[Bruno Cardoso] Olhares Mediados_ Videovigilância No Espaço Público e Videovoyeurimo No...
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Olhares mediados: videovigilncia no espao pblico e videovoyeurismo
no ciberespao
Bruno de Vasconcelos Cardoso Doutor IFCS/UFRJ
Resumo:
Atravs das imagens do YouTube, e de sua constituio como uma plataforma participativa em
constante (re)criao, realizo uma discusso sobre as imagens ressignificadas de videovigilncia expostas no site e suas possveis apropriaes voyeursticas, atravs de um agenciamento scio-
tcnico que chamei "voyeur digital". Comparo-as, assim como as interaes que agregam e
provocam, com o trabalho de campo que realizei na central de cmeras do 19 BPM, em Copacabana, Rio de Janeiro, junto aos "vigilantes eletrnicos". Por meio desse exerccio, reflito
sobre a relao entre homens e mquinas que compe a tecnologia digital, assim como o
imaginrio que o acompanha, em particular no que diz respeito s relaes de poder oriundas
dessas relaes em rede, entre e atravs de humanos e objetos tecnolgicos. tambm problematizada a questo de realizar trabalho de campo em um lcus no ciberespao, que tem
dentre suas principais caractersticas a mutabilidade, a hipertextualidade e a superabundncia de
informaes, tentando-se pensar maneiras textuais de lidar com as peculiaridades etnogrficas envolvidas nesse esforo antropolgico.
Palavras-chave: videovigilncia; relaes scio-tcnicas; controle social; voyeurismo; ciberespao; imagem
Alhos e bugalhos
O presente trabalho consiste em uma reflexo comparativa entre dois contextos
do olhar caractersticos da contemporaneidade, pesquisados em processos desiguais de
insero no campo. Por essa razo, devem ser tomados alguns cuidados essenciais com
os materiais tratados, sendo o primeiro deles a explicitao dessa diferena, assim como
das maneiras com que se pretende lidar com as informaes, a fim de minimizar a
influncia dessa diversidade sobre as idias aqui expostas. E, medida de grande
importncia, preciso se despedir de ambies por demais generalizantes ou
tratadsticas: qualquer comparao entre processos etnogrficos to dspares deve se
concentrar em apenas alguns aspectos de cada um deles, aqueles que os aproximam.
Anlises holsticas sobre sistemas ou estruturas das prticas ou universos pesquisados
estariam, como se diz, comparando alhos com bugalhos.
O primeiro desses processos etnogrficos o clssico, no qual o antroplogo
se insere no ambiente a ser estudado, interage, observa, questiona, perscruta seus
nativos, amparado pela autoridade etnogrfica1 a ele conferida pelo diploma
universitrio, pelo saber antropolgico que personifica2, e foi realizado em salas da
1 Para as discusses s quais me refiro ao usar o termo autoridade etnogrfica ver, especialmente, Clifford Geertz (2005) e James Clifford (2002). 2 Numa questo que depende mais de legitimidade institucional do que de conhecimento propriamente dito.
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Polcia Militar do Rio de Janeiro onde eram observadas as imagens da videovigilncia
oficial nos espaos pblicos da cidade (na central coordenadora das cmeras de toda a
regio metropolitana) e no batalho (19) responsvel pelo policiamento nos bairros de
Copacabana e Leme. O segundo processo, um pouco menos ortodoxo e com
preocupaes diferentes, no qual uma figura hbrida, o etngrafo-nativo, j inserido no
ambiente a ser estudado, interage, observa, questiona, perscruta seus co-nativos, co-
antroplogos (Viveiros de Castro, 2002) e co-observadores (Maturana, 1997),
amparado pela conjugao de sua experincia prtica e saber antropolgico. Uma
observao participante, mas principalmente uma participao observante, tratando de
imagens de videovoyeurismos reapropriadas e expostas atravs do YouTube, atualmente
a maior plataforma de compartilhamento de vdeos na Internet.
O principal fator em comum entre os dois processos etnogrficos que tratam
de relaes que eu estabelecia, principalmente, com trs elementos: pessoas,
computadores e cmeras. Em ambos os contextos, eles estavam presentes de modo
imbricado, embora em graus diferentes e criando hbridos (Latour, 2005) a cada vez
especficos. Outro importante fator de convergncia, que eram atravessados pela
tecnologia digital de captao e transmisso de dados (no caso, imagens), onipresente
e responsvel pela juno dos trs elementos em questo em agenciamentos scio-
tcnicos (Callon, 2003), redes materialmente heterogneas de humanos e no-humanos,
que constituem algumas formas do que poderamos chamar de videovigilncias da
contemporaneidade. E cada uma dessas redes peculiar, no apenas em funo do
contexto em que est inserido e que por sua vez ajuda a moldar -, mas tambm de
acordo com as caractersticas dos humanos que as compem, todos diferentes entre si.
Assim, nunca se deve pensar em termos de fixidez desses agenciamentos scio-
tcnicos, ou dos contextos nos quais estavam inseridos e faziam parte: ambos,
agenciamentos e contextos, esto em constante mudana e transformao, vo se
autoconformando mtua e constantemente.
Os pedaos nas redes no esto dados na ordem das coisas. Pelo contrrio, eles
so efeitos relacionais. Isso significa que sua forma, seu contedo e suas propriedades no so fixos. Antes disso, sua identidade emerge e muda no curso da interao. A lio metodolgica essa: objetos como, por exemplo, pessoas e textos so processos de transformao, compromisso e negociao (Callon & Law, 1997: 171).
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Inevitvel polissemia
No se pode ignorar o problema intrnseco de uma reflexo sobre imagens
baseada apenas em palavras e linguagem escrita. Como lembra Debray3, no h
traduo possvel (ou certa) entre as duas formas de comunicao, por mais que os
esforos nesse sentido nunca sejam mal-vindos e com freqncia produzam ricos
resultados reflexivos. No intuito de minimizar, mesmo que de modo incompleto, essa
intradutibilidade, valho-me das possibilidades tecnolgicas que estudo e a respeito das
quais discorro repetidamente ao longo das pginas que se seguem. Sempre que me
pareceu possvel e proveitoso para a discusso, indico atravs de um link na nota de
rodap um vdeo, do YouTube. E sobre eles, preciso fazer importante ressalva. Esses
links no compem o presente texto apenas de forma ilustrativa, mas - ao menos era
essa minha pretenso - como importante componente da narrativa, um modo no de
exemplificar o que dizia atravs da escrita, mas um convite reflexo em conjunto, a
ambio de trazer parte do material de estudo para o contato direto com o leitor, a fim
de que uma parcela do sentido do texto seja construda atravs dessa relao. Alm da
intraduzibilidade da imagem em palavras, outra caracterstica do recurso narrativo que
uso me obriga a buscar um tratamento mais abertamente polissmico da parte imagtica
do presente trabalho. Uma questo mais prtica do que epistemolgica...
Boa parte do material etnogrfico que transformado em texto est
domesticado pelo etngrafo: retirado do seu contexto de origem, pensado,
analisado e, aps esse processo, imortalizado em texto escrito, virtualmente em luz e
cristal lquido ou de forma material, em papel. A mediao entre o que foi observado
e aquilo que foi redigido provoca o congelamento de um momento ou de uma relao na
forma de texto. Um instante do devir, do constante vir a ser das relaes etnogrficas,
captado a partir de um ponto de vista, que se torna oficial - e materializado em
palavras. Faz parte do prprio processo de escrita, e difcil imaginar como, ou por que,
evitar isso. Assim acontece tambm no presente trabalho, ou melhor, na parte escrita do
presente trabalho. Com sua parte imagtica ocorre um processo diferente. E no apenas
por se tratar de imagens, pois uma foto ou um filme, por mais que, como disse Debray,
possam ser muito mais polissmicos que um texto apenas escrito, tambm capturam um
3 Uma imagem para sempre e definitivamente enigmtica, sem resposta correta possvel. Ela tem cinco bilhes de verses em potencial (tantas quanto so os seres humanos), logo nenhuma pode ter autoridade (a do autor no mais do que qualquer outra). Polissemia inesgotvel. No se pode fazer com que um texto diga aquilo que se quer com que uma imagem, sim (Debray, 1992: 58-59).
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ou uma seqncia de momentos e o fixam no texto, s que imagtico. E por mais que
essas imagens possam dizer coisas a determinados leitores que escapem mesmo ao
autor, este ao menos mantm ainda o domnio sobre o que escolheu, ou no, incluir na
narrativa composta que construiu. As caractersticas das plataformas de
compartilhamento de imagens como o YouTube, no entanto, impedem esse movimento
de domesticao do material utilizado. Este, mesmo aps ser anexado ao texto,
continua se modificando, se recriando de forma incontrolvel e imprevisvel, pois
eminentemente aberta e coletiva. Estar em constante transformao uma das mais
interessantes, marcantes e inovadoras caractersticas dessa forma contempornea de
criar e circular imagens. E estas no esto ali sozinhas, mas formando uma composio
com diversos outros elementos, sejam links, comentrios, avaliaes ou mashups4,
criaes que utilizam a prpria imagem de origem como uma das matrias primas do
produto audiovisual final. Cada atualizao dos links inclusos pode trazer (e
provavelmente trar) um texto diferente, em decorrncia da interveno constante de
usurios desses sites na apresentao das imagens um comentrio pode provocar
transformaes significativas na experincia da visualizao das imagens.
Atravs dessa parte do trabalho alocada fora dele prprio, no ciberespao (Lvy,
1999), o domnio sobre o material se perde a tal ponto, que este pode simplesmente
deixar de existir. Isso acontece com muitas das imagens e pginas do YouTube, que so
retiradas do ar. A Internet funciona como grande depositrio de informaes, o que
sem dvida traz de volta vida vrias imagens e cenas esquecidas, mas estas
tambm podem, uma vez reavivadas, de um segundo ao outro, ser apagadas. As
imagens em si obviamente continuaro existindo, e provavelmente podero ainda ser
encontradas em outros pontos no ciberespao, porm no mais daquela forma
especfica. A Internet , assim, um processo de (des)criao constante, as formas so
fcil e intrinsecamente mutveis. E essa mutao cada vez menos causa desconforto e
apreenso, e cada vez mais naturalizada. Ao invs de combat-la sem fim e sucesso
possveis, aprende-se a lidar com ela, tirando proveito de seu modo de funcionamento
inovador. Imagens sendo retiradas, na maior parte das vezes por censura relativa a sexo,
violncia ou copyright, tambm um fato a ser considerado no trabalho, e ao reler a tese
de Doutorado realizada a partir desses trabalhos de campo (Cardoso, 2010), poucos
meses aps o incio de sua redao, alguns dos vdeos aqui indicados j haviam sido
4 Mashup: arquivo digital que contm mais de um ou todos tipos de arquivos, criando uma nova obra derivada. Textos, desenhos, udio, vdeo etc. (Burgess & Green, 2009: 189).
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retirados do ar, o que se um problema real, no chega a ser insolvel: muitos vdeos
similares so produzidos e introduzidos nesses sites a cada dia, basta procurar, pelo
ttulo ou palavras-chave, imagens semelhantes e substituir a que foi retirada.
Big Brothers: imaginrios e representaes
Tratar da vigilncia policial por cmeras em espaos pblicos, e das imagens de
voyeurismo e exibicionismo produzidas de forma amadora e reproduzidas e vistas
atravs da Internet, inegavelmente falar sobre o que talvez seja o principal mito
contemporneo tangendo produo imagtica, o Big Brother. Mesmo se a referncia
inicial a distopia orwelliana 1984, a idia h muito se descolou do personagem e do
contexto original, passando por diferentes reapropriaes e reinterpretaes, num
processo que alia as mudanas contextuais vontade de seguir utilizando a mesma
metfora. A figura do Grande Irmo segue recorrente nos discursos contemporneos
sobre vigilncia, dividida, principalmente, em dois aspectos distintos, um deles de
referncia tambm voyeurstica.
Smbolo do poder no romance publicado em 1948 (Orwell, 1979) como uma
referncia explcita ao stalinismo, ento no auge do poder no ps-IIa
Guerra Mundial, a
figura do Big Brother, ou Grande Irmo, de 1984, a partir de ento passa a simbolizar o
princpio da vigilncia, assim como a estruturar as representaes acerca desta. Orwell
cria um personagem que unifica em si, radicalizando, as mais notveis categorias da
sociedade disciplinar de que fala Foucault (2003), ao mesmo tempo em que passa a agir
efetivamente nas idias posteriores sobre controle, vigilncia e, claro, videovigilncia. A
denncia do totalitarismo e o tom eminentemente pessimista do livro pautam boa parte
do medo e das estratgias adotadas pelos ativistas anti-vigilncia contemporneos.
E Big Brother igualmente o ttulo do mais conhecido dos reality shows - criado
pela empresa holandesa Endemol e logo vendido para canais de televiso do mundo
inteiro no qual pessoas so confinadas em uma casa e filmadas por dezenas de
cmeras 24 horas por dia. O que por sua vez tambm passa a ter agncia sobre o mundo
estruturante e estruturado pela nova e poderosa significao de Big Brother, que em si j
carrega elementos da figura orwelliana, ressignificada no contexto cultural e
tecnolgico contemporneo, o qual tambm ajuda a criar e consolidar, atravs de uma
massiva e entusiasmada audincia miditica. A agncia dessa obra de fico sobre as
representaes posteriores da videovigilncia no de modo algum negligencivel, no
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somente por influir diretamente na constituio do imaginrio em torno do assunto, mas
tambm por criar expectativas que dificilmente teriam possibilidade de se
concretizar5.
Essas duas referncias ao Big Brother sob os aspectos do controle e do
espetculo so de maneira contundente associadas aos temas que pesquisei no
Doutorado, videovigilncia policial e videovoyeurismo digital. Se inicialmente cada um
deles pode ser pensado especialmente sob um dos prismas o primeiro associado ao
controle, e o segundo ao espetculo um acompanhamento mais cuidadoso mostra que
essas duas caractersticas so de diferenciao bastante tnue, se que em contextos
prticos podem ser diferenciadas. No YouTube, por exemplo, esto presentes muitos
vdeos de denncia, seja de corrupo6, violncia
7 ou desrespeito s leis
8. Por outro
lado, diante do elevado grau do fator tdio (Smith, 2004) inerente ao trabalho da
videovigilncia, o surgimento de alguma cena passvel de interesse mesmo que no
tenha nenhuma relao com a segurana pblica da cidade costumava provocar
reaes animadas nos operadores de cmeras, que se divertiam tentando adivinhar o
contedo daquelas cenas descontextualizadas que observavam de longe, como -
exemplos que presenciei - pagodes no calado da praia, ou aglomerados de pessoas
de manh cedo na porta de um botequim. Nos dois contextos se misturam elementos de
vigilncia e tambm de voyeurismo, de controle e de espetculo, de denncia e de mera
observao frugal da vida alheia. Os olhares no so purificados, e seu teor no pode ser
delimitado pela funo do observador, ou por sua localizao: vigilante e voyeur no
so tipos sociais, mas relaes constituintes de uma rede de atores materialmente
heterogneos (observadores e observados, cmeras, Internet, softwares, computadores),
que colaboram simultaneamente para construir, na prtica, essas redes (Law, 1992).
Desta forma, preciso deixar bastante claro que videovigilante e videovoyeur, -
ou simplesmente voyeur digital, termo que vinha utilizando em trabalhos anteriores9 -
no so pessoas fsicas, como os operadores de cmeras da Secretaria de Segurana ou
os usurios do YouTube. Entretanto, em determinados contextos a trabalho, por 5 Outra apropriao contempornea do famoso personagem de 1984 da qual, no entanto, no trataremos aqui - foi a criao, pelos fundadores da organizao Privacy International (http://www.privacyinternational.org/), em 1998, do
Big Brother Awards (http://www.bigbrotherawards.org/), importante e conceituada premiao internacional atualmente ocorre em 16 pases onde so laureados os maiores promovedores e combatentes da vigilncia contempornea. 6 http://www.youtube.com/watch?v=U3DoHCx0TUw&feature=related (Prudente esconde dinheiro na meia). 7 http://www.youtube.com/watch?v=q6a_V2qUEDQ (Flagra Briga por causa de Discusso de trnsito acaba em pancadaria
em Curitiba). 8 http://www.youtube.com/watch?v=f1ukwB_8tXE&feature=related (Aluno registra venda e consumo de maconha na Universidade Federal Rural de PE). 9 Cardoso (2009; 2010).
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diverso ou ambas as coisas essas pessoas desenvolvem relaes que as tornam,
enquanto estas durarem, videovigilantes e voyeurs digitais. Estando exposto esse
pressuposto metodolgico, central para a discusso que se segue, de bom prstimo
apresentar, de forma sucinta, o sistema de videovigilncia policial do Rio de Janeiro
(especialmente nos bairros de Copacabana e do Leme), e aquilo que tratei como
videovoyeurismo digital, no YouTube.
Videovigilncia policial no Rio de Janeiro
O sistema de cmeras de vigilncia (ou, como prefere o discurso oficial, de
monitoramento10
) montado pela Secretaria de Segurana Pblica e pela Polcia Militar
do Rio de Janeiro, tem, grosso modo, trs lugares principais de funcionamento: os
pontos onde esto instaladas as cmeras, em diferentes locais da regio metropolitana;
as salas de operaes, nos batalhes de polcia (BPMs), onde bombeiros e policiais
reformados ou aposentados e recontratados por uma firma terceirizada desempenham a
funo de operadores de cmeras de monitoramento; e no Centro de Comando e
Controle (CCC), onde so reunidas as imagens das cmeras de todos os batalhes nos
quais o sistema foi instalado, no intuito de fiscalizar o trabalho realizado neles.
Em cada sala de operaes trabalham quatro operadores, cada um deles diante de
um computador, onde atravs de um software (LiveViewer) tinham acesso s imagens e
podiam movimentar as cmeras11
espalhadas pela rea do batalho. Na bancada atrs da
deles estavam dispostos policiais militares desempenhando a funo de despachadores,
encarregados de receber as chamadas de voz12
, e orientar atravs dessas informaes o
trabalho dos operadores, assim como estabelecer a ligao entre estes e os policiais
atuando nas ruas, com os quais deve ser feito contato em caso de alguma observao
realizada atravs das cmeras demandar uma interveno. Para tanto os despachadores
dispunham de um software interligado aos radiotransmissores dos agentes, cabines e
viaturas. Estas podiam tambm, atravs desse mesmo programa de informtica, ser
geolocalizadas, tornando a comunicao - em tese - mais eficiente. O trabalho de
10 Tanto na central de cmeras (CCC Centro de Comando e Controle) quanto no 19 BPM, locais onde realizei trabalho de campo (mas imagino poder generalizar para o sistema de cmeras como um todo), o termo vigilncia no costumava ser utilizado, sendo preterido por monitoramento. Entretanto, a literatura sobre o assunto toda se baseia na categoria vigilncia, razo pela qual oscilo entre as duas categorias ao longo dos textos. 11 Eram, em mdia, dez cmeras por batalho, mas no 19 BPM, que freqentei durante alguns meses, funcionavam treze. 12 Que haviam deixado de ser chamadas telefnicas, pois chegavam atravs de um software de comunicao,
instalados nos computadores com os quais trabalhavam.
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monitoramento era realizado de forma mais incisiva nos batalhes, onde havia um
nmero menor de cmeras e as imagens chegavam de forma um pouco menos
superabundante (vale lembrar que o excesso de imagens talvez o maior desafio
enfrentado pelos operadores).
No CCC o trabalho consistia, basicamente, em fiscalizar o servio realizado nos
BPMs. Como pude ir percebendo, para minha surpresa, essa fiscalizao concernia mais
aquilo que no deveria ser visto do que o que os operadores deveriam estar olhando
enquanto trabalhavam. Em Copacabana e no Leme, locais dos quais posso falar com
maior propriedade, essa precauo visava impedir, majoritariamente, a observao de
quatro situaes/locais: as favelas, mulheres em trajes de banho na praia, o interior dos
apartamentos localizados no campo de viso de alguma cmera, e cenas de carter
sexual (se os envolvidos estivessem agindo com discrio). A observao por longos
perodos de paredes, postes, copas de rvores ou do cho, no parecia incomodar ou
despertar a ateno dos operadores do CCC, soldados da PM encarregados de fiscalizar
os operadores dos BPMs.
Ao longo do trabalho etnogrfico, pude perceber que uma caracterstica
marcante dessa organizao do sistema, especialmente no nvel do batalho no qual
irei concentrar a anlise neste artigo -, que a comunicao com os policiais nas ruas, e
o recebimento das informaes destes e da central de chamadas, se dava de maneira
indireta passando sempre pelos despachadores -, criando o que chamei de
fragmentao dos servios do observador. A possibilidade de realizarem o servio de
monitoramento de diversos pontos do espao pblico, no interior de uma sala sem
janelas num batalho de polcia, era oferecida por meios tecnolgicos que
proporcionavam, em tempo real, mas de forma imperfeita, a transposio espacial de
trs dos cinco sentidos, divididos entre operadores e despachadores: aos primeiros
cabia a viso, e a esses ltimos a audio e a fala. Essa fragmentao tirava muito da
dinmica do trabalho, alm de reduzir de modo significativo as situaes nas quais o
monitoramento por cmeras gerava algum tipo de ao prtica por parte da polcia. Do
operador at o agente na rua, o grande obstculo a ser transposto era a m-vontade, a
preguia ou apenas a condescendncia pragmtica dos despachadores, que com
freqncia desencorajavam o contato13
.
13 Aos operadores incomodava particularmente a relutncia dos despachadores em intervir em casos de consumo de maconha (isso no vai dar em nada mesmo, at chegar algum l j acabou, no tem mais flagrante, no adianta nada).
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Dessa forma, o trabalho de videovigilncia era majoritariamente realizado em
cima do que os operadores classificavam como olhar maldoso, modo de observar as
ruas buscando sempre cenas suspeitas. Como pude notar, na maior parte das vezes a
suspeio recaa sobre pessoas, mas tambm havia algumas situaes capazes de
chamar especialmente a ateno dos videovigilantes. O olhar maldoso, como me
explicaram em diferentes lugares, emergia da experincia profissional dos ex-
bombeiros e ex-policiais que trabalhavam operando as cmeras, acostumados que
estavam a trabalhar na rua e a reconhecer situaes de crime ou de perigo. Percebi logo
que era tambm uma forma de se guiar minimamente - no fluxo incomensurvel de
informaes que chegavam a eles atravs daquelas telas, captadas pelas cmeras de
vigilncia nas ruas. Mecanismo que se sem dvidas tinha valor, tambm deve ser
ressaltado que reproduzia velhos e conhecidos preconceitos ao visar como suspeitos os
mesmos esteretipos de sempre (negros, moradores e menores de rua, catadores de
lata etc.), indivduos vistos como potencialmente perigosos, ou criminosos, s a espera
de uma oportunidade adequada para delinqir. Curiosamente, outro alvo constante do
olhar maldoso, por razes inversas, eram os turistas, vistos como otrios, constantes
vtimas em potencial.
Videovoyeurismo digital no ciberespao
Parte considervel da responsabilidade pela intensificao exponencial do fluxo
de informaes imagticas em circulao cabe indstria de telefonia mvel e
popularizao de aparelhos celulares com cmeras integradas14
, e muitas vezes tambm
com acesso Internet (que, devido a sua importncia e disseminao merece j a honra
de um neologismo os camerafones). A produo e a difuso de imagens de forma
amadora abastecem uma demanda que tambm cresce, sendo possibilitadas e se
organizando atravs da Internet e da imprensa, e impulsionadas por uma revoluo
tecnolgica. A combinao entre um aparelho de comunicao onipresente e de um
meio de captao de imagens, alm de um bem-sucedido policresto15
, tambm uma
14 Segundo a Anatel (Agncia Nacional de Telecomunicaes), no Brasil eram usadas 7,37 (4,5) milhes de linhas mveis em 1998, passando a 46,37 milhes (26,2) em 2003, e atingindo 150,6 milhes em 2008. A proporo para cada 100 habitantes no mesmo perodo passa de 4,5 para 26,2 chegando por fim a 78,1 (fonte: http://www.anatel.gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do#). No possvel, entretanto, saber quantos aparelhos com cmeras circulam no pas, mas provavelmente so algumas dezenas de milhes. 15 Policresto um instrumento de mltiplos usos, conceito muito caro aos utilitaristas ingleses, dentre os quais se destaca Jeremy Bentham, idealizador do Panptico (Bentham, 2000), mito de origem da videovigilncia e metfora
usada por Foucault (2003) para a sociedade disciplinar: cada elemento benthamiano um n em que se entrecruzam
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forte metfora de um tempo marcado pela intensa e constante transmisso de
informaes de forma imageticamente saturada (Koskela, 2003).
A vigilncia virtualmente16
realizada atravs de todas essas cmeras portteis, de
fato em muito pouco se assemelha quela praticada pelos sistemas de
videomonitoramento. Muito pela descentralizao do olhar, o que a deixa muito mais
incontrolvel, mas tambm por serem captadas de forma presencial, logo em situaes
que permitem maior contextualizao das cenas e menor fragmentao dos sentidos do
observador. Ao contrrio das cmeras da polcia, aquelas empunhadas por amadores
pressupem a presena de uma testemunha, e as imagens que captam compem, com
esse testemunho, uma narrativa, enquanto as cenas mudas e no presenciais das cmeras
de vigilncia so a totalidade de uma narrativa a ser interpretada por cada observador,
no contendo mais nenhum elemento em si. A circulao restrita das imagens da
videovigilncia policial fazia com que fossem ainda mais dependentes da interpretao17
e da capacidade de enxergar dos operadores, prejudicada pelas limitaes tcnicas e
fsicas comuns aos da mesma faixa etria18
. Ao mesmo tempo, a experincia
profissional e o olhar maldoso dos ex-bombeiros e ex-policiais que trabalhavam no
sistema de cmeras da Secretaria de Segurana Pblica, mais do que lhes dar a
capacidade de perceber ou desvendar comportamentos criminosos, viciava o
monitoramento, sempre zeloso dos mesmos crimes, sempre preocupado com os
mesmos suspeitos19.
A vigilncia atravs de cmeras amadoras e camerafones reverte o maior
problema prtico enfrentado pelos operadores de videomonitoramento, a baixa taxa de
humanos para cada um dos dispositivos tcnicos. A maior parte das cmeras de
monitoramento passa a maioria do tempo gerando imagens que ningum est vendo20
.
Se logo ao se popularizar a videovigilncia passou a ser interpretada como um
instrumento essencialmente panopcista, em relao proliferao de olhares trazida
vrias redes. Toda causa tem ali vrios efeitos. Inversamente, cada efeito produzido por vrias causas. Cada pea da montagem um cruzamento de utilidades, atravessado por mltiplas cadeias causais (Miller, 2000: 82). 16 Uso aqui virtualidade no como o oposto de concretude ou materialidade, como se costuma usar ao falar de Internet, mas uma constante possibilidade de atualizao: no apenas as imagens filmadas, mas tambm aquelas que, pelas condies e locais onde ocorreram, eram potencialmente filmveis. 17 Produzida com recursos do repertrio cultural e simblico de cada observador: diferentes indivduos vem diferentes cenas. Isto se tornou bastante claro na interao com os operadores. No apenas divergiam as interpretaes, mas tambm as capacidades de enxergar determinadas coisas, tanto deles entre si como tambm a minha em relao a eles. 18 Especialmente uma deteriorao da viso, sentido mais importante para o servio que realizavam. Os operadores (como j disse, ex-policiais e ex-bombeiros) tinham todos mais de sessenta anos, e alguns deles se aproximavam j dos oitenta. 19 Refiro-me a esteretipos semelhantes, e no aos mesmos indivduos, obviamente. 20 Aquilo que chamei de no-imagens (Cardoso, 2010).
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pelas cmeras portteis, chegou se a falar de um omnicom (Groombridge, 2002),
contexto no qual qualquer um pode vigiar qualquer um, a qualquer hora, em qualquer
lugar. Ao contrrio das cmeras oficiais, onde a vigilncia a funo principal, as
cmeras amadoras a tem apenas como uma potencialidade, uma virtualidade que, na
maior parte das vezes, no atualizada. Entretanto, os agenciamentos scio-tcnicos
formados por amadores e seus camerafones tm por caracterstica a produo de
olhares descentralizados e imprevisveis, engajados ou passivos, compartilhando ou se
apropriando particularmente das imagens que captam. Constituem o que chamo de
videovoyeurismos, ou videovigilncias voyeursticas.
A captao de som tambm confere carter diferencial s imagens captadas in
loco, cmera(fone) em punho. E muitas so as possveis maneiras de agir dos vigilantes
ocasionais, inclusive porque seus olhares so mais livres tambm, no restringidos por
deliberaes superiores sobre o no-ver, como as que encontrei na videovigilncia
policial. Esse olhar, embora tambm maldoso, o de forma mais heterognea, sujeito a
uma mirade de diferentes maldades, que podem tomar as mais diversas formas.
Dentre as diferenas entre os dois contextos, uma das principais que essas
imagens captadas por amadores esto mais sujeitas a ser inseridas no crescente fluxo
informacional e imagtico da Internet. E uma vez isso feito, elas se tornam
independentes dos seus captadores e produtores, passando a circular no ciberespao,
definido como o espao de comunicao aberto pela interconexo mundial dos
computadores e pela memria dos computadores. (Lvy, 1999: 92). E ao serem
atualizadas (vistas) por quem quer que seja atravs da Internet, no lugar que for,
completam o fluxo do voyeurismo digital, constitudo por uma rede materialmente
heterognea (Law, 1992) que vai da captao da imagem at sua visualizao, passando
por pessoas, camerafones, Internet, servidores, softwares, sites, modems, computadores,
at chegar a cada um dos voyeurs digitais, que, em casa, no trabalho, no telefone,
assistem s cenas gravadas e compartilhadas
Esses voyeurs digitais (no caso que trato aqui, os usurio do YouTube), contudo,
diferente dos voyeurs clssicos, sempre olhando pelo buraco da fechadura ou por janelas
e cortinas entreabertas, no precisam se esconder, nem se limitam a ver o que o acaso,
ou a proximidade fsica, os permite. A tela do computador se torna um passaporte para
milhes de fechaduras e janelas21
, penetrando vestirios, cabine de roupas em lojas22
,
21 http://www.youtube.com/watch?v=PvQLXoYkGpE (Show de vizinha (flagra da madruga)). 22 http://www.youtube.com/watch?v=pYjhFEqnSes&feature=related (gostosa trocando de roupa no provador parte 2).
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alcovas onde cmeras escondidas gravam cenas da intimidade, seguindo pernas na rua23
,
biqunis na praia, enfim, uma infinidade de situaes. At mesmo imagens extradas de
cmeras de segurana24
. O site rene, separa, classifica milhes de flagras da realidade,
captados em imagens e disponibilizados para todos que quiserem ver.
No YouTube
Com o desenvolvimento progressivo da rede mundial de computadores, a
possibilidade criada pela tecnologia digital e pela Internet de produo e
compartilhamento de imagens em uma escala nunca antes vista foi sendo aprimorada
atravs do trabalho interdependente e descentralizado de um sem nmero de
desenvolvedores de softwares e plataformas digitais e de usurios desses recursos, mais
ou menos conscientes e familiarizados com o que estavam realizando e com as
possibilidades que abriam. O mais emblemtico e (at o momento) bem sucedido
produto dessas relaes sem dvida o YouTube, que fundado em fevereiro de 2005,
j contabilizava em abril de 2008 mais de 85 milhes de vdeos - cifras que no param
de crescer exponencialmente -, sendo um dos dez sites mais visitados no mundo inteiro
(Burgess & Green, 2009: 18).
No que diz respeito particularmente s imagens de flagrante, outra diferena
essencial entre os dois contextos sistemas de videovigilncia e Internet merece
tambm destaque. Ao contrrio das imagens captadas pelas cmeras de monitoramento
policiais, que s existem efetivamente na relao com o vigilante, na constituio do
hbrido homem-cmera, no YouTube, os vdeos tm existncia assegurada. Ao serem
carregados (ou uploadados), adquirem uma autonomia relativa, passando a no estar em
nenhum lugar especfico, mas a estar potencialmente em qualquer lugar. So imagens j
consolidadas, j captadas, vistas e transformadas em vdeos. Em sua maioria foram
capturadas por pessoas munidas de cmeras, e no de cmeras fixas colocadas em
determinados pontos a serem vigiados.
Mediaes
Apesar da nfase dada tecnologia nos discursos oficiais seja os destinados
imprensa ou aos antroplogos -, como se a simples instalao dos meios tcnicos
23 http://www.youtube.com/watch?v=m4oQuZk6Ll4 (Por baixo da saia). 24 http://www.youtube.com/watch?v=brCzpUfmjNg (Flagrantes de uma cidade vigiada).
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proporcionasse o resultado prometido, no se faz um sistema de videovigilncia apenas
com cmeras, computadores e a estrutura material que precisam para operar. O olhar e a
percepo humanas no so meras formalidades. O vigilante eletrnico um
agenciamento scio-tcnico (grosso modo operador-computador-cmera) que, por sua
vez, parte constituinte de um agenciamento maior, o sistema de videomonitoramento,
que pe em relao, de maneira no presencial, observador(es) e observado(s). Esse
sistema depende da coordenao do trabalho de uma srie de mediadores rdios,
telefones, policiais que recebem as chamadas, policiais nas ruas que acabam
fragmentando tanto o monitoramento quanto, principalmente, os sentidos do vigilante.
Da mesma forma, colocar nfase excessiva nas inovaes tecnolgicas da
revoluo digital incorrer no mesmo erro de sobredeterminao tcnica que os
paranicos e os apologistas da videovigilncia. Se a forma geral de uma sociedade em
crescente interconexo e produzindo e circulando informaes de modo superabundante
majoritariamente dada pelo aparato tecnolgico, o contedo que a preenche depende
de fatores mais complexos e imateriais. Os meios tcnicos conferem a estrutura de
troca, mas so fatores culturais que influenciam no que vai ser trocado. preciso deixar
claro, mais uma vez, que os meios tcnicos so elementos culturais/sociais, e que a
cultura constituda e moldada, tambm, por esses elementos25
.
A converso dessa estrutura material e tecnolgica virtualmente ou no em
instrumentos de vigilncia, no pode ser atribuda de maneira integral apenas s
possibilidades tcnicas. O desdobramento especfico que presenciamos no ocorreu de
modo automtico e inapelvel, devendo muito de suas caractersticas ao background
cultural sobre o qual se desenvolveu, utilizando-se de categorias de pensamento e ao
que no foram criadas pela tecnologia. A idia da videovigilncia independe de sua
realidade material, tanto que a precede (o 1984 de Orwell um bom exemplo disso) e,
como pude verificar no campo, a suplanta em muito. A realidade material incorpora
esse imaginrio, ao mesmo tempo em que o modifica: os camerafones s adquiriram
contornos de instrumentos de vigilncia, porque a videovigilncia tornou-se parte do
repertrio cultural contemporneo, como bem observa Groombridge (2002: 30), mas
a partir de sua materialidade repetem, ressignificam e criam (novas) prticas,
apropriaes e discursos sobre ela.
25 (...) as mquinas so sociais antes de serem tcnicas. Ou melhor, h uma tecnologia humana antes de haver uma tecnologia material. Os efeitos desta atingem, certo, todo o campo social; mas, para que ela mesma seja possvel, preciso que os instrumentos, preciso que as mquinas materiais tenham sido primeiramente selecionadas por um
diagrama, assumidas por agenciamentos (Deleuze, 1988: 49).
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O videovoyeurismo parte desse processo, criando (ou reforando) uma viso
sobre a videovigilncia baseada no flagrante, que so bastante raros e constituem
apenas uma possibilidade remota da observao. A observao em geral
extremamente entediante, saturada de cenas cotidianas, distantes e descontextualizadas,
necessitando grande esforo de concentrao para despertar algum interesse ou
conseguir manter a ateno dos operadores. Enquanto isso, na Internet no preciso
muito esforo para termos em nossa frente flagrantes interessantes, seja de cunho
policial, ertico ou apenas engraados. Ambos ocorrem atravs dos mesmos meios
tcnicos cmeras, computadores, Internet e sua interao com humanos
cinegrafista, voyeur digital, videovigilante -, entretanto do origem a diferentes
agenciamentos.
Imagens renovadas
Estas (novas) prticas, apropriaes e discursos imagticos contemporneos, ao
invs de colaborarem para a emergncia de um controle totalitrio, disciplinador e
intrusivo, como supunham os mais alarmistas, tiveram por conseqncia uma
transformao bem mais profunda. A possibilidade quase ilimitada de produo de
imagens muda radicalmente a prpria imagem, mesmo aquela gerada para controlar ou
a que incidentalmente pode faz-lo. No sistema de videovigilncia que pesquisei, a
quantidade de imagens acaba por diluir o controle, ocorrendo um gradativo desinteresse
por pequenos flagras, crimes ou incivilidades menores, que no dariam em nada
mesmo, como diziam os prprios operadores (especialmente o consumo de maconha e
situaes de atentado ao pudor). E como se v ao longo da histria da representao
pictogrfica, assim como da prpria moralidade ocidental, as imagens com o tempo
vo se tornando mais ou menos chocantes26
e interessantes. Se os camerafones
contribuem para a acelerao desse processo de transformao, tambm provocam um
esvaziamento relativo das imagens: para cada imagem de vigilncia amadora que
alcanou alguma notoriedade, muitos milhes foram, sem dvida, produzidas e fadadas
no publicizao, permanecendo essencialmente no-vistas. A compulso imagtica
contempornea e a facilidade de apresentao fornecida pelo ciberespao configuram
26 Exemplos bvios so as revistas de nu diante do surgimento da Internet, com um acesso muito maior e simples nudez e pornografia. E materiais como os catecismos de Carlos Zfiro tornam-se, definitivamente (ou no?) fetiches saudosistas e retrs de colecionador, sendo difcil imaginar que hoje pudessem causar escndalo, ou
movimentar um mercado negro.
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um contexto superexpositrio, que se assemelha ao quadro da vida mental do
habitante da metrpole, descrito por Simmel (1979), cuja intensificao dos
estmulos nervosos obrigava aos indivduos uma apreenso do mundo mais
indiferente, impessoal, desenvolvendo, na maior parte do tempo, uma atitude
blas. As imagens contemporaneamente so, na maior parte das vezes, vistas com
olhar blas, de forma apressada e pouco aprofundada. Efeito da incrvel intensidade
dos fluxos, de imagens e de estmulos nervosos as quais estamos submetidos e nos
submetemos constantemente.
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