trabalho da trilha sonora encontrados em filmes paradigmáticos, as
relações entre som, música, silêncio e imagens nos filmes. Tendo em mente o cinema
como uma arte sonora, em seus aspectos técnicos, perceptivos e estéticos, serão
examinadas as modalidades criativas de integração entre sonoridades, narração e
imagem na profícua história do cinema. Não será factível esta abordagem sem examinar
e, mesmo que de modo breve e descritivo, a contribuição específica do som e da música
para a construção do imaginário cultural da modernidade e contemporaneidade,
repertório sonoro-imagético que abarca o cinematógrafo, o macrocinema, as vanguardas
modernistas, a televisão, a videoarte, entre outras novas manifestações do
genericamente chamado “audiovisual”.
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Parte I
A trilha sonora do cinema: um breve sobrevoo histórico
Pode parecer estranha a afirmação de que não há escuta uma natural, tal como não há
também uma visão que seja estritamente natural. Na história do som, do ouvido
humano, da faculdade de ouvir e das práticas de escuta remetem a contextos culturais
heterogêneos, mas sob a égide de certas forças sociais dominantes. Estas forças podem
ser apontadas, nestes últimos séculos, como o capitalismo, a ciência moderna, a
tecnologia, que constituem condições de possibilidades para a emergência de regimes de
escuta. E as técnicas de ouvir estão relacionadas a uma acomodação do ato de escuta, de
suas relações com outras práticas cultivadas e a uma intervenção tecnológica, fundada
numa razão científica dos séculos XVIII e XIX. Pode-se ilustrar esta ideia com a frase
de Sá e Costa: “A pré-história dos meios de comunicação de massa e da mediação
musical demonstra como os meios de reprodução sonora que hoje são pensados como
díspares, telefone, rádio, toca-discos, remetem, na sua origem, a um conjunto de
problemas comuns.” (SÁ; COSTA, 2012, p.15)
Quaisquer questões acerca da integração entre ficção, música, som e linguagem devem
se anteceder, obviamente, a muito antes do advento do cinema. Recorde-se do papel do
coro no teatro grego, da música nas festividades pagãs, nos dramas litúrgicos medievais,
no melodrama no Renascimento, nas peças de teatro musical, óperas, ballets, comédias
musicais e teatros de revista, vaudevilles, music hall. Em todos os eventos do gênero,
concorda-se a respeito de que sons inseridos às imagens fornecem uma experiência mais
“completa”, mais holística do que apenas duas dimensões (luz e sombras). Doane
(2012) nos diz que o cinema apresenta um espetáculo composto de elementos
discrepantes – imagens, vozes, efeitos sonoros, música, literatura, os quais a mise en
scène organiza e endereça ao corpo do espectador, receptáculo sensorial dos vários
stimuli. Música, narrativa e imagens podem, assim pensadas, ser separadas como
entidades autônomas, porém, juntas criam maiores intensidades e nuances para a
experiência do que a mera soma entre si.
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O cinema, vislumbrado historicamente, tornou-se um “monumento” cuja gramática
programou nossa experiência cultural e motivou diversas invenções do audiovisual, há
mais de um século. Através da tecnologia da modernidade e de um código narrativo
culturalmente sedimentado, ele trouxe novos modos de percepção e compreensão da
realidade. Os hábitos ligados aos filmes afetaram, de algum modo, a nossa experiência
com a arte e nos acostumaram, como um real processo de aculturação, a diferentes
ritmos sensoriais, mnemônicos, imaginativos, corporais e sociais.1 Como Jean Jacques
Carrière (1995) afirma, o cinema foi uma arte que fez uso de tudo o que veio antes dele,
mas se formou, antes de tudo, a partir de si mesmo. O cinema inventou a si mesmo e
imediatamente se copiou, se reinventou e logo forçou caminho no mundo das ideias, da
imaginação, da memória e dos sonhos. Num curto período de alguns anos,
empiricamente, em cima de fracassos e de vitórias elaborou-se a mais surpreendente das
gramáticas a partir da linguagem de imagens, olhares e sons. Como não há nenhuma
gramática clara ou permanente, esta linguagem se expandiu constantemente, se
modificou, se adaptou à inconstância dos gostos, permitindo ver aquilo que nunca havia
sido visto. Através da repetição de formas, do contato cotidiano com todos os tipos de
plateias, esta linguagem tomou forma e se expandiu, de tal modo que nem nos atinamos
mais que a capacidade de assimilá-la já faz parte do nosso sistema de percepção.
Antes de adentrarmos nas questões específicas do som nos filmes, vale dizer que o
cinema sempre se interessou pelo invisível. São os ritmos que nos afetam, o que se
move em nosso corpo, as nossas sensações, tudo o que está em jogo não apenas no
cinema, mas em qualquer expressão da arte. Germaine Dulac nos fala que o filme
integral com o qual todos os diretores sonham é uma “sinfonia visual”, feita de imagens
ritmadas, que somente podem ser coordenadas e convertidas para a tela pelo trabalho do
artista.
A trilha sonora cinematográfica se estabeleceu por meio de incontáveis agenciamentos
de sonoridades: efeitos sonoros, ruídos, sons ambientes, a concepção musical, os
1 A valorização dos efeitos tecnológicos na modernidade transtornou o nosso regime de visão, modificando todo modo de percepção do espaço e do tempo: as fantasmagorias de Robertson, o diorama de Daguerre (1822), a primeira exposição de fotografia, em Paris (1959), a primeira projeção de cinema (1895), a primeira película sonora (1928), o Technicolor (1937), a televisão e o Eastmantcolor (filme negativo em cor) em 1951. Nos anos 70, populariza-se a TV em cores (1968). A videosfera se iniciou com esta invenção. Da fotografia (celuloide) ao cinema (película química), da televisão (tubo catódico) ao vídeo (fita magnética) e ao computador (algoritmos numéricos) transcorreu-se um século e meio.
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diálogos, o canto e a voz (estes últimos que serão reservados para o próximo Caderno
de Estudos), que envolvem técnicas de captação do som e de sua edição (pós-produção),
acolhidos sob o termo soundtrack (no Brasil, trilha sonora; em Portugal e Espanha,
banda sonora, na Itália, colonna sonora e na França, bande sonore). A trilha sonora se
cria em mútua simbiose com o roteiro, a decupagem, a encenação, a imagem capturada,
os planos e a montagem.
Em sua história, o cinema tornou-se uma arte que incorporou diversos saberes: a
narrativização com seus elementos textuais (história, narração, roteiro, enredo,
diálogos); os elementos visuais (ponto de vista, enquadramentos, campo e fora-de-
campo, planos, sequências, montagens); e as sonoridades, em sua natureza diversificada
(música, ruído, efeitos sonoros, atos de fala, silêncios). A importância da trilha sonora
se estabeleceu como uma arte na mobilização da escuta face ao fluxo plástico de uma
ideia narrada. E como uma arte coadjuvante do cinema, ela se estabeleceu,
historicamente, por meio dos diversos agenciamentos técnicos e estéticos entre música,
efeitos sonoros, ruídos, sons ambientes e voz, em mútua simbiose com a narrativa e a
imagem. No que diz respeito à percepção do tempo fílmico, nosso hábito como
espectadores nos permite restabelecer uma ordem cronológica desejada pelo diretor, que
nos ajuda com reintroduções da trilha sonora ao longo da narrativa.
Para uma trilha sonora se tornar factível é preciso, primeiramente, uma simbiose entre a
sensibilidade do diretor, do músico e do sound designer num trabalho fílmico. A música
e a sonoplastia cooperam intimamente entre si em prol da força enunciativa, plástica e
cênica de um filme. Elaborar a trilha musical e a ambientação sonora de um filme é
fruto de uma realização coletiva e envolve muitas negociações durante todo o seu
processo de criação. É um trabalho que precisa ser planejado desde o roteiro, projetado
na pré-produção, ser executado, gravado ou sintetizado, ter a sua conexão audiovisual
delineada na montagem, definida na edição de som e finalizada na mixagem e
masterização (pós-produção). É importante frisar que, no processo geral de produção do
filme, todas as suas etapas são operações intimamente interdependentes.
1 – Os primórdios da tecnologia do cinematógrafo e do kinetófono
8
“Cinematógrafo” é uma designação que abarca um conjunto de aparelhos ligados à
captação de recriação de imagens em movimento, a partir de fotogramas. Surge no
contexto histórico da segunda metade do século XIX. Neste período conhecido como o
início da modernidade, experimenta-se um surto dinâmico de inovações. A chamada
revolução tecno-científica (ou Segunda Revolução Industrial) descobre novas
modalidades de energia e vincula-se aos grandes complexos industriais e ao capital
financeiro. Inaugura-se uma era de máquinas, com a eletricidade, o automatismo, a
aceleração na produção e nos transportes. Inventam-se o motor à explosão, o telégrafo,
o telefone, o fonógrafo, o cinematógrafo, o cabo submarino. A ciência mergulha no
âmago da matéria e nos confins do universo. Descobre-se o elétron. A psicanálise
explora as dimensões oníricas e do inconsciente. Encontra-se no gene o núcleo
elementar da vida. Aparecem a mecânica quântica, a física atômica, as geometrias n-
dimensionais e a noção de quarta dimensão, com amplas repercussões culturais,
mudanças de mentalidade e dos ritmos de percepção da realidade. Surgem movimentos
modernistas e novas correntes da filosofia.
O cinematógrafo era uma novidade que, primeiramente, surgiu como uma atração
espetacular da imagem em movimento. Desde o seu início, foi considerado antes uma
arte do movimento, mais do que da imagem. Basta lembrar o significado do termo kino,
que deu origem ao seu nome. A ideia mestra da era moderna, o movimento foi o
primeiro laço, a primeira ponte entre o som e o cinema. Os primeiros filmes eram como
cartões postais animados: vistas do mundo, filmes de trucagem, para mágicas, ou filmes
científicos sobre o movimento do homem e dos animais. Alguns anos depois, passou a
ser denominado como “cinema” e, progressivamente, tornou-se uma verdadeira
máquina de contar histórias.2 A partir de 1903, os filmes começam, todavia, a enfrentar
o desafio de se tornarem ficcionais, narrativos, passando a ocorrer, entre tendências
2 O termo “cinema” não deve ser confundido com “cinematógrafo”, seu antecessor. A passagem da atração visual cinematográfica para o cinema se deu com a conquista de uma linguagem ficcional, estabelecida em termos de narratividade e seus respectivos métodos de representação, tais como: consistência mimética, verossimilhança, a linearidade causal e a constituição de um espaço-tempo diegético, além de paradigmas como tomadas, enquadramentos, planos, continuidade da montagem, efeitos especiais etc. O cineasta Robert Bresson (1901-1999) rejeitava, em suas anotações, a palavra “cinema” porque esta trazia de volta uma conotação de “teatro filmado”, preferindo ele utilizar o termo “cinematógrafo”, ao qual definia como “uma escrita com imagens em movimento e sons”. Para Bresson, não há casamento do teatro com o cinematógrafo sem o extermínio dos dois. A utilização dos meios do teatro leva fatalmente ao pitoresco do olhar e do escutar. (BRESSON, 2008, p. 76)
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múltiplas e conflitantes, uma tipificação sistemática da maneira adequada para se
construírem enredos e formas de filmá-los. As técnicas de câmera e a encenação
conquistaram maior ênfase dramática. Neste processo, o público foi se educando, se
familiarizando com estruturas mais complexas, que exigem disposições diferentes da
memória, da atenção e das expectativas diante da tela.3
O que predomina no cinema mundial é, como bem se sabe, a ficção construída pela
narração que, sob durações convencionadas (curta, média e longa metragens), conta
uma história, situando-a num certo universo de memórias, um suporte imaginário,
cultural, linguístico – chamada de “diegese” – estruturada pelos recursos de roteiro
(screenplay), como o drama, o enredo, o argumento e a intriga.4 A arte da narrativa
fílmica passou a consistir, a partir de 1906, em se apresentar uma história em certa
ordem e com certo ritmo, compreendendo imagens, palavras, menções escritas, ruídos e
música, mas ainda sem sincronismo audiovisual tecnicamente executado.5 E, desde que
houve essa passagem gradual do cinematógrafo para um cinema ficcional, a composição
musical e a sonoplastia passaram a integrar-se intimamente à concepção do filme.
Desde cedo que os vendedores de filmes também entregavam, juntamente com a
película, um guia que permitia que o dono da sala de exibição saber quais eram os
acessórios necessários para uma sonorização eficaz, além de fornecer indicações sobre
os comentários e diálogos. Além do mais, nos primeiros anos de cinema não se
possuíam recursos de amplificação suficientes para preencher o som de uma sala de
espetáculos, tampouco alto-falantes capazes de suportar a amplificação sem gerar
distorções.
3Para o cinema narrativo clássico, a realidade deve se expressar sozinha na tela e o espectador tem uma ilusão, não a de estar em contato com uma narração, mas de ver uma realidade diante da qual permanece como um voyeur escondido na sala escura, modelando as sensações e os pensamentos do outro sem ter de agir de verdade. (grifo nosso) 4 Cf. em Aumont et al: A narração é um ato narrativo produtor que engloba o conjunto da situação na qual ela toma lugar e sintetiza um modo complexo de enunciação. A ordem narratívica, por isto, não se deixa decifrar apenas com o próprio desfile do filme, pois também é feita de anúncios, lembranças, correspondências, deslocamentos e saltos temporais. É o que se denomina “diegese”: o ambiente autônomo da ficção, o mundo verossímil de motivações no qual se inscreve a história contada. O universo diegético é tudo o que a história evoca ou provoca para o espectador, a série das ações, o seu contexto, seja geográfico, histórico ou social. A diegese é, portanto, mais ampla que a história. (AUMONT, 1995, p.115) 5 O longa metragem aparece só depois de 1910.
10
Curiosamente, a proposta de união audiovisual na era da cinematografia não se deu, em
seus primeiros passos, como uma tentativa de sonorizar a imagem em movimento, mas
foi justamente o contrário. Em 1857, Léon Scott de Martinville, tipógrafo francês que se
dedicava ao registro das palavras apresentava o Phonoautographe, aparelho que captava
os sons por uma concha acústica, fazia-os vibrar numa membrana ligada a um estilete,
criando marcas em um cilindro de vidro escurecido por fuligem, com manivela. Alguns
anos antes da primeira projeção cinematográfica (1895), Thomas Edison havia
patenteado, em 1877, o fonógrafo.6 Ele não suspeitava, naquele momento, que este
invento teria uma importância na conquista de uma autonomia do seu registro para as
mensagens de natureza sonora. Edison o encarava o fonógrafo como algo incompleto,
necessitando de um complemento visual da informação auricular. Logo pensou em
maneiras de registrar fotograficamente imagens sincronizadas ao som gravado no
cilindro do seu aparelho. Eadweard Muybridge, inventor do “fusil fotográfico” chegou a
discutir com Thomas Edson acerca da possibilidade de se usar o processo de gravação
sonora (o fonógrafo) para acompanhar o seu protótipo de projetor, chamado
zoopraxiscópio. Em 1892, Edison patenteava o kinetófono (ou quinetofone) que era um
fonógrafo acoplado a um kinetoscópio (ou kinetógrafo), já criado em 1891, que poderia
gerar imagens para acompanhar e complementar os registros sonoros. Este dispositivo
também foi chamado de cinetofone ou fonocinetoscópio. Surgia, desta forma, uma
espécie de fonógrafo óptico. O kinetoscópio de Edison era, por assim dizer, um cinema
em escala individual: foi criado para mirar as imagens através de um visor e ouvir os
sons através de cones. Em 1895, Laurie Dickson tenta uma experiência de captação de
imagem com o cinetógrafo, ligado a uma captação do som no fonógrafo. Ele interpreta
no violino um ritornelo do compositor francês Jean-Robert Planquette. Este ensaio
marca o primeiro filme sonoro da história.7 Dickson toca em frente a um funil que serve
para captar o som, registrado em disco de cera. O filme passa depois no cinetoscópio,
que contém dos lados um fonógrafo elétrico que começa a funcionar quando se
desenrola a fita da imagem. As tentativas infrutíferas de perfeito sincronismo entre som
e imagem em movimento levaram Edison e Dickson a perceberem que a alternativa
mais viável era registrá-los em dispositivos separados e, a partir daí, tentar resolver este
problema da sincronização entre os dois.
6 Em 1877, Charles Cros criava o paleófono. 7 Ironicamente, o cinematógrafo nasceu sonoro e perdeu o som com a generalização das salas de exibição.
11
Em 1889 Emile Reynaud desenvolveu, com o seu Théatre Optique, com um cinema de
animação com “tiras”, dotado de um engenhoso sistema de sincronização com efeitos
sonoros de diversos tipos. Entre 1902 e 1910 Edison, Pathé, Zecca, Henry Joly e Léon
Gaumont tentaram diferentes combinações entre fonógrafo e projetor de filmes, mas
nenhum logrou sucesso para exibições públicas (STEPHENSON, 1989, p. 174) Para
incluir a música às exibições, tentou-se inicialmente agregar um gramofone por trás da
tela, prática que logo foi abandonada por ter um alcance de volume sonoro muito baixo.
As tentativas de outros cientistas começaram a aparecer para resolver as questões do
audiovisual: em 1903, Eugene Lauste inventou um método de fotografar as ondas
sonoras e de restituir o som pela projeção do filme sobre uma célula de selênio. Léon
Gaumont esboçou o seu cronofone. Lee De Forest optou por pesquisar uma leitura
óptica do som e também desenvolveu técnicas de amplificação sonora. Nas buscas de
sincronizar filme e disco, se experimentaram vários dispositivos, tais como o
camerafone, o cinefone, o fonoscópio, o picturefone e o vivafone. Tecnicamente, porém,
não conseguiam harmonizar os dois medium, além do mais, nem o público parecia ainda
aceitar a existência do som e da voz no cinema de forma tão marcada. Houve
frustrações e muitos prejuízos para as produtoras e financiadores, durante as tentativas
desses projetos.
A sincronização ainda se perdia muito facilmente, os arcos voltaicos produzidos na
iluminação produziam uma incômoda vibração que o fonógrafo registrava, o volume do
som era baixo e os ruídos do aparelho projetor se sobrepunham às falas e músicas.
Como sincronizar tantos aparelhos desprovidos de um padrão fixo de rotação? Quando
as câmeras eram movidas à manivela, a cadência, na hora de captar as imagens, era dada
pelos cameramen e, posteriormente, os projecionistas, no momento da exibição, jamais
conseguiam reproduzir as mesmas velocidades. E mesmo com a chegada das câmeras
elétricas, não havia ainda uma velocidade efetivamente padronizada. Entre 1906 e 1924,
Lee De Forest irá transformar os inventos de vários cientistas, entre eles Lauste, em um
dispositivo audiovisual completo, com amplificação e sincronização. Batizado como
Phonofilme, o sistema de som óptico de Lee De Forest, que permitia incorporar a faixa
sonora na película, deu alento às tentativas de sincronizar imagem e som, começando a
levantar a necessidade de se criar um rigor no inter-relacionamento entre “trilha de
som” e “trilha de imagem” em uma totalidade audiovisual.
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1.1 – A conquista da sincronicidade audiovisual
A invenção do cinema com som gravado, amplificado e sincronizado gerou o que
Michel Chion nomeia como “síncrono-cinematógrafo audiovisual” (2010). O fenômeno
do som gravado permitiu que esta arte cinematográfica (que fixava o movimento) se
convertesse em arte cronográfica (que fixa o tempo). O cinema sonoro passa a montar,
segundo Chion, não apenas movimentos e ritmos, mas valores temporais absolutos.
(CHION, 2010, p. 66) O desejo de sonorizar o cinema com música, voz e ruídos de
todas as naturezas procurava, desde os seus primeiros anos, conjugar as noções de
continuidade espacial e temporal a serem interiorizadas pelos espectadores, de modo a
acrescentar maior ilusão e emoção às projeções. Para uma perspectiva atual, a impressão
que se tem é a de que o cinema só começou, de fato, com a sua sonorização, tão
habituadas que estão as audiências com as narrativas com diálogos e trilha sonora.
Não se pode desprezar outro impulso decisivo para a pesquisa e métodos de
sincronização de imagem e som e para a rápida passagem de realização de filmes
sonoros e falados: a concorrência do rádio, que teve um papel importante
desempenhado pelo seu desenvolvimento como promotor de utilização de sons nos
filmes. A tecnologia desenvolvida para o crescimento do rádio encontrou aplicação
paralela na solução de alguns problemas do cinema sonoro. Afinal, foram as indústrias
do setor telefônico e radiofônico a elaborar os sistemas de reprodução e ampliação do
som que tornaram possível a evolução do cinema sonoro. O meio radiofônico
familiariza o ouvinte com a experiência de escutar a domicílio, por um alto-falante,
músicas, os dramas radiofônicos, radionovelas pontuadas por uma música dramática
amiúde escrita ou arranjada exclusivamente para ela, remetem à tradição do melodrama
e propõem uma fórmula distinta à do cinema mudo: não é mais um contínuo musical,
mas uma alternância entre palavra e música escutadas pelos alto-falantes.
A produtividade da narrativa foi se tornando a meta industrial do cinema e começava
uma corrida em busca do modelo ideal de sonorização. Em 1924, os irmãos Warner
entraram no ramo das exibições cinematográficas e compraram a Vitagraph. Em
13
parceria com a Western Electric, empresa que estava desenvolvendo sistemas de
sincronização entre som e imagem, e em colaboração com a Bell Telephone
Laboratories, investiram nas pesquisas de sincronização entre o som e a imagem. Em
1926, se constituiu a Vitaphone. A meta era estabelecer uma velocidade padrão: 24
fotogramas por segundo e 33 1/3 rotações para o disco de 40/6 cm. Em 1926 patenteou-
se o Sound-on-Disc da Vitaphone. Em pouco tempo a Warner Bros apresentava o
Sound-on-Film. Equipava-se o aparelho de projeção e o fonógrafo com motores
sincronizados que impulsionavam a máquina na mesma velocidade. Estes mecanismos
eram similares: dois motores rodavam comandados pela mesma engrenagem elétrica
que garantia o sincronismo. Uma espécie de volante regulador tentava prevenir todo o
sistema de alterações na velocidade de projeção. Como as películas tinham de 10
minutos (para garantir o sincronismo), as cabines dos cinemas foram equipadas com
dois projetores, para evitar interrupções. A primeira projeção do sistema Sound-on-disc
da Vitaphone aconteceu em 1925 e consistia em cinco peças de jazz band. A sessão
inaugural da Movietone, da Fox, em 1927, incluía artistas de vaudeville tocando e
cantando. Em fevereiro deste mesmo ano a Vitaphone exibiu em sua melhor sala de NY
uma sessão de gala com o filme Don Juan, mas a novidade estava nas curtas sequências
musicais que antecediam o filme: concertos com vozes e efeitos sonoros de espadas e
sinos, perfeitamente sincronizados, com movimentos dos lábios e dos instrumentos. A
sua aceitação pelo público permitiu antecipar o sucesso da nova era do “fonógrafo
visual”. 8 Na projeção de Don Juan (1925) os alto-falantes foram colocados no fosso da
orquestra e aos lados da tela, mas a voz soava igual em qualquer plano. Para Chion
(2010) trata-se de um processo de “imantação espacial”, fenômeno mental que faz com
que localizemos a fonte do som no ponto aparente de sua procedência. O sistema de
filmagens com várias câmeras simultâneas adotado pelo diretor permitia variar os
ângulos das tomadas sem obrigar a uma complexa prática de montagem de som, na
época bastante difícil. Ouvir a orquestra em alto volume foi, no entanto, uma
experiência nova.
8 A indústria do cinema, na época representada pelas chamadas “Big Five” (MGM, Paramount, Universal, First National e Producers Distributing Corporation) haviam firmado um acordo em 1927 onde afirmavam não se comprometer com nenhum tipo de sistema de som. Mas todas mudaram de opinião tão logo o sistema se mostrou adequado ao padrão de cinema narrativo clássico.
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Como marco divisório na história do cinema, estreou em 6 de outubro de 1927 o filme
The jazz Singer (O cantor de Jazz), de Alan Corland, estrelado pelo cantor de vaudeville
Al Jolson. A Warner havia comprado os direitos desta peça de Sam Raphelson. É
interessante assinalar que só o protagonista alcançou uma representação perfeitamente
sincronizada entre os movimentos da boca e a música em que ele dublava a si mesmo.
Al Jonson interpretou, entre o canto e a gestualidade, diante de um microfone de
estúdio, para além das exigências de qualquer narrativa de ficção, Dirty hands, dirty
faces. O sucesso foi, no entanto, absoluto entre público e mídia. O sincronismo
efetivamente funcionara. 9 O público, a partir de então, não queria mais saber de filmes
mudos e a sonorização foi a solução para a crise no cinema que vinha o assombrando
desde 1920. 10 Passou-se de ora em diante a anexar a trilha pós-gravada aos filmes
mudos.
A transformação de cinema mudo em sonoro se dá mais ou menos rapidamente,
segundo os países, de acordo com seus equipamentos, sua situação geográfica, política,
econômica etc. A sonorização dos filmes provocou uma grande mudança de gerações
entre os profissionais do cinema, atraindo para a sua produção jovens atores, diretores,
técnicos e especialistas nos novos saberes que a realização cinematográfica agora
demandava. Com a difusão do cinema sonoro, músicos de orquestra são despedidos em
massa e fabricantes de instrumentos também se ressentem da nova tecnologia.
Movimentos e manifestações hostilizam as gravações, chamando-as de “música em
conserva”.
Depois de numerosas avarias nas projeções e que perturbavam as sessões, logo se
concluiu que o mais funcional método de sincronização seria o registro do som na
própria película. A Fox Film Corporation, enquanto isso, investia no Movieton; e um
consórcio europeu pesquisava um sistema chamado Tri-Ergon. O Movietone que
permite fotografar o som numa película de cinema e juntá-la à fita ao longo dos
fotogramas do filme. Para o som, qualquer variação de velocidade traduzia uma
indesejável variação de afinação. Em 1929, a RCA lançou o Photophone, sistema
9 Os filmes de gangsters foram exemplos de gêneros que se desenvolveram a partir da sonorização do cinema. Estes precisaram do som para emplacar, não só pela fala, que trazia o ritmo do linguajar das ruas, mas pelos efeitos, tais como rajadas de metralhadoras, pneus cantando no asfalto, motores dos carros em fuga etc. 10 Na França, os filmes mudos passaram a ser sonorizados a partir de 1930.
15
chamado de “densidade fixa”: o gravador é equipado com um galvanômetro com
espelho, que oscila em função das variações da intensidade da corrente vibratória
emitida pelo microfone. O espelho é iluminado por uma luz forte, que é reenviada na
direção de uma objetiva que registra no filme de 35mm a amplitude da iluminação
recebida. Este processo tem a vantagem de não se alterar em relação à velocidade.
Nasce assim a pista óptica. O som e os fotogramas figuram agora no mesmo suporte. 11
Ainda não havia tecnologia para desenvolver um sistema portátil de captação de som e
microfones enormes eram escondidos nos cenários. Eram enormes as limitações dos
microfones a carbono e condensador usados, pois não direcionais, eram muito sensíveis
ao vento e a outros ruídos ambientes. O peso e o alto consumo de energia dos aparelhos
de gravação sonora ótica, até os anos cinquenta, impediram captar o som em ambientes
externos, a menos que houvesse um caminha especialmente equipado. Os magnetofones
(gravadores de fita magnética) portáteis viabilizariam as tomadas sonoras externas, mas
estes só surgiriam nos anos cinquenta. Na impossibilidade de rodar a cena
externamente, por conta da ineficiência dos microfones, determinados procedimentos de
estúdio foram se aprimorando para facilitar a recriação de um espaço novo e sob
controle. As técnicas de projeção de fundos pré-filmados (backprojections) são um
exemplo de como esse modelo hollywoodiano de reconstrução da realidade baseou-se
em princípios surgidos com práticas sonoras. Essa mesma técnica de projeção seria uma
consequência da prática anterior de filmar determinada cena com um acompanhamento
musical em playback, dada a dificuldade de registrar devidamente o som de uma
execução musical no momento da filmagem.
O som obrigou a invenção das mesas de montagem motorizadas. O isolamento acústico
e o desenvolvimento de novos materiais de absorção sonora foram tão importantes
quanto as tecnologias de gravação e reprodução. Novos materiais passam a revestir
prédios com uma dupla função: evitar o ruído externo e diminuir o excesso de
reverberação. A reverberação torna-se um elemento incômodo na medida em que o
cinema passa a depender de uma melhor compreensão do que era falado nos filmes. O
Radio City Music Hall, inaugurado em 1932, em Nova Iorque, foi construído segundo
um ovo modelo eletroacústico, priorizando o som amplificado pelas novas tecnologias,
11 O Vitaphone caiu em desuso com o sistema óptico de registro sonoro (vide ilustrações nos Anexos).
16
em detrimento de uma arquitetura que obedecesse a leis de dispersão acústica de sons
naturais. A ideia era casar o som com a imagem de modo a fazer a tela parecer viva aos
olhos da plateia. A dimensão espacial do som monofônico era capaz de simular uma
profundidade. A aparente origem do som podia ser movida para frente e para trás, mas a
dimensão lateral permanecia ausente devido ao fato de que não há expansões laterais da
reverberação ou do ruído ambiental. Tanto no mono como no estéreo, contudo, a
localização dos alto-falantes é planejada para assegurar que a plateia ouça um som o
qual é precariamente coincidente com a imagem. O espaço em questão não é o da sala
de projeção, mas o “espaço ficcional da diegese”, tudo o que está na tela, no extracampo
e no imaginário do espectador.
Antes das gravações de áudio em separado e da possibilidade técnica de se fazer o
dubbing, ou seja, a sobreposição de vários sons numa só faixa e o balanceamento da
música e dos sons com os diálogos, que só foram conquistados em 1931, qualquer
edição posterior cortaria a música já gravada. A técnica de sonorização, por seu turno,
avançou em duas direções: a invenção da fita magnética e portabilidade, possibilitando
gravar o som diretamente; e o desenvolvimento das técnicas de pós-sincronização e de
mixagem, possibilidade de substituir o som gravado diretamente e de acrescentar a esse
som outras fontes sonoras. O cinema sonorizado passou efetivamente a predominar só a
partir de 1934, com a conquista da sincronização e das tecnologias de pós-edição. Foi
Gianni Bettini quem difundiu, neste caso, o potencial musical do fonógrafo para fins
audiovisuais. Ele aperfeiçoou o sistema de microfonia, dotando-o de um micro-
diafragma capaz de registrar frequências sonoras mais sutis. Para La Petite Lili, de
Cavalcanti, o compositor Darius Milhaud concebeu uma orquestração especialmente
adaptada às exigências do microfone. Com estas novas técnicas de captação, registro,
edição, mixagem e sincronização audiovisual, a inclusão da música ficou mais
exequível e menos onerosa. Os anos 30 e 40 foram tempos em que se passou a testar o
que funcionava ou não nos filmes sonoros. Uma relação em que o som deve estabelecer
uma base sólida de compreensão do que acontece na ação para que a imagem possa
alternar-se em cortes, elipses, transições entre planos etc.
O cinema sonoro inventou sons in (cuja fonte participa da cena) e off (extracampo), que
transformaram o cinema. O som off, fora de campo, que fornece novas possibilidades na
maneira de construir um plano e de conduzir uma narrativa. Permite, através de uma
17
focalização do ouvido do público, destacar uma ação secundária ou amplificar uma ação
principal. Ficou evidente que, no cinema falado, o espaço em off teve muito mais vida
por causa do som. O potencial evocativo do som apareceu ligado sobretudo ao potencial
do espaço em off. O homem que ri, por exemplo, foi realizado inicialmente sem som
sincronizado, mas recebeu a sonorização posterior de Paul Leni, para ser, em seguida,
relançado. O filme assumiu uma lógica de unidade temporal pelo som contínuo que foi
criado, reintegrando o processo da montagem. A utilização do som em off irá refletir na
concepção da divisão de planos e em sequências montadas, que abre caminho para o
cinema posterior.
Em 1930 o sonoro total no cinema se impôs. Os filmes mudos recentemente produzidos
são apressadamente municiados por trilhas sonoras, com sonorização e música. O filme
se tornou uma arte elaborada, trazendo uma multiplicidade de percepções que o domínio
da visão não alcançava. Diferentes tipos de sons, como música, ruídos, diálogos
passaram a coexistir com imagens capturadas. De fato, houve uma revolução a partir de
1926, mas seus resultados não foram na direção que se esperava. Juntamente com o
advento do cinema tecnicamente sonorizado criou-se uma polêmica a respeito do papel
da palavra, do ruído e da música na narrativa. Muitos historiadores afirmam que o som
eletromecânico poderia ter se juntado às imagens em movimento muito antes, mas por
fatores econômico-técnicos (altos custos e deficiências quanto ao tamanho dos
equipamentos) e ideológicos (a linguagem do cinema se desenvolvera sem contar com a
interferência do som e não precisava desta). Eisler e Adorno (1981) diziam, por exemplo,
que a música no filme foi usada na projeção de filmes mudos, primeiramente, para abafar o
ruído do projetor (esconder do espectador o estranho fato de que o prazer dele é acompanhado
por uma máquina). Para muitos estudiosos e artistas, o som foi recebido como
instrumento de degenerescência do cinema. O invento de De Forrest deveria ser usado,
segundo esses autores, somente no cinema documental, para a ciência ou o registro de
alguma atividade artística. Modernistas e vanguardas europeias se opuseram ao cinema
sonoro. Germaine Dulac via o cinema como uma arte necessariamente muda e Antoine
Artaud afirmava que o cinema sonoro adotava, contraditoriamente, convenções
antiquadas da narrativa. As emoções suscitadas pelo som, segundo o diretor René Clair,
não estariam à altura daquelas oferecidas pelas imagens, uma vez que os sons eram
meros artifícios divertidos que deturpavam um propósito original da arte
cinematográfica. Ainda para outros pensadores como Gilber Seldes, o cinema sonoro
18
representava uma regressão aos modelos teatrais, sendo o cinema uma arte
essencialmente de percepção visual. Rudolf Arnheim (1938) alegava que havia uma
total incompatibilidade entre os dois media e que, com o intuito de atrair a audiência,
forçavam-se ambos a lutarem entre si, em vez de captar a unidade de suas forças.12
A colocação hierárquica do visível acima do audível não é típica do cinema, mas
caracteriza uma ampla faixa da produção cultural. Para certos teóricos e diretores, o
cinema sonoro já seria desde sempre uma vocação, até então suspensa apenas por falta
de meios técnicos. O autor Bela Bálázs afirmou, nesta época, que tal união era apenas
um fenômeno passageiro e uma catástrofe sem precedentes na arte do cinema. Mas
depois ele assumiu que seria impossível e sem sentido um retorno ao cinema mudo.
Mais tarde ele passou a se interessar, como muitos outros autores, pelas possibilidades
dramáticas do som, pela importância acústica da natureza e da intimidade das vozes: o
cinema deveria dar expressão e recriar a “grande orquestra da vida” (BÁLÁZS, 1978, p.
163). Ele aludia acerca das possibilidades dramáticas do som - e do silêncio -, além do
que a intimidade do som que nos faria perceber diferentemente os sons do mundo. A
sua teoria da montagem sonora afirmava que o cinema sonoro havia afetado a
expressividade da interpretação cinematográfica. Autores que compartilhavam de suas
ideias diziam que, em vez de o som ser absorvido por uma indústria repleta de
representações teatrais adaptadas para o cinema, esse deveria ser empregado para
colaborar com a desenvolvida linguagem cinematográfica da montagem. A falta de
qualquer som na montagem da banda sonora passa a ser considerada um tabu.
O som tornou-se um instrumento de ampliação e potencialização das imagens, como
uma espécie de recriação do cinema. Para Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, cineastas
russos que redigiram, em 1928, a conhecida Declaração sobre o futuro do cinema
sonoro, em Contraponto orquestral, o processo criativo do cinema ganhou, com a trilha
sonora, um novo caráter, pois os sons surgiram como agentes de metamorfose
12 Arlindo Machado (1995), como outros estudiosos, critica toda definição essencialmente visual do cinema, aquela sob a qual um filme sem som continua sendo um filme e de que o estatuto do cinema não se altera em decorrência da existência ou não de uma trilha sonora. O cinema, desde quando se tornou prevalentemente narrativo e que seu formato de longa-metragem se impôs como um modelo dominante, o som teve de passar, inevitavelmente, por esse crivo. Por essa perspectiva majoritária, os sons no cinema só poderiam ser considerados “cinematográficos” quando referidos a uma fonte de emanação de imagens, algo como um suplemento que não altera a natureza do cinema.
19
audiovisual, condicionando o próprio procedimento da montagem, preceito fundamental
em toda realização fílmica:
“...o som, tratado como novo elemento da montagem, introduzirá novos meios de enorme poder para a expressão e a solução das mais complicadas tarefas ante as impossibilidades de superá-las através do método cinematográfico que só trabalha com imagens visuais”. (EISENSTEIN; PUDOVKIN; ALEXANDROV apud SANTANA; SANTANA, 2012, p. 288)
Os autores adeptos da sonorização fílmica negam, obviamente, que a imagem no cinema
falado seja independente do som, além do que, em relação à imagem, não se pode
concluir automaticamente que o som seja seu subordinado. Mesmo no cinema de
narrativa, o som se estende geralmente do princípio ao fim do filme e nunca está
ausente: é no mínimo, som ambiental. Não se trata de defender a autonomia de uma
determinada matéria sensorial, defendem os autores, mas sim a de desenvolver uma
reflexão sobre a heterogeneidade do cinema. Isto porque o som carrega consigo o
potencial de por à mostra a heterogeneidade material do médium e as tentativas de
conter este risco afloraram numa suposta “ideologia da unidade orgânica”.
Rick Altman, também contrário aos argumentos de realizadores de filmes silenciosos
para preservarem a pureza de sua mídia poética, aponta quatro falácias em relação ao
som do filme: 1) histórica, situando a imagem como anterior ao som na experiência do
cinema; 2) ontológica, que determina a natureza do cinema como puramente imagética;
3) reprodutiva, que aponta o som como mera reprodução da realidade; 4) nominalista,
que vê na heterogeneidade do material sonoro um empecilho para o ordenamento da
linguagem cinematográfica. (ALTMAN, 1980, p. 15)
A realização do cinema sonoro enfrentou, no seu início, muitas dificuldades técnicas
iniciais. Por estranho que possa parecer, para alguns estudiosos, houve certo retrocesso
na qualidade dos filmes. As transformações impostas ao material sonoro em suas várias
etapas, desde a captação do acontecimento original até sua reprodução em uma sala de
cinema. Toda uma nova tecnologia no setor começava, entretanto, a se desenvolver,
com câmeras encerradas em cabines com vidros, para que o ruído dos motores não
vazasse. Os estúdios, de ambientes ruidosos, tornaram-se espaços de profundo silêncio.
A gravação direta, até então como o único recurso, fazia com que a inserção de música
20
ao vivo nos filmes se tornasse muito caro. Os músicos eram posicionados para tocarem
nas filmagens e qualquer mínimo erro arruinaria a cena. 13
A gramática do cinema, daí por diante se popularizou por dois caminhos distintos, que
no futuro iriam se mesclar, com a era dos musicais: o da narrativa ficcional,
dramatúrgica, com a presença constante dos diálogos; e o começo de um novo gênero, o
jazz short, que deu ao cinema sonoro daqueles anos o nome de “fonógrafo visual”. Os
auditórios de exibição de cinema passaram a simular a tradicional sala de concertos
musicais. Ainda não havia, como hoje, uma multiplicidade de câmeras, gruas, carrinhos,
movimento permanente, bem como não se apresentavam recursos mise en scène. A
tomada era dada em um só plano fixo. Este momento assistiu ao apogeu das big bands,
gênero jazzístico dançante conhecido como swing, com a multiplicação de salões de
baile, que se convertem nos cenários dos jazz shorts. Dizia-se que o jazz era como
“música para os olhos”. Os curtas da Vitaphone duravam em média dez minutos,
contemplando de 3 a 4 peças, com pouca ou nenhuma narração. Em 1937, com o jazz
short Hi de Ho, de Roy Mack, o cinema acrescenta aos seus recursos retóricos, a
sincronização audiovisual, os cortes sincopados (plasmados às síncopes do jazz), a
fotografia produtora de clima.14 É considerada como obra-prima do gênero um jazz
short de1944, Jammin’ the blues, de Gjon Mili, com fotografia de Robert Burks. A este
respeito, voltaremos a falar na página 80.
Outro exemplo interessante foi o primeiro desenho animado sonoro, Steamboat Willie,
de 1928, que revelou a força da música como elemento da estrutura e do ritmo visual da
narrativa. Doze anos depois, em 1940, produz-se a animação de maior duração,
Fantasia, de James Algar e Samuel Armstrong, da Disney, à moda de um poema
sinfônico, mais um filme-ballet que um musical, a partir de trechos das obras de Paul
Dukas, Bach, Stravinsky, Beethoven e Tchaikovsky.15 Nesta produção, o som foi
gravado em oito pistas ópticas, posteriormente reduzida para 3 pistas, em uma película
de 35mm, em Technicolor. O sistema foi batizado como fantasound. Em 1950, surgem
13 No seu Método de gravação com multimicrofones para GPO, Ken Cameron define didaticamente uma extensa gama de sonoridades que se vincula a um trecho de um filme hipotético. 14 A sofisticação chegava à própria apresentação de abertura dos curtas, com pesquisas sobre animação geométrica de Vicking Eggeling e Hans Richter. 15 “Poema sinfônico” é uma ópera sem palavras.
21
dispositivos como o Cinemascope e o Cinerama, com reprodução magnética em 4
canais.
Com o cinema sonoro, surge uma descontinuidade perceptiva para o espectador, pela
coexistência da escuta musical, da escuta causal ou anedótica e da escuta linguística. O
movimento sonoro vive do movimento da própria imagem e se criam ritmos ópticos a
partir de ritmos sonoros. No campo estético, novos critérios tiveram então de ser criados
para se construírem pontes entre o que se via e o que se ouvia. Além do mais, o ruído
organizado pode se converter em música, a palavra coletiva converter-se em rumor de
fundo e o canto poderia atuar no lugar da palavra e da música.
1.2 - A Golden Age hollywoodiana e o advento da televisão
Na “era de ouro” hollywoodiana – a Golden Age – durou vinte anos, depois que o
cinema já estava tecnicamente afastado do primeiro cinema silencioso, mas começou a
declinar com o aparecimento da televisão. Produziam-se neste período, em média, 500
filmes por ano. O oligopólio era detido pelas megaempresas Warner Bros, MGM,
Paramount, RKO, 20TH Century Fox, Universal, Columbia e United Artists. A
prosperidade da indústria cinematográfica instaurou uma fórmula de organização
econômica: o studio system. Os estúdios passaram a fabricar tudo em suas dependências
e o cinema se tornou um trabalho de equipe. O Departamento de Música possuía o seu
plantel de músicos contratados: compositores, songwriters, orquestradores, pianistas de
ensaio, músicos de orquestra, regentes, coreógrafos, copistas, conferentes de provas,
editores (também chamados de music cutters), especialistas em gravação, todos sob a
supervisão do executivo musical. Compositores e músicos tiveram de se adaptar para
trabalhar sob este sistema, sujeitos aos constrangimentos da época, aos desejos
conservadores e à relutância dos executivos dos estúdios de cinema contra novas ideias
e experimentações.
O crivo pelo qual a fase da Era de Ouro hollywoodiana se declina, a partir de 1950, foi
o acesso dos espectadores norte-americanos à televisão. A televisão surgiu como um
gênero de “rádio ilustrado”, um rádio com imagens. Ela se desenvolveu a partir da
22
estrutura profissional e idiomática do rádio, mas quando surge, absorve para si a ideia
do fonógrafo visual. A transmissão ao vivo de espetáculos musicais foi o primeiro
gênero genuinamente televisivo e, logo depois, veio o jornalismo. Se há uma grande
marca distintiva entre o cinema e a televisão, ela está no papel diferenciado que o som
joga em cada meio.16
O fato de não ter recursos para gravação e edição num primeiro momento tornava
impossível a TV concorrer com o cinema no terreno da narrativa e da ficção. Nos
seriados que ela produz, só o faz com os meios oferecidos pelo cinema. Naquela
ocasião, a televisão era apenas um veículo do cinema. A televisão oferecia ao público,
entretanto, no conforto de suas casas, entretenimentos que desmotivavam a maioria do
público a saírem com tanta assiduidade para assistir aos filmes nas salas de exibição. Os
Estúdios resistiram o quanto puderam a esta novidade midiática que se apresentava
como a grande ameaça a um período de lucros exorbitantes gerados pelo hábito cultural
de se frequentar semanalmente o cinema. É óbvio que houve demissões nos estúdios e a
dinâmica da produção cinematográfica sofreu uma grande alteração. Os produtores de
cinema se tornaram independentes e todo o processo produtivo do filme foi
fragmentado e terceirizado.
1.3 - As inovações tecnológicas do som nos anos setenta: o sistema Dolby Stereo
Nos anos sessenta surgiu o som magnético para o cinema, incrementando a qualidade
sonora, uma vez que certas faixas de freqüência puderam ser realçadas e gerar uma nova
dinâmica sonora, com a possibilidade de se contrastarem altas intensidades e
amortecimentos de ruídos de fundo. Surgiu o termo High Fidelity, designando “alta
fidelidade” sonora, que é uma noção errônea, pois seria, de fato, uma alta definição do
som. Mas os espectadores muitas vezes não podiam apreciar os efeitos desta nova
sonorização, pois ainda não havia muitos cinemas especialmente adaptados para as
exigências tecnológicas do som magnético. As limitações acústica deste período, com as
monopistas criavam, por conseguinte, uma unidade de som para o filme.
16 O segundo estágio do cinema falado não teria nascido sem a televisão, mas foi preciso que o cinema lhe desse uma lição pedagógica.
23
Na década de setenta, surgiu o novo sistema Dolby, que realçava, dava densidade e
plenitude, inibia e aumentava o espectro das frequências sonoras reproduzidas. Ao
propiciar uma faixa dinâmica mais expandida e uma definição profunda de detalhes
sônicos, qualquer mínimo som musical, qualquer ruído minúsculo e sons da fala, como
sussurros e a própria respiração, poderiam ser redimensionados ou alterados. Utilizado
inicialmente como um modo de reduzir os ruídos causados pelas sucessivas etapas de
tratamento do som nos processos de gravação e finalização, o Dolby A foi usado em
Orange Clockwork (Laranja Mecânica), dirigido por Kublick, em 1970. Muitas
transformações ocorreram no som de cinema desde que o sistema Dolby se tornou o
padrão, usado agora para dar ao som uma nova presença. A precisão do Dolby apresenta
sons discretamente, acentuando o silêncio entre eles. Essa intimidade e a intensidade
emocional de silêncio apresentam um desafio para os cineastas acostumados a contar
com o diálogo contínuo ou com a música onipresente. Os baixos Com o Dolby, a
pulsação e os graves da música conseguiram uma presença até então desconhecida e
extrapolaram os limites da tela. E se, no som óptico e magnético o agudo era “cortado”
a 8.000 hertz, o som Dolby permitiu chegar a 12.000 hertz.17 Este sistema também
ampliou a coloração orquestral sem encobrir os diálogos ou ruídos, que adquirem uma
importância que jamais tiveram. 18
Os aparelhos de mixagem passam a permitir um grande controle sobre o estabelecimento de
relações entre diálogo, música, efeitos sonoros. Quando o Dolby foi lançado como parte da
promoção da ópera-rock Tommy (Ken Russell, UK, 1975), a sala de cinema deveria ser
tratada como um espaço acústico novo, que deveria ser preenchido e reforçado. Filmes
como o primeiro Star Wars (George Lucas, EUA, 1977), são exemplos dessa estética
de "plenitude" e "densidade sonora". No entanto, isto não foi inventado, em todos os
aspectos, pelo Dolby. Alguns filmes anteriores, como THX (George Lucas, EUA,
1971), devem muito ao editor de som Walter Murch. A Lucasfilm desenvolveu assim
um padrão de reprodução sonora criado por Tomlison Holman, em 1983, também
chamado de THX. A nova tecnologia multipistas também permitia o recurso da
17 Apenas como um parâmetro ilustrativo, é válido mencionar que a nota mais aguda de um piano soa a 4.000 Hertz. 18 A partir das novas tecnologias sonoras e de estudos da psicoacústica, deu-se uma conscientização de que o som é vibração sentida também na pele e nos ossos.
24
justaposição de sons sem uma fusão entre estes. Na série Star Wars, onde o mundo dos
efeitos sonoros (os bips por exemplo, do pequeno robô R2D2 ou o ruído singular dos
disparos das naves, o som de seus propulsores, das espadas-laser) criados por Ben Burtt,
são deliberada e radicalmente diferentes da música sinfônica de John Williams.
1.6 – O som no cinema sob a égide da informática audiovisual
É importante ressaltar que o nível geral de complexidade cresceu intensamente nas
últimas décadas. Desde o advento do sistema Dolby Stereo até a mixagem
computadorizada, nos anos 1980, além dos vários formatos digitais, nos anos 1990,
crescimento que se acelera continuamente.19 A partir dos anos oitenta, não apenas no
tratamento digitalizado da imagem, mas igualmente do som, as operações de captação,
registro, edição, mixagem e de design sonoro (construção e síntese de sonoridades
inauditas, a partir de sintetizadores FM e, nos anos noventa, com softwares pelos quais
se podem projetar todos os parâmetros do som e criar outros inéditos) se expandiram de
um modo vertiginoso na criação da trilha sonora para filmes.
No cinema digital, cuja imagem também alcançou simulações de objetos sem referência
na realidade visual, muitas vezes o som é empregado para dar verossimilhança a essas
imagens inexistentes no mundo natural, de modo a ancorar a memória do espectador
num universo de repertórios que o mantenha conectado à narrativa. Ou, pelo caminho
inverso, criaram-se sonoridades sem precedentes para causar estranhamento a imagens
convencionais. O refinamento de sonoridades chegou a ponto de nos afetar, com um
simples roçar de pele, o farfalhar de um tecido, o som do coração, uma bolha de ar que
se rompe na superfície da água (como em Minority Report, 2002, de Steve Spielberg). O
mais leve atrito, tudo se torna penetrante e distribuído pelo ambiente, de tal maneira que
aguça ainda mais a nossa sensibilidade auditiva perante o universo fílmico. A tendência
do tratamento sonoro do cinema nas últimas décadas parece ser a de buscar ao máximo
a separação entre os sons: sua distribuição em várias pistas, sua precisão, as diferenças
contrastantes e os hiatos de silêncio entre eles etc. Dos anos noventa em diante, com um
19 Apesar do nome “estéreo”, o Dolby Stereo era produzido em 4 canais: centro, direita e esquerda, atrás da tela, além do surround.
25
progressivo grau de realismo e, mais recentemente, com um nível espantoso de ultra-
realismo, com a motion capture e a captura de performance, tudo no audiovisual se
digitalizou. Surgiram, daí em diante, termos como “cinema híbrido” e “cinema
expandido”.
Murch nos diz que, há sessenta anos atrás, não seria incomum para um filme inteiro
necessitar apenas de quinze a vinte efeitos sonoros. Hoje, conclui o editor, esse número
poderia ser de centenas ou milhares de vezes maior. O nível geral de detalhe, definição
e “nível hormonal” de som e imagem cresceu exponencialmente, mas ao custo de uma
complexidade muito maior durante a preparação do filme. A consequência disso, para a
dimensão do som, é que durante a gravação final, há momentos em que o equilíbrio
entre diálogo, música e efeitos sonoros irá tornar-se um emaranhado tão complicado que
mesmo o mais experiente dos diretores, editores e mixadores pode ficar sobrecarregado
pelas escolhas que tenha que fazer.
26
Parte II
Sonoridades e ruídos, música e silêncios no cinema: conceitos, paradigmas e
experimentações
Existem três tipos essenciais de som cinematográfico: ruídos, identificáveis ou não;
música e diálogos. Tentaremos compreender de que modo ocorreu a assimilação da
música, do som, da voz, do ruído e dos efeitos sonoros no processo de codificação da
gramática cinematográfica. Nos tópicos seguintes serão apresentadas as ideias de
diretores, compositores e teóricos do cinema a respeito do papel da música, dos sons e
das vozes na arte cinematográfica, a fim de estabelecer uma trilha sonora organicamente
coerente para o filme. Na sequência de discussões sobre integração entre som e imagem
no audiovisual, abordar-se-ão a expressão do silêncio fílmico, as experimentações
sonoras do cinema, os musicais e as modalidades da inserção das canções nos filmes e
as diversas funções da música cinematográfica.
Antes iremos descrever algumas das potencialidades do cinema em matéria de som. A
natureza totalmente diferente do som em relação à imagem tem influência considerável
na composição, montagem, dramaturgia do cinema sonoro. A dominância da narrativa
ficcional na maioria dos filmes impôs, como já vimos, pontos gramaticais ao fazer
cinematográfico. Uma das estratégias mais contundentes a se afirmarem no cinema
talvez tenha sido a chamada “transparência mimética” conquistada especialmente pelos
recursos da montagem. E tal como ocorreu com a montagem de planos, a música
também deveria tornar-se “transparente”. Em outras palavras: no processo de
sedimentação do cinema narrativo clássico, a música e os sons passaram a atuar de um
modo pelo qual a audiência, em termos de uma consciência estrita de escuta, mal se
dava conta deles. E muitas vezes tudo é feito de modo que mal prestamos atenção ao
processo artificial pelo qual a trilha sonora atua “naturalmente” sobre a nossa
percepção. As sonoridades tornaram-se, portanto, um elemento insubstituível da
representação fílmica. Se aceitarmos que a natureza ficcional do cinema, cuja
diegetização limita o alcance e a autonomia do gesto sonoro, a trilha sonora procura se
adequar para ajudar a tornar a ficção mais expressiva. As sonoridades destinam-se, para
27
muitos autores, a facilitar o entendimento da narrativa e a criar certa atmosfera de
imersão do espectador. 20
Há, tecnicamente, dois tipos de matéria sonora: o som direto e o som reconstituído pela
mixagem. Compositores e editores de som passaram gradativamente a vislumbrar a
grande eficácia que a música e a sonoplastia poderiam ter para intensificarem a força da
imagem e da palavra. Estão, há muito, consolidados incontáveis paradigmas estéticos e
pressupostos técnicos para compositores e sound designers na produção
cinematográfica, mas a concepção da trilha sonora varia muito de acordo com o filme.
Os créditos que aparecem na abertura e, mais detalhadamente, ao final do filme,
demonstram também a subdivisão do trabalho que envolve toda a composição da trilha
sonora. A parte musical aparece geralmente com a designação da composição, da
direção, da supervisão e da edição musicais, de pesquisa de repertório, além de outras
informações, como: edição de efeitos, de ruídos de sala, de diálogos, gerência
operacional, engenheiro de som, assistente de estúdio, microfonista, som direto,
mixagem, técnicos de sonorização, designers de efeitos sonoros e consultores Dolby.
Como já se disse na Parte I, especificamente no tópico a respeito do cinema sonoro, as
possibilidades de inter-relacionamento estrutural entre os materiais sonoros e entre o
espaço sonoro e o espaço visual são evidentes. A presença sonora pode opor-se à
presença visual, no que concerne à oposição provocada pelo distanciamento do tema
visual e a proximidade do tema sonoro, podendo produzir um efeito surpreendente.
Outro aspecto do som e, de maneira particular, da música, é que ambos atuam sobre o
tempo da imagem, ou melhor, sobre o tempo pelo qual percebemos a imagem. Esta
temporização perceptiva se dá mediante uma cadeia sonora que injeta um tempo a uma
certa imagem que por si mesma não coincidiria forçosamente com o som. Os três
elementos da trilha sonora, que pertencem respectivamente ao campo da fala, do ruído e
da música podem inscrever esta imagem num desenvolvimento temporal, dar-lhe uma
20 O alto-falante era primeiramente posicionado atrás da tela. Apesar de o som parece ser emanado de um ponto focal, o som não está emoldurado da mesma maneira que a imagem. De certa maneira, o som envolve o espectador.
28
duração, um ritmo e também criar uma antecipação sobre a imagem. Esta antecipação se
incorpora a nossa percepção da imagem.
2 - Sonoridades diegéticas, meta-diegéticas e extra-diegéticas
É preciso, desde já, estabelecer algumas distinções entre a natureza do som e da música
diante da realidade da imagem cinematográfica, de acordo com a intenção do diretor. O
ponto de vista e o ponto de escuta são um exemplo disto: conseguimos imaginar o que
está fora do campo visual na tela a partir de indícios que o quadro nos dá, porém, entre
um som emitido dentro do campo e um som emitido fora do campo, o ouvido nem
sempre consegue estabelecer a diferença. Podemos, contudo, abstrair sons que vêm de
lugar nenhum (música que não pertence à história, ou voz off). Isto constrói em nós uma
recepção mais analítica da cena, mediada mais por um tipo de espião do que por uma
testemunha como espectadores. A faixa-som (outro termo para designar a trilha sonora)
é, por isso, muito útil para ajudar a imaginação do espectador a conceber o que espera
ver de fora para dentro do campo. O fora de campo é, para a expressão cinematográfica,
um espaço acolhedor para os sons nômades. 21
Tal como dizemos “ponto de vista” em relação ao posicionamento da câmera na
composição do plano cinematográfico, existe também o “ponto de escuta”, que designa
a relação entre a imagem, o som e o espectador. No estudo do cinema se fixaram quatro
modalidades básicas de sonoridades: diegética, extra-diegética e meta-diegética.22
Vamos às definições e exemplos respectivos de cada modalidade. A música ou sons
diegéticos são aqueles escutados por todos, tanto os personagens do filme quanto o
público. Podem ser distinguidos como onscreen, quando sua fonte é visualizada; e
21
Certos ruídos, quando sincronizáveis com a imagem, podem suscitar novas ligações entre as imagens e toda a trilha sonora do filme a qual, por esta razão, sai imperceptivelmente do espaço em off para entrar no espaço visual. O vínculo orgânico que se estabelece entre esses dois aspectos da trilha sonora – os ruídos funcionais e a música, quando o diretor e o editor de som se dão à experimentação. O agenciamento musical dos ruídos em off, em certos filmes autorais, fizeram dos sons onscreen (dentro de campo) sincronizados com a imagem mesclarem-se intimamente com elementos musicais em off, associando estes últimos aos ruídos através de uma semelhança mútua de timbres.
22 No que diz respeito à fonte do som, Michel Chion faz opor a “zona acusmática” (invisível) à “zona visualizada”: quando o plano a integra, torna-se visualizada, quando não a inclui, pode-se pensá-la como zona acusmática. (CHION, 1994, pp 71-72)
29
offscreen, quando não se pode ver de onde eles vêm. Pode-se exemplificar como
onscreen a música das cenas de um concerto, música tocada em um bar, no rádio em
ambientes domésticos, às vezes uma peça executada por um dos personagens ou, como
caso singular, músicas tocadas por dj’s de alguma rádio, que são escutadas por todos e
pela audiência. Há também os sons ambientes, que o espectador escuta com uma certa
vantagem sobre os personagens, como paisagem sonora urbana, os sons bucólicos de
uma região campestre, o rumor de um estádio de futebol etc. A música e os sons extra-
diegéticos são aqueles que só a audiência os escuta. Os exemplos são incontáveis, uma
vez que é o modo mais recorrente de uma trilha sonora: a composição musical, a voz em
off do narrador, os efeitos sonoros etc. 23
Pode-se definir de maneira mais nuançada as categorias de sons em um filme, de acordo
com os pontos da emissão e da audição: 1 – sons diegéticos: sons reais (percebidos
pelos personagens) e sons imaginários (sonhados ou imaginados pelos personagens:
também chamados de meta-diegéticos). Os sons reais podem ser divididos em objetivos
(quando se vê a sua fonte; e a câmera coincide com o ponto de vista) e subjetivos
(quando o espectador escuta o som como se fosse o personagem, por exemplo: quando
ouve a voz ao telefone ou o som de suas batidas cardíacas). Os sons imaginários são
alucinações, sonhos, sons lembrados ou vozes interiores. 2 – sons não-diegéticos:
quando a fonte sonora está fora da cena e nem pode ser presumida como fora de campo,
tampouco corresponde aos sons imaginados. Podem ser designados como tais a trilha
musical original, música pré-existente, música gestual e ambiência sonora.24 Há outras
aptidões muito conhecidas da música, como a ampliação do espaço concreto sugerido
pelos sons, dentro ou para fora do campo visual mostrado no filme.25
23 Cf. em Planificação e Montagem, de Luiz Nogueira: “a fonte do som é diegética quando é inerente à ação mostrada. O som diegético é constituído pelos ruídos ou barulhos inerentes à ação e pelos diálogos, podendo ser in (reconhecemos na imagem a fonte sonora do que ouvimos) ou off (não reconhecemos essa mesma fonte). Quanto ao som não-diegético, ele é constituído essencialmente pela voz-off, a música e outros efeitos sonoros”. (NOGUEIRA, 2010, p. 80) 24 Chion designa “música diegética” como aquela que pertence à ação; e “não-diegética” aquela que emana de uma fonte imaginária, não presente à ação. Para evitar divergências quanto ao termo diegese, ele prefere empregar os termos “música de tela” e “música de fundo”. (CHION, 2010, p. 193) 25 Um “enquadramento sonoro” se definirá, de acordo com Deleuze (1999), pela invenção de atos de fala, de música ou até mesmo de silêncio que devem extrair-se do contínuo audível dado pelos ruídos, sons, falas e músicas.
30
2.1 - Paradigmas e reinvenções na edição sonora do cinema, segundo Walter
Murch
É interessante abordar o papel do trabalho de integração sonora do editor a partir de
uma rápida análise do processo de elaboração do roteiro. A edição sonora implica um
trabalho de combinação dos três tipos de som (fala, sons/ruídos e música) entre si e com
a própria decupagem. 26 As fases de roteirização se dividem em: argumento, tratamento
(incipt), pré-roteiro e roteiro final. A escrita do roteiro observa tradicionalmente um
método de separação em duas colunas na transcrição: na coluna da esquerda são
anotações relacionadas à parte visual e, na direita, as relativas à trilha sonora (diálogos,
vozes, música etc.). Este método é o resultado típico da chamada “decupagem clássica”,
que tende a produzir, graças à integração da trilha sonora, uma impressão de unidade e
continuidade da cena, mesmo diante da extrema fragmentação construída por uma
sequência de planos com ângulos e composição variados. O trabalho de decupagem
depende, portanto, do efeito de unidade que advém do plano sonoro, que dá a impressão
de continuidade, fluidez e ligação entre as cenas decupadas pelo processo de
roteirização.
No que tange aos problemas encontrados pelo trabalho de edição sonora, esta exige, por
assim dizer, uma composição “musical” total de todos os elementos que integram a
trilha sonora, da mesma forma que a natureza da imagem projetada na tela exige uma
preocupação constante com a organização plástica, também totalizante. O editor deve
ter em conta a noção de que, entre o microfone e o ouvido, existe uma oposição
semelhante à não-seletividade da câmera em relação à seletividade natural do olho
humano. Isto significa que conseguimos facilmente abstrair os ruídos que atravessam
nossa audição e ainda assim ouvir outros. Na prática, um microfone precisa gravar cada
ruído separadamente para restituir toda a mistura de sons. No caso de uma cena em um
carro, por exemplo, onde coexistem os sons do motor, do meio externo, do vento, da
música no rádio e da conversa entre seus ocupantes, é preciso que se grave o som 26 Segundo o Dicionário teórico e crítico de cinema, de Jacques Aumont e Michel Marie, o termo “decupagem” começou a ser usado em cinema na década de 1910 com a padronização da realização dos filmes, e designa o "roteiro decupado" ou "roteiro técnico" como último estágio do planejamento do filme, em que todas as indicações técnicas (posição e movimento de câmera, a lente a ser utilizada, os personagens e as partes do cenário que estão em quadro, etc.) são colocadas no papel, para organizar e facilitar o trabalho da equipe.
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ambiente e as palavras separadamente, equilibrando o conjunto na mixagem. No
cinema, tomadas improvisadas podem ser inteiramente pós-sincronizadas em estúdio e
tomadas meticulosamente encenadas podem receber uma ambientação sonora gravada
ao vivo. E um dos princípios da gravação em estúdio é o silêncio ambiente, um vazio
que se povoa depois com sons, de forma a simplificar ao máximo a apreensão do espaço
em off. A distância aparente entre a fonte sonora e o microfone ou o alto-falante é
determinada pela associação de efeitos sonoros dos quais a ressonância ou o eco são os
mais importantes.
Walter Murch (1995) editor que revolucionou a estética sonora do cinema moderno,
afirma, acerca da premissa ficcional do cinema narrativo, que o público, diante de um
filme, está primariamente envolvido com a história e é a maior tarefa do editor de som,
antes de tudo, construir algo que sirva à narrativa. Nestas circunstâncias ficcionais, um
sound designer deve, a respeito da escolha de sons, sempre se perguntar: quais devem
predominar quando não podem ser todos incluídos simultaneamente? Quais devem
permanecer em segundo plano e quais devem ser eliminados? Para Murch, criador do
conceito de musical dust, procedimento que funde a música com o som global, criando
um escala de matizes, a serviço da ideia do diretor, diz que a trilha sonora de um filme
nos parecerá equilibrada e interessante se for feita com uma distribuição proporcionada
de elementos de um espectro sonoro. Para dar conta desta questão a respeito do
processo de edição sonora para filmes, Murch cunhou uma expressão conceitual que
designa a meta deste espectro: “clareza densidade – densidade clara”. O espectro
sonoro, para o editor de som. Oscila entre o parâmetro da “densidade” (camadas
sobrepostas de sons) ao parâmetro daquilo que pode ser ouvido discriminadamente, a
“clareza”.27
Murch começa por distinguir o som em duas naturezas: “som codificado” (a fala) e
“som incorporado” (a música). O “som codificado” atua simplesmente como um veículo
através do qual se produz um significado. A música é, no entanto, diferente: é o “som 27 Murch nos diz que, de sessenta anos para cá, o nível geral de detalhe, definição e “nível hormonal” de som e imagem cresceu exponencialmente no cinema, mas ao custo de uma complexidade muito maior durante a preparação do filme. A consequência disso, para a dimensão do som, é que durante a gravação final, há momentos em que o equilíbrio entre diálogo, música e efeitos sonoros irá tornar-se um emaranhado tão complicado que mesmo o mais experiente dos diretores, editores e mixadores pode ficar sobrecarregado pelas escolhas que tenha que fazer. A tendência do tratamento sonoro do cinema nas últimas décadas parece ter alcançado produzir uma separação nítida entre os sons, com a distribuição em várias pistas e equalizações, gerando “hiatos” muito sutis de silêncio entre as frequências. Isto permite a criação de texturas sonoras, sem, no entanto, confundir os sons em convibração.
32
incorporado”, ou seja, experienciado diretamente. Qualquer significado que se atribua a
uma música só ocorre se este for a posteriori incorporado pelo ouvinte ao próprio som.
É claro que há certos sentidos de linguagem tornados implícitos em determinadas
músicas. Na medida em que esse código implícito vai se transformando num elemento
importante da música, esta tende a se direcionar para o extremo (lingüístico) do espectro
sonoro da trilha. Estas distinções têm uma função básica de classificar conceitualmente
a edição de sons para filmes. A maioria dos efeitos sonoros se encontra, conforme
Murch, a meio caminho entre música e fala, como “centauros-sonoros”, metade língua,
metade música. Às vezes um efeito sonoro pode ser quase puramente musical, mas não
se denomina abertamente como música, porque não é melódico. De qualquer forma
pode nos afetar musicalmente. E outras vezes um efeito sonoro, diz Murch, pode
transmitir “pacotes de sentido” que são quase como palavras.
Para lidar com as diferenças de percepção do “som codificado” versus “som
incorporado” e para que a experiência da escuta se torne simultaneamente “densa” e
“clara”, Murch afirma que as camadas devem estar uniformemente distribuídas pelo
espectro conceitual da trilha sonora. Densidade e clareza simultâneas só podem ser
atingidas, conforme o autor, por certos subterfúgios de pós-produção. Na mixagem
final, a combinação de certos sons irá adquirir um caráter correspondentemente
diferente, dependendo de qual região do espectro eles pertencem. Alguns sons irão
sobrepor-se, transparente e efetivamente, enquanto outros tenderão a se interferir
destrutivamente e se “bloquear”, resultando numa mixagem embolada e confusa. Para
que as pessoas entendam cada palavra dita num filme, é melhor eliminar, por princípio,
a competição entre quaisquer outros sons que possam estar ocorrendo ao mesmo tempo.
É o que Murch chama, metaforicamente, de “sanduíches de som”: uma camada de
diálogo, duas camadas de tráfego, uma camada de buzinas de automóveis, de gaivotas,
de multidão, de passos, ondas quebrando na praia, apitos de nevoeiro, motores externos,
trovões distantes, fogos de artifício e assim por diante. Tudo soando ao mesmo tempo.
O problema é que mais cedo ou mais tarde (na maioria das vezes mais cedo) esse tipo
de colocação de camadas em excesso, acaba soando como a confusão de sons entre as
estações de rádio (“ruído branco”). O problema com o ruído branco é que, como luz
branca, não há muita informação para se extrair. Ou melhor, há tanta informação
embaralhada que é impossível para o cérebro separar tudo de novo. Você ainda ouve
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tudo, tecnicamente falando, mas é impossível escutar o que quer que seja, para apreciar
ou até mesmo distinguir cada elemento individualmente.
O editor de som deve também se perguntar: há limites para a quantidade de sons que
pode ser sobreposta e ainda assim eles reterem suas identidades originais? Murch
responde com outro interessante conceito definido por ele: a “sobreposição harmônica
não-musical”. Ele baseia-se na ideia de que a trilha sonora de um filme, assim como a
própria música, é dependente da mesma habilidade do compositor de sobrepor sons (ou
notas), criando novos “acordes”, sem transformá-los, contudo, em algo confuso. As
sonoridades de um filme, tais como ambiências e efeitos e que não são apenas musicais,
mesmo assim se prestariam, no entender de Murch, como um exemplo de “sobreposição
harmônica” similar ao que acontece na acústica musical. 28 Ao empregar esta metáfora
oportuna (“sobreposição harmônica”), Murch vai criando camadas de um mesmo som,
uma de cada vez, dando uma espécie de “panorama geológico da paisagem sonora” do
filme. Os detalhes podem sobrecarregar o ouvido, mas nem por isso nos dão uma
sensação de totalidade, ou o todo está completo, mas sem detalhes convincentes. Sob o
ponto de vista criativo, é preciso procurar, simultaneamente, a clareza, que vem de uma
discriminação dos elementos individuais (as notas), e a densidade, que vem de uma
sensação do todo (o acorde). Murch nomeou um método que desenvolveu como “lei dos
dois-e-meio”. Apoiado na dualidade direita-esquerda dos hemisférios do cérebro
humano, ele a desdobrou e passou a adotar cinco camadas ao invés das duas-e-meia
originais. Cinco camadas, para Murch, é também o máximo que pode ser tolerado pelo
público e, mesmo assim, desde que se mantenha um senso de clareza dos elementos
individuais que estão contribuindo para a mixagem. É preciso tentar captar a energia do
conjunto. Ele exemplifica: 1 - uma camada de diálogo; 2 - uma camada de música; 3 -
uma camada (lingüística) de efeitos (ex.: passos); 4 - uma camada (musical) de efeitos
(ex.: atmosferas climáticas); 5 - uma camada de “efeitos centauros” (híbridos, entre o
ruído, o som e música), equilibrados por igual. Cinco camadas são, portanto, um limiar
que não deve ser ultrapassado sem reflexão, da mesma maneira que não se deve 28 Toda nota que soa é uma sobreposição de uma série de convibrações chamadas de “harmônicos”. A frequência fundamental (a mais grave) da nota Lá, por exemplo, vibra a aproximadamente110 ciclos (hertzianos). Mas ela também vibra em múltiplos exatos daquela vibração fundamental: 220, 330, 440, 550, 660, 770, 880, etc. Essas co-vibrações, os “harmônicos”, modulam-se juntamente com a frequência fundamental. Então, quando a nota lá soa, o que se ouve é um acorde. A fundamental é, no entanto, quase duas vezes mais forte que todos os seus harmônicos soando juntos. A identidade – ou timbre – de uma voz ou de um instrumento é ligeiramente diferente em cada um deles. Esta diferença é o que nos permite distinguir os diferentes tipos de vozes e de instrumentos.
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ultrapassar certos limites de intensidade. A densidade conceitual é, por isto, algo que
deve obedecer às mesmas regras de intensidade dinâmica.
O exemplar Apocalipse Now (Francis Ford Coppola (EUA, 1979), filme no qual Murch
trabalhou como editor de som, é repleto de experimentações no âmbito da edição da
trilha sonora. Seguindo o seu método da “sobreposição harmônica”, todas as suas
camadas sonoras foram listadas em ordem de importância, mais ou menos da mesma
forma que, segundo ele, se arranjariam os grupos instrumentais numa orquestra. Murch
conta que, no primeiro ensaio da mixagem final, tudo pareceu desmoronar na grande
avalanche de ruído, fundindo-se numa algazarra tosca, quando todos os sons foram
tocados juntos. Noutra cena de um ataque de helicópteros a uma aldeia vietnamita,
havia mais de cento e setenta e cinco pistas sonoras separadas apenas para essa parte do
filme. Começou por uma procura do ponto de equilíbrio em que deveriam haver sons
interessantes o suficiente para adicionarem sentido e ajudar a história, mas não tantos a
ponto de eles não se prejudicarem mutuamente. Começava então a se perguntar: qual
será o som mais dominante da cena? Para enfatizar a ideia inerente ao roteiro, a primeira
coisa a se fazer foi a mixagem dos diálogos, que deveria ser isolada de quaisquer
elementos que pudessem competir com as falas. Os sons diegéticos, como os dos
helicópteros, disparos das metralhadoras etc. compuseram a segunda camada sonora.
Foi necessário “quebrar” o som em pedaços menores, em grupos mais fáceis de
manipular, chamados de “pré-mix” (no caso, foram seis camadas, de mais ou menos 30
canais cada). Murch comenta que primeiramente se monitoraram as duas pré-mixes, a
dos diálogos e a dos helicópteros. A obra de Richard Wagner, Cavalgada das
Valquírias, que soava dos amplificadores dos próprios helicópteros (com a intenção do
comandante em assustar os habitantes da aldeia), tornou-se então o terceiro som mais
dominante da cena. Todos os momentos desta seção tornaram-se, depois de muitas
experimentações, igualmente fluidos, como se fosse um truque de ilusionismo pelo qual
as camadas fossem desaparecendo e reaparecendo conforme o foco dramático do
momento. 29
29 A respeito do significado singular que o termo “sonoplastia” adquiriu para alguns diretores e editores de som no Brasil, estes defendem que a concepção e a execução de toda a trilha sonora não se dão apenas no nível da montagem, mas também no nível da filmagem, na medida em que as estruturas sonoras pré-concebidas podem determinar certos componentes visuais.
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Em The Conversation (1974), outro importante filme de Coppola, anterior a Apocalypse
Now, certas frases adquirem sentidos diversos conforme o contexto em que são
reescutadas. Murch consegue fazer com que a palavra se converta em suporte de
variações de natureza musical, adquirindo tanto um valor musical quanto um valor de
diálogo. Sob o pretexto da trama da narrativa, o ato de voltar a ouvir uma frase já
gravada debilita seu valor semântico e põe em relevo a curva da entonação, a palavra
por si mesma, seu ritmo.
2.2 - Sons e ruídos cinematográficos como elementos realistas ou expressivos
Um filme é, antes de tudo, um conjunto de ritmos. E o som, de sua parte, integra este
conjunto como um elemento dinamizador do ritmo visual, assumindo um papel de
condutor rítmico para a imagem em movimento. São, em grande medida, os ruídos que
fazem o ambiente propício à credibilidade de uma situação narrativa, ou seja, que
restituem a autenticidade de um mundo. O som tecnologicamente controlado na
produção do audiovisual permite então incrementar, no caso do cinema narrativo, a
impressão de autenticidade, o sentimento de credibilidade material e estética da sua
imagem. Podem-se distinguir os sons-palavra, sons-discurso/diálogo, sons texturais,
sons-ruído, entre outros. Uma ambientação sonora assegura uma continuidade no plano
da percepção e unidade orgânica do filme. Além do mais, sonoridade contribui para o
sentido da imagem e estimula a imaginação. O som celebra o gesto e se revela
delineador, não classificador, dos discursos imagéticos e textuais. Os sons-ruídos são
fundamentais para se criar a textura sonora adequada para uma determinada situação,
emoção ou universo. Os ruídos, por sua vez, constroem grande parte do naturalismo
fílmico. Podem apoiar significados de ordem simbólica, por meio de associações
regidas por hábitos culturais. É possível também usar os ruídos dramaticamente, para
criar clima, reforçar emoções e significações.
Obviamente, antes do cinema sonoro, ainda não havia meios para reproduzir
tecnologicamente os diálogos nem os ruídos do ambiente encenado. Os ruídos das cenas
eram reconstituídos a partir de cascas de coco (para os cascos dos cavalos), chapa
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metálica (para trovoadas), ventiladores com tira de cartolina (para os motores de
automóveis) etc. Depois do sucesso dos filmes falados, o ruído do mundo passou a
aparecer filtrado, domesticado, disciplinado, mais discreto e, por sua vez, a orquestra
assumia parte de sua função, com uma linguagem estilizada, por exemplo, sons
imitando ruídos. Durante os anos trinta, a maioria dos problemas ligados à sonorização
foi temporariamente solucionada, sacrificando, no entanto, o ruído, que era o elemento
sonoro mais difícil de gravar e reproduzir. Os sons síncronos, captados durante as
filmagens, raramente são de boa qualidade e, há muitas décadas, cada ruído é
usualmente esmiuçado e gravado nas melhores condições, substituídos por “sons
autônomos”. O som de uma arma de fogo, por exemplo, para soar com volume e tornar
verossímil o disparo, é necessário amplificá-lo ou substituí-lo por um som artificial,
mais plausível e convincente.
O ruído, mesmo quando tratado simbólica ou musicalmente, pode ser justificado de
modo realista quando a gente vê a sua fonte emissora. O oposto também pode exercer
grande força expressiva a um filme, quando pensamos em planos de imagem e planos
sonoros: a nossa sensação de que a legibilidade do som é tão variável quanto a da
imagem pode ser ilustrada, ao exemplo de um primeiríssimo plano sonoro de uma gota
de água caindo em uma pia, que pode ser, para o ouvido, tão dificilmente identificável
quanto, na tela, um primeiríssimo plano de articulação do polegar de uma mulher. Desta
indefinição muitos efeitos podem ser auferidos. Ou se, em certo plano, não vemos nada,
a não ser, por exemplo, uma mão que segura uma flor ou coisa do gênero e, de repente,
ouvimos sons diferentes neste mesmo plano da mão, pensamos, mesmo não vendo, que
a mão que segura a flor se encontra num lugar bastante diferente. Este tipo de mudança
oferece oportunidades para vários efeitos num filme. Da mesma maneira que o
movimento de profundidade é obtido pelo travelling de eixo da câmera, o som pode
também sofrer efeitos de distanciamentos e aproximações por meio do “travelling
sonoro”, no caso, obtido pelo movimento dos microfones.
Em O Testamento do Dr. Mabuse, de Fritz Lang (1933), um novo efeito pôde ser
extraído: a música, em muitos momentos, teve uma presença apenas sonora, mas que se
revelou insólito para afetar o ritmo das imagens. Lang emprega, em vários filmes,
“raccords de ruídos”. Tal como o raccord na imagem é empregado como um recurso
transicional da montagem de planos, com a intenção de ritmar o fluxo da ação, os ruídos
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podem ser passíveis de exercer um papel transicional entre os planos e, por conseguinte,
criar passagens e ritmos numa cena ou entre cenas. Numa transição de cenas, um tic tac
de uma máquina infernal se converte, graças à montagem, num ruído rítmico que
produz um homem que golpeia um ovo com sua colher.
O cineasta Eric Rohmer é um notável exemplo nos modos experimentais de utilização
do som no filme. Para este diretor, a economia de recursos funciona como um método
de trabalho e ele aprecia a inventividade que essa condição impõe. Em suas películas,
nota-se a presença sutil e econômica do som. Rohmer buscava uma autenticidade pelo
som, pela ambientação sonora real, a neutralidade no clima sonoro, quase como um
documentário. Para o cineasta, o trabalho do som é um dos elementos de ancoragem do
filme à realidade de uma determinada época ou de um determinado lugar. Por isto ele
escolhia lugares e horários de filmagem em função da qualidade do som desejada e
segundo os seus objetivos preferia captar o som direto, chegando a adotar microfones de
lapela para os atores. Curioso era seu método de julgamento quanto à melhor tomada de
um plano ou sequência. Em caso de dúvida, o diretor se pautava na escuta dos sons,
ainda no local da filmagem.
Na maioria dos casos, adota-se um registro do som essencialmente naturalista, cuja
preocupação é cumprir as premissas da verossimilhança (por exemplo: passos surdos
num corredor vazio, o repicar de um relógio, o farfalhar de um vestido, sons de pássaros
etc.). Em si mesmo, diz o diretor russo Andrei Tarkovsky (2008), o som nada acrescenta
ao sistema de imagens do cinema, pois não tem ainda nenhum conteúdo estético. Para
ele, é impossível, no cinema, imaginar uma reprodução naturalista dos sons do mundo:
o resultado seria uma cacofonia. Qualquer coisa que aparecesse na tela teria de ser
ouvida na trilha sonora, mas essa cacofonia significaria apenas que o filme não recebeu
nenhum tratamento sonoro. É possível, igualmente, que o ruído seja utilizado como
perturbação da verossimilhança. Pode tentar-se ampliar os sons naturais, isolá-los do
seu contexto, acentuá-los ou mesmo escolher um som e excluir todas as circunstâncias
incidentais do mundo sonoro que existiriam na vida real. Um diretor também pode
preferir dificultar, por razões estéticas, a decifração do som, passando-o pela distorção,
defasando-o ou criando contrapontos entre este e a imagem.
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Houve, nas últimas décadas, muitas outras experimentações pelas quais a visualidade e
as sonoridades tiveram suas fronteiras borradas. Nos anos setenta, o também diretor
russo Andrei Tarkovsky criava táticas para induzir no olhar uma certa atrofia, o que
acabava por produzir uma sensação mais incisiva do som e, consequentemente, exortava
o trabalho da imaginação. O cineasta adotava este mesmo método em relação à música.
Tarkovsky (1989) afirmava que os sons do mundo visível refletido na tela, quando
removidos, ou ainda quando esse mundo era preenchido com sons exteriores que não
existem, ou se os sons reais fossem distorcidos de modo que não mais correspondessem
à imagem, poderiam adquirir outra ressonância. Há, portanto, efeitos sonoros que só se
percebem quando entram em contradição com o que vemos.
Isto exemplifica um fato singular do cinema: em muitos casos, o trabalho de um
engenheiro de som equivale à criação do músico e, muitas vezes, os sons recompostos
têm mais a ver com música do que com o registro banal de ruídos. Um dos grandes
documentaristas mundiais, o brasileiro Alberto Cavalcanti já nos anos trinta asseverava
que os ruídos eram quase sempre esquecidos do som do cinema, por duas razões:
culturais, que desvalorizavam esteticamente estas sonoridades; e técnicas, por causa dos
problemas de gravação e de equilíbrio sonoro dos ruídos. Ele era contrário ao uso
abusivo dos diálogos e a favor do som não sincronizado, principalmente das palavras e
dos ruídos. Para o diretor, os ritmos e tonalidades do ruído são tão indispensáveis
quanto os diálogos, a música e a imagem, pela sua capacidade de afetar emocionalmente
o ouvinte. Os ruídos devem ser aproveitados por suas qualidades tonais e seus efeitos
dramáticos. Suas alturas e qualidades tímbricas, tonais e rítmicas produzidos por sinos,
aves, trens, navios, carros, mar, chuva, cavalos conferem perspectiva e profundidade a
ambientes, pontuam passagens, incitam a imaginação do espectador. Cavalcanti defende
a funcionalidade do ruído e exorta a intenção expressiva do seu uso. Ele também dizia
que a justaposição de efeitos sonoros exige uma grande dose de imaginação. Dos ruídos
desses dependem a própria sucessão final das imagens. Todo filme necessita tanto de
“momentos de respiração”, de interrupções do som, como de amplificação da
sonoridade regular da realidade. Para além de ampliar o universo da cena para o fora de
campo, sons indeterminados e não sincronizados, quando explorados, têm o potencial
para estimular a imaginação do espectador, por seu poder de sugestão e eficácia no
efeito dramático de uma cena. A indefinição tímbrica, com suas qualidades
inconclusivas, podem provocar inquietação. Muitas vezes o diretor, em parceria com o
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compositor, harmonizavam as alturas dos ruídos com a música e faziam uma nota
musical nascer de um ruído ou vice-versa: o ruído se transformando em música e a
música se concluindo em ruído, surgindo e desaparecendo de maneira orgânica. Isto se
justifica porque, a partir de certa duração, de certo nível de organização e de presença,
um conjunto de sons pode se impor num filme como um momento musical.
Bresson também descobriu e optou pelas possibilidades rítmicas, musicais, dos ruídos e
das palavras nos diálogos. Ele procurava sempre vislumbrar “imagens raras” que os
sons provocam em nós e que são pura sugestão. Invisíveis, estas são recriadas pela
imaginação do espectador. Ele criou, pouco a pouco, uma sofisticada “partitura sonora”,
muitos deles despojados de imagem que os respaldam, emitidos fora do quadro e
abrindo possibilidades imaginativas. Ele procurava, como Cavalcanti anteriormente o
fizera, um valor rítmico para o ruído, reorganizando ruídos ainda não organizados
como, por exemplo, de uma rua, uma estação etc., para recolocá-los, um por vez, no
silêncio, dosando ritmicamente a sua mistura. O apito de uma locomotiva, dizia
Bresson, pode imprimir em nós a visão de toda uma estação de trem: “Um grito, um
ruído. Sua ressonância nos faz adivinhar uma casa, uma floresta, uma planície, uma
montanha. Seu eco nos indica as distâncias.” (BRESSON, 2008, p. 79) Por fim, Bresson
almejava construir, com os ruídos, uma espécie de realidade musical, como ele o diz: “É
preciso que os ruídos se tornem música.” (BRESSON, 2008, p. 116) Para o cineasta, as
imagens deixam de ser “chapadas” quando abandonam a música e voltam a irradiar
ruídos, ventos, chuvas, buzinas, sirenes, o crepitar de chamas, como ele designava, a
inesgotável “partitura de sons”.
São inúmeras as possibilidades de emprego expressivo das sonoridades, muitas das
quais se tornaram paradigmáticas (ou até clichês) na composição da trilha sonora para
filmes. A criação de metáforas é um exemplo (o som de um rio a acompanhar um
pranto), ou de metonímias (o som de um trem a acompanhar uma mala de viagem), de
sinédoques (uma canção que evoca uma memória) entre outros recursos linguísticos. Os
sons tornam-se também componentes essenciais nas abstrações fantásticas no cinema,
como no caso da ficção científica ou de animações. Com os efeitos sonoros, evidencia-
se a simulação do aspecto sonoro de um evento, ou a integração sonora num efeito
especial visual para acentuar-lhe o caráter de uma visão extraordinária. Um exemplo
instigante pode ser citado: valendo-se de música produzida com sintetizador, Vittorio
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Gelmetti, no filme Il Deserto Rosso (Deserto vermelho) dirigido em 1964 por M.
Antonioni, explorou sonoridades eletrônicas, procurando despertar na escuta
indefiníveis passagens entre a música, os sons e ruídos, todos os elementos atuando
juntos, neste contexto, como sonoridades do inconsciente. Muitas vezes, uma gravação
saturada do som - e da música - não é apenas um erro, mas pode ser antes uma estética
sonora no filme.
Um dos momentos de importante inovação no redimensionamento da música, da trilha
sonora - e do silêncio - no cinema se deu com Once uppon a time in West (Era uma vez
no Oeste) de Sergio Leoni, lançado em 1968. Contando com a célebre parceria entre o
sonoplasta Eros Bacciucchi e o compositor Enio Morricone, o filme atesta uma
verdadeira osmose entre a planificação das imagens, os sons e a música. Nos
quinze minutos do início do filme, os ruídos de fundo na paisagem, nota-se como
sons incidentais (sons de grilos e insetos produzidos artificialmente) que se estancam e
provocam uma suspensão das sensações em curso. E redimensiona o silêncio repentino
compartilhado entre os personagens (e espectadores). Em certos momentos, ocorre a
fusão entre o apito do trem e a harmônica do protagonista, que re-inscreve a importância
da música incidental amalgamada aos sons não-musicais. Afirma-se também que
Morricone, curiosamente, executava no piano as músicas das cenas enquanto as
filmagens decorriam. Este filme é um marco na história da trilha sonora do cinema, uma
vez que a música passa a adquirir uma nova importância e um papel distinto. Por
exemplo, os sons de cordas (violinos) que se assemelham a sons ferroviários, além do
som do tiro final que, como se disse, se funde ao apito ferroviário, denuncia que o trem,
ao chegar ao oeste como insígnia do progresso, na realidade seria o verdadeiro vilão do
filme.
A tendência do tratamento sonoro do cinema nas últimas décadas parece ter alcançado
produzir uma separação nítida entre os sons, com a distribuição em várias pistas e
equalizações, gerando “hiatos” muito sutis de silêncio entre as frequências. Isto permite
a criação de texturas sonoras, sem, no entanto, confundir os sons em convibração. Um
exemplo pode ser notado em The right stuff (Os eleitos), de Phillip Kaufman (1983),
premiado por sua edição sonora, numa cena em que o protagonista se depara, montado a
um cavalo, com o jato de turbinas ligadas, enquando soa a composição musical.
41
Blade Runner (Ridley Scott, EUA, 1982) é um exemplo de filme que tenta recuperar a
ideia de uma unidade orgânica de todos os sons. Trata-se de uma produção sonora
completamente circundada por uma orquestração de ruídos, efeitos de ambiência e de
voz, criada por editores e engenheiros de som. Foi bem sucedido por causa da relação
analógica entre o teor dos sons eletrônicos com o ruído e a música sintetizada de
Vangelis. Constrói-se uma textura que vai de ritmos amplos sobre notas profundas, de
percussões eletrônicas, aos ritmos mais rápidos em notas altíssimas.30 O triunfo da
concepção rítmica do filme como um todo, e também por causa da concepção
integradora na mistura orgânica dos sons obtida por Graham Hartstone.
Apoiados nas palavras de André Gide após ter assistido ao musical Hallelujah!, dirigido
por King Vidor, em 1930, finalizamos este tópico:
“No que diz respeito ao complemento da música, do canto, dos coros, gritos e intejeições da multidão, todo ele se confunde, da maneira mais acertada, com os movimentos de conjunto, até ao ponto em que não podermos imaginar este filme privado do elemento musical, que faz de Hallelujah! uma espécie de sinfonia, com seus allegro, andante, largo, presto agitato, onde a própria palavra se mescla ao todo como um elemento rítmico a mais.” (apud CHION, 2010, p. 86)
Podemos finalmente auferir, tendo a frase de Gide como pretexto, que no pensamento
da expressão cinematográfica não se concebem binariamente som e imagem como
entidades separadas, pois o que mais conta na experiência de um filme é a sua
consubstanciação de ritmos.
2.3 – A música e o cinema
Discursar a respeito da música no cinema diante da enormidade do repertório
acumulado nestes cento e poucos anos, é um problema bastante controvertido, pois
trata-se de uma questão que não é apenas musical, mas também cinematográfica. E a
obstinada presença da música nos filmes rompe com a concepção de que o cinema é
30 O termo utilizado em inglês para designar um zumbido contínuo, na forma de uma nota eletrônica sustentada no grave, é drone. Este modo sonoro é recorrente muito no filme Blade Runner.
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autossuficiente. Tal empreitada exige, por pressuposto, uma variedade de competências
necessárias para este estudo e não se pode impor diretrizes arbitrárias para abordar o
tema. As formas de coexistência entre música e cinema não são codificadas e não há
regras precisas. Todos os modos de integração passam por experimentações e são muito
empíricas, ou seja, há tentativas, frustrações, surpresas e fórmulas sempre provisórias. O
cinema sonoro, com a sua música, tornou-se uma forma de arte híbrida, realizada por
opções tomadas em conjunto, portanto, nunca é definitiva e não existe uma fórmula
universal. A maioria de suas inovações não parte, obviamente, de convenções. Afinal, a
arte não avança apenas por seus sucessos, mas por suas experiências e insatisfações.
Neste momento da digressão do Caderno de Estudos, serão apresentadas diferentes
concepções estéticas formuladas por músicos, realizadores ou teóricos de ambas as
áreas de criação e pensamento.
A música, como se sabe, não descreve objetos. Quanto, porém, do pensamento humano
permaneceria sem expressão se não tivéssemos a música? Ela é, de fato, uma expressão
não verbal, afetiva, direta, imediata. As notas não fazem emergir um discurso musical se
não existir a percepção de uma intenção de organização no âmbito dos próprios sons.
Béla Bálázs nos chama a atenção para um aspecto importante, apesar de pouco
considerado ao se abordar o problema da escuta musical. O autor comenta a respeito do
que Henri Bergson (apud BÁLÁZS, 2008, p. 94) ) nos diz: uma melodia é composta de
notas isoladas que se sucedem umas às outras, em sequência, no tempo. Entretanto, uma
melodia não possui dimensão no tempo na medida em que a primeira nota só se torna
um elemento da melodia porque ela se refere à próxima e porque se coloca numa
relação definida a todas as outras notas, sendo que a última nota já está presente na
primeira como um elemento criador da melodia. E a última nota completa a melodia
somente porque a ouvimos a primeira nota junto com ela. Em suma, as notas de uma
melodia possuem uma duração real, mas a linha melódica coerente não possui dimensão
no tempo fenomênico, não surge gradualmente no fluxo temporal, mas já existe como
uma entidade completa assim que a primeira nota é tocada.
Muito já se perguntou a respeito do que a música de cinema acrescenta à plástica e à
narrativa de um filme. E, se a resposta é sim, indaga-se se há, por conseguinte, uma
música específica para os filmes, que a distinga da música “autônoma”. Abordar a
música cinematográfica, desde já, levanta um problema terminológico, pois quando
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escutamos um fragmento de música num fragmento de película, o que se mobiliza nem
sempre pode ser tomado como “música completa”. A música cinematográfica, em sua
falsa evidência, seu caráter frequentemente fragmentário, desagregado e invisível, nem
sempre nos permite saber ao que devemos nos atentar. A sua passagem para a tela
provoca uma metamorfose, a ponto de ela tornar-se “música do filme”.
Fellini não relutava em dizer que a música era como elemento secundário na narrativa,
componente de apoio. Já o cineasta Eric Rohmer, seguidor do pensamento de André
Bazin, alegava que há, desde a sua natureza, um confronto, uma rivalidade entre música
e filme. O cinema se expressa no tempo e não no movimento, podendo ser, em
determinados planos, comparado à beleza da música. A “musicalidade da imagem”
seria, para Rohmer, mais importante. Robert Bresson proferia não mais querer a música
de acompanhamento, de apoio, de reforço em seus filmes. A música e o deleite musical
isolam, para o diretor, o filme da vida própria do filme. Em outros termos: a música
toma todo o espaço e desvaloriza a imagem à qual ela se junta. O cineasta exclama:
“Quantos filmes remendados pela música! Inunda-se um filme de música. Impede-se de
ver que não há nada nessas imagens.” (BRESSON, 2008, p. 43) 31 Por outro lado,
Bresson era um grande admirador da música, tanto que o atesta ao dizer que um filme
deve ter, ao mesmo tempo, a precisão e a imprecisão da música, portadora de mil
sensações possíveis, imprevisíveis.
A música fílmica desempenha seu papel dentro de um conjunto. É algo que se apresenta
com outro aspecto (fragmentado), com outra função e com outra lógica, num outro
contexto diferente ao da obra estritamente musical. A música atua nos filmes como
elemento e como meio, como mundo e como tema, como metáfora e como modelo,
podendo todas as suas diferentes atuações coincidirem numa mesma película. Um
aspecto crucial nesta discussão é a natureza e o caráter intermitentes da música no filme
(ao menos no cinema sonoro). Paradoxalmente, a música no cinema conserva o seu
papel de essência irredutível: um embrião rítmico ou uma célula melódica mínima
persistem em reinvidicar uma vida autônoma. Há, por essa natureza movente que se
31 Para Bresson, a generalidade da música não corresponde à generalidade de um filme. Ela é uma exaltação que impede as outras exaltações. (BRESSON, 2008, p. 43)
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distingue do movimento das imagens, uma essência antinaturalista da música. Por tal
razão, não podemos “condená-la” ao naturalismo, mesmo quando ligada ao cinema.
No caso do cinema, com as múltiplas formas de aderência da música à narrativa fílmica,
não se pode impedir que o som afete a imagem. A música, que não tem valor narrativo
em si e que não significa eventos, torna-se um elemento da narração apenas pela sua co-
presença com imagens, sons, diálogos e vozes. E recusar a possibilidade de utilização
da música é privar-se, um tanto arbitrariamente, de um material que, se bem utilizado,
pode enriquecer incontestavelmente a obra cinematográfica. Todos os elementos
sonoros, inclusive a música, o silêncio, devem formar um contínuo, como característica
intrínseca da imagem visual. A música acrescenta, por sua força concreta, uma imagem
imediata às imagens mediadas, que representam indiretamente o todo e que se torna
capaz, pela inclusão musical, de uma apresentação direta, incomensurável pela via da
representação imagética. Apesar de haver muita continuidade rítmica entre as imagens
que não é, por exemplo, uma ilusão criada estritamente pela música, esta impõe ao olho
sempre uma orientação diferente. A música é, no universo concreto do filme, que
também escapa às leis do real, aquilo que parece existir de maneira independente do que
vemos. Não podemos sustentar que a música acompanha a imagem, já que ela capta e
sublinha uma frase de um diálogo, um olhar, um efeito de montagem, um movimento,
uma inflexão do roteiro, portanto, algo não forçosamente visual. É preciso, antes de
tudo, admitir uma margem de estilização para a música no cinema, porque ela tem
múltiplos papéis e se torna, dependendo do filme, um meio, o tema, a protagonista ou
uma ferramenta. Além do mais, toda música filmada sofre uma narrativização, no que
resulta difícil uma atenção ao próprio discurso musical.
A música irriga o filme: quando incorporada a este, torna-se parte de uma complexa
rede de ritmos, sensações, informações verbais, cinéticas, visuais. E, graças à natureza
rítmica do cinema, um conjunto de elementos pode passar do som à imagem, do real ao
imaginário; a música aparece como um material privilegiado nesta circulação. Ela
ressoa e se eleva – ao menos depois do cinema sonoro - além de onde não alcançam as
palavras. A música co-estrutura o filme: contribui, junto com outros elementos,
compassando a forma geral da película pelo lugar determinante de suas intervenções. O
seu emprego funde a descontinuidade da montagem: a continuidade auditiva parece
homogeneizar a descontinuidade visual, espacial ou temporal, evitando a dispersão
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criada pelas numerosas elipses temporais e mudanças de cenário. Já é bem sabido que,
ao unir todos os planos, a música reforça a impressão global de uma ação única. Através
da planificação, geram-se níveis sonoros muito diversos que, em contrapartida, tendem
a quebrar a continuidade dramática de uma cena.
A denominada “música cinematográfica” pode também criar, conforme a habilidade do
compositor e do diretor, uma bolha de liberdade que a separa das simples funções de
nexo e concatenação entre cenas. Dito de outro modo: a sua importância e seu papel em
relação aos outros elementos da ação, do diálogo, do ruído é modulável e desligado de
qualquer regra de coerência diegética, verossímil, realista. Pode dar-se, em
contrapartida, que trilha musical, mediante seus ritmos, passe a governar toda a imagem.
Por isto é um erro pensar que o próprio cinema tenha uma vocação naturalista ou
realista, antes acolhendo uma transfiguração do real, papel geralmente delegado à
música. A música também sugere um espaço que a imagem não pode ou não quer
apresentar; às vezes reconstrói um espaço que os sons e ruídos realistas não alcançam
expressar.
A música permite inclusive que o que persiste de naturalismo no cinema sonoro não
seja asfixiante. Por seu próprio lirismo, ela permite refletir a duração. A música também
afeta o tempo e o movimento de qualquer filme. Ela ajuda a estruturar o tempo de uma
sequência cinematográfica, não só pelas pulsações rítmicas, mas pelo fenômeno de
expectativa de suas cadências. Sem a música, o tempo do filme seria menos misterioso,
menos imprevisível, porque ela tem a particularidade de poder criar um fora do tempo
no tempo, um tempo entre parênteses, de suspendê-lo provisoriamente. A música é
capaz de abarcar em sua própria duração, a ação do filme. No interior desta duração, a
música introduz uma espécie de estilização, por contração ou dilatação do tempo.
O cinema é tratado como singular, mas os filmes e as músicas continuam plurais. Ele é
sabidamente uma arte na qual todas as músicas possuem direito de cidadania e, mesmo
no interior de uma mesma obra, estilo e épocas diferentes se mesclam e coexistem.
Coexistem num mesmo filme música popular e música erudita.32 Ambos os tipos de
música podem encadear-se e sobrepor-se livremente, enfrentar-se ou se separar. Uma
32
Como em The Jazz Singer, filme no qual Tchaikovsky se alterna com canções populares.
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música kitsch pode, por exemplo, ser muito interessante num filme, por razões
cinematográficas. Pela via desse chamado melting pot sonoro e musical que é o cinema,
para Chion (2010), gente que nunca ouviu música atonal no rádio ou em concerto acaba
por captar alguns de seus acentos durante algum drama dos anos cinquenta. Ouvintes de
clássico, por seu turno, descobriram o rock; ouvintes do pop são postos em contato com
compositores eruditos. Costuma-se dizer que o grande público que não suporta a música
atonal pela rádio, se adapta bem a ela no marco de um filme, que seria um mérito do
cinema. Subsiste, obviamente, o risco de que estas músicas se dispersem do espetáculo
a quem as conhece previamente, que pode exasperar-se ao reconhecê-las.
No universo de estratégias convencionadas para sonorizar a imagem em movimento e
tudo o que vem com ela, fixaram-se historicamente táticas interessantes para se
mobilizarem nossos processos mnemônicos, emocionais e compreensivos face ao fluxo
plástico da narrativa. Afinal, na concepção musical cinematográfica, a escolha dos
materiais, técnicas e estilos de composição passa a provocar uma mudança na atitude do
compositor. Trata-se, obviamente, de um contexto particular de composição. O artista
deve analisar constantemente a interação de sua proposta de composição à concepção
original do filme para controlar o resultado como um amálgama entre ficção, imagem,
música, fala e silêncio. Sobre esta questão, sabe-se que, sem a música no cinema, estaria
ausente também o silêncio (esta questão será abordada adiante).
A música deve ser prevista desde a decupagem, juntamente com a iluminação, o
cenário, para inserir-se harmoniosamente no contexto visual como coadjuvante da
analogia cênica. Por tal razão, não é raro na história do cinema, diante desta necessidade
de integrar as sonoridades à visualidade, certos diretores se tornarem compositores dos
próprios filmes, como Charlie Chaplin, John Carpenter, Clint Eastwood e Eric Rohmer,
ou diretores e compositores trabalharem em parceria por muitos anos, como Sergio
Leoni e Enio Morriconne, Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Frederico Fellini e
Nino Rota, Andrei Tarkovsky e Eduard Artemiev, Claude Chabrol e Pierre Jansen,
Blake Ewards e Henry Mancini, Eisenstein e Prokofiev, David Lynch e Angelo
Badalamenti.
O pensamento criativo musical, quando cooptado pela idéia cinematográfica, precisa
sofrer uma reviravolta em relação à composição estrita. É preciso que o compositor
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decida, continuamente, se e como o componente musical pode ou não pode fazer para
condicionar a apreensão de conteúdos, elucidar ou mascarar, acompanhar ou reafirmar,
sublinhar ou ilustrar aspectos narrativos, expressivos e emotivos do filme. Os diretores
do período áureo do cinema hollywoodiano andavam constantemente se perguntando
qual seria afinal a função ideal da música nos filmes: a ilustração (sugerir estados
psicológicos, emoções, paisagens etc.), a redundância (reforçar uma ação, um gesto,
uma situação dramática etc.) ou como fazer para que o som e a fala não sejam mera
redundância do que se vê; e o contraponto (contradizer, de modo expressivo, o que
estava sendo mostrado)? Kracauer (1997 apud SANTANA; SANTANA, 2012, p. 291)
definia três funções básicas da música no cinema: música de acompanhamento, música
real e música como núcleo do filme.33 O célebre manifesto soviético já propunha que o
som remetesse a uma fonte extracampo, sendo assim um “contraponto visual” e não o
duplo de um ponto de vista: o ruído de botas, por exemplo, seria mais interessante
quando não fossem vistas.
Ao invés de procurar simultaneidade entre o drama e os movimentos da música, Sergei
Eisenstein pensava que a trilha musical deveria ser “contrapontística”. Para o diretor, a
conquista do sonoro e do musical no cinema consiste em exprimir o todo de duas
maneiras incomensuráveis, não correspondentes. O movimento afetivo de um
personagem ou grupo seria expresso diretamente na música, mas em contraste, em
conflito ou até em desarmonia com o movimento das imagens visuais.
Para o autor Philippe Arthuys, a música de cinema deve ser abstrata e autônoma, não
um pleonasmo musical, mas um verdadeiro “corpo estranho” na imagem visual, um
pouco como um “cisco no olho”, e deve acompanhar algo que está no filme, sem ser
mostrado nem sugerido. Há uma relação, obviamente, mas não se trata de uma
correspondência que nos mantenha no plano da imitação. É uma reação do “corpo
estranho” musical com as imagens visuais totalmente diferentes, ou antes uma interação
independente de qualquer estrutura comum.
33 Hanslick já defendia, antes do cinema (em 1854), que a representação do sentimento não é o conteúdo da música e que o belo musical possui uma autonomia estética, uma vez que a música não seria capaz de suscitar sentimentos específicos.
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Em vez de “contraponto musical”, Chion prefere chamar de “efeito não-empático” ou
de “dissonância” para se referir à música indiferente à ação e que pode gerar um
“contraste dramático” ou flutuações poéticas resultantes dessa assincronia entre imagem
e som. (CHION, 2010, p. 233) São estes termos, para o autor, mais adequados do que
“contraponto”, que antes supõe uma confrontação de duas cadeias, a visual e a sonora,
ao longo de uma certa duração. Em certos filmes surgem efeitos interessantes de, por
exemplo, uma música festiva que soa independente da situação dramática, ou de uma
música incisiva para uma imagem passiva. Na película de Arthur Penn, Four Friends,
de 1982, ocorrem momentos de música estirados sobre imagens agitadas, gerando um
trabalho rítmico extremamente preciso. Contradições também podem ser extraídas entre
o movimento no interior dos planos e o ritmo criado pela montagem. Nos anos sessenta
e setenta torna-se recorrente uma variante desse fenômeno, chamado unrelated score, de
música sem uma relação precisa com a ação e que, às vezes, parece reinar sobre as
imagens, tal como o tema de Francis Lai para Um homme, une femme, 1966, de Claude
Lelouch. A utilização de música “estranha”, em contrapartida, nem sempre é uma
solução milagrosa, porque essa pode reforçar estereótipos que só produzem efeitos
particulares, sem desempenhar com isto nenhum papel estruturador ou certos sinais para
a memória, como um separador formal no fluxo da narrativa.
A natureza singular que a música passa a adquirir no cinema remete a necessidades
historicamente consolidadas na sua integração à concepção específica de uma ficção
cinematográfica. A música no cinema pode ter a capacidade de sugerir, contradizer,
preparar, denunciar, surpreender e emocionar, de gerar efeitos narrativos, de suspense
ou apaziguamento temporário. Ela enfatiza emoções particulares sugeridas na narrativa,
marca-a referencialmente, realiza conotações, além de operar como recurso de
continuidade, ou mesmo quando um som ou certa música antecedem propositalmente a
cena que virá a seguir. A trilha sonora pode igualmente aludir a um estado sentimental
de uma personagem ou de uma coletividade, sugerir pressentimentos ou assumir uma
espécie de função retórica. Com ela também se pode evocar uma época histórica,
indicar um contexto cultural, uma hora do dia ou uma estação do ano, bem como
direcionar a atenção para algum detalhe em especial.
Numa perspectiva convencional de abordagem da música cinematográfica, alguns
autores reduzem o seu papel a funções consolidadas por paradigmas estáveis. Não
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raramente encontrarmos em bibliografias sobre trilha musical no cinema afirmações tais
como: a música intervém num filme para assegurar funções de pontuação dramática,
réplicas de efeito, tempos de parada da palavra e da ação, entradas e saídas de
personagens, monólogo interior, mudanças de iluminação, à semelhança do que ocorre
no teatro.34 Claudia Gorbman (1987) é uma autora conhecida por abordar a música na
narrativa cinematográfica a partir de suas funções. A escolha dos materiais, técnicas e
estilos de composição passa a ser dependente da eficácia que a música vai ter em
cumprir as suas funções. Para autora, a trilha musical não deve ser percebida
conscientemente, mas altera a percepção dos eventos mostrados. A música, de acordo
com a autora, participa efetivamente de um filme: na estrutura narrativa fílmica, na
organização das partes do filme, dos encadeamentos de sequências. A composição
musical, para ela, explica, sublinha, imita ou enfatiza ações e cria climas, ambientes,
sugere atmosferas, estados de humor e choques afetivos, evoca personagens e
atmosferas, acompanha movimentos e constrói conteúdos dramáticos, emotivos e
expressivos. Gorbman afirma que o som fílmico tem a função de reforçar o efeito
imagético e textual, como um coadjuvante da analogia cênica. No tradicional cinema
narrativo, a música teria como função principal atuar sobre as ações narrativas, sem
estar em primeiro plano, definindo um universo dramático que envolva emocionalmente
o espectador e ajude a transformar a enunciação em ficção.35 A autora sugere para o
estudo da música cinematográfica as investigações psicanalíticas sobre a natureza das
nossas relações com os sons, pressupondo que as nossas primeiras experiências
remetem a uma inefável e pré-verbal ligação com a música. E o objetivo da partitura
clássica para filmes seria, para Gorbman colocar os ouvidos e os olhos do espectador
em harmonia com as relações sonoras atávicas do seu ego, numa integração às emoções
propostas pelo espetáculo cinematográfico.
A música, para a autora, também teria a função de ligação entre planos e sequências
(bonding) e de ancoragem (ancrage) evitando desconfortos narrativos causados pelas
elipses da montagem. Há, uma propriedade denotativa da música, quando esta vincula
firmemente o significado pretendido à imagem. Estas são enumeradas pela autora como:
34 Existe uma continuidade possível entre a música vinculada à cena, a música que pontua e comenta a ação, e a música de transição (os chamados “interlúdios”). 35 Os próprios instrumentos musicais utilizados, segundo Gorbman (1987), não são neutros, pois remetem a muitas referências culturais, históricas ou estéticas.
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1) invisibilidade (o aparato técnico da música, quando não escutada pelos personagens,
não deve ser visível); 2) inaudibilidade (a música deve ser subordinada aos veículos
primários da narrativa, como diálogos ou a imagem, não devendo ser ouvida
conscientemente); 3) significante de emoção (a música de filmes pode determinar
"climas" específicos e enfatizar emoções particulares sugeridas na narrativa, mas é, em
primeiro lugar, um significante específico da emoção); 4) marcação narrativa,
subdividida em: referencial (a música proporciona marcações referenciais e narrativas)
e conotativa (a música "interpreta" e "ilustra" eventos narrativos); 5) continuidade (a
música proporciona continuidade rítmica e formal entre tomadas, em transições entre
cenas, preenchendo "vazios"); e 6) unidade (através de repetição e variação do material
musical e da instrumentação, a música pode ajudar na construção da unidade narrativa e
formal).
Outro autor que mantém esta primazia “funcionalista” da música cinematográfica é
Johnny Wingstedt. Ele discrimina e categoriza seis diferentes classes de funções para a
música nos filmes: emotiva, informativa, descritiva, “de guia”, temporal e retórica. A
função emotiva descreve um sentimento de uma personagem, estabelece
relacionamentos entre personagens, acrescenta credibilidade, ludibria os espectadores,
sugere atmosferas psicológicas e cria pressentimentos.36 A função informativa se
subdivide em três categorias: 1) comunicar significado, esclarecer situações ambíguas,
comunicar pensamentos não verbalizados, reconhecer ou confirmar a interpretação pelo
espectador; 2) comunicar valores, evocar uma época, um contexto cultural, indicar
status social (usado em certos casos de música para propaganda); e 3) estabelecer
reconhecimento através da associação entre sons e alguma personagem ou mesmo
algum produto. A função descritiva contextualiza, estabelecer a atmosfera do ambiente
(em um sentido abstrato como a hora do dia ou estação do ano) ou descreve uma
atividade física, um gesto. A função de guia é tanto indicativa (direciona a atenção,
focaliza o detalhe), quanto de mascaramento (esconde perturbações sonoras de
diferentes origens). A função temporal cria continuidade e define estrutura e forma,
cujas características estruturais da música são aproveitadas na construção e fluxo
narrativos. E a função retórica, que se destaca da narrativa e comentá-la, faz
36
Uma melodia que soa enquanto dois amantes que correm um para o outro tornou-se um arquétipo fixado por Claude Lelouch, como em Un homme, une femme, 1966.
51
julgamentos de valores, toma partidos e realiza colocações políticas e filosóficas.
Wingstedt ressalva, contudo, que a música opera tipicamente em vários níveis, atuando
em diferentes dimensões paralelas e pressupõe, por parte do compositor, uma
consciência da necessidade e da função da música no filme e de que soluções precisam
ser dadas a determinadas sequências, objetivando o processo de escolha de material e
procedimentos a serem usados na composição.
O cinema trivial aplica estas e muitas outras fórmulas, como apoiar-se na música para
dilatar, por distanciamento e aproximação (volume sonoro ou travelling sonoro de
eixo), certas perseguições.37 Muitas vezes a música é levada a imitar certos ruídos,
voltando aos antigos métodos do teatro. Também se utiliza amiúde o leitmotif, recurso
criado pelo compositor Richard Wagner, usado em suas obras operísticas, como a
reiteração de um tema musical ou um timbre específico para indicar um personagem do
roteiro.38 As fórmulas sinfônicas wagnerianas presentes dos anos trinta aos anos
quarenta deixaram-nos, entretanto, com um estigma: o da “era dos clichês”.39 Buñuel,
nesta época, já tratava de evitar qualquer efeito de catálise emocional, de precipitação
de significados propiciados pelo uso da música. Seria, segundo ele, o mesmo que dizer:
“agora podem chorar...”.
Outras maneiras de se valer mais sutilmente da força de evocação da música pode ser
observada em alguns filmes, quando ocorre uma pontuação narrativa (stinger): um
acorde particular, um tremolo dramático, uma célula breve ou um silêncio súbito que,
isolados do discurso musical, pontuam, sublinham, assinalam uma revelação, um
contratempo, um momento. Um filme poderá recriar ou despertar a emoção contida em
um simples acorde maior, um ostinato rítmico elementar, uma escala tocada pelos dedos
37
Em Der Letzte Mann, de 1926, dirigido por Murnau, a câmera tenta dar uma ideia da trajetória do som, que vai da campana de um instrumento de metal até a habitação do segundo piso onde o está escutando o personagem. 38
Em casos excepcionais, a aproximação de temas musicais a personagens, que relaciona cinema e ópera, cria uma força emotiva que ultrapassa os estereótipos, como é o caso do já mencionado Once upon a time in West, de S. Leoni, 1969. 39
O recitativo instrumental wagneriano é o modelo privilegiado nos primeiros tempos do cinema. Como se costumava dizer: “Tudo está em Wagner e Wagner está em tudo!” Empregada de diversas maneiras, a sua peça Cavalgada das Walkirias, soa em Birth of a nation, de Griffith, em 1915; no filme Oito e Meio, dirigido por Fellini, de 1963; Il mio nome è nessuno, de 1973, por Tonino Valeri; e no célebre Apocalypse Now, de 1979, por Coppola. O papel de estímulo sensorial que o relaciona com efeitos físicos esperados já era perseguido por outros compositores de óperas como Gluck ou Berlioz.
52
de um principiante ou um mesmo tema repetido sob várias formas. Igualmente no
recurso do flashback cinematográfico (quando a narrativa remete ao passado, seja por
lembrança de um personagem, seja por retroações temporais explicativas), a música
passa a ser, retroativamente, parte da ação, principalmente quando recebe um tratamento
sonoro que altera a sua qualidade de definição. A música pode ser executada, por
exemplo, com efeitos de reverberação, saturação, rotação lenta ou acelerada, distorções,
ecos etc. Um modo de grande poder expressivo é a criação de um plano sonoro
“macroscópico”, a exemplo do enquadramento das vibrações da corda da guitarra, como
se dá em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders.
Há ainda muitas interessantes realizações nas quais as características estruturais da
música são aproveitadas na construção e no fluxo da narrativa. A gama de recursos
musicais no cinema abarca outras estratégias: a utilização de cadências harmônicas para
criarem suspensão, tensão ou acomodação psicológica; o cromatismo e o atonalismo
para provocarem sensações mais nuançadas ou de instabilidade (situações de caos
psicológico, por exemplo). A música de Claude Debussy teve uma grande importância
no cinema. Suas ideias harmônicas e modais, vagas, com duplicações de motivos, jogos
de fluxo e refluxo, ritmo fluido, sua indecisão tonal se revelaram aptas para
acompanharem tanto o espetáculo vivo da natureza quanto filmes de suspense. Sua
música se encaixa à arte do mistério, que é o cinema. Além do mais, seu estilo ajuda a
evitar sentimentalização de situações, limitando-se a inscrever a cena num clima
poético. Jerry Goldsmith, compositor de Alien (1979) dirigido por Ridley Scott, utiliza o
vocabulário de Debussy para expressar a angústia, a apreensão, o vazio, a solidão do
cosmos, o clima de expectativa. Sua escala de tons inteiros foi empregada para gerar
uma sensação de empatia para com as forças da natureza, em especial, na ambientação
orquestral de paisagens bucólicas.
Bernard Herrmann, a despeito de sua marca de veemência musical, assumia a sua dívida
com Debussy. Ele dizia buscar antes no ritmo, oposto ao expressionismo e
sentimentalismo da melodia, o fundamento de uma estética objetiva, dinâmica e sem
pathos da música cinematográfica tradicional. A música cinematográfica deve-se
apoiar, segundo Herrmann diz, nos ritmos da vida, em lugar de amoldar-se às flutuações
de um discurso ou matizes do sentimento. Para o compositor, ela deve se desembaraçar
de elementos meramente subjetivos e que se torne realista, mas não por meios
53
dramáticos, sob uma matéria plástica da imagem uma matéria sonora impessoal, por
uma misteriosa alquimia de correspondências. Bernard Herrmann conclui que a música
do cinema precisa nos fazer perceber o ritmo interno da imagem sem traduzir seu
conteúdo sentimental. Os violinos da antológica “cena do chuveiro”, em Psicose, da
trilha musical composta por Bernard Hermann inauguraram no cinema novas
concepções para o idioma da composição cinematográfica. A trilha de Psicose, escutada
separadamente, é monótona, mas funciona perfeitamente dentro do filme. Neste filme, o
compositor opta pelo emprego simultâneo de duas tonalidades (bitonalismo: um tom
maior e outro menor, soando juntos) num mesmo trecho musical, cuja indecidibilidade
alude à esquizofrenia do protagonista. Em Taxi Driver, 1975, de Scorcese, Herrmann
engendrou todos os temas a partir de uma célula mínima: uma fórmula de segunda
maior descendente.40
Há muitos outros estratagemas dinâmicos, como alterações no andamento rítmico ou na
volumetria/intensidade dos sons (crescendos e decrescendos), glissandos, trêmulos e
rufos. Os recursos de timbragem (a chamada “paleta sonora”) são extremamente
importantes, pois podem contextualizar uma época, caracterizando a sonoridade dos
instrumentos de um dado momento histórico, além de sugerir estados de humor ou
dramáticos. 41 Recursos técnicos e formais são constantemente reinventados na música
para filme, tais como o seu surgimento inesperado, a sua interrupção abrupta ou
momentânea, o retardamento deliberado do processo de reconhecimento da fonte
sonora, a alteração artificial do timbre por meio de técnicas de manipulação eletrônica
etc. 42
Muitos cineastas se valem de melodias específicas para cada um dos personagens ou
dos seus estados de espírito, chegando a tornar-se a música efetivamente uma
40 Diz-se que era um hábito do compositor frequentar incógnito às pré-estreias de filmes nos quais ele havia trabalhado e, após a exibição, perguntar às pessoas da audiência se haviam gostado da trilha sonora. Diante da resposta recorrente de que estas não se lembravam da música no filme, o compositor se sentia feliz, pois o efeito desejado de dar força à narrativa fílmica tinha sido alcançado. 41 Os sons eletrônicos, por exemplo, quando ainda não eram comuns, puderam evocar a estranheza nos filmes futuristas e de ficção científica. (grifo nosso) 42 Michel Chion aponta na música a capacidade de antecipar conteúdos da narrativa e da imagem, ao dizer que toda vez que ouvimos a introdução instrumental que já fora executada nos créditos iniciais, sentimos que algo importante está para acontecer.
54
“personagem” da história. Funcionavam como tipos de retornos de frases melódicas
para reforçar a resposta emocional. O denominado underscoring, também “efeito circo”
ou efeito mickeymousing, ainda é excessivamente empregado no cinema e ocorre
quando uma música constitui um correspondente sincrônico a um gesto que ganha este
rótulo por remeter aos recursos utilizados nos seus desenhos animados, que tentavam
mimetizar, em termos sonoros, as peripécias das imagens. O cinema clássico também
insistia em espacializar os elementos sonoros, oferecendo-lhes correspondentes na
imagem, para garantir um efeito biunívoco, redundante, entre imagem e som (chamado
de discurso duplo), quando a música não propriamente descreve, mas enfatiza um gesto,
um deslocamento, um olhar, uma réplica. De uso bastante recorrente, existem os
ostinatos (cadências rítmicas pulsantes) que podem provocar ansiedade, a exemplo da
trilha de Jaws (1975), de Steven Spielberg, sempre que o animal se aproxima.
2.3.1 - As ligações iniciais entre a música e o cinema
A lanterna mágica, o teatros de marionetes, a ópera, o ballet, o teatro de feira, o
melodrama, o cabaret já haviam criado formas e modos de integração da música com a
imagem. Ela já acompanhava as imagens projetadas em movimento e os diálogos com
ritmos musicais, acordes ou melodias, tal como a música já conduzia os números de
mágica. Nas peças de Shakespeare também já se encontravam canções. As salas de
teatro, na virada dos séculos XIX para o XX, se converteram em salas de cinema, de
modo que os conjuntos que tocavam anteriormente para o teatro se viram levados a
tocarem basicamente músicas para os filmes. A tendência do cinema francês em limitar
o quanto possível a intervenção musical nos filmes estaria, no começo, ligada aos
modelos do teatro clássico que não deixam lugar para a música nem para canções.
Muito antes do som sincronizado, a música já se integrava, entretanto, às projeções do
cinematógrafo. Aliás, é interessante observar que a música de cinema era tocada ainda
fora da sala e serviam para atrair o público e fazê-lo entrar! As soluções iniciais foram
execuções instrumentais ao longo da exibição. Havia, por exemplo, pianistas e outros
instrumentistas que adaptavam peças eruditas e populares da época e, não raramente,
improvisavam enquanto a projeção estava em curso. Como o cinema, em seu começo,
55
era exibido em vaudevilles, ambientes já naturalmente musicais, cantores e
instrumentistas tocavam enquanto se exibia o filme, buscando estes compatibilizarem
som e imagem. Os músicos tentavam acompanhar o que acontecia na tela de acordo
com o que parecia ser apropriado ao ritmo e à intensidade emocional das imagens
visuais. Há também relatos do uso dos fotoplayers, que eram pianos adaptados, dotados
de ruídos e efeitos especiais diversos.43
A música tocada nas projeções era quase sempre sequencial, ou seja, constituída por
uma sucessão de fragmentos distintos, cada um com um tempo bem caracterizado,
obedecendo a certo sistema de repetições, de cadências que permitiam, mediante pontes,
transições ou rupturas com outra sequência musical, propondo uma tonalidade, um
ritmo, um clima e o ambiente musical imediatamente diferentes. O caráter sequencial
era necessário em função da natureza flutuante e ainda não normalizada do ritmo de
projeção. A forma sequencial nas comédias, por exemplo, era uma soma de episódios
relacionados com uma intriga geral, que implica uma música do mesmo tipo. A
concepção musical levava em conta – a exemplo do “baixo contínuo”, pontos de apoio,
de fios condutores rítmicos para reforçar o jogo de ritmos visuais que se construíam
para os olhos. Esta prática visava a criar um sentimento de continuidade e de
estabilidade que faz com que prestemos atenção consciente à música e que possamos
nos concentrar no que vemos.
Com o processo de reprodução, de distribuição e do aumento dos espaços para
exibições de filmes, novas soluções foram surgindo, como peças orquestrais adaptadas
para as cenas projetadas. Eram formas arbitrárias de sobrepor a música às imagens,
como um sistema de ilustração fácil cujo objetivo era dar maior intensidade às
impressões criadas por cada episódio. O procedimento, em geral, era o diretor fornecer
um guia para os exibidores dos cinemas, com indicações para cada momento do filme,
sugerindo trechos de obras clássicas de acordo com as situações encenadas. Desde 1900,
Thomas Edison passava a publicar algumas “sugestões para música”. S. M. Berg e Max
Winkler chegam a catalogar 300 composições para acompanhar as cenas dos filmes
exibidos na época. Surgem os Cue sheets e os kinothecks. Os Cue sheets eram
distribuídos semanalmente para a estreia de cada novo filme. Esta partitura facilitava o
43 Surgiu, posteriormente, o órgão Wurlitzer, com um grande número de efeitos para certos ruídos da cena.
56
trabalho de fragmentação e ilustração musical para os pianistas e diretores de orquestra.
Nos EUA, esta prática começou nos anos dez (a partir de 1910). Os pioneiros de música
compilada para cinema foram Hugo Riesenfeld, David Mendonza e Erno Rapee. Irving
Talbot elaborou compêndios de fragmentos com durações apropriadas para as cenas.
Ainda subsistiam, contudo, alguns problemas de encadeamento instantâneo de uma cena
a outra. Começaram a surgir os fakebooks para orientarem os músicos quanto à música a
se empregada em cada cena do enredo: J. S. Zamelcnik editou The Sam Fox Moving
Picture Music (1913), Giuseppe Becce lançou o Kinobibliothek (ou Kinothek), em 1919;
e Erno Rapé criou, em 1924, um conhecido fakebook chamado Motion Picture Moods
for organists and pianists direcionado para 52 situações cênicas, tais como eventos da
natureza, combates heróicos, aparições noturnas, cenas românticas, humores e situações
dramáticas, caçada, tema de amor, busca incansável, alegria, felicidade, mistério,
monotonia, cantigas de ninar etc. Por exemplo: para cenas de horror, Opus 55 de Grieg,
para cenas humorísticas, Opus 10 N. 2 de Tchaikovsky, para estados de impaciência,
Opus 102, N.1 de Mendelssohn e por aí adiante. O diretor do cinema assistia a peça
várias vezes e a demarcava sob o repertório do livro. Havia o problema das transições,
apesar das dicas de aceleração e desaceleração para sincronizar-se com as cenas, porque
os maestros criavam cada um as suas e a eficácia variava segundo a habilidade de cada
condutor. Em um manual para pianistas e organistas de cinema publicado em 1920, a
primeira função designada para a música que acompanha os filmes é a de “refletir o
clima da cena no espírito de quem escuta e de despertar mais fácil e intensamente no
espectador as cambiantes emoções da história em imagens”. Os autores completam as
listas de atmosferas (sinistra, alegre, ligeira) com categorias tais como: natureza, temas
relativos ao amor, luz, atmosferas graciosas, elegíacas, solenes, de festa, exóticas,
comédia, velocidade, valsas, iminência de uma tragédia, consequências de uma tragédia,
morte, batalha, tempestade, personagens malvados, jovens, anciões etc. Se fala inclusive
de “música neutra”.44
Estas coleções musicais tiveram uma repercussão direta sobre a estética cinematográfica
ao gerar clichês musicais, relacionando estilos com gêneros cinematográficos. Fizeram
com que o universo cinematográfico fosse inundado de fragmentos de música sinfônica
44 A respeito da prática dos Cue sheets, ainda hoje há discos e CD’s de música pronta para ser inserida nos filmes, como dança medieval, horror, música espacial etc.
57
com características românticas, impressionistas e nacionalistas, de um conjunto de
opções de caráter ilustrativo e figurativo, sem interesse conceitual ou formalista. Pode-
se dizer que a escuta da audiência foi se formando por associações entre situações
dramáticas e respectivas sonoridades musicais. As partituras musicais são às vezes
anexadas a este guia e adaptadas segundo o tamanho e o luxo das salas de cinema. As
orquestras completas eram reservadas às exibições de prestígio ou aos lançamentos de
filmes.
Nos tempos do cinema mudo era corrente que música fosse gravada na filmagem para
ajudar a criar uma atmosfera, a inspirar o ritmo de uma cena, a favorecer a concentração
da equipe e a guiar o gesto e a expressão dos atores. Com a execução musical durante as
filmagens, a interpretação do cinema mudo não se desenvolvia ao ritmo da declamação
das palavras, mas ao ritmo da música. Os gestos dos atores se desenvolviam de uma
forma mais dilatada, parecidas com os da ópera.45 Há também relatos de utilização de
um caminhão com músicos que tocavam durante a filmagem de uma cena de
perseguição. Era inclusive uma responsabilidade do músico que produzisse música
apropriada para acompanhar cenas de perseguição e permitisse ao espectador identificar
quem era o herói e o vilão.
O caráter do cinema mudo repousa sobre a presença contínua de um elemento exterior:
a música. Com sua partitura musical sem interrupção, o cinema mudo é uma espécie de
espetáculo lírico, onde a voz figura pelos gestos. Com a chegada do vitaphone, a música
necessitou de certo tempo para encontrar seu lugar, tendo de renegociar seu lugar entre
os diálogos e ruídos que, desde então, se poderiam escutar realmente. Isto criou novos
problemas e novas respostas. Neste período de transição, adotam-se fórmulas mistas.
Uma delas era a prática da orquestra se revezar com a gravação.
Com o advento do sincronismo sonoro no cinema, os debates teóricos sobre a trilha
sonora também passaram a contrastar conceitualmente os lugares simbólicos de onde a
música provinha: musique de fosse (do fosso da orquestra) e musique d’écran (dos alto-
falantes por detrás da tela). Se dá, neste caso, um esforço para multiplicar e explorar
45 Alice Guy, considerada a primeira cineasta da história, realizou entre 1900 e 1907 as chamadas “fono-cenas”. Seguem o estilo da ópera, por seus roteiros e ingredientes. Serão muito utilizadas no filme mudo, orientando-se rumo ao uso de cenários históricos e exóticos, sensualidade, paixão, trama e detalhes pitorescos.
58
situações que dão lugar a uma música de cena, de tela (aquela cuja fonte sonora pode
ser vista). Ocorre uma tentativa de síntese entre o dramatismo musical do cinema mudo
e o naturalismo do cinema sonoro. A coabitação sobre a pista sonora de ruídos, diálogos
e música obrigará a remodelar o emprego desta última.
O cinema sonoro obrigou a se redefinir o lugar da música no universo realista
audiovisual e sua nova constituição. Já nos anos trinta e quarenta, as técnicas, as
práticas, as estéticas e os gêneros podem ser muito diferentes, inclusive dentro de um
mesmo país. Na orquestração dos os filmes americanos há mais abundância de ritmos
fluidos, líricos, recitativos entrelaçados aos diálogos, no afã de fundir elementos da
música, ruídos e palavras onde se relacionem harmoniosamente. A música no cinema
americano foi posta sob um modelo estável, configurada sob uma fórmula unificada,
educada, suave e lírica, com entradas e saídas da música organizadas, para não se
romper a impressão de continuidade. A música se torna presente em termos de
minutagem e em segundo plano de atenção, como uma ponte entre palavras em ritmo
recitativo e ações físicas, sublinhando-as discretamente, como para a subjetividade dos
personagens (interior) e paisagens (exterior).
Com as convenções inicialmente assentadas, passa a ocorrer uma subordinação da
escrita da partitura em relação à narração e à duração das sequências e uma estreita
sincronização da partitura em relação à ação de certas cenas. No que tange aos aspectos
operacionais destes condicionamentos da música nos filmes, o compositor recebe
geralmente as referências a respeito de como e quando acentuar musicalmente as cenas.
Há inúmeros casos em que a composição musical é afetada pela irregularidade métrica
de uma cena. O compositor deve então fazer desta irregularidade um gesto musical
natural e, ao mesmo tempo, singular. Para tanto, é preciso observar o pulso e não o
compasso musical, para que a música seja percebida de forma fluida. Correta
sincronização fez com estes gestos rítmicos se tornassem comuns nas trilhas sonoras.
Muitas vezes os compositores se valem de um recurso, o “compasso de amálgama”, de
andamento e tempo irregulares, com a finalidade de “forçar” sutilmente as frases
melódicas ou movimentos harmônicos para que não fiquem truncados com as mudanças
nas cenas (sync points: pontos de interesse dramático) sem, contudo, afetar os limites de
tolerância do espectador. Isto porque, quando se realiza uma mudança sobre um ritmo
que é constante, produzem-se efeitos de atração inevitáveis, provocando a busca de um
59
acento rítmico. É comum também o emprego da anacruse (iniciar uma frase melódica
antes do primeiro tempo do compasso).46
2.3.2 - A concepção musical cinematográfica
No século XIX, as já mencionadas pantomimas luminosas de Émile Reynaud eram
acompanhadas por uma música original para piano, composta por Gaston Paulin. Desde
então, todas as projeções de filmes passaram também a ser acompanhadas, geralmente,
por uma improvisação que um pianista fazia junto ao palco. O princípio comercial que
já orientava a produção cinematográfica também adotou a utilização, por seu caráter
atrativo, de músicas conhecidas, canções da moda, melodias populares, valsas de
repertório, músicas de gênero etc. Poucos longa-metragens do período do cinema mudo
não incluíam cenas de dança popular, de baile, de ballet clássico, de festa campestre, de
café, de concerto, de revista, music-hall, ópera, de número de circo, de cerimônia
religiosa, de canção ou regozijo popular em torno de um instrumento. No cinema mudo,
as músicas originais não chegavam a 1% da produção global de filmes.
A primeira trilha musical encomendada para um filme, na história do cinema, foi à
Camille Saint-Saens, compositor clássico, consagrado compositor de óperas e músicas
orquestrais. A composição de um nome reconhecido no meio da música erudita daria
uma certa dignidade de Film d’Art ao cinema, ainda considerado um espetáculo
popularesco, naquela época. O filme era L’assassinat Du duc de Guise, de 1908. A
música era muito pouco comprometida, porém, com a sua dinâmica fílmica. Por isto, a
primeira composição considerada como inaugural na arte estrita da trilha musical foi de
Ildebrando Pizetti, para o filme de Giovane Pastroni, Cabíria, em 1913. Esta
composição, chamada Sinfonia do Fogo, para grande orquestra, passou a servir como
modelo para muitos filmes que vieram em seguida. Mesmo a despeito dos fragmentos 46 Os métodos de sincronismo entre música e imagens mais empregados na história do cinema foram o Clock Sync (técnica simples que emprega o uso de cronômetros), o Punch & Streamer, sistema baseado em marcas visuais na película onde o diretor da orquestra seguia enquanto se gravava a música e o Click Track (a sincronização pela claquete, que fazia coincidir os pontos de sincronização com os pulsos da claquete). Atualmente utilizam-se softwares como o Digital Performer, além de nomenclaturas como MX in e MX out: (MX) diferencia a música das diferentes pistas sonoras, tais como o diálogo (DX) e os efeitos acústicos (FX).
60
de Gluck recortados por Pizetti, esta trilha musical possui uma grande vitalidade. Em
1915, Pietro Mascagni compôs a trilha musical para Rapsodia Satânica, de Nino
Oxilia.
O uso de fragmentos musicais no cinema foi aceito como uma necessidade atávica,
neste novo meio de produção ficcional. Devido a sua complexidade, no entanto, os
diretores ainda se debatiam com as dificuldades e a carência de métodos conceituais e
expressivos para se pautarem no fazer cinematográfico. Em Intolerância (1915), W.
Griffith empregou músicas previamente compostas para a sua narrativa, mas o efeito
não se aproximou, ao menos em todos os momentos do filme, da atmosfera desejada.
Imagens amenas de animais domésticos conviviam, por exemplo, com movimentos
sonoros orquestrais densos e expressionistas. Em outra cena, uma composição do
período romântico sonorizava anacronicamente tomadas de época que figuravam os
primórdios do cristianismo, em Jerusalém. Como não havia sincronismo entre som e
imagem, ainda não era possível fazer uma edição da trilha e não havia um modo de se
alterar a condução da música que ilustrava as cenas. Mais tarde, ciente da importância
da integração entre música, narrativa e imagem, Griffith passou a supervisionar de perto
a partitura original, quando a encomendou para Broken Blossoms, em 1919. No filme
O gabinete do Dr. Caligari, também do mesmo ano e que hoje é uma película
emblemática do movimento chamado Expressionismo Alemão, o diretor Robert Wiene
encomendou uma partitura original à Giuseppe Becce, mas esta não passava de um
pastiche de músicas românticas conhecidas.
Nos anos vinte, muitos compositores renomados são cooptados pelo cinema. Darius
Milhaud cria a trilha musical para o filme A desumana, de Marcel L’Herbier (1924).
Em 1924, Erik Satie fornece uma música original para Entreact, de René Clair, e
Florent Schmitt compõe para o filme Salammbo, de Pierre Marodon. Arthur Honegger,
em 1927, assina a música de Napoleão, de Abel Gance. O compositor Paul Hindemith
colaborou no filme experimental de Hans Richter, 1928: Vormittagspuk. Alexandre
Nevsky, de Eisenstein, recebe a música de Prokofiev. O diretor instruiu o compositor,
ao dizer que era preciso que a imagem e a música formassem um todo, captando um
elemento comum ao visual e ao sonoro, que seria o movimento ou a vibração. Em
muitos filmes mudos de Lang, Murnau, Walsh e Eisenstein se incorpora uma “música
original” que só é executada em público em circunstâncias privilegiadas. Este era um
61
fator sentido pelos compositores: unicamente as grandes salas podiam ter uma orquestra
suficientemente importante para executar a música original para um filme. Nas cidades
pequenas, o filme projetar-se-ia com uma adaptação qualquer e a partitura
desapareceria.
Quando o cinema se tornou sonoro e falado, alguns teóricos concordam que este chegou
mesmo a abusar da música de fundo, mas esta reforça a posição privilegiada que sempre
teve no cinema. Ela continuará a fazer parte da história, indissociável do espetáculo,
igualmente se liberta e se desenvolve amplamente. Para Bálázs, o filme falado rejeitou,
entretanto, a antiga música de programa, herdeira do teatro musical e que ainda persistia
no cinema mudo. Passou-se a preocupar, por conseguinte, com uma concepção
específica para a música de filme e, com isto, condicionou-se também a experiência de
escuta da audiência. O autor da trilha original passa a ser considerado, com justiça, um
dos autores do filme, o com o diretor e o roteirista.47 Fato é que poucos compositores
estritamente musicais deram obras ao cinema, mas muitos autores de música de filme
sentiriam orgulho nas suas composições narrativas.
O período do cinema sonoro coincide com a perseguição anti-semita na Europa durante
os anos entre-Guerras e com as dificuldades econômicas logo após a Segunda Guerra
Mundial, que fez muitos músicos europeus com esmerada formação clássica e
experiência com a ópera migrarem para os Estados Unidos e passarem a contribuir com
o vocabulário musical para filmes. Por seus recursos harmônicos e melódicos, o
romantismo musical europeu do século XIX ainda era mais familiar para os
espectadores desta época. É um consenso atribuir às orquestrações que perduraram ao
longo das primeiras décadas o fato de essas se inspirarem no repertório erudito dos
compositores românticos. O compositor húngaro Miklos Rosza, doutor em música e
apaixonado por musicologia, foi pioneiro no estudo de contextos históricos para
incorporar instrumentos, temas e recursos de época para ambientar o filme. Isto pode ser
atestado em seus trabalhos, como El Cid, Ben-Hur e Quo Vadis. Por experimentação
empírica, contudo, cenas sem música às vezes surtiam efeitos inesperados para o
diretor. O contrário também podia acontecer. Um fato desta ordem e interessante na
47 O perfil do compositor, nas produções cinematográficas contemporâneas, também se alargou e atualmente temos exemplos de Dj’s, como Amon Tobin, que passam a assinar trilhas musicais, como em Taxidermia (Hungria, 2006, György Palfi) e de músicos engajados com a composição de trilhas para games, vídeos, instalações multimídia e mesmo vinhetas ou peças publicitárias.
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história do cinema se passou justamente com Rosza, em The Lost weekend (1945). O
diretor não queria nenhuma música na cena em que o protagonista, numa crise de
alucinação alcoólica via um morcego comer a cabeça de um rato em um buraco da
parede, reagindo com horror àquela imagem. Na estreia do filme, o efeito dramático
esperado para a cena não ocorreu e deu-se justamente o contrário do previsto pelo
diretor, pois a audiência ria às gargalhadas! O compositor foi procurado às pressas para
criar um trecho musical para esta sequência, de modo que o filme fosse novamente
exibido.
No filme Casablanca, de 1941, marca a história da concepção musical cinematográfica,
pois o tempo, nesta história, é conduzido com maestria: a música se encarrega
completamente da narração, desde os créditos iniciais, a música situa o marco
geográfico, depois o marco histórico, depois a ambientação particular. Toda a partitura
do filme é um mosaico de ecos e citações, reminiscências.
Ao final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, se assiste à moda do jazz e a
uma espécie de triunfo da melodia, que já não está cuidadosamente ancorada em um
motivo sóbrio, mas se desprende para ser ouvida e retida na memória. A música que se
escutava no filme tinha uma relação com o repertório musical discográfico que os
personagens consumiam e dançavam. Para alguns cinéfilos e críticos, isso era uma
heresia absoluta. De fato, não se trata de uma renovação do cinema pelo jazz, pelo rock
ou pela canção pop, mas antes uma renovação da própria sonoridade, dos instrumentos,
do espaço musical: a guitarra elétrica, a vocalização, a harmônica, o assovio, efeitos
sonoros criados por sintetizadores (gimmicks) etc. O compositor Lalo Schifrin é quem
mostra, com especial desenvolvtura neste contexto, a importância expressiva e estética
que se atribuirá ao timbre, a novas sonoridades nos filmes.
Um caso singular e bastante comentado na história do emprego de música preexistente
na trilha sonora cinematográfica foi o que se deu com 2001: A Space Odyssey (1969),
para a qual Stanley Kubrick solicitou a seu antigo colaborador Alex North, que
compusesse a trilha sonora para a película. Como é comum inserir-se alguma música no
copião (denominada temporary tracks ou música provisional, provisória, geralmente
tirada da fonoteca do diretor ou do montador) para ajudar no trabalho da montagem e
edição, antes de receber a trilha original, o diretor acabou por optar por músicas do
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repertório clássico, neoclássico e modernista, compostas por Johann Strauss (Danúbio
Azul), Richard Strauss (Also Sprach Zaratustra) e Gyorgy Ligeti (Lux Aeterna) que
figuravam provisoriamente, para empregá-las, na abertura, numa cena em que a nave
flutua no espaço e no aparecimento do enigmático monólito encontrado pelos
hominídeos, respectivamente.48 Apesar da contundente utilização musical, há muitas
passagens de ação que não têm música ou esta apenas intervém em sequências sem
palavras, a fim de liberar uma afetividade retida nas palavras, o que permite uma
presença obtusa e enigmática do filme. Alex North, contrariado, acabou por aproveitar a
sua composição em outro filme.
A partir de 1975, com as tecnologias, se abrem novas possibilidades para a música e, ao
mesmo tempo, para a tendência que se passou a denominar “retrô”, atestada pelo
retorno do cinema épico e pela recriação de um cinema de emoções coletivas, que busca
um recomeço diante dos desenganos do cinema experimental, underground, do “cinema
novo” dos anos sessenta e setenta. Denominado como neo-sinfonismo, a grande música
sinfônica ressurge nos filmes americanos e nota-se um refluxo de modas musicais dos
anos vinte, trinta e cinquenta. Ocorrem, neste contexto, misturas de estilos sinfônicos
clássicos com efeitos eletrônicos (inspirados nas pontuações sonoras de videojogos),
com temas musicais ostensivos, reconhecíveis, personalizando cada personagem
(leitmotiv). Tais procedimentos são também sintomáticos de uma necessidade de se
criar um tipo de espetáculo cinematográfico apto para convocar o público infanto-
juvenil, que estava se convertendo no principal cliente das salas de exibição. Afinal, era
preciso atrair a mesma audiência dos concertos de rock para as salas de cinema. Para
tanto, seria estratégico criar uma nova ritualização da sessão de cinema.
Surgem, nesta época, os gêneros “ópera-rock” (Jesus Christ Superstar, de 1970, por
Andrew Lloyd Webber; Tommy, de 1975, por Ken Russell, Godspell, de 1973, por
David Greene; e Hair, de 1979, por Milos Forman, são alguns exemplos conhecidos) e
os filmes ligados à discoteca. A relação música/palavra/imagem no filme de disco music
se caracteriza por uma espécie de independência rítmica da música e pela percepção da
música como unidade à parte, que soa do mesmo modo como numa discoteca. A música
geralmente predomina sobre a imagem e solicita a adesão do público. Muitos filmes
48 A título de outro exemplo, em certos momentos do seu filme Stalker (1979), Tarkovsky inseriu trechos incidentais de peças do repertório da música clássica, como a Nona de Beethoven e o Bolero de Ravel.
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americanos das últimas décadas passaram a adotar como música – em certas produções,
de um modo surpreendente - uma seleção de títulos populares de hip hop ou rock.
A escuta da audiência foi se formando, num processo gradual, por associações
condicionadas entre situações dramáticas e respectivas sonoridades musicais. A cultura
musical dos espectadores e a sua familiaridade com um sistema musical permitem o
acesso aos efeitos de sentido dependentes da música tonal, que dá acesso à percepção de
equilíbrios (acordes perfeitos) que acompanham, por exemplo, momentos de felicidade,
ou de tensões (acordes dissonantes) frequentes em certos momentos de incerteza ou
suspense numa narrativa.
Nos anos cinquenta sente-se uma abertura a temas mais audaciosos, sociais, sexuais,
psicológicos ou psicoanalíticos e sobre a juventude, assuntos para os quais se tenta
recobrir com uma música que evoque este universo cultural, com sentimentos mais
complexos. Um novo planejamento do papel da música no cinema é fator de renovação
de concepções e novas composições, mais dissonantes, atonais, eletroacústicas passam a
se incorporar às tramas cinematográficas. A pesar de conservarem o sistema do
leitmotiv e a utilização da música como inflexão, ponte, indicador psicológico, os novos
diretores e compositores musicais recorrem a uma linguagem mais complexa, flutuante,
com sonoridades de jazz, em relação a estados mais atormentados do personagem.
Após os anos cinquenta, o estilo de composição para filmes, também empurrado pelas
tendências televisivas, sofre muitas mudanças. No processo anterior de popularização
do cinema, situações e estados emocionais vividos pelos personagens deveriam ser
facilmente assimilados. Não havia, por conseguinte, muito foco para atender ou atrair
uma audiência culta ou intelectualizada. Filmes com pontos de vista filosóficos ou
políticos eram minoria e as ideias dos compositores modernos ainda não eram
incorporadas ao cinema hollywoodiano. Para os compositores e profissionais ligados à
sonoplastia, a televisão abriu as comportas para novas experimentações estéticas e
funcionais de sonorização e música nos programas televisivos. Daí em diante, com o
mercado profissional gerado pela televisão, começaram a sobressair novos compositores
americanos neste ramo até então dominado por músicos europeus. Aos poucos, se
descobriu que a música, buscando vibrações perdidas entre as notas, para além da
melodia, encontrou outras regiões menos comuns. Um exemplo seria a música atonal,
65
que não era aceita pela audiência em concertos, podia ser muito bem aceita em filmes.
O dodecafonismo, por exemplo, de complexa exigência para a escuta, foi extraindo
valores dramáticos e expressivos de suas dissonâncias e polirritmias, passando
gradualmente a ser, tais como o minimalismo e a música eletroacústica, incorporado no
cinema.49 Noel Burch (1992) explica, a este respeito, que a música tonal, com suas
formas pré-estabelecidas, com polaridades harmônicas, pode representar uma
continuidade autônoma, paralela à imagem, se executada entre ruídos e diálogos. Já a
música dodecafônica, com sua liberdade rítmica, utilizando todos os timbres que os
clássicos consideram vulgares, parece mais apropriada à interação orgânica com os
elementos sonoros reais e com a imagem filmada. Da mesma maneira, o convívio da
audiência com a televisão e seus respectivos hábitos de escuta musical, a partir dos anos
cinquenta, fomentaram a inclusão eventual da folksong, do jazz moderno e do rock nos
filmes.
2.4 - As sonoridades reinventaram o silêncio no cinema?
Não se pode recusar o fato de que há circunstâncias num filme ficcional em que a
música, os sons, ruídos ou mesmo os diálogos podem ser abolidos. De um modo geral, o
silêncio não é apenas a ausência do som. Sabemos que sem o silêncio não poderíamos
sequer nos comunicar, pois apesar de ele ser uma forma ilocutória no discurso, opera
justamente como um elemento de elipse no contraponto da conversação verbal. São as
potências mudas de antes ou depois da fala. O silêncio é, em igual medida, um elemento
retoricamente decisivo em diversas situações nas quais ele adquire múltiplos
significados. Ademais, recordemo-nos de tantas coisas que dizemos sem falar, que
mostramos sem exibir. Parece que o homem, no entanto, teme a ausência de som, como
49 O dodecafonismo é um sistema de composição que utilizada sem a hierarquia do sistema tonal (que pressupõe o “magnetismo” de uma nota fundamental – a tônica – em torno da qual se articulam os intervalos de terça e quinta, seguidos dos demais intervalos. Ao utilizar igualmente das doze notas da escala (todos os sete tons diatônicos mais os cinco cromáticos: sustenidos e bemóis), o dodecafonismo gera um desarme constante de nossas expectativas de escuta, condicionados que estamos ao sistema tonal. Através do sistema tonal, certas regras de probabilidade condicionam a atenção do ouvinte pela expectativa de determinadas resoluções de desenvolvimentos sobre a tônica, o centro gravitacional da música tonal. A situação de suspense é típica do tonalismo, obrigado a romper o tédio da probabilidade. É um jogo de inibições e de reações emotivas que gera um o círculo estímulo - crise - tendência que surge - satisfação sobrevinda - restabelecimento da ordem.
66
se o silêncio fosse uma escuridão auditiva. Cortando o silêncio com os sons, ele se sente
livre.
Na história do cinema, antes do advento da trilha sonora sincronizada, existia um
universo sonoro nas salas de exibição. Houve um longo período, no qual os filmes
sonoros (falados e com música) parecem ter corrido do terror do silêncio. Diretores
acreditavam ter a música uma atribuição de dar ao espectador a sensação de uma
duração efetivamente vivida e, caso seja a sua intenção, libertá-lo do “peso do silêncio”.
A chegada do som também trouxe a chegada do silêncio, tanto como um recurso de
expressão quanto nos modos diferentes de apreensão da audiência, cuja atenção aos
sons fazia com que os espectadores ficassem absortos e silenciosos diante da tela. É por
esta razão que Bálász (1978) afirmou que o cinema falado e musical inventaram o
silêncio, que silenciaram muitas coisas. Ele foi um dos primeiros autores a identificar
um papel importante do silêncio na expressão estética dos filmes sonoros, ao dizer que o
uso criterioso do silêncio pode atuar, em certos momentos, como um poderoso
contraponto expressivo. Períodos de silêncio geram, de fato, um efeito de suspensão ou
podem mesmo contribuir para o próprio realce dos sons. O silêncio, como ele dizia, tem
o poder de amplificar os ínfimos gestos. Além do mais, o silêncio cinematográfico
também poderia sugerir ambiguidade em uma história ou de um personagem.
Cinema agora busca dominar a arte do silêncio. Não existem dois silêncios iguais.
Podem-se comparar dois silêncios, tanto quanto dois pintores podem comparar dois
pretos e dois brancos. No cinema se faz distinção entre diferentes “cores” do silêncio:
silêncio na pista de som, silêncio campestre, silêncio produzido no estúdio etc. Cria-se o
silêncio num momento, no estúdio, quando o engenheiro de som pede alguns minutos
de silêncio. Ele grava este silêncio, vai usá-lo para alguma coisa, ainda não sabe para
quê. Esse silêncio absoluto não existe na natureza e só pode ser obtido num estúdio
hermeticamente fechado. No elogiado filme Sunrise, de Murnau, lançado em 1927,
revelava-se um silêncio que era, na realidade, povoado de ruídos, de mil vibrações que
emanavam da imagem.
Alberto Cavalcanti (apud PELIZZARI e VALENTINETTI, 1995) afirmava, por seu
turno, que todo filme necessitava de certos “momentos de respiração”, com necessárias
interrupções do som. Robert Bresson, que sempre buscou construir seu filme sobre o
67
branco, o silêncio e a imobilidade, passou a adotar uma trilha sonora basicamente
composta de ruídos e silêncios. Em suas notas, ele relembrava a si mesmo sobre a
necessidade de se encontrar, em seus filmes, um parentesco entre imagem, som e
silêncio, buscando a certeza de ter esgotado tudo o que ele conseguia comunicar antes
pela imobilidade e pelo silêncio. Só então o cineasta experimentava a inclusão do
movimento e do som. Em suas próprias palavras: “Foi somente há pouco e pouco que
eu suprimi a música e utilizei o silêncio como elemento de composição e como meio de
transmitir emoção.” (BRESSON, 2008, p. 106). Bresson preferia as táticas de lentidão e
de silêncio às táticas de velocidade e de ruído. Há, no entanto, dois tipos de silêncios
por ele empregados num filme: o silêncio absoluto e o silêncio obtido pelo “pianíssimo
dos ruídos”. (BRESSON, 2008, p. 42) 50 O diretor ainda cita outro modo de explorar o
silêncio, por meio do que ele chamou de “silêncio musical”, alcançado por um efeito de
ressonância: uma última sílaba ou o último ruído perduram como uma nota musical
sustentada. O diretor afirmava que o silêncio tem o poder de amplificar os ínfimos
gestos e dizia sempre optar por silenciar a música em seus filmes quando o foco
estivesse na ação ou no suspense. Bresson menciona uma frase emblemática de John
Milton (1608-1674) que, em Paraíso Perdido, livro IV, proclamou: “O silêncio foi
agraciado”. (apud BRESSON, 2008, p. 49) De fato, o cinema moderno resiste ao ato de
fala e impõe, quando nos apresenta o solilóquio silencioso no qual um rosto pode se
expressar com as gradações mais sutis de significado sem, no entanto, parecer artificial.
No meio de uma conversação há sempre um jogo de traços mudos. Somos então levados
a perceber o solilóquio silencioso e sentir a diferença que existe entre este solilóquio e a
conversação audível.
A força expressiva do silêncio passou a ser explorada com maior recorrência a partir dos
anos sessenta, com a implementação do som magnético e da tecnologia Hi-Fi. O
surgimento destas técnicas incrementou a qualidade sonora dos filmes, uma vez que
certas faixas de freqüência puderam ser realçadas e gerar uma nova dinâmica acústica,
de contrastes sutis entre intensidades e do amortecimento do ruído de fundo.
Redescobre-se uma realidade diferente para o silêncio: um novo silêncio que envolve
50 Em Vivre sa vie (1962), de Jean-Luc Godard, o silêncio torna-se um instrumento de fragmentação entre as partes da sua história. Alfred Hitchcok preferia substituir a linguagem verbal por outros sons, para suscitar valores contraditórios para o silêncio. Michelangelo Antonioni, em Blow Up (1966, Reino-Unido/Itália), desenvolveu um estilo na estética do silêncio: o silêncio fotográfico.
68
palavras e ruídos isolados, dando qualidades singulares a algumas cenas. No início do
filme West Side Story (EUA, Robert Wise, 1961), o ruído ínfimo dos dedos estalados
pelo bailarino produz, na primeira cena, um efeito único, porque enfatiza o silêncio
ameaçador que paira entre as duas gangues rivais. Ingmar Bergman, no filme O silêncio
(1963), utiliza uma língua desconhecida que permite fazer ainda mais sensível o ritmo e
a sonoridade da palavra. Igualmente, os gritos das ruas também soam como timbres e
cores.51 Esta observância em relação ao silêncio propicia sutilezas nas modulações de
atmosfera, de ritmo e de humor dos personagens, bem como das mudanças do tempo
narrativo. Outro momento de inovação do papel do silêncio no cinema se deu com Era
uma vez no Oeste, de Sergio Leoni (1968). Contando com a célebre parceria entre o
sonoplasta Eros Bacciucchi e o compositor Enio Morricone, nos quinze minutos do
início do filme, nota-se como os sons de grilos e insetos (produzidos artificialmente) se
estancam e provocam uma suspensão das sensações em curso, redimensionando o
silêncio repentino compartilhado entre personagens e espectadores. Outro exemplo
notório é 2001: a Space Odissey (1969), Stanley Kubrick usa frequentemente uma
ambiência sonora muito rarefeita, que sublinha o silêncio entre os personagens e, às
vezes, ele arrisca um silêncio absoluto, por exemplo, quando o computador Hal
telecomanda o assassinato de Frank Poole. Esses momentos de silêncio, no caso do
filme de Kubrick, podem ser interpretados, de acordo com Michel Chion (1997), como
a tradução de outro silêncio: o pensamento. Pensamentos não são ouvidos. Para o autor,
esta obra é também um filme sobre o poder de dissimulação e da mentira: todos os
personagens dissimulam coisas uns dos outros e a linguagem no filme incorpora a
dissimulação em paralelo com o silêncio de pensamentos. O próprio tempo parece ser o
personagem principal, transcorrendo silenciosamente, sem explicação.
2.5 - As aventuras sonoras de cineastas experimentalistas
A contracorrente do chamado “grande cinema” logo se mostrou, ainda nos anos 30, com
irreverentes respostas modernistas. Num volver de olhos para os últimos anos do
aparecimento do cinema sonoro, relembramos que o cinema impressionista francês –
51
The silence (1963, Suécia): Bergman cria um clima de silêncio verbal ou de falas vagas e monossilábicas, pontuadas por sons naturais, o que gera um ritmo particular para a imagem e a narrativa.
69
também chamado de surrealista ou vanguardista - experimentava a partir da ideia de
uma “música da imagem” com a morfologia e a estrutura musicais para priorizar no
cinema antes o ritmo e a plasticidade, em vez de narrativas. Era um cinema que,
inspirado em peças musicais clássicas já compostas, criava uma realidade que só teria
existência cinematográfica. Para esta modalidade fílmica, não se priorizavam situações
dramáticas, mas sentimentos, estados de espírito, ambientes, aspirações, nostalgias,
associações de ideias, sugestões criadas por meio de enquadramentos e da montagem,
pelo ritmo que esta gerava. A poética impressionista não resistiu à onda do cinema
narrativo e falado.
O cinema moderno implica um novo uso do falado, do sonoro e do musical. O som
deixou de ser um componente da imagem visual, como o primeiro estágio, tornando-se
imagem, integralmente. Walter Ruttman dirige, em 1927, Berlin: sinfonia de uma
grande cidade (1927), filme para o qual Edmund Meisel compôs a trilha sonora
jazzística, que se perdeu. Ele trabalhou na montagem com o diretor, para garantir o
efeito rítmico entre imagens e a música no filme. Em 1930, Ruttman radicalizou e
produziu Wochende, um filme constituído apenas de uma trilha sonora aplicada a uma
película virgem, revelada sem exposição. A obra de Ruttman fora concebida justamente
para audição em sala escura, sob as condições psicológicas do ambiente
cinematográfico. Wochende é uma espécie de “filme para o ouvido”, que transpõe
concepções formais musicais sob um método de montagem que se efetua segundo uma
lógica rítmica. A trilha é composta por fragmentos de sons gravados, com uma duração
muito curta, mais para evocar diferentes universos sonoros nas cenas urbanas. Neste
trabalho de Ruttman se nota um gérmen dos futuros desenvolvimentos da música
concreta. A despeito do pioneirismo do compositor Pierre Schaeffer em suas
experimentações nos anos quarenta e que fizeram surgir a musique concrète (música
composta de colagens de sons previamente captados da realidade), as explorações
antecipatórias da composição a partir deste método de bricolagem sonora vieram de
compositores ligados ao cinema: Ruttman, Dziga Vertov e Rouben Mamoulian,
especialmente.
Em seu Manifesto Kinoc (1922), Vertov enunciou que não serão os próprios
movimentos que interessam ao olho do kinoc (como ele mesmo se nomeava, para se
diferenciar dos cineastas convencionais), e sim os movimentos entre as imagens, as
70
passagens de um movimento para outro, as suas transições. 52 Tudo, para o cineasta
soviético, está nos intervalos, nas “interimagens”. Ele cunhou a conhecida expressão
“cine-olho”, por meio da qual reafirma que a câmera não era apenas um olho
exteriorizado, mas que deve ultrapassar o olho em suas funções perceptivas. O
cineasta-kinoc captura o ritmo, a natureza heterogênea dos movimentos.
Para Vertov, o olho e o ouvido partilham ambos das mesmas funções, tanto que ele
acolhe o cinema sonoro desde que este não se torne uma representação meramente
encenada. Sua paixão pela montagem também se estendeu às sonoridades, ao que ele
chamava de “montagem da vida audível”. Dziga Vertov foi, de fato, o primeiro artista a
experimentar cortar e colar trechos de notas estenográficas e de gravações de
gramofones, registrando ruídos tanto naturais quanto maquínicos. E, tal como ele criou
o conceito de “cine-olho”, expandiu esta concepção ao termo “rádio-olho”, que seria o
cine-olho ampliado pelo audível e pela tecnologia radiofônica da época. Se o cine-olho
é a montagem do “eu vejo”, o rádio-ouvido é a montagem do “eu ouço”. O cineasta
deve então concentrar as virtudes do kinoc e do radiok. A ideia de Vertov almeja que o
“ouvido mecânico” (o microfone) seja um aparelho “que não descreva, mas que
inscreva, que fotografe os sons”. (VERTOV, 260)
Em A sexta parte do mundo (1926), os textos já são substituídos por uma expressão
“rádio-tema”, sob a forma de contraponto. O décimo primeiro ano (1928) foi construído
como filme visível e audível, ou seja, um filme montado para ser visto e também
ouvido. Vale também recordar o exemplo Entusiasmo ou Sinfonia dos Donbas, filme de
1930, cujas cenas poderiam ser dispostas de modo panfletário, mas tornaram-se
inusitadamente "musicais".53 Os sons captados não soam como trilha sonora ou
sonoplastia: são o "interior" da cena, isto é, não atuam como complemento dramático,
mas como um elemento imprescindível na composição total. Os intervalos são
articulados como forma de obter uma canção visual, a arte do movimento pela qual a
música gerada pela montagem rítmica de ruídos industriais e a sensação "teatral" dos
52 Variação do Manifesto NÓS (publicado na Revista Kinophot de 1922, primeiro programa publicado na imprensa pelo grupo dos documentaristas-kinocs, fundado por DzigaVertov, em 1919). 53 As cenas são montadas como um imenso "estado", uma situação de caos e miséria, a princípio, irreversível. Depois, há mudança nas vibrações do filme. O estado de antes, tão pesadamente composto, começa a se dissolver. Neste filme de Vertov, o trabalho comunitário é enaltecido como forma de superação.
71
movimentos corpóreos se amalgamam. Chaplin admirou abertamente o trabalho de
Vertov para o som desta película. Com The man with a camera, finalizado em 1929,
Dziga Vertov filmou uma homenagem ao cinema que, em breve, seria chamado de
“mudo”. Ele traçou, no entanto, as linhas daquilo que viria a ser a futura música de
filme, depois que a indústria soviética passou a dominar as técnicas de gravação do
som. Sob a ideia metacinematográfica do “filme dentro do filme”, quando se inicia a
projeção diante do público, no fosso da orquestra vários instrumentistas preparam-se
para tocar sob a direção de um maestro. Enquanto a projeção se põe em movimento, a
orquestra começa. A trilha sonora que Vertov sonhara nunca foi gravada, pois seu filme
não despertou o entusiasmo do Partido. Atualmente, graças ao MoMa, o Museu de Arte
Moderna de Nova York, podemos ver o filme sonorizado por músicos contemporâneos
segundo as indicações deixadas por ele.54
Jean Epstein e René Clair, Abel Gance, apesar das diferenças poéticas em relação a
Vertov, também foram “sinfonistas da imagem” e apoderaram-se igualmente do som
para transmutá-lo e experimentar seus modos de integração com a imagem. Ou seja,
buscavam uma continuidade rítmica de movimento dos planos da imagem parecida ou
próxima com os fluxos e tempos da música. Gance, por exemplo, chegou a tratar os
planos montados segundo as durações da própria notação musical (semibreve, mínima,
semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa)
Os cineastas modernos, em que pese a singularidade poética de cada um deles, estão de
acordo que, no cinema, quase tudo é questão de ritmo. E, no mundo moderno, o ritmo é
o “rei”. O ruído rítmico se instaurou como expressão do mundo moderno e toma uma
importância fascinante nos diferentes gêneros do nascente cinema sonoro. Com o
sistema de gravação óptica (que sucedeu ao Vitaphone), surgiu um campo de
experimentação e expressão para mostrar, contar e cantar a vida moderna. Foram
realizados “poemas sinfônicos concretos” nos quais se apresentava a “melodia do
mundo moderno”, ou seja, uma melodia fabricada pela montagem sonora. Pioneiros de
da que viria a ser chamada de “música concreta” (como se mencionou acima) se
distanciaram do estilo clássico de música de acompanhamento e trabalharam sobre o
54 Em 1995, recebeu a primeira trilha sonora, composta e conduzida pela Alloy Orchestra, seguindo as instruções escritas por Dziga Vertov. Desde então, o filme já mereceu, até o ano de 2011, 16 novas trilhas, por diversos compositores.
72
ruído. No filme La nuit à nous, 1930, de Carl Frölich e Henry Roussel, já surgem
sequências de montagens de ruídos de fábrica e carros. Rouben Mamoulian, no seu
genuíno musical Love me tonight, de 1932, construiu uma abertura que trouxe uma
espécie de “sinfonia de ruídos”, mecânica e urbana, por meio da montagem de sons
ambientes, ao transformar os sons do despertar de Paris (as batidas de uma marreta, o
ronco de um mendigo, uma vassoura, um tapete, martelos de sapateiros, o choro de um
bebê), tudo entre numa polirritmia original, um prelúdio pioneiro de musique concrète,
explorada diversas vezes mais tarde (Mamoulian havia experimentado tal composição
de sons naturais numa peça de teatro, Porgy, de 1927). Em Shall we dance (1937) de
Mark Sandrich, fragmentos de ruídos ritmados se incrustam, como percussões, entre as
estrofes de uma canção de Gershwin.55 Em Allô Berlin, ici Paris, 1930, realizado por
Julien Duvivier a montagem de imagem e som se encadeiam, no plano visual, com uma
série de planos muito breves de timbres de telefone. Estes timbres, ao serem “afinados”,
por processos de velocidades de rotação da execução, desenham uma melodia. Eram
experimentações nas quais as imagens sonorizadas foram tratadas como notas musicais:
o som concreto (captado e colado) se fundia ao abstrato (notas musicais) criando um
jogo de alturas tonais.
O filme L'Atalante (França, 1934), do diretor Jean Vigo, também demonstra o quanto a
técnica de captação, de edição, de mixagem e de sincronização entre música, sons e
diálogos já começava a permitir certa liberdade de criação com a simultaneidade destes
elementos e de gerar novos efeitos expressivos. Michel Chion (1997), a propósito do
ruído de fundo inevitável nos filmes naquela época, por causa do “som óptico”,
especulou sobre uma possível concepção do diretor em usá-lo também expressivamente,
como uma espécie de “baixo contínuo” da história, mais ou menos inconscientemente
percebido pelo espectador.
Para além dos cineastas vanguardistas, não se podem esquecer dos experimentalistas do
audiovisual, tais como Hans Richter, Bruno Corradini, Viking Eggeling, Walter
Ruttmann, Len Lye, Patrick Bokanowski, Arthur Pelechian e Norman Mclaren,
alquimistas que, de acordo com Chion (2010), buscaram pela composição das imagens,
seu conteúdo, seu ritmo e a vida da montagem, elevar a concreção cinematográfica a
55
Este procedimento poético pode ser encontrado no Documentário Philips-Radio, 1931, Symphonie Industrielle, de Joris Ivens.
73
uma espécie de ordem abstrata, próxima a da música pura. O autor, a este respeito, cita
um testemunho de McLaren:
“Escutando música no rádio, às vezes fechava os olhos e via a música em forma de figuras, formas e cores, que se moviam e dançavam. Não obstante, ela me desconcertava, ao perguntar-me como fazer que se materializassem aos olhos dos outros. Quando assisti à Rapsódia Húngara, de Oskar Fischinger, compreendi como fazê-lo.” (apud CHION, 2010, p. )
Estes artistas comungam a ideia primordial da expressão audiovisual como uma espécie
de “alquimia” de correspondências entre a os ritmos da escuta e da visão, sem almejar
qualquer tradução de conteúdos. Dito de outro modo, eles procuram antes recriar
imagens desencadeadas pela escuta e não criar uma ponte tradutora entre os dois
domínios. Busca-se nestas peças um valor plástico e dinâmico “puro” que nos afete
antes que a dimensão figurativa bloqueie ou detenha a liberdade do olhar. Se ritmos
ópticos são criados a partir do ritmo sonoro, em contrapartida, novas sonoridades
passam a viver – pela mudança da própria escuta - do movimento mesmo da imagem.
Em Begone Dull Care, de 1949, as mudanças de cores sublinham a forma musical, seus
estribilhos e modulações. Mais do que tentar traduzir as sonoridades em imagens ou
ilustrar descritivamente uma canção, o clipe precisa sugerir aproximações plásticas e
rítmicas da imagem com a composição.
A ideia de uma equidade entre a trilha sonora e a imagem conquistou outras importantes
adesões no chamado “cinema experimental”: Studien (1930-32) de Oskar Fischinger, a
já citada animação Fantasia (1940) de Algar e Armstrong, produzido pela Walt Disney,
entre outros.56 As experiências de vanguarda sobre ritmo visual e musical também
foram habilmente aplicadas nas animações, como atesta o trabalho de Fischinger,
posteriormente contratado pela Disney. Em 1947, Hans Richter reuniu-se a Man Ray, F.
Léger, Marcel Duchamp, Max Ernst e o compositor experimental John Cage para fazer
o longa-metragem Sonhos que o dinheiro não pode comprar. Décadas depois, em 1968,
Jean Marie Straub retomou as ousadias dos cineastas músicos dos anos iniciais do
cinema experimental, com Cronik der Anna Magdalena Bach. Neste filme ouvimos a
música de J. S. Bach em termos de estrita significação musical, de frases melódicas, 56 Mclaren abriu o caminho para experimentações utilizadas em filmes como Okraina (1933), de Boris Barnet, no qual o diretor emprega uma sonorização fundada em sons artificiais, obtidos a partir de desenhos impressos na própria película óptica. McLaren chega a desenhar diretamente sobre a trilha óptica sonora, para experimentar os resultados de sonoridades provocados por este processo.
74
texturas sonoras, permutações do tema, arquitetura polifônica. Mais uma vez se aposta
na minimização do poder emoldurador da imagem, ocorrendo, contudo, num filme
narrativo, em que as expectativas relacionadas ao funcionamento da trilha sonora são
sabidamente diferentes.
A conhecida Nouvelle vague francesa fomentou muitas experimentações para os então
jovens cineastas dos anos cinquenta e sessenta. Georges Delerue, convidado para
inúmeros filmes deste período, encarna o compositor de cinema, camaleônico e discreto,
ao dissolver sua música na atmosfera que ele mesmo contribui para criá-la. Jean-Luc
Godard é notável, no âmbito da música cinematográfica, por encomendar, para A Bout
de Souffle, de 1959, uma partitura a um compositor e depois fragmentá-la. O piano de
Martial Solal nos surpreende mais aqui pela insolência com a qual a montagem do
diretor o interrompe do que pelo clima musical do jazz americano. O cineasta francês é
pródigo pelo uso que faz da música em seu caráter abruptamente montado,
escamoteado, pulverizado, conflitivo, de suas intervenções e encaixe de efeitos por esta
montagem abrupta. Ele moderniza a música pelo próprio modo de utilização nos seus
filmes, como em Le mépuis, de 1963.
Para diretores como Eric Rohmer, a neutralização da música nos seus filmes se converte
numa opção deliberadamente estética. Para ele, que também era compositor, a música
representa um perigo, por seu aspecto emocional, para a posição irônica que se deseja
conservar em suas histórias. Rohmer não deixou de se valer, entretanto, de uma poética
antinaturalista, com estranhas composições sonoras concretas que, segundo ele,
resultavam como uma metanarrativa auto-reflexiva e anti-realista. Em A colecionadora
(1967), Rohmer efetivamente utilizou procedimentos da musique concrète, criando sons
de cigarras, pássaros, latidos e assovios (estes transformados em ventania), a partir de
bricolagens sonoras. O cineasta também investia muito tempo e esforço no trabalho de
estilização sonora do material bruto, na pós-produção.
Apesar de Andrei Tarkovsky (1989) dizer que a música era artisticamente tão autônoma
que seria sempre difícil dissolvê-la a ponto de torná-la orgânica no filme e que sua
utilização implicaria certa medida de concessão, por ela ser ilustrativa, o mundo sonoro
agenciado num filme é, em sua essência, musical. E esta é, para Tarkovsky, a real força
da música no cinema. Um exemplo notável e bastante ilustrativo é a sua película
75
Stalker, lançada em 1979. Ele trabalhou toda a atmosfera sonora do filme em conjunto
com compositor Eduard Artemiev. Este, ao ser convidado pelo diretor, comentou:
“Tarkovsky me disse que não precisava de um compositor. Ele precisava do ouvido do
compositor e de sua maestria no comando do som, para mixar a música e fazer os
efeitos sonoros.” Depois de rejeitar a primeira ideia que Artemiev lhe apresentou, que
era concebida para orquestra, o diretor acolheu com entusiasmo a segunda composição,
criada a partir de sintetizadores, com um caráter marcadamente minimalista e cujos
temas sofreriam variações ao longo do filme. Amalgamaram-se à música muitos sons
ambientes, ora captados, ora sintetizados, e muitas vezes não chegamos a distinguir o
que é natural ou artificial. Tarkovsky confunde intencionalmente esses tipos de sons e
confere valores musicais a sons supostamente aleatórios provenientes dos lugares
percorridos pelos personagens. No decorrer da narrativa, dá-se aos diversos sons
provenientes da água um tratamento especial: chuva, gotejamentos, ruídos subaquáticos,
sons impactantes dos passos sobre um terreno encharcado e a pujante massa sonora de
uma cachoeira volumosa. O diretor concebe, em certas sequências, uma forma musical e
texturas timbrísticas que antes sugerem imagens “internas”, de modo a enfraquecer a
presença mesma das imagens mostradas na película. A despeito de o diretor declarar
que todo filme de acentuado cunho conceitual não ter lugar para a música, esta película
explora com um cuidado meticuloso toda a intensidade da presença sonora. Ocorre, de
fato, uma espécie de atrofia do olhar que acaba por promover a imaginação e produz
uma impregnação mais incisiva do som. Visualidades e sonoridades têm, de fato, suas
fronteiras borradas, uma vez que a música afeta toda a sensação visual e vice-versa.
Tarkovsky também experimenta a tática das desconexões entre imagem e som que
provocam uma escuta descontínua frente a transições visuais lentas e mudanças sonoras
bruscas. A música eletrônica, para ele, deveria desprender-se de suas origens de
laboratório para que pudesse ser percebida como uma sonoridade orgânica do mundo.
Os sons sintéticos precisariam dissolver-se no som, esconder-se atrás de outros ruídos,
ser a voz indefinida da natureza, dos sentimentos confusos, tal como uma respiração que
banha todo o filme. Qualquer música no filme, dizia Tarkovsky, deve estar trançada
com o ruído do mundo, o ruído “telúrico”.
Um exemplo recente que emprega um modo de aproximação diferente entre imagens e
sonoridades é Shirin (2008), de Abbas Kiarostami. A película mostra o rosto de um
grupo de mulheres numa plateia, assistindo a um filme sobre um conto persa do século
76
XII. É apenas pelas expressões dessas espectadoras e pelo som da trilha que somos
levados a imaginar as cenas que elas veem.
O cinema modernista pós-sincronização sonora experimentou muitas estratégias de
ruptura à gramática da trilha sonora estabilizada pelo grande cinema. Muitos cineastas,
inclusive no Brasil, defendiam a abolição da convenção da música de fundo,
substituindo-a por ruídos organizados, associados ou não a trechos extraídos do acervo
musical, ou que elementos paramusicais ou musicais substituíssem os ruídos. A trilha
sonora também poderia organizar musicalmente os ruídos em off. Tal possibilidade mais
livre do tratamento dos ruídos chega a fazê-los desempenhar um papel comparável ao
que se atribui à música. A experimentação de tratamento dos diálogos, ao mesmo tempo
como veículo narrativo e como ruídos musicalmente organizados, geram efeitos
puramente sonoros: algo como um “concerto de ruídos” articulado à organização
plástica e dinâmica das imagens. 57
2.5.1 - As conexões entre a visualidade e a escuta no cinematógrafo, segundo
Robert Bresson
As notas de Bresson (2008) a respeito do fazer cinematográfico deram especial ênfase
para as condições e possibilidades estéticas da coexistência entre imagem e som, olhar e
escuta em seus filmes. As ideias do cineasta nos motivam a repensar as relações
heterogêneas advindas do choque e do encadeamento plástico-sonoro nos filmes. O
pensamento de Bresson acerca da convivência entre o ouvido e o olho cinematográficos
é oportuno para se repensar a sua arte, num contexto histórico em que tantos títulos são
57 Em Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos há ruídos que “nascem” da imagem, em especial da música dos créditos, durante um ranger do carro-de-boi que se torna musical. Crimes d’alma (1950), de Michelangelo Antonioni, dois instrumentos com sonoridades opostas e estilo musical próximo à decupagem e dos diálogos: relacionamentos gráficos entre música e filme, como principal fonte de unidade. Em Force of Evil, de Abraham Polonsky (1948), um diálogo composto de aliterações, rimas dissonantes e efeitos rítmicos de todos os tipos, por exemplo, as pancadas na porta repetem o mesmo ritmo dos diálogos que as precederam. Em Trans-Europ-Express, utiliza-se uma organização de sons reais empregados em estruturas que se inspiram nos conceitos da música contemporânea. Em Câncer, um dos filmes de Glauber Rocha, a fita de áudio foi esquecida ao sol, distorcendo o som, mas o diretor usou-a e assim mesmo alcançou sucesso.
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meramente soterrados por trilhas e pontuações musicais óbvias, empobrecendo as
possibilidades de sugestão que as sonoridades possuem no cinema. Se um mesmo tema
pode se transformar infinitamente de acordo com o agenciamento entre as imagens e os
sons, há uma necessidade urgente, nos diz Bresson, de aprender a ouvir melhor as
possibilidades sonoras dos filmes. E ainda mais: fazer ouvir o que ouvimos por
intermédio de uma máquina que não ouve como nós e esta seria a força do
cinematógrafo, que se dirige, segundo o autor, aos dois sentidos, de maneira regulável.
Para o cineasta francês, o verdadeiro feitiço do cinematógrafo reside nessa ação
instantânea que as imagens e os sons exercem uns sobre os outros, a se transformarem
mutuamente. Como ele próprio afirma: “As trocas que se produzem entre imagens e
imagens, sons e sons, imagens e sons dão vida cinematográfica às pessoas e aos objetos
do seu filme e, por um fenômeno sutil, unificam a composição.” (BRESSON, 2008,
p.47)
Bresson empregava palavras figuradas para imaginar modos singulares de realizar o
encontro entre som e imagem, como duas pessoas que não conseguissem se separar. O
diretor dizia, por exemplo, que imagens e sons se fortalecem transplantando-se, por
meio desta “collocazione”. Nada de imagens ou sons independentes, tampouco em
igualdade, pois eles se prejudicam, tal como se diz a respeito da mistura das cores.
Imagem e som não devem se ajudar mutuamente, mas que eles trabalhem cada um à sua
vez, numa espécie de revezamento. (BRESSON, 2008, p.52) Se um som é o
complemento obrigatório de uma imagem, ele dá preferência, ora ao som, ora à
imagem. É então preciso, de acordo com Bresson, que imagens e sons se “entre-
tenham”, de longe e de perto, “em estado de espera e de reserva.” Para um diretor
atento, é fundamental que ele saiba exatamente o que um dado som vai fazer num certo
momento do filme. Por exemplo, um som não deve jamais socorrer uma imagem (nem
uma imagem socorrer um som). Quando Bresson dizia “...o que é para o olho não deve
ter duplo emprego como que é para o ouvido”, ele queria com isto afirmar que, se um
som pode substituir uma imagem, é melhor suprimir a imagem ou neutralizá-la.
(BRESSON, 2008, p. 51) Ou ainda: se o olho está inteiramente conquistado, não dar
nada ou quase nada ao ouvido. E o inverso, se o ouvido está inteiramente conquistado,
não dar nada ao olho. Como o cineasta achava o olho muito mais preguiçoso do que o
ouvido, ele procurava dar a este muitos elementos narrativos, sempre numa alternância
com o olhar do espectador: “...nunca ao mesmo tempo, para não saturar a sua
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capacidade de apreender e de imaginar.” (BRESSON, 2008, p. 112) O olho requisitado
sozinho torna o ouvido impaciente, o ouvido requisitado sozinho torna o olho
impaciente. Um cineasta, para ele, deve utilizar essas impaciências. Se o olho (em geral)
é, para Bresson, mais superficial, sendo o ouvido profundo e inventivo, ele dava maior
importância ao som, porque o olho, para o autor, se contentaria em receber, enquanto o
ouvido está sempre mais atento. Bresson então explora esta força que irrompe do
ouvido, investindo nesta decifração mais aguda obtida pelo ouvido apenas. Um som
sempre evoca uma imagem, uma imagem nunca evoca um som.
Epílogo
Ao realizar esta breve digressão compreensiva das modalidades paradigmáticas,
técnicas, conceituais e estéticas da simbiose audiovisual no cinema, espera-se ter
cumprido um percurso básico da abordagem que uma disciplina de graduação com uma
proposta de priorizar o som e a música no cinema poderia realizar. Já se fez a ressalva a
respeito da imensidão de obras dignas de estudo e apreciação na história da trilha sonora
cinematográfica e dos meios pelos quais a imagem em movimento organizada para a
ficção e a narrativa (como a maioria do cinema mundial) ou para apresentação
documental ou experimental. Cabe à natureza ficcional do cinema o seu principal
mérito, aquele que pressupõe mobilizar a atenção, os trabalhos de memória, esperas e
surpresas perante uma realização cinematográfica, mesmo quando se trata de um
documentário ou de um trabalho experimental, não menos ficcionais. É preciso
considerar, a este respeito, que em todas as modalidades do cinema coexistem a visão
objetiva do cineasta e a narrativa indireta da câmera. Enfim, todo filme “irrealiza” o que
ele representa: ele, efetivamente, re-apresenta. A ficção parece, portanto, imantar não
apenas a gramática do “macro cinema”, tanto que o convívio com o universo
cinematográfico afeta, há muito, a experiência mesma da vida social. Por conseguinte, a
diegese da narrativa condiciona também o pensamento composicional, o design e o
trabalho de edição sonora num filme. Os princípios de integração entre música, sons,
ruídos, silêncios, imagens e narração não esvaziam, contudo, a “autonomia” estética da
trilha sonora, pelo contrário, provoca antes uma atitude singular da escuta no trabalho
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criativo com as sonoridades. Compor uma trilha sonora é um trabalho que se vale antes
dos seus limites materiais (a narrativa, o universo diegético da história, o perfil dos
personagens, os preceitos da gramática fílmica, os regimes de escuta diante da tela etc.)
para exortar a imaginação do espectador, por meio da amálgama entre a escuta e o
olhar. Esta arte das sonoridades também convida o pensamento a repensar a escuta no
infinito esforço de compreensão do cinema. Esta empreitada – uma prazerosa aventura
para a escuta, diga-se – ficará, de agora em diante, ao encargo do leitor com maior
interesse por este assunto. Para tanto, segue, após as referências utilizadas para a
realização deste nosso texto, uma listagem de livros afins ao tema, a título de leitura
sugerida. Esperamos que o nosso leitor procure sempre pesquisar e assistir aos filmes,
aos atuais, aos futuros lançamentos e às incontáveis obras-primas da história do cinema,
não apenas seguindo a narrativa, mas também desvendando toda a multiplicidade de
ideias que se sintetizam em nossa experiência audiovisual. A participação interessada,
ao mesmo tempo cúmplice, entusiástica e crítica diante de um filme, é o que realmente
fundamenta a experiência diante do mundo da ficção cinematográfica.
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