Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP ......das Formas Simbólicas de Ernst Cassirer....
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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
RAFAEL RODRIGUES GARCIA
GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST
CASSIRER
SAtildeO PAULO
2010
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RAFAEL RODRIGUES GARCIA
GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST
CASSIRER
SAtildeO PAULO
2010
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Caetano Ernesto Plastino
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AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Caetano Ernesto
Plastino pela confianccedila depositada desde os tempos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica eacutepoca
em que apresentou-me agrave filosofia de Ernst Cassirer Sua prontidatildeo para esclarecer
duacutevidas a pertinecircncia de seus comentaacuterios e sugestotildees aleacutem de toda a
receptividade que eacute marca de sua personalidade satildeo dignas de nota Sem seu
apoio e orientaccedilatildeo este trabalho certamente natildeo se efetivaria
Aos professores Dr Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Dr Ricardo Ribeiro Terra
pela participaccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo e pelas sugestotildees e comentaacuterios
oportunos para o teacutermino do trabalho
Aos professores Dr John Krois e Dr Christian Moumlckel pela acolhida em
Berlim e por apresentarem-me agrave biblioteca da Universidade Humboldt cujo acervo
foi determinante para as minhas pesquisas
Agraves funcionaacuterias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade
pela paciecircncia apoio e prontidatildeo
Aos amigos e colegas de faculdade Andreacute Doneux e Ricardo Zanchetta pelas
leituras correccedilotildees e sugestotildees pelas conversas e pelo incentivo
A Ariadne Machado querida amiga e professora de alematildeo pelo incentivo e
pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer
Ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria
Aos meus pais e familiares pelo incentivo paciecircncia e confianccedila por toda a
vida
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Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos
Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas
Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti
Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia
Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser
Siacutembolos Estou cansado de pensar
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando
Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos
Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa
It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end
Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei
Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know
Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos
Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos
(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)
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RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia
das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo
Satildeo Paulo 2010
O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees
envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da
obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as
questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua
estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos
os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por
Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de
todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um
processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo
apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de
seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o
filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo
Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas
criacutetica da cultura
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ABSTRACT
GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master
Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo
Paulo Satildeo Paulo 2010
This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns
out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt
with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s
work its structure and its main methodological postulates to eventually understand
the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of
human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual
activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do
so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his
philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher
wants to differentiate his own work from
Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of
culture
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LISTA DE ABREVIATURAS
Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das
iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e
outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim
espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas
demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de
Cohen e Kant
Obras de Cassirer
EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie
EM Essay on Man
EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit
ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
KMM Kant und die moderne Mathematik
LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought
LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft
MS The Myth of the State
PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache
PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken
PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis
PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen
SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff
SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften
SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen
SMC Symbol Myth and Culture
Obras de Cohen e Kant
KRV Kritik der reinen Vernunft
KTE Kants Theorie der Erfahrung
LRE Logik der reinen Erkenntnis
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SUMAacuteRIO
PARA LER CASSIRER11
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14
Escola de Marburgo 17
Panorama filosoacutefico 17
Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento
Ambiente poliacutetico 20
Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do
Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do
neokantismo
Doutrina de Marburgo 24
O meacutetodo transcendental 25
Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o
materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento
puro
A noccedilatildeo de forma 28
A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo
Conhecimento e construccedilatildeo 29
Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano
Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica
Substacircncia e Funccedilatildeo 31
A tarefa da nova loacutegica 31
Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional
A doutrina do conceito geneacuterico 34
A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de
notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo
Os conceitos matemaacuteticos 39
A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da
seacuterie
Conceito de funccedilatildeo 42
Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A
universalidade concreta
Sobre a loacutegica simboacutelica 45
8
Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e
a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental
Rupturas 50
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50
Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez
matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito
Sobre a teoria da relatividade 55
Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio
Cisatildeo 58
Origem comum 58
Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo
Loacutegica ou cultura 61
As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63
O lugar da razatildeo 63
Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de
conhecimento
O homem no leito de Procrusto 66
O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud
Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo
Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo
grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70
O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria
Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental
Conceito de forma simboacutelica 74
Conceito de siacutembolo 74
Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do
siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80
Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt
Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo
simboacutelica
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87
9
Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e
forma simboacutelica
Uma teoria da significaccedilatildeo 89
Linguagem e Loacutegica 89
Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo
Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o
λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito
Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser
Linguagem e verificaccedilatildeo 97
A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da
revoluccedilatildeo copernicana
Pregnacircncia Simboacutelica 101
Convencionalismo e significaccedilatildeo 103
Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa
Sensacionismo 106
A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo
dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva
Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na
consciecircncia O exemplo da linha
Fenomenologia e intencionalidade 115
Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo
Cultura e praxis
O animal symbolicum 122
O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen
Keller
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126
Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e
fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva 129
O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e
alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A
anterioridade da vida coletiva
Funccedilatildeo representativa 142
Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave
arte
10
Funccedilatildeo significativa 149
Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu
Bohr matemaacutetica e ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia 155
Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da
cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de
Hegel agrave aacutervore de Darwin
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159
A Realidade Simboacutelica 159
Soliloacutequio 159
O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade
Autonomia e incomensurabilidade
A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165
A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento
intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171
O projeto de uma filosofia da cultura 171
A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft
Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A
biblioteca de Warburg
Cultura e Civilizaccedilatildeo 180
Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e
progresso Razatildeo e homogeneidade
Diversidade Cultural 182
Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro
da discussatildeo
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187
11
PARA LER CASSIRER
Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito
Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas
Nelson Goodman
Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma
nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho
Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a
filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo
especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com
exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da
utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os
textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo
se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma
filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros
Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou
historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os
proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer
como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria
demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a
imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para
Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para
ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De
outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne
conhecedor da histoacuteria da filosofia
12
Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo
vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas
deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente
dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido
para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota
aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer
De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas
dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de
discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que
ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa
dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e
em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo
historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes
eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e
autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas
entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem
de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo
historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de
conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras
coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em
direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta
de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute
elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel
ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias
diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem
13
opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias
histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral
O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra
muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas
ideacuteias
Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da
filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho
se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de
Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em
que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa
forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de
Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo
estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez
de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta
de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a
inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou
outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os
estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro
filoacutesofo
Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a
filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de
outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo
quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash
desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais
14
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais
remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro
Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]
Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no
campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar
o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito
[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do
conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente
para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo
fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa
epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente
circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra
na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem
entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da
constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia
Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar
alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com
outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda
que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo
restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente
15
aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio
agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do
mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo
peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc
conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito
Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual
chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte
os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita
demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que
essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave
esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer
tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa
metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos
As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se
pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo
que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia
das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees
do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua
produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff
und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos
que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica
Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo
intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca
bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na
citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute
16
num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia
e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da
tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por
fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a
mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como
isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o
leitor no magnum opus de Cassirer
Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra
de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima
citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de
fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do
programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do
esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser
tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo
epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo
transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere
significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1
Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do
filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que
1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic
Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do
autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees
poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky
que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de
Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer
pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos
comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada
um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos
17
reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das
formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma
distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a
necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de
publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do
programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas
na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a
perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do
projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da
filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees
e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo
condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao
texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia
esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de
uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar
especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de
sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate
sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais
Escola de Marburgo
Panorama filosoacutefico
A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e
multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em
18
resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os
adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do
tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o
ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986
p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter
especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo
de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente
agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de
expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento
ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava
as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das
ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do
2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de
Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute
assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-
criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)
tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo
transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)
e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)
3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves
quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa
eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash
assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente
diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando
um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf
p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia
em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke
(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o
filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio
concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas
4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL
(2001) e POMA (1997)
19
espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash
Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista
quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de
reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves
tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de
Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da
situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de
Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute
especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela
[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado
para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo
trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico
primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel
central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que
o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras
palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves
Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os
valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash
curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou
propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente
na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso
5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse
caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo
20
Ambiente poliacutetico
No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo
coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo
Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com
vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo
positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da
Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo
de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio
filosoacutefico da DDR
ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima
associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia
alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse
periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da
Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE
1986 p 3)
Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa
da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se
for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo
criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou
Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo
Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir
a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes
distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo
que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-
21
filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute
corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas
vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas
natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves
Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao
positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias
naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que
significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar
do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original
adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a
Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a
interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras
palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o
meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a
6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as
quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas
ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque
satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo
de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o
progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um
afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que
segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo
surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger
aluno de Rickert
7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de
histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o
Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft
(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os
fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a
transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No
terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e
conceitos nas ciecircncias culturais
22
adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no
campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma
questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de
uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as
consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se
inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do
espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada
pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da
tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado
(SKIDELSKY 2008 p 23)
O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer
seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse
sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado
inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral
fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik
des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao
caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a
atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo
Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta
balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e
aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia
racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O
8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as
ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em
instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute
margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de
Heidegger
23
desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as
tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o
posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da
vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e
reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas
Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo
tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem
Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de
Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das
Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu
final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler
ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O
primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono
do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno
a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica
(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em
torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute
marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do
neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante
particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela
Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp
e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises
intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento
9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3
24
exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por
fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior
da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de
Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no
campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em
sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10
Doutrina de Marburgo
O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por
razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar
trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia
que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do
meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees
equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo
resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e
do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de
Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa
doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das
limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram
agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees
10
Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do
neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao
leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem
exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia
o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo
ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo
25
O meacutetodo transcendental
De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute
talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12
que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia
de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia
transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas
pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito
de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele
atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas
condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen
esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da
ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim
ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo
descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo
nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da
11
Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas
consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da
Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do
neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz
daquela serva desta)
12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos
distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo
estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica
seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que
Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas
focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua
obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual
e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por
Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a
Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)
26
ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal
proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14
A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a
questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado
por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de
Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente
uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave
ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de
conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que
Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash
nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi
concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das
ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de
Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-
lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de
entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)
Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de
Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na
13
ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58
14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke
(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-
Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem
rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina
de Marburgo
15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)
Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt
16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte
de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que
significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo
27
separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma
forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que
de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas
da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos
natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade
loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente
conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela
consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica
do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um
reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18
Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo
produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da
histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves
ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram
publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema
do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo
das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois
positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de
Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da
obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da
experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma
legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento
Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)
17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto
Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do
aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de
Husserl a respeito da recusa do psicologismo
18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de
Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola
entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante
28
pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos
gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental
A noccedilatildeo de forma
Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo
loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica
de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia
Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade
da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas
meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu
conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva
da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori
Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da
mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em
oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental
tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma
transcendentalrdquo
ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo
inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no
fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da
consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de
gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o
interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que
constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)
29
De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo
do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o
desenvolvimento histoacuterico Assim
ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e
Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias
empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental
kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)
Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)
para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori
regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende
mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de
conhecimento
Conhecimento e construccedilatildeo
Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia
exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo
19
A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do
entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica
newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem
condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da
coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia
Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto
os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da
independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori
constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo
30
(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma
construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute
conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a
experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute
passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma
forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees
da natureza
Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo
de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg
Segundo Koumlhnke esse princiacutepio
ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg
afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um
idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees
mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de
ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema
natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente
mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo
(KOumlHNKE 1986 p 178)20
Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem
diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a
passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute
fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento
20
Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma
ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente
ocasiatildeo
31
A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua
aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo
tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute
da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas
somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por
exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A
mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de
maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido
substancialmente modificadas
Substacircncia e Funccedilatildeo
A tarefa da nova loacutegica
Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases
fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua
primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de
1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados
da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia
desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do
desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo
foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o
terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem
de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de
32
Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o
domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que
vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde
Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada
para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua
inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo
satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos
avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua
ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22
O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes
desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees
levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava
haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas
investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus
postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles
O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute
radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o
trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da
Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia
ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das
ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que
21
Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem
22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto
onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e
o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der
gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)
33
se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias
ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave
elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje
progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos
pode afigurarrdquo (KrV B VIII)
Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo
ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um
campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas
levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O
julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho
da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)
O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este
dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um
importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente
neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia
criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica
tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido
em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto
satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o
corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico
alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele
Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de
seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que
34
novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em
primeiro planordquo (Idem ibidem)
A doutrina do conceito geneacuterico
A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas
alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta
as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa
de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica
atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os
elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras
palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia
de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o
ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)
donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da
formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de
processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas
ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas
em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa
riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas
() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas
de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)
Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do
conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash
35
e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira
expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de
elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise
uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de
suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza
precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio
sentido do ser
ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo
pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser
dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu
fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)
Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio
do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a
de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que
os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as
coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa
antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo
(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas
caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente
uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas
reais23
23
A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e
Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito
14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira
parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona
36
Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo
de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute
totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento
mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a
conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes
renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes
abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)
ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma
pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto
negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute
meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)
a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um
conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos
traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou
dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os
objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir
semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria
melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso
se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou
obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma
determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e
uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da
mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo
que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da
linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos
geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a
formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)
Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a
concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever
Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave
Marburgo como jaacute dito
37
Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose
agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo
alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem
sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p
7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha
loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo
para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui
notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia
o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos
pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em
decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade
independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento
verdadeiro
Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na
medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias
cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro
satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a
extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que
quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite
tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito
falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e
indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado
que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de
objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente
38
Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular
precisamente em suas particularidades de nenhum universal
ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do
particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele
deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las
muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)
Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da
abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular
da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito
psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos
gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo
se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo
no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou
lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a
identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das
particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash
incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees
sensiacuteveis
ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias
fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos
da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas
como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade
com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da
primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo
39
de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de
conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo
sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e
desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)
Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos
conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles
seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da
ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual
todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24
Os conceitos matemaacuteticos
Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no
acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos
conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode
ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados
deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos
nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do
pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos
24
Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica
igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade
metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute
tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram
comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo
processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)
Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito
entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela
ontoloacutegica ou psicoloacutegica
40
empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade
sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de
refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica
neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos
nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de
questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da
aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo
(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do
conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando
problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave
experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da
qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma
brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer
substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill
Cassirer diz
ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii
iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade
atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos
excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo
Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das
definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a
representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo
sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem
espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente
linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)
41
A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da
matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta
Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a
funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente
naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de
Aristoacuteteles
ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill
mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido
quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o
meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema
ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais
natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da
abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)
A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade
espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras
metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se
evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da
abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados
temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese
se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas
conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve
primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em
ldquoseacuteries de similaresrdquo
42
ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a
consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash
jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto
manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual
a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem
ibidem)
A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo
de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a
falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas
de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados
Conceito de funccedilatildeo
ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido
conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem
relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo
fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo
mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma
especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)
E por esta via
ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou
desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia
causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o
conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica
que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra
como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)
43
Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como
um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende
por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu
fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente
funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute
um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um
lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute
mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que
justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das
notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa
a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central
Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se
faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a
serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo
Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie
de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto
seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma
ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de
sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute
ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a
regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja
representadardquo (Idem ibidem)
44
Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F
representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a
serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25
Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de
ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva
caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos
conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um
matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz
de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da
foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos
geneacutericos
A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em
oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue
ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si
mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade
concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve
em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com
uma regrardquo (Idem p 20)
25
Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo
para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus
conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo
(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental
26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der
philosophischen und mathematischen Erkenntnis
27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer
sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo
pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito
embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras
45
O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e
ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas
particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os
casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos
conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute
inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais
enriquece em conteuacutedo
ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem
quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que
concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses
problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros
portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)
Sobre a loacutegica simboacutelica
Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser
lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os
avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental
ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na
descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De
acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o
neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com
os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave
46
reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p
52)
Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de
construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse
profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica
Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente
natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no
momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do
que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade
tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos
irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca
defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero
ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente
ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio
de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia
portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para
criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)
Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo
alienadardquo29 positivista
28
Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o
outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do
Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente
sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como
uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293
29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo
da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da
47
Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito
embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por
indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado
desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de
Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a
analiacutetica
ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo
onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a
siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do
conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro
corolaacuteriordquo31
Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para
o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em
outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica
Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o
que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo
somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a
proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de
combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e
ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo
razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria
tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I
30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar
e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos
proacuteximos diasrdquo
31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54
48
de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos
imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a
qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o
problema central de sua obra de maturidade a cultura32
A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as
quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica
transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a
doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo
o contraacuterio
ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade
obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com
isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na
determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis
formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato
sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)
Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente
pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo
sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado
que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo
ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um
32
De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em
Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o
texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da
mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no
mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo
pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura
49
iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar
o ldquoideal no realrdquo)
Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da
loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido
trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido
o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo
ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental
[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a
construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute
entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das
aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]
somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da
matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34
Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua
exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente
tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo
que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos
conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100
paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente
na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel
33
Cf esp cap 4
34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer
parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser
alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim
ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o
posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo
50
inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas
ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a
Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em
seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e
o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo
O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e
Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim
de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
Rupturas
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem
Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e
Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de
Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns
indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do
35
Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute
incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da
quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que
ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares
e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-
4)
36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho
como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por
si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de
uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra
51
neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que
respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de
Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen
especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento
em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua
fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema
transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen
em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do
homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen
endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia
e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui
Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de
relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a
relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria
ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como
errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no
conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo
de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma
categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo
inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da
realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)
37
Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel
Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf
1974 p 188-210
52
A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito
de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar
a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso
especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem
necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias
natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a
filosofia criacutetica38
ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal
qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que
ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um
fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia
natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a
questatildeo desse modordquo39
Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre
a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na
histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da
filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe
Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o
autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras
38
Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia
criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel
porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)
39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala
diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que
somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por
este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um
ser objetivo como algo significativo em seu todordquo
53
variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico
ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia
Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que
se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de
siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade
ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical
definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que
estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees
pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar
enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado
unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse
significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em
atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais
como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟
natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo
feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a
partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como
paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do
que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte
essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e
bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento
recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo
de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees
[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)
40
De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas
Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o
que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada
membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que
inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo
54
Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave
questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a
presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que
eacute proposto pelo sujeito41
Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas
razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que
comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente
matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais
fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se
referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo
[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de
realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo
ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que
conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese
intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo
subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)
Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de
inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor
ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de
objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma
estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo
41
Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de
Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte
55
particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente
familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas
intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a
acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-
intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)
Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros
passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do
espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente
questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja
evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade
num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para
as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar
de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento
particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para
a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917
Sobre a teoria da relatividade
Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa
dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de
Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e
todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o
agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a
fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee
um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick
por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo
56
com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia
criacutetica
ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico
geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que
jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria
funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)
Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de
investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides
e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de
tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma
concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na
Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade
de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo
Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und
Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e
primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico
Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da
Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de
maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o
que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De
42
A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s
Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15
57
acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no
total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande
obra
Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas
tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo
por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que
ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo
vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e
Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da
obra exemplifica
ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do
conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender
todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de
uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo
separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual
nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo
os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas
particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do
entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)
Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos
significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e
conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para
ilustrar Cassirer diz
43
Cf Ibid p 9-37
58
ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente
no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do
significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e
fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila
intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes
campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)
Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma
o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais
abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da
Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cisatildeo
Origem comum
Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de
Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da
filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por
Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o
entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento
anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute
exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash
44
De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger
que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o
assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)
59
Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo
formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico
publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit
nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi
aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de
Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo
influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e
proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a
Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46
que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de
maturidade47
Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e
Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras
proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu
desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas
45
Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente
no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)
46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida
a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento
como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento
de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a
obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7
47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica
partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como
beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo
haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas
carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em
recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas
de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008
esp cap 6
60
tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em
trechos significativos de seus trabalhos48
ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual
atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua
individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo
pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento
de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias
como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave
transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel
para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)
E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o
empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima
ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional
portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e
frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material
para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo
de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo
transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer
48
Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do
espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e
Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud
FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave
filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da
Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o
conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap
corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e
esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica
simboacutelica e a Escola de Marburgo
61
Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes
postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem
ibidem)
A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick
por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir
pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os
resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que
ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento
substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que
ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas
com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino
autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim
garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a
exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do
conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo
Loacutegica ou cultura
Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da
teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a
postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se
se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees
Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente
alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos
postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute
62
preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap
centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem
quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem
tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados
Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso
pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se
restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a
partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo
epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim
como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda
numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do
conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila
noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com
atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca
deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a
despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de
Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de
mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de
nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo
(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)
63
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar
nasce de sua carecircncia auto-reflexiva
O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo
sem trilhar os caminhos da irracionalidade
Adorno
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
O lugar da razatildeo
De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias
do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua
concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento
metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi
necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da
concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma
metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro
Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa
ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a
doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de
descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que
64
Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo
agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a
concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e
investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como
construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-
se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior
ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento
defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica
representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o
cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um
expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo
geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por
correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa
a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de
resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta
disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto
de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por
Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do
meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo
clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)
Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo
ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista
A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais
65
importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse
o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que
desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade
cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de
compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa
encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem
como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo
portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de
nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as
determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional
resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA
racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o
Ensaio Sobre o Homem
ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas
Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por
outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A
linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute
faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro
toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem
conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica
49
Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo
geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito
menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte
a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser
vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o
Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas
Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo
ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito
66
ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma
religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera
abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa
genuiacutena e concretardquo (EM p 49)
Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com
efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das
Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido
de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular
receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)
O homem no leito de Procrusto
O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do
Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa
das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do
autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a
Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um
iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da
matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade
Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)
radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para
que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si
O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o
conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos
demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees
67
mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das
ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de
resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por
cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de
vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes
de qualquer articulaccedilatildeo
ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx
entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os
fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []
Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e
economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar
ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem
em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo
(EM p 41-2)
A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a
respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco
zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute
indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica
50
Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana
promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a
resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de
Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter
descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)
Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas
finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve
dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no
capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de
sua eacutepoca
68
que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do
autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da
fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como
teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou
com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a
racionalidade moderna eacute soacute um exemplo
Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a
semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito
Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao
ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-
estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um
renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia
rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava
a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila
pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a
cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por
um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar
conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52
51
O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf
esp cap V
52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo
do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses
domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo
de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o
conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o
segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito
sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe
interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de
1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente
69
Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande
proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave
expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos
do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros
projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao
problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das
formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada
com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel
Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia
da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela
atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo
Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um
dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo
transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir
de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das
produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel
dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer
relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger
53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista
do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola
neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava
a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist
und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer
entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar
para discutir o estado entatildeo presente da filosofia
54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do
texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living
Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais
[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer
70
manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o
homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas
Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja
delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia
direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas
ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual
defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do
pensamento miacutetico
ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo
esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a
esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro
lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em
conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)
A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este
carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o
outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo
ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo
do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo
pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia
da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar
nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De
71
fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta
contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta
segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas
apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no
idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em
que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna
consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao
domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)
E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis
mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa
palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados
tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores
determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no
sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do
projeto de Cassirer eacute a de
ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana
do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na
sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)
Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua
aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se
pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo
limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua
autonomia e independecircncia
72
Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da
aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as
ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser
compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo
(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do
conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que
empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de
seu programa metodoloacutegico como se segue
ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das
formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da
natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo
funcional e natildeo substancial ()
Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma
possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas
disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e
indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas
reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao
descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia
sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia
infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala
humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia
geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em
consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de
meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo
pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico
Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares
Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos
capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No
73
nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem
precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso
poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais
metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()
Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da
cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva
Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()
A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura
humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas
individuais ()
O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo
uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve
ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as
formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)
Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo
daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que
caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada
mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a
isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da
fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos
uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja
uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute
Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas
como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo
centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a
concepccedilatildeo de siacutembolo
74
Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para
expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita
ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a
sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura
expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma
simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida
essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da
funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e
especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave
dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em
questatildeo
Conceito de forma simboacutelica
Conceito de siacutembolo
Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de
Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na
obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da
humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e
que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo
humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por
conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de
todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a
posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor
75
proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de
animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem
No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees
estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer
delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que
exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho
para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia
a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos
engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por
estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver
com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face
dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo
preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio
aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica
Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer
indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria
ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer
dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr
55
Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o
nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito
natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da
evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas
Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja
claramente definido
56 Cf De Interpretatione II 16a 12
57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua
Grega p 636
76
em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o
conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo
De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da
liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas
implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de
certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para
aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio
da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de
conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima
No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia
e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem
a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe
mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um
objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas
esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica
de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo
Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo
de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do
mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser
tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de
ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado
tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel
Como diz Verene
58
Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128
77
ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num
papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao
mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio
universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade
cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois
um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59
De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um
particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do
siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910
Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na
Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do
idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem
eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia
das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um
simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo
necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento
59
No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa
entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas
simboacutelicas falaremos em seguida
60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio
sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em
1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes
61 Cf p 14-16 29 e ss
62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no
dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma
situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por
Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos
justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em
segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do
real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo
78
necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das
impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo
espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e
de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I
p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em
dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute
ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens
agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz
ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento
da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos
quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que
possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos
tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas
tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima
referidardquo63
Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se
possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que
seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]
ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros
sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal
faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do
significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais
63
Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15
79
mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de
ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)
Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres
do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo
Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de
transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a
transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees
sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De
fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente
ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a
histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a
influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria
recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se
extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa
capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros
tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o
filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as
criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)
ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso
expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica
liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente
diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade
mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)
64
Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss
80
Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo
alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute
aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo
tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do
mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o
resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que
impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito
conforme veremos
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica
O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos
escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees
distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente
chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou
simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que
exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao
tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da
objetividade66
De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um
alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica
teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo
65
Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p
16 e 2008 p 98
66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58
81
do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de
saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do
conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que
a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute
visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas
formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo
engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de
significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza
Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur
Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada
no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que
laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em
relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto
na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e
responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel
que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das
configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra
ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero
de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como
um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do
distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de
preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas
82
parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve
ser tomado67
Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos
a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do
siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes
exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em
Warburg onde Cassirer disse
ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie
des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um
signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)
Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao
idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de
Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas
simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no
extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)
Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como
67
Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico
que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do
bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de
ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute
estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de
diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes
dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este
seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo
correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual
maior e mais complexo
68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo
metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)
83
uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre
uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um
determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente
na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um
liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que
pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto
possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como
independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da
experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta
desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo
ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de
algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de
apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas
representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)
A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos
fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o
procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como
atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer
vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo
linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt
69
Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e
parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)
discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse
entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf
p 2
84
viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um
papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana
ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da
linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua
estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples
desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela
espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo
(PSF I p 169-70)
Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da
Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie
des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas
reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um
determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse
sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo
humboldtiana
O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que
a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas
simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia
nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua
proacutepria atividade70
Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que
a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias
semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao
70
A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em
que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel
85
entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute
construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o
(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute
ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des
Geistes
A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de
ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria
na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a
unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute
margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a
diversidade das formas linguumliacutesticas
ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um
nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel
designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura
mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si
por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)
Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica
Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento
semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica
ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados
elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em
bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido
para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros
primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos
86
fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees
podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e
graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)
Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para
a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a
natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo
a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a
realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do
progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie
de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem
ser concebidas em conjunto
ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e
necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado
e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio
conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo
conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim
sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no
simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)
Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o
mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana
ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras
peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as
mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele
87
por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas
formasrdquo (Idem ibidem)
Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus
signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por
objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui
uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que
ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a
linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento
do qual falava o autor no prefaacutecio da obra
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas
Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser
considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um
nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se
define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no
momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras
formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito
essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica
Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma
forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e
encadeaacute-lo em seu campo significativo
ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a
qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o
88
caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma
filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas
aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e
de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite
definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)
Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro
criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a
suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos
sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas
determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim
dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a
justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual
em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves
suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e
Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante
Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela
mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute
71
Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se
refere explicitamente agrave obra de Cassirer
72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte
e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a
histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas
depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o
nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica
da contemporaneidade
89
o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se
separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73
Uma teoria da significaccedilatildeo
Linguagem e Loacutegica
Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa
aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do
conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam
mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras
epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui
fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da
significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para
a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso
meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo
Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do
conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo
filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos
sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer
73
Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz
distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23
74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral
os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de
Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua
obra
90
ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de
conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa
apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua
estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de
significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e
o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da
significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)
Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge
profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente
entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro
preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente
voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75
Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se
evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse
parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da
questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de
Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por
75
Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-
cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo
eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa
funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas
metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas
ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem
ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser
agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos
ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo
satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se
encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre
verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p
29)
91
meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da
significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma
linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e
tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de
uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do
projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave
formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo
(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a
loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76
Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave
humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica
toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de
verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em
relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que
a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a
de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas
matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana
como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em
76
Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus
Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo
77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics
(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como
bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em
que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa
filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de
qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)
78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que
tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento
[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito
92
relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia
analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que
ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia
natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico
mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo
psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia
da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e
social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da
linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)
O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como
o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a
dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva
como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da
ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e
privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o
primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece
estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta
em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo
de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se
sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da
Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da
linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na
93
filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que
percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou
em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria
significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem
sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios
idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute
suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais
amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo
de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da
assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um
retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este
primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor
ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza
imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do
espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um
siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)
Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela
inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa
79
As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato
este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero
historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo
representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados
temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso
constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p
23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo
80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas
94
ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio
em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da
coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de
algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa
ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma
realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em
Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-
se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra
universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir
todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas
fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de
totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde
cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute
capaz de expressar o ser
ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do
cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees
opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do
devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve
comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)
Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem
e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de
Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma
significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si
mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]
95
ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas
como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que
a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda
pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o
modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)
Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo
linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes
para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash
embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de
participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo
Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela
soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo
ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se
portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada
nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras
aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a
designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma
bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)
Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas
jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer
ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as
distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem
96
verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o
contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As
categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam
simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da
oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de
modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da
substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e
qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos
adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν
o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis
quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na
liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua
no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de
atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era
indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda
que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os
domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos
seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a
81
Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the
Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo
loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para
aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela
linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais
arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a
diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral
para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p
312)
82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela
causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute
97
comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash
vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada
quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da
natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de
surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves
ciecircncias do espiacuterito
Linguagem e verificaccedilatildeo
Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do
conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir
de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter
enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do
conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo
expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida
Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de
idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito
ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83
Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma
caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo
sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato
ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute
de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo
representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo
considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica
tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)
83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim
ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)
98
Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as
particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo
humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa
tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon
mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas
das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash
seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do
significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de
cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da
linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem
enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela
ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em
parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico
da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem
natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave
anaacutelise semacircntica
ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo
loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais
ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da
bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela
natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do
mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e
reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar
noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime
99
justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no
mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84
Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida
enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de
verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo
tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a
partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como
parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos
ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem
uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade
falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma
correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise
empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente
e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra
de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM
p 210-11)
Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser
considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar
que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das
formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para
todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de
mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus
84
Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma
filosofia da cultura
100
objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel
mas sempre como uma construccedilatildeo
ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave
pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela
compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de
mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)
A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada
aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso
significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos
postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa
ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por
meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo
igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico
fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant
com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas
Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de
vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora
resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da
significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo
de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da
85
Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a
mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo
para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e
histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e
significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada
101
filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da
formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da
ciecircncia
Pregnacircncia Simboacutelica
Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave
teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo
das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do
meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de
todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma
filosofia da cultura
A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute
dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o
filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a
partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria
das formas simboacutelicas
ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como
uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo
bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa
Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato
como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre
categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um
contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do
campo cientiacutefico (p 48 49)
102
aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados
julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua
organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo
ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de
significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86
De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute
anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido
abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende
naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo
princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e
o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de
significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal
sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim
dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno
entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de
significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a
totalidade da experiecircncia
ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio
assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a
86
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica
a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54
87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a
ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos
ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na
configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis
88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a
funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida
103
pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos
intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma
determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a
unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)
Convencionalismo e significaccedilatildeo
Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)
dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos
siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo
residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer
concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a
linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras
de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a
afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a
um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda
a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria
linguagem
89
Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de
outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses
ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o
filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a
obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro
possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte
histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar
ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a
priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de
Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente
analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)
104
ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos
simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato
social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel
somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e
forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)
Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno
da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e
simbolismo artificial
ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a
consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao
simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que
necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada
momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora
destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz
uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da
consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado
possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente
se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo
fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele
ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso
particularrdquo (PSF I p 62)
A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a
artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as
definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo
natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo
105
sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora
tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o
convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do
fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel
O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da
significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa
funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro
lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo
recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a
algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor
ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia
que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no
entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p
63)
90
Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente
individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele
tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente
inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute
uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de
Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de
cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a
ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes
de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de
Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito
agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a
dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O
problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem
importacircncia para o autor
106
Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia
crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o
fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase
de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos
ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo
criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do
significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos
natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si
mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados
complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)
Sensacionismo
A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia
simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os
empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida
na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das
impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos
elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois
problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os
sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de
sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar
que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que
sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das
91
Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e
LOFTS 2000 p 1 2
107
sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da
proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash
e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em
reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos
referenciais convencionais evidencia a falha do argumento
ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere
limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas
quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua
energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente
bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A
reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o
mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo
(PSF I p 37)
Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado
fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o
compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais
sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)
ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida
por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos
sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela
para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da
sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute
simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele
fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido
transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para
108
comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de
significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)
O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente
influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos
conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da
causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza
negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente
diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com
Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo
concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como
dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o
postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo
mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a
totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia
ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na
medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com
determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta
uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia
constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)
Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a
representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso
92
Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma
tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave
ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo
aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97
109
de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos
como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em
comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer
agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode
ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois
ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo
pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente
como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo
Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo
constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)
Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo
se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo
como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a
consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao
problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida
independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo
de todo o sistema topoloacutegico
Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da
unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a
apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en
passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um
ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos
que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda
percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma
110
referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a
brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem
em mimrdquo diz o autor
ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo
requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades
particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado
com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa
experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)
Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e
entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo
e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees
conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se
pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a
unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser
entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo
ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como
uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em
relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa
a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos
as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus
elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no
111
sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e
direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93
Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada
particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a
peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em
particular) de modo a ser definido objetivamente
Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada
em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos
diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir
entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao
ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da
consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem
p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de
organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no
momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta
disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da
histoacuteria94
93
A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento
reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais
tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute
precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente
dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um
bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero
diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo
94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante
nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee
em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e
produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente
112
ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos
os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em
um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que
determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na
denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas
estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a
expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)
Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a
modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o
cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada
em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na
primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira
com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais
articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito
semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo
Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo
causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de
modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e
daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a
modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o
espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de
bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus
momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de
configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no
pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de
organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se
distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a
organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)
113
significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande
multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a
capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na
verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do
espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta
ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM
p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente
diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na
histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em
textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas
inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir
ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um
exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que
cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo
quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz
ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia
nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e
cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma
determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo
de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas
95
No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave
questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um
esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave
adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave
medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde
os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a
articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94
114
precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas
apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma
estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado
puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a
construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico
distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente
espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma
ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos
meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na
forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade
animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente
ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular
e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma
determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades
recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a
entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela
torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal
geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como
um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se
por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas
tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta
negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente
irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal
mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a
ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior
noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica
temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia
esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma
para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia
matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela
115
uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa
lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis
formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades
e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal
de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez
estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha
como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal
abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de
fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar
os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas
como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder
factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo
esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da
significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso
Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura
ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida
somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de
uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e
respirardquo (PSF III p 200-01)96
Fenomenologia e intencionalidade
Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no
corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo
natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a
ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de
96
O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica
116
intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da
questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl
ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como
as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a
relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟
no outrordquo (PSF III p 197)
Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl
ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo
(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA
consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver
de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave
racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)
De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos
sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de
clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo
e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III
p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo
se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito
do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo
Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica
ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si
mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente
abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da
117
representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo
presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico
sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p
199)
No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O
Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste
na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre
mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato
ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio
da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando
nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟
Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se
estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de
bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl
entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional
entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser
separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute
gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em
dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e
mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa
separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos
outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o
profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)
Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual
ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas
118
aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da
concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma
revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as
fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente
traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade
ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave
criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de
apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes
tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses
mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa
proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo
sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p
33) Sendo assim
ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede
trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio
material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟
quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo
fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)
A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como
uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto
de vista da consciecircncia
ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟
mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e
119
sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma
criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se
constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva
que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo
(Idem p 70)
Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute
um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para
si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse
entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e
agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende
designarrdquo (PSF III p 202)
Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel
empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos
pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que
se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem
escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar
introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao
contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se
reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo
mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a
ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo
97
O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente
ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e
pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso
admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da
natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que
eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)
120
(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do
dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da
linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto
apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute
a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel
(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma
expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo
pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base
fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a
pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela
mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao
mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo
apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)
A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da
consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do
desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a
partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que
98
Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve
inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute
bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []
Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato
fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser
entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito
da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit
De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de
modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a
concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo
concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein
121
ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja
algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um
princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a
tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)
Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e
interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as
descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo
satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo
por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior
sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar
especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro
motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico
essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo
metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma
seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios
ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja
nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua
sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente
indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura
a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua
interaccedilatildeo
122
O animal symbolicum
Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar
passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo
em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas
humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome
Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave
psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar
como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo
os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer
evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em
reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual
possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim
ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os
animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a
99
A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo
contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a
cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido
que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico
dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente
abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em
Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem
duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles
elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus
instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e
estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui
igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro
natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo
retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas
ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo
123
relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute
incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos
condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter
essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute
se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e
mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um
estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a
universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute
a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso
especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma
quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo
capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo
Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido
objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese
de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem
meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo
de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao
ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)
Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos
pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu
ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo
agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum
124
Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem
com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma
garota nascida cega surda e muda100
ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante
aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo
tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber
Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando
quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo
Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais
tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela
debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a
caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo
da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e
ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-
u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou
para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome
Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito
excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas
horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde
seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto
perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um
nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que
natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por
ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e
100
Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo
detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento
ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para
fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia
simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os
objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente
125
pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e
a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos
que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101
Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute
distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da
psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve
como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos
sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o
conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se
fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de
conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual
efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente
o que se pode afirmar eacute que
ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do
material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem
pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos
A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo
geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila
cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do
animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)
Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do
poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila
do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo
101
Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61
126
horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio
desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que
natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-
inscreve em cada indiviacuteduo
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito
A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria
das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do
animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo
deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em
sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a
proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da
atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a
necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que
constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em
seus processos
Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente
dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De
102
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo
engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der
Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de
consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte
103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final
Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir
127
fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da
Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio
ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis
ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em
sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada
por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento
filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a
totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade
possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu
princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo
de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu
desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104
Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de
desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs
funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel
Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa
[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima
104
Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the
Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-
46
105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada
estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes
em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida
106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a
liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o
termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma
portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico
128
foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades
caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula
por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e
independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui
diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua
estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e
desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada
sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que
o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo
expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107
Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem
fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas
simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa
separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma
uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel
no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em
relaccedilatildeo agraves demais
remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido
por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as
premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que
exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem
interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash
nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer
supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido
tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto
ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes
constituir simbolicamente o objeto para si
107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase
sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e
espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos
129
A funccedilatildeo expressiva
Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel
a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas
fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de
acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que
Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia
O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo
da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos
bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma
abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)
A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva
de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este
primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui
designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da
fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que
de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da
consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia
natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo
deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo
108
Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a
explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez
mais adequado desenvolvimento
130
copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109
Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro
tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura
atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada
pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo
ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter
puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O
entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo
(PSF III p 63) 110
Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave
investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo
ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo
puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas
nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem
antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve
ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo
significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com
109
Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma
construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees
que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo
da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da
significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]
aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no
capiacutetulo seguinte
110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos
reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das
ciecircncias do espiacuterito
131
vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel
somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de
coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de
significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e
causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre
as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p
100)
Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute
radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e
pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e
depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente
oposta como a consciecircncia diferencia ambos111
ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo
fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o
mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num
sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo
(KROIS 1987 p 57 58)
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de
acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica
(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em
111
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute
o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere
explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que
fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A
pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo
corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)
132
relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo
empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica
Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar
conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da
consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre
consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do
mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas
tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva
deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do
mito
A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a
fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende
a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um
epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da
mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela
coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade
que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute
subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo
objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo
(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia
da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a
um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da
Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se
apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de
organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser
133
um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p
191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a
de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do
estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim
como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui
que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma
distinccedilatildeo ainda foi feita112
Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso
privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer
ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da
expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento
conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo
teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado
Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de
centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua
particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de
mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)
Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo
estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele
deve se integrar ao
ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute
mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o
112
Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana
Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss
134
mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia
do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu
comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da
intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)
Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o
primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio
primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica
serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas
ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um
meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro
sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da
consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social
assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua
verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo
nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)
Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade
ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da
consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva
Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico
apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo
psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria
razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus
135
domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se
apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113
ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da
generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente
entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se
em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for
visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)
Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento
Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma
proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo
(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas
mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito
como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se
pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo
histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute
necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito
entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash
natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da
cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar
por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)
113
Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees
sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A
questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito
Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao
problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos
136
A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa
ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada
metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo
meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na
modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta
da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica
em sua forma
ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da
representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a
consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo
admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico
pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente
inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila
que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115
Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos
metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a
ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades
que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se
voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo
114
ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de
formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do
tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo
um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)
115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo
natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em
The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas
claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII
137
espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em
todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de
um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees
do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da
fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico
para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu
Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia
antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente
entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode
senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como
ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por
isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute
pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem
como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas
caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se
apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente
ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada
fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou
inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo
sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas
determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles
mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos
que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)
Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao
contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia
138
consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em
oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do
mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da
consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei
natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre
subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia
da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente
aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees
lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de
paixotildees e pulsotildees subjetivas
ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e
autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a
realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se
manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de
configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117
Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo
mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como
116
A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os
fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em
seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da
religiatildeo
117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma
tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui
tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido
como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que
medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo
natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um
inconsciente individual
139
parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu
desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente
dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a
primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica
ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo
da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e
determinaccedilotildees posteriores
ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute
absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do
corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com
efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa
sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu
sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e
indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118
As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade
dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se
convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)
118
Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos
distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto
de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf
PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento
miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como
quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem
justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo
ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece
como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo
de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da
alma como sede da personalidade e sede da vida
140
da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo
(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa
exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo
tempo para em seguida se reunir120
Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros
indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees
ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como
membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de
um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele
possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas
manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos
invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-
se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p
298)
Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a
accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como
independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao
exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser
entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo
proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o
119
Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da
Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a
aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)
120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e
o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo
de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no
capiacutetulo seguinte
141
conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto
tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a
consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao
sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura
social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a
personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma
seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas
A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer
vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o
homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia
natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer
ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em
letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de
repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)
E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de
interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por
mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as
outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de
121
Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma
dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a
consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem
de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos
outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas
miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si
Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo
totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27
142
todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada
uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o
conhecimento-de-si do homem
Funccedilatildeo representativa
Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros
passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a
construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em
que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os
fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia
ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos
encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo
aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a
regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a
multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente
numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a
origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da
representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi
mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)
Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas
miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo
122
De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem
natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na
obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das
formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem
143
tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a
construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam
da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as
demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para
o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem
linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao
mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de
Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a
ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem
do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia
De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista
fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da
consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos
fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos
como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen
Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da
concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo
nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees
e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com
a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por
conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e
linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e
da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer
estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos
menores e artigos publicados por Cassirer
144
ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este
ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se
diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma
forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos
denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)
No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito
particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]
Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de
denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo
reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a
metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma
condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo
[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo
ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de
um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho
mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma
miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma
determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do
profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista
miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma
autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma
transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em
que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123
123
Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto
Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss
145
Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se
desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo
que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca
inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de
um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem
lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui
fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que
medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras
determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram
capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a
distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda
que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e
lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125
No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa
[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras
determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em
que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e
124
No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o
inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre
Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da
oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na
plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo
linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva
ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio
125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e
simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos
poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes
romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua
idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp
cap 2
146
desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as
divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees
humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas
representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas
desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas
Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto
a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre
quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute
que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas
em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o
mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias
criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para
poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico
de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de
destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo
soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de
Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a
linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que
o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer
valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da
qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e
religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa
fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel
determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)
A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves
147
imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade
das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana
ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece
como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido
necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais
captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)
As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as
configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam
a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer
toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-
iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo
desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no
Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas
por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma
que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o
indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a
divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de
sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser
caracterizado como o supremo e puro bem moral
ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de
tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo
reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de
objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e
niacutetidordquo (PSF II p 408)
148
A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre
deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de
tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash
seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na
dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a
caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada
pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da
consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao
mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela
somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer
A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as
enquanto tais
ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura
bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a
todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse
comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo
(PSF II p 432)
A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo
demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se
confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia
Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e
enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria
149
realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do
poder criador do espiacuterito
Funccedilatildeo significativa
Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo
representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente
nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto
grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo
significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro
tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as
consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de
conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a
luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no
programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja
o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em
relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura
humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma
simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o
Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a
consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do
gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)
Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a
inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a
ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo
150
de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste
com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao
mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma
espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que
todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126
tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo
trata por diversas vezes
O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de
signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do
qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz
fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se
que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua
relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia
ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada
tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a
linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que
126
Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas
tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da
consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura
127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e
rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se
desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo
realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento
toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute
pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem
estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar
alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)
151
ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde
quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas
E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda
comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de
uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)
Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of
Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da
filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de
natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais
(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a
respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento
racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles
a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo
com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos
obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu
procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam
desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash
e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo
uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo
(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees
sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas
Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo
ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito
uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar
os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela
152
falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as
leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e
mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)
Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a
linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que
Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de
conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute
escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem
Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos
ao domiacutenio da mathesis universalis
No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas
agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que
Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar
e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao
mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser
suficiente
ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma
certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas
palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128
128
No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em
fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a
entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)
153
Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados
para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o
momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129
ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do
conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo
Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente
novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente
diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)
O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute
que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem
eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros
esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos
da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O
caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais
pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no
conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de
superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica
129
Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma
da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de
maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da
astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem
seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o
territoacuterio do ser (Cf EM p 343)
130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees
ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na
Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os
trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo
154
pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e
elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a
linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao
qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia
De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de
Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A
depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos
presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana
dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do
espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam
aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer
ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e
o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na
Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste
ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme
que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo
sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do
movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito
culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de
sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos
anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros
momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre
155
todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do
conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)
Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada
liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash
natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se
subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute
somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a
consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do
que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o
estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no
momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema
Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do
ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de
encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que
incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por
paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa
orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o
levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da
cultura como jaacute tratado
Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de
progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande
caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash
o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo
progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser
descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz
156
o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal
como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita
como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter
especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que
conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo
ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo
do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse
processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder
de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave
sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa
unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes
contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo
podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e
obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo
denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e
complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um
novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os
contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na
contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)
O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da
dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela
diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de
uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o
momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas
se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A
passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez
157
disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash
incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como
conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo
entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo
Cassirer
ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento
de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de
determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As
etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves
outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A
evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees
espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e
completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p
392)
Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma
delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo
constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta
disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura
acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma
a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica
131
ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser
indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo
pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na
lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser
curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no
seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado
humanardquo (LDST p 327)
158
ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica
podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas
estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da
nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos
aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica
deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos
atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)
Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva
libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta
Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser
substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos
enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)
159
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas
mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas
Epiacuteteto
A Realidade Simboacutelica
Soliloacutequio
Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de
que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe
natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o
filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de
elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o
afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento
mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo
afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um
envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir
da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e
132
Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos
ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo
deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e
reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim
recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo
qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos
parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para
cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma
forma simboacutelica como veremos adiante
160
progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de
coisas mas num mundo de significados
ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo
simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente
natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em
proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as
proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo
mesmordquo (EM p 48)
Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma
mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as
questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash
natildeo se colocam
Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel
processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio
dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e
eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes
primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de
sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro
momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este
veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave
esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo
deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem
(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar
161
agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da
vida
ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo
em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos
de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo
consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-
las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se
consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da
existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta
existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para
transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)
O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito
marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em
relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer
afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em
espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo
133
Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura
de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada
de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias
disso para a sociedade em geral 134
Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente
fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees
tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute
consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do
assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia
contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto
mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A
mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento
162
simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo
fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos
siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor
ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como
siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem
[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um
real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio
mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este
autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma
bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas
especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio
delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-
se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)
Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se
ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do
conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional
Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava
pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto
das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo
como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem
mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer
humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo
ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da
imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte
primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma
tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)
163
tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da
concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima
consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo
loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos
Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou
mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja
marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave
ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem
fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja
perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de
significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a
linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave
psicologia behaviorista)
ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa
linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias
que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras
linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da
linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e
pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu
conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)
A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes
especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de
conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de
Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou
do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)
164
Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa
forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto
a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um
denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de
passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel
traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria
mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas
aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em
particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser
dito em uacuteltima instacircncia o mesmo
ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o
da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas
ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na
proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e
conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)
Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade
entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do
conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que
barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores
prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um
lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas
respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao
mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave
mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas
165
encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo
que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse
ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade
independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua
interaccedilatildeo
ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute
cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das
manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta
unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a
diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo
produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)
A tarefa simboacutelica da ciecircncia
As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo
de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A
novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda
que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar
hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia
que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada
135
Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel
assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas
como absolutamente incomensuraacuteveis
136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no
tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das
Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um
todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim
chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88
166
isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja
um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe
postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que
toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo
Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute
vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo
ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas
vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia
suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos
Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que
Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137
bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da
consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e
representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a
criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus
procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer
uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses
obscuros
Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma
alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na
antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um
137
Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno
da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo
em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca
das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias
sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa
preocupaccedilatildeo
167
domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves
demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees
concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para
tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras
obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la
intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas
simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas
baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer
mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam
cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138
ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura
apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto
uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera
particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do
ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as
orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de
culturardquo (PSF I p 24)
Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar
forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em
que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender
qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir
do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave
138
Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica
(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a
caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a
imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila
168
atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave
linguagem ou ao mito
De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo
central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o
desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de
compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila
espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves
demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia
uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode
pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado
o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de
envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica
O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na
filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em
relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer
que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do
espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos
concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a
praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de
Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao
positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu
momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da
repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso
139
Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de
1916
169
cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela
ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade
Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da
ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo
com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo
entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho
que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da
eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado
Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de
Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram
profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo
central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008
p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas
140
O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf
GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em
torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente
apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte
inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na
Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo
tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos
sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo
havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo
em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um
domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto
mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as
publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A
retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica
publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos
EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do
autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do
que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma
dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra
170
preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares
verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou
falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como
a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou
as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo
radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados
metafiacutesicos nele contidos
Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os
demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como
tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de
conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua
obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo
entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento
da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda
que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de
outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os
141
Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta
da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo
necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo
que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo
introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo
declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de
ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com
Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)
a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no
iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de
Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da
relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos
171
campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso
de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
O projeto de uma filosofia da cultura
Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu
aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi
idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das
reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum
entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a
instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves
demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo
que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e
positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das
Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de
maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da
Escola de Marburgo142
Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito
ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo
(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo
142
Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando
da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este
encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e
sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94
172
epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e
essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo
abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de
Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos
em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do
filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por
outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos
haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel
para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a
discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o
outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo
deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o
naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo
do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova
objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais
que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e
aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise
do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de
articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do
espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente
plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do
termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo
elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura
por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos
173
Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo
humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de
determinadas praacuteticas culturais em particular143
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser
associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por
Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela
que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer
faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras
consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144
Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre
ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as
ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e
agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos
particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos
eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com
143
Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o
tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como
sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura
144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da
Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden
a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo
metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente
analisada como mostraremos
145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua
tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos
conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo
agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta
suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)
como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto
174
aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado
da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a
proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o
estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a
proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as
ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu
trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo
(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser
trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para
natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo
(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda
parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da
Escola de Baden
ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a
alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia
matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica
Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser
investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um
sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge
a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade
objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele
estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a
146
Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a
considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico
[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa
realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e
singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96
175
priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi
provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem
suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente
onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)
Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo
baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo
de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido
em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem
fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo
anterior
ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza
agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais
Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos
nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode
nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)
A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla
de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em
direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]
orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente
Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele
147
Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um
pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum
equiacutevoco de interpretaccedilatildeo
176
ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das
transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro
caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a
alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um
absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)
A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da
percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico
corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual
somente surge a significaccedilatildeo
ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas
do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas
como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas
devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟
baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo
(Idem p 95)
Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo
loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para
Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta
da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os
produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)
Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar
no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em
suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo
significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como
177
exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao
observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela
coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem
de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos
atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma
significaccedilatildeo radicalmente diversa
ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao
inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a
conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o
uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de
uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo
satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)
A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis
significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade
podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da
percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto
mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de
significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]
cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e
(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural
natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute
apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de
Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que
isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem
178
reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de
significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de
condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da
discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo
Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer
cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de
Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando
Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek
Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a
obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias
de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com
o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava
inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos
escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de
agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A
nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado
ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados
quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo
com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da
histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela
sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e
classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um
problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de
148
Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e
Gay (1968)
179
meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo
caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este
livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias
oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua
fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)
O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o
ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash
dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio
Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese
ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura
alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)
O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay
(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de
democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que
se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte
consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que
perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela
atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a
cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash
por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras
naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)
180
Cultura e Civilizaccedilatildeo
Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo
da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal
rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as
duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute
uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que
Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo
(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que
proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo
Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita
na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso
representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao
determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do
espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em
Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que
modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista
Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por
conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades
mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em
que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito
ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito
entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a
ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a
arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por
181
construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em
relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a
religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito
chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como
o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave
constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em
que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade
Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem
apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era
sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante
virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p
50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de
Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute
depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa
transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de
civilizaccedilatildeo
Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave
histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como
paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no
149
O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto
dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade
jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute
notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a
filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo
sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da
filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural
182
idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de
razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a
um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo
traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo
moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade
impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash
cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder
portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja
correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por
exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do
tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura
Diversidade Cultural
Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do
espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido
teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito
absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e
(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem
aponta Krois (2002 p 28)
150
Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau
Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca
151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de
animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo
da humanidade cosmopolita
183
ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e
vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo
da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha
linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em
cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma
novas formasrdquo152
A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico
convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo
positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura
como um processo essencialmente relativo153
Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura
natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo
momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que
por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu
ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do
crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154
percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do
seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de
diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer
Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo
152
Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf
1987 p 176-181 ou 2002 p 28
153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que
marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta
(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a
intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza
154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies
em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960
184
da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de
passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia
saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute
norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no
singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo
estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute
necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da
filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute
evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos
estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos
variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa
Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em
vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou
mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre
povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir
corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo
das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem
no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de
fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti
mesmo
185
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Nota de esclarecimento
As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as
secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute
ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao
longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como
fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e
assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso
nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi
efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira
publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo
Primaacuterias
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- GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
- AGRADECIMENTOS
- RESUMO
- ABSTRACT
- LISTA DE ABREVIATURAS
- SUMAacuteRIO
- PARA LER CASSIRER
- ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
-
- Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
- Escola de Marburgo
- Doutrina de Marburgo
- Substacircncia e Funccedilatildeo
- Rupturas
- Cisatildeo
-
- AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
-
- Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
- Conceito de forma simboacutelica
- Uma teoria da significaccedilatildeo
- Pregnacircncia Simboacutelica
- As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
-
- O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
-
- A Realidade Simboacutelica
- Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
-
- REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
1
RAFAEL RODRIGUES GARCIA
GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST
CASSIRER
SAtildeO PAULO
2010
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Caetano Ernesto Plastino
2
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Caetano Ernesto
Plastino pela confianccedila depositada desde os tempos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica eacutepoca
em que apresentou-me agrave filosofia de Ernst Cassirer Sua prontidatildeo para esclarecer
duacutevidas a pertinecircncia de seus comentaacuterios e sugestotildees aleacutem de toda a
receptividade que eacute marca de sua personalidade satildeo dignas de nota Sem seu
apoio e orientaccedilatildeo este trabalho certamente natildeo se efetivaria
Aos professores Dr Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Dr Ricardo Ribeiro Terra
pela participaccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo e pelas sugestotildees e comentaacuterios
oportunos para o teacutermino do trabalho
Aos professores Dr John Krois e Dr Christian Moumlckel pela acolhida em
Berlim e por apresentarem-me agrave biblioteca da Universidade Humboldt cujo acervo
foi determinante para as minhas pesquisas
Agraves funcionaacuterias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade
pela paciecircncia apoio e prontidatildeo
Aos amigos e colegas de faculdade Andreacute Doneux e Ricardo Zanchetta pelas
leituras correccedilotildees e sugestotildees pelas conversas e pelo incentivo
A Ariadne Machado querida amiga e professora de alematildeo pelo incentivo e
pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer
Ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria
Aos meus pais e familiares pelo incentivo paciecircncia e confianccedila por toda a
vida
3
Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos
Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas
Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti
Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia
Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser
Siacutembolos Estou cansado de pensar
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando
Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos
Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa
It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end
Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei
Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know
Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos
Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos
(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)
4
RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia
das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo
Satildeo Paulo 2010
O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees
envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da
obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as
questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua
estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos
os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por
Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de
todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um
processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo
apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de
seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o
filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo
Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas
criacutetica da cultura
5
ABSTRACT
GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master
Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo
Paulo Satildeo Paulo 2010
This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns
out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt
with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s
work its structure and its main methodological postulates to eventually understand
the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of
human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual
activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do
so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his
philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher
wants to differentiate his own work from
Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of
culture
6
LISTA DE ABREVIATURAS
Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das
iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e
outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim
espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas
demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de
Cohen e Kant
Obras de Cassirer
EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie
EM Essay on Man
EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit
ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
KMM Kant und die moderne Mathematik
LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought
LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft
MS The Myth of the State
PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache
PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken
PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis
PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen
SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff
SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften
SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen
SMC Symbol Myth and Culture
Obras de Cohen e Kant
KRV Kritik der reinen Vernunft
KTE Kants Theorie der Erfahrung
LRE Logik der reinen Erkenntnis
7
SUMAacuteRIO
PARA LER CASSIRER11
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14
Escola de Marburgo 17
Panorama filosoacutefico 17
Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento
Ambiente poliacutetico 20
Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do
Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do
neokantismo
Doutrina de Marburgo 24
O meacutetodo transcendental 25
Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o
materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento
puro
A noccedilatildeo de forma 28
A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo
Conhecimento e construccedilatildeo 29
Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano
Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica
Substacircncia e Funccedilatildeo 31
A tarefa da nova loacutegica 31
Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional
A doutrina do conceito geneacuterico 34
A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de
notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo
Os conceitos matemaacuteticos 39
A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da
seacuterie
Conceito de funccedilatildeo 42
Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A
universalidade concreta
Sobre a loacutegica simboacutelica 45
8
Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e
a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental
Rupturas 50
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50
Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez
matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito
Sobre a teoria da relatividade 55
Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio
Cisatildeo 58
Origem comum 58
Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo
Loacutegica ou cultura 61
As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63
O lugar da razatildeo 63
Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de
conhecimento
O homem no leito de Procrusto 66
O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud
Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo
Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo
grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70
O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria
Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental
Conceito de forma simboacutelica 74
Conceito de siacutembolo 74
Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do
siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80
Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt
Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo
simboacutelica
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87
9
Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e
forma simboacutelica
Uma teoria da significaccedilatildeo 89
Linguagem e Loacutegica 89
Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo
Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o
λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito
Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser
Linguagem e verificaccedilatildeo 97
A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da
revoluccedilatildeo copernicana
Pregnacircncia Simboacutelica 101
Convencionalismo e significaccedilatildeo 103
Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa
Sensacionismo 106
A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo
dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva
Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na
consciecircncia O exemplo da linha
Fenomenologia e intencionalidade 115
Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo
Cultura e praxis
O animal symbolicum 122
O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen
Keller
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126
Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e
fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva 129
O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e
alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A
anterioridade da vida coletiva
Funccedilatildeo representativa 142
Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave
arte
10
Funccedilatildeo significativa 149
Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu
Bohr matemaacutetica e ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia 155
Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da
cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de
Hegel agrave aacutervore de Darwin
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159
A Realidade Simboacutelica 159
Soliloacutequio 159
O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade
Autonomia e incomensurabilidade
A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165
A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento
intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171
O projeto de uma filosofia da cultura 171
A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft
Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A
biblioteca de Warburg
Cultura e Civilizaccedilatildeo 180
Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e
progresso Razatildeo e homogeneidade
Diversidade Cultural 182
Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro
da discussatildeo
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187
11
PARA LER CASSIRER
Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito
Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas
Nelson Goodman
Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma
nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho
Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a
filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo
especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com
exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da
utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os
textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo
se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma
filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros
Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou
historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os
proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer
como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria
demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a
imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para
Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para
ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De
outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne
conhecedor da histoacuteria da filosofia
12
Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo
vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas
deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente
dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido
para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota
aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer
De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas
dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de
discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que
ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa
dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e
em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo
historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes
eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e
autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas
entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem
de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo
historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de
conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras
coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em
direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta
de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute
elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel
ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias
diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem
13
opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias
histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral
O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra
muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas
ideacuteias
Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da
filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho
se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de
Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em
que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa
forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de
Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo
estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez
de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta
de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a
inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou
outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os
estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro
filoacutesofo
Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a
filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de
outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo
quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash
desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais
14
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais
remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro
Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]
Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no
campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar
o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito
[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do
conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente
para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo
fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa
epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente
circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra
na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem
entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da
constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia
Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar
alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com
outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda
que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo
restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente
15
aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio
agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do
mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo
peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc
conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito
Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual
chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte
os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita
demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que
essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave
esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer
tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa
metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos
As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se
pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo
que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia
das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees
do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua
produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff
und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos
que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica
Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo
intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca
bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na
citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute
16
num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia
e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da
tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por
fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a
mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como
isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o
leitor no magnum opus de Cassirer
Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra
de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima
citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de
fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do
programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do
esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser
tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo
epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo
transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere
significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1
Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do
filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que
1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic
Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do
autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees
poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky
que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de
Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer
pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos
comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada
um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos
17
reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das
formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma
distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a
necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de
publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do
programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas
na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a
perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do
projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da
filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees
e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo
condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao
texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia
esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de
uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar
especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de
sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate
sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais
Escola de Marburgo
Panorama filosoacutefico
A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e
multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em
18
resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os
adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do
tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o
ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986
p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter
especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo
de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente
agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de
expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento
ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava
as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das
ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do
2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de
Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute
assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-
criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)
tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo
transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)
e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)
3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves
quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa
eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash
assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente
diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando
um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf
p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia
em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke
(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o
filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio
concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas
4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL
(2001) e POMA (1997)
19
espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash
Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista
quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de
reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves
tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de
Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da
situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de
Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute
especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela
[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado
para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo
trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico
primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel
central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que
o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras
palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves
Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os
valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash
curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou
propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente
na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso
5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse
caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo
20
Ambiente poliacutetico
No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo
coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo
Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com
vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo
positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da
Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo
de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio
filosoacutefico da DDR
ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima
associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia
alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse
periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da
Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE
1986 p 3)
Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa
da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se
for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo
criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou
Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo
Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir
a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes
distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo
que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-
21
filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute
corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas
vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas
natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves
Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao
positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias
naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que
significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar
do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original
adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a
Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a
interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras
palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o
meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a
6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as
quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas
ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque
satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo
de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o
progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um
afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que
segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo
surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger
aluno de Rickert
7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de
histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o
Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft
(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os
fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a
transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No
terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e
conceitos nas ciecircncias culturais
22
adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no
campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma
questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de
uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as
consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se
inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do
espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada
pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da
tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado
(SKIDELSKY 2008 p 23)
O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer
seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse
sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado
inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral
fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik
des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao
caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a
atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo
Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta
balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e
aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia
racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O
8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as
ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em
instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute
margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de
Heidegger
23
desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as
tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o
posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da
vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e
reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas
Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo
tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem
Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de
Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das
Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu
final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler
ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O
primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono
do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno
a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica
(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em
torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute
marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do
neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante
particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela
Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp
e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises
intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento
9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3
24
exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por
fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior
da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de
Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no
campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em
sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10
Doutrina de Marburgo
O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por
razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar
trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia
que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do
meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees
equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo
resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e
do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de
Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa
doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das
limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram
agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees
10
Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do
neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao
leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem
exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia
o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo
ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo
25
O meacutetodo transcendental
De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute
talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12
que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia
de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia
transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas
pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito
de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele
atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas
condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen
esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da
ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim
ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo
descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo
nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da
11
Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas
consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da
Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do
neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz
daquela serva desta)
12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos
distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo
estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica
seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que
Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas
focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua
obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual
e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por
Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a
Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)
26
ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal
proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14
A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a
questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado
por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de
Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente
uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave
ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de
conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que
Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash
nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi
concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das
ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de
Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-
lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de
entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)
Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de
Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na
13
ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58
14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke
(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-
Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem
rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina
de Marburgo
15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)
Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt
16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte
de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que
significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo
27
separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma
forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que
de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas
da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos
natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade
loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente
conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela
consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica
do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um
reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18
Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo
produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da
histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves
ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram
publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema
do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo
das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois
positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de
Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da
obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da
experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma
legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento
Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)
17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto
Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do
aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de
Husserl a respeito da recusa do psicologismo
18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de
Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola
entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante
28
pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos
gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental
A noccedilatildeo de forma
Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo
loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica
de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia
Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade
da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas
meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu
conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva
da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori
Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da
mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em
oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental
tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma
transcendentalrdquo
ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo
inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no
fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da
consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de
gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o
interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que
constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)
29
De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo
do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o
desenvolvimento histoacuterico Assim
ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e
Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias
empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental
kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)
Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)
para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori
regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende
mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de
conhecimento
Conhecimento e construccedilatildeo
Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia
exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo
19
A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do
entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica
newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem
condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da
coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia
Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto
os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da
independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori
constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo
30
(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma
construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute
conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a
experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute
passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma
forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees
da natureza
Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo
de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg
Segundo Koumlhnke esse princiacutepio
ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg
afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um
idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees
mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de
ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema
natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente
mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo
(KOumlHNKE 1986 p 178)20
Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem
diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a
passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute
fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento
20
Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma
ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente
ocasiatildeo
31
A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua
aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo
tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute
da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas
somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por
exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A
mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de
maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido
substancialmente modificadas
Substacircncia e Funccedilatildeo
A tarefa da nova loacutegica
Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases
fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua
primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de
1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados
da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia
desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do
desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo
foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o
terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem
de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de
32
Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o
domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que
vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde
Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada
para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua
inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo
satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos
avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua
ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22
O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes
desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees
levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava
haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas
investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus
postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles
O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute
radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o
trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da
Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia
ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das
ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que
21
Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem
22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto
onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e
o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der
gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)
33
se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias
ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave
elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje
progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos
pode afigurarrdquo (KrV B VIII)
Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo
ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um
campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas
levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O
julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho
da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)
O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este
dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um
importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente
neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia
criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica
tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido
em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto
satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o
corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico
alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele
Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de
seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que
34
novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em
primeiro planordquo (Idem ibidem)
A doutrina do conceito geneacuterico
A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas
alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta
as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa
de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica
atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os
elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras
palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia
de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o
ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)
donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da
formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de
processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas
ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas
em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa
riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas
() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas
de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)
Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do
conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash
35
e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira
expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de
elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise
uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de
suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza
precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio
sentido do ser
ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo
pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser
dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu
fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)
Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio
do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a
de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que
os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as
coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa
antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo
(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas
caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente
uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas
reais23
23
A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e
Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito
14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira
parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona
36
Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo
de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute
totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento
mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a
conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes
renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes
abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)
ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma
pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto
negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute
meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)
a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um
conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos
traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou
dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os
objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir
semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria
melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso
se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou
obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma
determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e
uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da
mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo
que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da
linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos
geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a
formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)
Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a
concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever
Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave
Marburgo como jaacute dito
37
Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose
agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo
alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem
sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p
7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha
loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo
para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui
notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia
o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos
pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em
decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade
independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento
verdadeiro
Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na
medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias
cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro
satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a
extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que
quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite
tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito
falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e
indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado
que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de
objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente
38
Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular
precisamente em suas particularidades de nenhum universal
ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do
particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele
deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las
muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)
Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da
abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular
da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito
psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos
gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo
se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo
no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou
lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a
identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das
particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash
incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees
sensiacuteveis
ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias
fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos
da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas
como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade
com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da
primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo
39
de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de
conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo
sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e
desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)
Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos
conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles
seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da
ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual
todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24
Os conceitos matemaacuteticos
Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no
acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos
conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode
ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados
deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos
nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do
pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos
24
Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica
igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade
metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute
tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram
comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo
processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)
Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito
entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela
ontoloacutegica ou psicoloacutegica
40
empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade
sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de
refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica
neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos
nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de
questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da
aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo
(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do
conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando
problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave
experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da
qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma
brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer
substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill
Cassirer diz
ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii
iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade
atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos
excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo
Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das
definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a
representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo
sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem
espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente
linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)
41
A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da
matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta
Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a
funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente
naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de
Aristoacuteteles
ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill
mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido
quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o
meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema
ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais
natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da
abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)
A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade
espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras
metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se
evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da
abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados
temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese
se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas
conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve
primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em
ldquoseacuteries de similaresrdquo
42
ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a
consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash
jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto
manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual
a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem
ibidem)
A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo
de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a
falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas
de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados
Conceito de funccedilatildeo
ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido
conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem
relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo
fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo
mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma
especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)
E por esta via
ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou
desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia
causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o
conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica
que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra
como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)
43
Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como
um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende
por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu
fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente
funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute
um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um
lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute
mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que
justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das
notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa
a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central
Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se
faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a
serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo
Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie
de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto
seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma
ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de
sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute
ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a
regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja
representadardquo (Idem ibidem)
44
Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F
representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a
serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25
Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de
ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva
caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos
conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um
matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz
de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da
foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos
geneacutericos
A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em
oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue
ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si
mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade
concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve
em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com
uma regrardquo (Idem p 20)
25
Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo
para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus
conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo
(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental
26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der
philosophischen und mathematischen Erkenntnis
27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer
sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo
pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito
embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras
45
O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e
ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas
particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os
casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos
conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute
inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais
enriquece em conteuacutedo
ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem
quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que
concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses
problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros
portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)
Sobre a loacutegica simboacutelica
Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser
lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os
avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental
ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na
descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De
acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o
neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com
os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave
46
reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p
52)
Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de
construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse
profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica
Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente
natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no
momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do
que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade
tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos
irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca
defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero
ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente
ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio
de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia
portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para
criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)
Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo
alienadardquo29 positivista
28
Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o
outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do
Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente
sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como
uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293
29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo
da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da
47
Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito
embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por
indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado
desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de
Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a
analiacutetica
ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo
onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a
siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do
conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro
corolaacuteriordquo31
Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para
o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em
outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica
Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o
que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo
somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a
proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de
combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e
ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo
razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria
tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I
30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar
e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos
proacuteximos diasrdquo
31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54
48
de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos
imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a
qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o
problema central de sua obra de maturidade a cultura32
A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as
quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica
transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a
doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo
o contraacuterio
ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade
obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com
isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na
determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis
formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato
sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)
Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente
pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo
sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado
que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo
ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um
32
De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em
Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o
texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da
mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no
mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo
pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura
49
iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar
o ldquoideal no realrdquo)
Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da
loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido
trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido
o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo
ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental
[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a
construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute
entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das
aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]
somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da
matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34
Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua
exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente
tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo
que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos
conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100
paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente
na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel
33
Cf esp cap 4
34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer
parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser
alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim
ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o
posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo
50
inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas
ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a
Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em
seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e
o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo
O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e
Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim
de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
Rupturas
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem
Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e
Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de
Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns
indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do
35
Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute
incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da
quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que
ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares
e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-
4)
36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho
como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por
si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de
uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra
51
neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que
respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de
Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen
especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento
em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua
fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema
transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen
em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do
homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen
endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia
e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui
Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de
relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a
relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria
ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como
errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no
conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo
de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma
categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo
inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da
realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)
37
Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel
Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf
1974 p 188-210
52
A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito
de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar
a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso
especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem
necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias
natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a
filosofia criacutetica38
ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal
qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que
ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um
fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia
natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a
questatildeo desse modordquo39
Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre
a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na
histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da
filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe
Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o
autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras
38
Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia
criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel
porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)
39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala
diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que
somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por
este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um
ser objetivo como algo significativo em seu todordquo
53
variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico
ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia
Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que
se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de
siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade
ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical
definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que
estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees
pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar
enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado
unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse
significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em
atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais
como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟
natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo
feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a
partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como
paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do
que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte
essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e
bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento
recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo
de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees
[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)
40
De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas
Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o
que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada
membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que
inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo
54
Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave
questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a
presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que
eacute proposto pelo sujeito41
Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas
razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que
comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente
matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais
fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se
referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo
[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de
realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo
ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que
conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese
intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo
subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)
Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de
inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor
ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de
objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma
estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo
41
Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de
Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte
55
particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente
familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas
intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a
acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-
intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)
Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros
passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do
espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente
questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja
evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade
num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para
as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar
de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento
particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para
a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917
Sobre a teoria da relatividade
Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa
dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de
Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e
todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o
agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a
fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee
um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick
por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo
56
com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia
criacutetica
ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico
geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que
jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria
funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)
Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de
investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides
e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de
tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma
concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na
Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade
de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo
Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und
Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e
primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico
Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da
Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de
maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o
que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De
42
A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s
Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15
57
acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no
total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande
obra
Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas
tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo
por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que
ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo
vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e
Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da
obra exemplifica
ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do
conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender
todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de
uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo
separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual
nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo
os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas
particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do
entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)
Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos
significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e
conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para
ilustrar Cassirer diz
43
Cf Ibid p 9-37
58
ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente
no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do
significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e
fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila
intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes
campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)
Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma
o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais
abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da
Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cisatildeo
Origem comum
Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de
Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da
filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por
Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o
entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento
anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute
exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash
44
De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger
que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o
assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)
59
Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo
formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico
publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit
nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi
aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de
Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo
influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e
proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a
Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46
que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de
maturidade47
Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e
Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras
proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu
desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas
45
Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente
no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)
46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida
a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento
como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento
de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a
obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7
47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica
partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como
beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo
haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas
carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em
recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas
de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008
esp cap 6
60
tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em
trechos significativos de seus trabalhos48
ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual
atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua
individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo
pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento
de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias
como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave
transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel
para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)
E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o
empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima
ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional
portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e
frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material
para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo
de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo
transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer
48
Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do
espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e
Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud
FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave
filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da
Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o
conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap
corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e
esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica
simboacutelica e a Escola de Marburgo
61
Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes
postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem
ibidem)
A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick
por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir
pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os
resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que
ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento
substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que
ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas
com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino
autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim
garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a
exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do
conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo
Loacutegica ou cultura
Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da
teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a
postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se
se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees
Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente
alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos
postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute
62
preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap
centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem
quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem
tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados
Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso
pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se
restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a
partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo
epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim
como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda
numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do
conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila
noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com
atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca
deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a
despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de
Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de
mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de
nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo
(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)
63
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar
nasce de sua carecircncia auto-reflexiva
O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo
sem trilhar os caminhos da irracionalidade
Adorno
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
O lugar da razatildeo
De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias
do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua
concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento
metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi
necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da
concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma
metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro
Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa
ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a
doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de
descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que
64
Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo
agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a
concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e
investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como
construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-
se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior
ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento
defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica
representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o
cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um
expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo
geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por
correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa
a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de
resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta
disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto
de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por
Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do
meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo
clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)
Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo
ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista
A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais
65
importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse
o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que
desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade
cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de
compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa
encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem
como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo
portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de
nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as
determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional
resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA
racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o
Ensaio Sobre o Homem
ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas
Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por
outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A
linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute
faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro
toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem
conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica
49
Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo
geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito
menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte
a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser
vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o
Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas
Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo
ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito
66
ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma
religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera
abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa
genuiacutena e concretardquo (EM p 49)
Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com
efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das
Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido
de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular
receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)
O homem no leito de Procrusto
O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do
Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa
das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do
autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a
Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um
iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da
matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade
Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)
radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para
que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si
O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o
conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos
demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees
67
mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das
ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de
resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por
cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de
vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes
de qualquer articulaccedilatildeo
ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx
entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os
fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []
Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e
economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar
ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem
em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo
(EM p 41-2)
A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a
respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco
zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute
indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica
50
Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana
promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a
resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de
Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter
descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)
Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas
finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve
dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no
capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de
sua eacutepoca
68
que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do
autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da
fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como
teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou
com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a
racionalidade moderna eacute soacute um exemplo
Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a
semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito
Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao
ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-
estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um
renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia
rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava
a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila
pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a
cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por
um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar
conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52
51
O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf
esp cap V
52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo
do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses
domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo
de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o
conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o
segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito
sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe
interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de
1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente
69
Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande
proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave
expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos
do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros
projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao
problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das
formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada
com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel
Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia
da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela
atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo
Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um
dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo
transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir
de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das
produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel
dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer
relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger
53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista
do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola
neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava
a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist
und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer
entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar
para discutir o estado entatildeo presente da filosofia
54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do
texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living
Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais
[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer
70
manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o
homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas
Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja
delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia
direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas
ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual
defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do
pensamento miacutetico
ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo
esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a
esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro
lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em
conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)
A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este
carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o
outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo
ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo
do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo
pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia
da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar
nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De
71
fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta
contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta
segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas
apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no
idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em
que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna
consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao
domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)
E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis
mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa
palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados
tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores
determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no
sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do
projeto de Cassirer eacute a de
ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana
do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na
sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)
Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua
aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se
pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo
limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua
autonomia e independecircncia
72
Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da
aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as
ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser
compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo
(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do
conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que
empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de
seu programa metodoloacutegico como se segue
ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das
formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da
natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo
funcional e natildeo substancial ()
Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma
possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas
disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e
indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas
reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao
descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia
sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia
infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala
humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia
geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em
consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de
meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo
pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico
Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares
Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos
capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No
73
nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem
precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso
poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais
metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()
Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da
cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva
Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()
A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura
humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas
individuais ()
O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo
uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve
ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as
formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)
Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo
daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que
caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada
mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a
isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da
fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos
uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja
uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute
Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas
como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo
centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a
concepccedilatildeo de siacutembolo
74
Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para
expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita
ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a
sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura
expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma
simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida
essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da
funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e
especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave
dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em
questatildeo
Conceito de forma simboacutelica
Conceito de siacutembolo
Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de
Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na
obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da
humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e
que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo
humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por
conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de
todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a
posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor
75
proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de
animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem
No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees
estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer
delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que
exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho
para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia
a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos
engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por
estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver
com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face
dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo
preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio
aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica
Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer
indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria
ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer
dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr
55
Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o
nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito
natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da
evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas
Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja
claramente definido
56 Cf De Interpretatione II 16a 12
57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua
Grega p 636
76
em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o
conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo
De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da
liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas
implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de
certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para
aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio
da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de
conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima
No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia
e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem
a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe
mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um
objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas
esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica
de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo
Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo
de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do
mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser
tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de
ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado
tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel
Como diz Verene
58
Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128
77
ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num
papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao
mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio
universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade
cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois
um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59
De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um
particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do
siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910
Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na
Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do
idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem
eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia
das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um
simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo
necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento
59
No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa
entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas
simboacutelicas falaremos em seguida
60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio
sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em
1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes
61 Cf p 14-16 29 e ss
62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no
dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma
situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por
Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos
justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em
segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do
real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo
78
necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das
impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo
espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e
de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I
p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em
dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute
ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens
agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz
ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento
da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos
quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que
possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos
tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas
tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima
referidardquo63
Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se
possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que
seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]
ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros
sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal
faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do
significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais
63
Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15
79
mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de
ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)
Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres
do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo
Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de
transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a
transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees
sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De
fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente
ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a
histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a
influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria
recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se
extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa
capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros
tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o
filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as
criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)
ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso
expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica
liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente
diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade
mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)
64
Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss
80
Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo
alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute
aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo
tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do
mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o
resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que
impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito
conforme veremos
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica
O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos
escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees
distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente
chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou
simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que
exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao
tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da
objetividade66
De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um
alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica
teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo
65
Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p
16 e 2008 p 98
66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58
81
do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de
saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do
conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que
a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute
visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas
formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo
engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de
significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza
Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur
Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada
no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que
laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em
relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto
na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e
responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel
que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das
configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra
ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero
de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como
um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do
distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de
preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas
82
parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve
ser tomado67
Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos
a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do
siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes
exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em
Warburg onde Cassirer disse
ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie
des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um
signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)
Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao
idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de
Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas
simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no
extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)
Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como
67
Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico
que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do
bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de
ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute
estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de
diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes
dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este
seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo
correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual
maior e mais complexo
68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo
metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)
83
uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre
uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um
determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente
na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um
liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que
pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto
possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como
independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da
experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta
desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo
ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de
algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de
apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas
representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)
A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos
fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o
procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como
atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer
vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo
linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt
69
Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e
parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)
discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse
entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf
p 2
84
viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um
papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana
ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da
linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua
estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples
desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela
espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo
(PSF I p 169-70)
Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da
Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie
des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas
reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um
determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse
sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo
humboldtiana
O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que
a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas
simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia
nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua
proacutepria atividade70
Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que
a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias
semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao
70
A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em
que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel
85
entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute
construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o
(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute
ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des
Geistes
A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de
ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria
na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a
unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute
margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a
diversidade das formas linguumliacutesticas
ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um
nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel
designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura
mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si
por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)
Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica
Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento
semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica
ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados
elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em
bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido
para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros
primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos
86
fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees
podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e
graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)
Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para
a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a
natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo
a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a
realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do
progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie
de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem
ser concebidas em conjunto
ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e
necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado
e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio
conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo
conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim
sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no
simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)
Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o
mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana
ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras
peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as
mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele
87
por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas
formasrdquo (Idem ibidem)
Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus
signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por
objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui
uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que
ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a
linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento
do qual falava o autor no prefaacutecio da obra
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas
Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser
considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um
nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se
define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no
momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras
formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito
essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica
Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma
forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e
encadeaacute-lo em seu campo significativo
ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a
qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o
88
caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma
filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas
aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e
de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite
definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)
Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro
criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a
suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos
sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas
determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim
dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a
justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual
em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves
suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e
Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante
Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela
mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute
71
Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se
refere explicitamente agrave obra de Cassirer
72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte
e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a
histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas
depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o
nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica
da contemporaneidade
89
o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se
separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73
Uma teoria da significaccedilatildeo
Linguagem e Loacutegica
Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa
aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do
conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam
mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras
epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui
fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da
significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para
a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso
meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo
Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do
conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo
filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos
sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer
73
Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz
distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23
74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral
os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de
Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua
obra
90
ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de
conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa
apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua
estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de
significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e
o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da
significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)
Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge
profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente
entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro
preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente
voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75
Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se
evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse
parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da
questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de
Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por
75
Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-
cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo
eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa
funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas
metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas
ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem
ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser
agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos
ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo
satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se
encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre
verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p
29)
91
meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da
significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma
linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e
tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de
uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do
projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave
formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo
(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a
loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76
Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave
humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica
toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de
verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em
relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que
a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a
de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas
matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana
como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em
76
Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus
Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo
77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics
(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como
bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em
que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa
filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de
qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)
78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que
tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento
[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito
92
relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia
analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que
ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia
natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico
mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo
psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia
da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e
social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da
linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)
O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como
o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a
dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva
como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da
ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e
privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o
primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece
estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta
em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo
de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se
sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da
Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da
linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na
93
filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que
percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou
em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria
significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem
sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios
idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute
suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais
amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo
de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da
assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um
retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este
primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor
ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza
imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do
espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um
siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)
Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela
inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa
79
As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato
este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero
historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo
representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados
temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso
constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p
23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo
80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas
94
ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio
em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da
coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de
algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa
ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma
realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em
Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-
se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra
universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir
todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas
fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de
totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde
cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute
capaz de expressar o ser
ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do
cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees
opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do
devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve
comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)
Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem
e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de
Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma
significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si
mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]
95
ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas
como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que
a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda
pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o
modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)
Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo
linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes
para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash
embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de
participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo
Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela
soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo
ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se
portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada
nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras
aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a
designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma
bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)
Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas
jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer
ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as
distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem
96
verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o
contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As
categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam
simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da
oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de
modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da
substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e
qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos
adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν
o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis
quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na
liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua
no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de
atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era
indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda
que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os
domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos
seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a
81
Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the
Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo
loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para
aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela
linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais
arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a
diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral
para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p
312)
82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela
causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute
97
comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash
vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada
quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da
natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de
surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves
ciecircncias do espiacuterito
Linguagem e verificaccedilatildeo
Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do
conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir
de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter
enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do
conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo
expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida
Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de
idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito
ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83
Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma
caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo
sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato
ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute
de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo
representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo
considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica
tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)
83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim
ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)
98
Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as
particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo
humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa
tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon
mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas
das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash
seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do
significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de
cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da
linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem
enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela
ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em
parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico
da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem
natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave
anaacutelise semacircntica
ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo
loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais
ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da
bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela
natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do
mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e
reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar
noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime
99
justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no
mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84
Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida
enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de
verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo
tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a
partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como
parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos
ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem
uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade
falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma
correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise
empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente
e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra
de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM
p 210-11)
Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser
considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar
que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das
formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para
todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de
mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus
84
Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma
filosofia da cultura
100
objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel
mas sempre como uma construccedilatildeo
ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave
pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela
compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de
mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)
A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada
aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso
significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos
postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa
ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por
meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo
igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico
fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant
com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas
Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de
vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora
resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da
significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo
de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da
85
Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a
mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo
para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e
histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e
significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada
101
filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da
formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da
ciecircncia
Pregnacircncia Simboacutelica
Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave
teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo
das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do
meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de
todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma
filosofia da cultura
A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute
dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o
filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a
partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria
das formas simboacutelicas
ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como
uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo
bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa
Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato
como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre
categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um
contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do
campo cientiacutefico (p 48 49)
102
aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados
julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua
organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo
ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de
significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86
De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute
anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido
abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende
naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo
princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e
o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de
significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal
sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim
dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno
entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de
significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a
totalidade da experiecircncia
ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio
assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a
86
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica
a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54
87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a
ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos
ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na
configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis
88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a
funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida
103
pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos
intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma
determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a
unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)
Convencionalismo e significaccedilatildeo
Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)
dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos
siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo
residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer
concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a
linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras
de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a
afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a
um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda
a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria
linguagem
89
Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de
outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses
ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o
filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a
obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro
possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte
histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar
ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a
priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de
Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente
analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)
104
ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos
simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato
social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel
somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e
forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)
Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno
da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e
simbolismo artificial
ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a
consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao
simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que
necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada
momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora
destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz
uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da
consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado
possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente
se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo
fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele
ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso
particularrdquo (PSF I p 62)
A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a
artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as
definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo
natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo
105
sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora
tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o
convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do
fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel
O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da
significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa
funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro
lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo
recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a
algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor
ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia
que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no
entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p
63)
90
Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente
individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele
tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente
inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute
uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de
Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de
cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a
ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes
de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de
Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito
agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a
dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O
problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem
importacircncia para o autor
106
Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia
crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o
fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase
de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos
ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo
criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do
significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos
natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si
mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados
complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)
Sensacionismo
A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia
simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os
empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida
na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das
impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos
elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois
problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os
sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de
sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar
que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que
sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das
91
Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e
LOFTS 2000 p 1 2
107
sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da
proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash
e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em
reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos
referenciais convencionais evidencia a falha do argumento
ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere
limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas
quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua
energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente
bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A
reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o
mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo
(PSF I p 37)
Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado
fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o
compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais
sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)
ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida
por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos
sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela
para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da
sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute
simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele
fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido
transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para
108
comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de
significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)
O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente
influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos
conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da
causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza
negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente
diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com
Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo
concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como
dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o
postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo
mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a
totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia
ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na
medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com
determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta
uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia
constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)
Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a
representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso
92
Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma
tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave
ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo
aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97
109
de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos
como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em
comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer
agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode
ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois
ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo
pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente
como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo
Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo
constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)
Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo
se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo
como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a
consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao
problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida
independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo
de todo o sistema topoloacutegico
Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da
unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a
apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en
passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um
ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos
que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda
percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma
110
referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a
brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem
em mimrdquo diz o autor
ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo
requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades
particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado
com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa
experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)
Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e
entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo
e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees
conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se
pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a
unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser
entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo
ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como
uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em
relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa
a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos
as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus
elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no
111
sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e
direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93
Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada
particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a
peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em
particular) de modo a ser definido objetivamente
Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada
em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos
diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir
entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao
ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da
consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem
p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de
organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no
momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta
disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da
histoacuteria94
93
A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento
reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais
tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute
precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente
dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um
bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero
diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo
94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante
nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee
em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e
produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente
112
ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos
os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em
um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que
determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na
denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas
estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a
expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)
Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a
modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o
cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada
em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na
primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira
com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais
articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito
semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo
Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo
causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de
modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e
daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a
modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o
espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de
bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus
momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de
configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no
pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de
organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se
distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a
organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)
113
significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande
multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a
capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na
verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do
espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta
ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM
p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente
diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na
histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em
textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas
inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir
ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um
exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que
cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo
quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz
ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia
nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e
cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma
determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo
de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas
95
No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave
questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um
esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave
adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave
medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde
os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a
articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94
114
precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas
apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma
estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado
puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a
construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico
distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente
espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma
ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos
meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na
forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade
animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente
ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular
e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma
determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades
recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a
entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela
torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal
geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como
um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se
por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas
tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta
negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente
irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal
mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a
ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior
noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica
temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia
esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma
para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia
matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela
115
uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa
lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis
formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades
e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal
de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez
estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha
como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal
abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de
fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar
os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas
como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder
factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo
esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da
significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso
Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura
ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida
somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de
uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e
respirardquo (PSF III p 200-01)96
Fenomenologia e intencionalidade
Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no
corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo
natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a
ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de
96
O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica
116
intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da
questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl
ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como
as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a
relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟
no outrordquo (PSF III p 197)
Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl
ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo
(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA
consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver
de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave
racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)
De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos
sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de
clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo
e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III
p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo
se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito
do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo
Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica
ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si
mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente
abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da
117
representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo
presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico
sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p
199)
No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O
Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste
na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre
mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato
ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio
da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando
nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟
Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se
estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de
bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl
entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional
entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser
separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute
gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em
dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e
mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa
separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos
outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o
profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)
Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual
ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas
118
aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da
concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma
revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as
fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente
traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade
ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave
criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de
apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes
tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses
mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa
proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo
sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p
33) Sendo assim
ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede
trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio
material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟
quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo
fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)
A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como
uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto
de vista da consciecircncia
ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟
mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e
119
sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma
criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se
constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva
que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo
(Idem p 70)
Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute
um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para
si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse
entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e
agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende
designarrdquo (PSF III p 202)
Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel
empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos
pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que
se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem
escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar
introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao
contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se
reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo
mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a
ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo
97
O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente
ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e
pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso
admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da
natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que
eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)
120
(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do
dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da
linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto
apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute
a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel
(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma
expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo
pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base
fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a
pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela
mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao
mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo
apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)
A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da
consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do
desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a
partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que
98
Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve
inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute
bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []
Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato
fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser
entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito
da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit
De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de
modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a
concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo
concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein
121
ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja
algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um
princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a
tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)
Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e
interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as
descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo
satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo
por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior
sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar
especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro
motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico
essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo
metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma
seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios
ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja
nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua
sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente
indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura
a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua
interaccedilatildeo
122
O animal symbolicum
Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar
passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo
em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas
humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome
Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave
psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar
como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo
os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer
evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em
reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual
possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim
ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os
animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a
99
A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo
contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a
cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido
que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico
dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente
abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em
Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem
duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles
elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus
instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e
estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui
igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro
natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo
retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas
ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo
123
relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute
incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos
condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter
essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute
se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e
mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um
estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a
universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute
a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso
especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma
quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo
capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo
Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido
objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese
de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem
meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo
de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao
ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)
Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos
pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu
ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo
agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum
124
Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem
com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma
garota nascida cega surda e muda100
ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante
aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo
tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber
Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando
quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo
Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais
tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela
debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a
caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo
da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e
ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-
u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou
para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome
Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito
excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas
horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde
seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto
perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um
nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que
natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por
ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e
100
Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo
detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento
ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para
fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia
simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os
objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente
125
pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e
a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos
que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101
Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute
distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da
psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve
como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos
sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o
conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se
fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de
conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual
efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente
o que se pode afirmar eacute que
ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do
material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem
pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos
A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo
geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila
cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do
animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)
Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do
poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila
do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo
101
Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61
126
horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio
desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que
natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-
inscreve em cada indiviacuteduo
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito
A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria
das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do
animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo
deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em
sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a
proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da
atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a
necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que
constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em
seus processos
Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente
dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De
102
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo
engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der
Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de
consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte
103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final
Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir
127
fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da
Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio
ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis
ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em
sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada
por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento
filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a
totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade
possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu
princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo
de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu
desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104
Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de
desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs
funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel
Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa
[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima
104
Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the
Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-
46
105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada
estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes
em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida
106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a
liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o
termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma
portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico
128
foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades
caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula
por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e
independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui
diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua
estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e
desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada
sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que
o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo
expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107
Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem
fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas
simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa
separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma
uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel
no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em
relaccedilatildeo agraves demais
remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido
por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as
premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que
exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem
interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash
nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer
supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido
tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto
ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes
constituir simbolicamente o objeto para si
107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase
sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e
espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos
129
A funccedilatildeo expressiva
Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel
a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas
fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de
acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que
Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia
O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo
da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos
bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma
abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)
A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva
de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este
primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui
designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da
fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que
de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da
consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia
natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo
deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo
108
Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a
explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez
mais adequado desenvolvimento
130
copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109
Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro
tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura
atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada
pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo
ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter
puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O
entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo
(PSF III p 63) 110
Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave
investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo
ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo
puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas
nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem
antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve
ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo
significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com
109
Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma
construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees
que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo
da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da
significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]
aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no
capiacutetulo seguinte
110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos
reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das
ciecircncias do espiacuterito
131
vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel
somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de
coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de
significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e
causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre
as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p
100)
Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute
radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e
pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e
depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente
oposta como a consciecircncia diferencia ambos111
ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo
fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o
mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num
sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo
(KROIS 1987 p 57 58)
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de
acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica
(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em
111
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute
o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere
explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que
fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A
pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo
corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)
132
relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo
empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica
Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar
conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da
consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre
consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do
mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas
tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva
deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do
mito
A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a
fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende
a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um
epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da
mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela
coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade
que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute
subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo
objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo
(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia
da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a
um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da
Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se
apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de
organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser
133
um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p
191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a
de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do
estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim
como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui
que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma
distinccedilatildeo ainda foi feita112
Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso
privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer
ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da
expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento
conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo
teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado
Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de
centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua
particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de
mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)
Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo
estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele
deve se integrar ao
ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute
mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o
112
Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana
Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss
134
mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia
do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu
comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da
intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)
Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o
primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio
primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica
serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas
ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um
meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro
sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da
consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social
assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua
verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo
nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)
Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade
ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da
consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva
Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico
apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo
psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria
razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus
135
domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se
apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113
ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da
generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente
entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se
em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for
visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)
Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento
Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma
proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo
(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas
mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito
como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se
pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo
histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute
necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito
entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash
natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da
cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar
por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)
113
Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees
sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A
questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito
Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao
problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos
136
A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa
ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada
metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo
meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na
modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta
da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica
em sua forma
ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da
representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a
consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo
admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico
pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente
inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila
que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115
Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos
metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a
ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades
que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se
voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo
114
ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de
formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do
tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo
um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)
115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo
natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em
The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas
claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII
137
espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em
todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de
um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees
do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da
fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico
para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu
Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia
antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente
entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode
senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como
ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por
isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute
pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem
como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas
caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se
apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente
ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada
fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou
inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo
sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas
determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles
mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos
que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)
Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao
contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia
138
consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em
oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do
mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da
consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei
natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre
subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia
da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente
aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees
lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de
paixotildees e pulsotildees subjetivas
ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e
autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a
realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se
manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de
configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117
Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo
mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como
116
A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os
fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em
seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da
religiatildeo
117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma
tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui
tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido
como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que
medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo
natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um
inconsciente individual
139
parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu
desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente
dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a
primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica
ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo
da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e
determinaccedilotildees posteriores
ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute
absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do
corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com
efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa
sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu
sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e
indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118
As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade
dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se
convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)
118
Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos
distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto
de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf
PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento
miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como
quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem
justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo
ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece
como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo
de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da
alma como sede da personalidade e sede da vida
140
da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo
(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa
exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo
tempo para em seguida se reunir120
Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros
indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees
ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como
membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de
um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele
possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas
manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos
invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-
se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p
298)
Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a
accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como
independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao
exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser
entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo
proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o
119
Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da
Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a
aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)
120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e
o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo
de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no
capiacutetulo seguinte
141
conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto
tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a
consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao
sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura
social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a
personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma
seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas
A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer
vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o
homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia
natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer
ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em
letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de
repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)
E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de
interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por
mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as
outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de
121
Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma
dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a
consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem
de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos
outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas
miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si
Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo
totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27
142
todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada
uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o
conhecimento-de-si do homem
Funccedilatildeo representativa
Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros
passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a
construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em
que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os
fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia
ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos
encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo
aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a
regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a
multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente
numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a
origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da
representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi
mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)
Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas
miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo
122
De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem
natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na
obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das
formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem
143
tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a
construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam
da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as
demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para
o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem
linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao
mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de
Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a
ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem
do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia
De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista
fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da
consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos
fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos
como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen
Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da
concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo
nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees
e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com
a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por
conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e
linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e
da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer
estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos
menores e artigos publicados por Cassirer
144
ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este
ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se
diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma
forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos
denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)
No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito
particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]
Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de
denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo
reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a
metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma
condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo
[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo
ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de
um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho
mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma
miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma
determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do
profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista
miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma
autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma
transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em
que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123
123
Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto
Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss
145
Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se
desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo
que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca
inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de
um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem
lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui
fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que
medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras
determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram
capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a
distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda
que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e
lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125
No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa
[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras
determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em
que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e
124
No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o
inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre
Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da
oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na
plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo
linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva
ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio
125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e
simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos
poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes
romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua
idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp
cap 2
146
desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as
divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees
humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas
representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas
desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas
Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto
a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre
quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute
que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas
em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o
mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias
criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para
poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico
de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de
destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo
soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de
Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a
linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que
o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer
valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da
qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e
religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa
fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel
determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)
A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves
147
imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade
das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana
ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece
como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido
necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais
captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)
As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as
configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam
a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer
toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-
iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo
desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no
Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas
por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma
que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o
indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a
divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de
sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser
caracterizado como o supremo e puro bem moral
ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de
tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo
reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de
objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e
niacutetidordquo (PSF II p 408)
148
A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre
deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de
tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash
seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na
dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a
caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada
pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da
consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao
mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela
somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer
A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as
enquanto tais
ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura
bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a
todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse
comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo
(PSF II p 432)
A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo
demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se
confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia
Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e
enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria
149
realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do
poder criador do espiacuterito
Funccedilatildeo significativa
Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo
representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente
nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto
grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo
significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro
tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as
consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de
conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a
luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no
programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja
o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em
relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura
humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma
simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o
Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a
consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do
gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)
Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a
inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a
ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo
150
de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste
com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao
mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma
espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que
todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126
tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo
trata por diversas vezes
O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de
signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do
qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz
fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se
que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua
relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia
ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada
tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a
linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que
126
Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas
tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da
consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura
127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e
rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se
desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo
realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento
toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute
pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem
estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar
alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)
151
ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde
quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas
E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda
comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de
uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)
Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of
Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da
filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de
natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais
(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a
respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento
racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles
a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo
com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos
obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu
procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam
desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash
e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo
uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo
(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees
sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas
Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo
ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito
uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar
os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela
152
falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as
leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e
mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)
Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a
linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que
Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de
conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute
escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem
Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos
ao domiacutenio da mathesis universalis
No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas
agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que
Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar
e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao
mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser
suficiente
ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma
certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas
palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128
128
No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em
fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a
entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)
153
Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados
para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o
momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129
ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do
conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo
Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente
novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente
diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)
O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute
que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem
eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros
esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos
da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O
caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais
pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no
conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de
superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica
129
Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma
da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de
maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da
astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem
seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o
territoacuterio do ser (Cf EM p 343)
130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees
ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na
Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os
trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo
154
pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e
elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a
linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao
qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia
De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de
Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A
depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos
presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana
dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do
espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam
aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer
ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e
o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na
Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste
ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme
que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo
sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do
movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito
culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de
sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos
anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros
momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre
155
todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do
conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)
Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada
liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash
natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se
subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute
somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a
consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do
que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o
estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no
momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema
Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do
ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de
encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que
incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por
paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa
orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o
levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da
cultura como jaacute tratado
Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de
progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande
caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash
o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo
progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser
descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz
156
o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal
como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita
como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter
especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que
conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo
ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo
do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse
processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder
de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave
sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa
unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes
contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo
podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e
obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo
denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e
complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um
novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os
contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na
contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)
O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da
dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela
diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de
uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o
momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas
se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A
passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez
157
disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash
incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como
conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo
entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo
Cassirer
ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento
de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de
determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As
etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves
outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A
evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees
espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e
completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p
392)
Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma
delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo
constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta
disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura
acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma
a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica
131
ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser
indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo
pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na
lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser
curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no
seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado
humanardquo (LDST p 327)
158
ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica
podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas
estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da
nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos
aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica
deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos
atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)
Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva
libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta
Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser
substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos
enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)
159
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas
mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas
Epiacuteteto
A Realidade Simboacutelica
Soliloacutequio
Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de
que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe
natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o
filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de
elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o
afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento
mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo
afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um
envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir
da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e
132
Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos
ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo
deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e
reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim
recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo
qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos
parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para
cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma
forma simboacutelica como veremos adiante
160
progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de
coisas mas num mundo de significados
ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo
simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente
natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em
proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as
proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo
mesmordquo (EM p 48)
Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma
mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as
questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash
natildeo se colocam
Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel
processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio
dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e
eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes
primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de
sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro
momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este
veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave
esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo
deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem
(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar
161
agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da
vida
ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo
em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos
de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo
consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-
las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se
consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da
existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta
existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para
transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)
O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito
marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em
relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer
afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em
espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo
133
Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura
de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada
de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias
disso para a sociedade em geral 134
Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente
fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees
tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute
consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do
assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia
contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto
mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A
mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento
162
simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo
fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos
siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor
ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como
siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem
[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um
real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio
mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este
autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma
bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas
especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio
delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-
se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)
Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se
ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do
conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional
Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava
pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto
das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo
como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem
mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer
humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo
ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da
imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte
primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma
tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)
163
tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da
concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima
consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo
loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos
Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou
mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja
marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave
ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem
fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja
perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de
significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a
linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave
psicologia behaviorista)
ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa
linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias
que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras
linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da
linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e
pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu
conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)
A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes
especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de
conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de
Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou
do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)
164
Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa
forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto
a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um
denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de
passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel
traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria
mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas
aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em
particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser
dito em uacuteltima instacircncia o mesmo
ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o
da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas
ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na
proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e
conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)
Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade
entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do
conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que
barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores
prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um
lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas
respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao
mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave
mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas
165
encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo
que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse
ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade
independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua
interaccedilatildeo
ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute
cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das
manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta
unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a
diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo
produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)
A tarefa simboacutelica da ciecircncia
As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo
de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A
novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda
que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar
hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia
que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada
135
Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel
assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas
como absolutamente incomensuraacuteveis
136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no
tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das
Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um
todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim
chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88
166
isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja
um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe
postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que
toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo
Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute
vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo
ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas
vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia
suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos
Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que
Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137
bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da
consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e
representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a
criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus
procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer
uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses
obscuros
Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma
alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na
antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um
137
Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno
da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo
em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca
das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias
sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa
preocupaccedilatildeo
167
domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves
demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees
concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para
tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras
obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la
intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas
simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas
baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer
mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam
cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138
ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura
apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto
uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera
particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do
ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as
orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de
culturardquo (PSF I p 24)
Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar
forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em
que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender
qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir
do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave
138
Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica
(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a
caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a
imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila
168
atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave
linguagem ou ao mito
De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo
central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o
desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de
compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila
espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves
demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia
uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode
pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado
o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de
envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica
O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na
filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em
relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer
que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do
espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos
concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a
praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de
Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao
positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu
momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da
repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso
139
Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de
1916
169
cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela
ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade
Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da
ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo
com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo
entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho
que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da
eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado
Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de
Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram
profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo
central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008
p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas
140
O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf
GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em
torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente
apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte
inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na
Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo
tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos
sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo
havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo
em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um
domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto
mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as
publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A
retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica
publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos
EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do
autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do
que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma
dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra
170
preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares
verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou
falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como
a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou
as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo
radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados
metafiacutesicos nele contidos
Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os
demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como
tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de
conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua
obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo
entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento
da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda
que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de
outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os
141
Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta
da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo
necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo
que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo
introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo
declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de
ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com
Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)
a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no
iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de
Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da
relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos
171
campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso
de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
O projeto de uma filosofia da cultura
Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu
aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi
idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das
reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum
entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a
instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves
demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo
que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e
positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das
Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de
maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da
Escola de Marburgo142
Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito
ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo
(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo
142
Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando
da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este
encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e
sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94
172
epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e
essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo
abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de
Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos
em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do
filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por
outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos
haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel
para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a
discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o
outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo
deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o
naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo
do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova
objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais
que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e
aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise
do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de
articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do
espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente
plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do
termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo
elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura
por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos
173
Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo
humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de
determinadas praacuteticas culturais em particular143
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser
associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por
Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela
que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer
faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras
consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144
Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre
ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as
ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e
agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos
particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos
eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com
143
Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o
tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como
sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura
144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da
Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden
a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo
metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente
analisada como mostraremos
145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua
tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos
conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo
agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta
suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)
como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto
174
aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado
da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a
proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o
estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a
proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as
ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu
trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo
(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser
trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para
natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo
(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda
parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da
Escola de Baden
ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a
alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia
matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica
Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser
investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um
sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge
a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade
objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele
estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a
146
Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a
considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico
[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa
realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e
singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96
175
priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi
provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem
suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente
onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)
Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo
baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo
de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido
em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem
fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo
anterior
ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza
agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais
Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos
nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode
nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)
A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla
de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em
direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]
orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente
Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele
147
Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um
pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum
equiacutevoco de interpretaccedilatildeo
176
ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das
transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro
caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a
alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um
absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)
A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da
percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico
corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual
somente surge a significaccedilatildeo
ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas
do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas
como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas
devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟
baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo
(Idem p 95)
Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo
loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para
Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta
da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os
produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)
Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar
no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em
suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo
significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como
177
exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao
observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela
coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem
de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos
atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma
significaccedilatildeo radicalmente diversa
ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao
inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a
conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o
uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de
uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo
satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)
A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis
significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade
podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da
percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto
mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de
significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]
cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e
(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural
natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute
apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de
Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que
isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem
178
reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de
significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de
condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da
discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo
Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer
cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de
Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando
Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek
Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a
obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias
de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com
o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava
inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos
escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de
agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A
nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado
ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados
quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo
com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da
histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela
sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e
classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um
problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de
148
Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e
Gay (1968)
179
meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo
caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este
livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias
oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua
fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)
O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o
ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash
dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio
Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese
ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura
alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)
O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay
(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de
democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que
se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte
consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que
perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela
atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a
cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash
por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras
naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)
180
Cultura e Civilizaccedilatildeo
Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo
da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal
rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as
duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute
uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que
Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo
(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que
proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo
Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita
na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso
representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao
determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do
espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em
Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que
modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista
Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por
conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades
mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em
que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito
ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito
entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a
ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a
arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por
181
construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em
relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a
religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito
chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como
o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave
constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em
que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade
Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem
apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era
sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante
virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p
50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de
Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute
depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa
transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de
civilizaccedilatildeo
Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave
histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como
paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no
149
O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto
dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade
jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute
notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a
filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo
sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da
filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural
182
idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de
razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a
um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo
traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo
moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade
impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash
cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder
portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja
correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por
exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do
tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura
Diversidade Cultural
Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do
espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido
teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito
absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e
(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem
aponta Krois (2002 p 28)
150
Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau
Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca
151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de
animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo
da humanidade cosmopolita
183
ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e
vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo
da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha
linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em
cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma
novas formasrdquo152
A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico
convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo
positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura
como um processo essencialmente relativo153
Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura
natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo
momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que
por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu
ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do
crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154
percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do
seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de
diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer
Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo
152
Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf
1987 p 176-181 ou 2002 p 28
153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que
marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta
(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a
intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza
154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies
em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960
184
da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de
passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia
saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute
norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no
singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo
estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute
necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da
filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute
evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos
estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos
variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa
Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em
vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou
mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre
povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir
corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo
das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem
no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de
fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti
mesmo
185
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Nota de esclarecimento
As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as
secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute
ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao
longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como
fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e
assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso
nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi
efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira
publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo
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- GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
- AGRADECIMENTOS
- RESUMO
- ABSTRACT
- LISTA DE ABREVIATURAS
- SUMAacuteRIO
- PARA LER CASSIRER
- ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
-
- Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
- Escola de Marburgo
- Doutrina de Marburgo
- Substacircncia e Funccedilatildeo
- Rupturas
- Cisatildeo
-
- AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
-
- Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
- Conceito de forma simboacutelica
- Uma teoria da significaccedilatildeo
- Pregnacircncia Simboacutelica
- As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
-
- O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
-
- A Realidade Simboacutelica
- Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
-
- REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
2
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Caetano Ernesto
Plastino pela confianccedila depositada desde os tempos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica eacutepoca
em que apresentou-me agrave filosofia de Ernst Cassirer Sua prontidatildeo para esclarecer
duacutevidas a pertinecircncia de seus comentaacuterios e sugestotildees aleacutem de toda a
receptividade que eacute marca de sua personalidade satildeo dignas de nota Sem seu
apoio e orientaccedilatildeo este trabalho certamente natildeo se efetivaria
Aos professores Dr Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Dr Ricardo Ribeiro Terra
pela participaccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo e pelas sugestotildees e comentaacuterios
oportunos para o teacutermino do trabalho
Aos professores Dr John Krois e Dr Christian Moumlckel pela acolhida em
Berlim e por apresentarem-me agrave biblioteca da Universidade Humboldt cujo acervo
foi determinante para as minhas pesquisas
Agraves funcionaacuterias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade
pela paciecircncia apoio e prontidatildeo
Aos amigos e colegas de faculdade Andreacute Doneux e Ricardo Zanchetta pelas
leituras correccedilotildees e sugestotildees pelas conversas e pelo incentivo
A Ariadne Machado querida amiga e professora de alematildeo pelo incentivo e
pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer
Ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria
Aos meus pais e familiares pelo incentivo paciecircncia e confianccedila por toda a
vida
3
Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos
Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas
Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti
Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia
Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser
Siacutembolos Estou cansado de pensar
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando
Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos
Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa
It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end
Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei
Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know
Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos
Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos
(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)
4
RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia
das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo
Satildeo Paulo 2010
O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees
envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da
obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as
questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua
estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos
os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por
Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de
todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um
processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo
apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de
seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o
filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo
Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas
criacutetica da cultura
5
ABSTRACT
GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master
Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo
Paulo Satildeo Paulo 2010
This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns
out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt
with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s
work its structure and its main methodological postulates to eventually understand
the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of
human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual
activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do
so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his
philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher
wants to differentiate his own work from
Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of
culture
6
LISTA DE ABREVIATURAS
Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das
iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e
outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim
espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas
demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de
Cohen e Kant
Obras de Cassirer
EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie
EM Essay on Man
EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit
ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
KMM Kant und die moderne Mathematik
LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought
LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft
MS The Myth of the State
PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache
PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken
PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis
PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen
SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff
SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften
SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen
SMC Symbol Myth and Culture
Obras de Cohen e Kant
KRV Kritik der reinen Vernunft
KTE Kants Theorie der Erfahrung
LRE Logik der reinen Erkenntnis
7
SUMAacuteRIO
PARA LER CASSIRER11
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14
Escola de Marburgo 17
Panorama filosoacutefico 17
Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento
Ambiente poliacutetico 20
Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do
Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do
neokantismo
Doutrina de Marburgo 24
O meacutetodo transcendental 25
Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o
materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento
puro
A noccedilatildeo de forma 28
A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo
Conhecimento e construccedilatildeo 29
Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano
Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica
Substacircncia e Funccedilatildeo 31
A tarefa da nova loacutegica 31
Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional
A doutrina do conceito geneacuterico 34
A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de
notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo
Os conceitos matemaacuteticos 39
A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da
seacuterie
Conceito de funccedilatildeo 42
Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A
universalidade concreta
Sobre a loacutegica simboacutelica 45
8
Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e
a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental
Rupturas 50
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50
Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez
matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito
Sobre a teoria da relatividade 55
Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio
Cisatildeo 58
Origem comum 58
Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo
Loacutegica ou cultura 61
As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63
O lugar da razatildeo 63
Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de
conhecimento
O homem no leito de Procrusto 66
O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud
Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo
Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo
grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70
O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria
Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental
Conceito de forma simboacutelica 74
Conceito de siacutembolo 74
Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do
siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80
Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt
Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo
simboacutelica
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87
9
Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e
forma simboacutelica
Uma teoria da significaccedilatildeo 89
Linguagem e Loacutegica 89
Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo
Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o
λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito
Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser
Linguagem e verificaccedilatildeo 97
A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da
revoluccedilatildeo copernicana
Pregnacircncia Simboacutelica 101
Convencionalismo e significaccedilatildeo 103
Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa
Sensacionismo 106
A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo
dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva
Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na
consciecircncia O exemplo da linha
Fenomenologia e intencionalidade 115
Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo
Cultura e praxis
O animal symbolicum 122
O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen
Keller
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126
Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e
fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva 129
O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e
alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A
anterioridade da vida coletiva
Funccedilatildeo representativa 142
Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave
arte
10
Funccedilatildeo significativa 149
Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu
Bohr matemaacutetica e ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia 155
Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da
cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de
Hegel agrave aacutervore de Darwin
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159
A Realidade Simboacutelica 159
Soliloacutequio 159
O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade
Autonomia e incomensurabilidade
A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165
A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento
intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171
O projeto de uma filosofia da cultura 171
A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft
Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A
biblioteca de Warburg
Cultura e Civilizaccedilatildeo 180
Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e
progresso Razatildeo e homogeneidade
Diversidade Cultural 182
Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro
da discussatildeo
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187
11
PARA LER CASSIRER
Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito
Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas
Nelson Goodman
Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma
nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho
Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a
filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo
especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com
exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da
utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os
textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo
se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma
filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros
Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou
historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os
proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer
como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria
demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a
imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para
Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para
ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De
outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne
conhecedor da histoacuteria da filosofia
12
Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo
vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas
deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente
dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido
para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota
aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer
De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas
dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de
discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que
ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa
dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e
em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo
historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes
eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e
autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas
entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem
de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo
historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de
conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras
coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em
direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta
de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute
elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel
ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias
diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem
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opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias
histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral
O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra
muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas
ideacuteias
Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da
filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho
se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de
Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em
que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa
forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de
Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo
estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez
de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta
de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a
inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou
outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os
estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro
filoacutesofo
Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a
filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de
outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo
quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash
desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais
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ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais
remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro
Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]
Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no
campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar
o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito
[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do
conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente
para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo
fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa
epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente
circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra
na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem
entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da
constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia
Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar
alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com
outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda
que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo
restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente
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aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio
agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do
mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo
peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc
conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito
Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual
chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte
os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita
demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que
essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave
esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer
tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa
metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos
As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se
pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo
que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia
das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees
do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua
produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff
und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos
que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica
Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo
intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca
bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na
citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute
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num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia
e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da
tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por
fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a
mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como
isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o
leitor no magnum opus de Cassirer
Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra
de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima
citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de
fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do
programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do
esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser
tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo
epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo
transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere
significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1
Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do
filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que
1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic
Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do
autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees
poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky
que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de
Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer
pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos
comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada
um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos
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reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das
formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma
distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a
necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de
publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do
programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas
na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a
perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do
projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da
filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees
e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo
condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao
texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia
esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de
uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar
especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de
sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate
sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais
Escola de Marburgo
Panorama filosoacutefico
A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e
multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em
18
resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os
adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do
tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o
ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986
p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter
especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo
de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente
agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de
expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento
ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava
as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das
ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do
2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de
Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute
assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-
criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)
tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo
transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)
e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)
3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves
quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa
eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash
assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente
diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando
um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf
p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia
em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke
(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o
filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio
concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas
4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL
(2001) e POMA (1997)
19
espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash
Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista
quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de
reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves
tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de
Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da
situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de
Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute
especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela
[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado
para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo
trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico
primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel
central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que
o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras
palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves
Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os
valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash
curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou
propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente
na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso
5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse
caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo
20
Ambiente poliacutetico
No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo
coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo
Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com
vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo
positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da
Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo
de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio
filosoacutefico da DDR
ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima
associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia
alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse
periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da
Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE
1986 p 3)
Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa
da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se
for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo
criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou
Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo
Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir
a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes
distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo
que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-
21
filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute
corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas
vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas
natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves
Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao
positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias
naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que
significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar
do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original
adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a
Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a
interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras
palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o
meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a
6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as
quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas
ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque
satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo
de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o
progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um
afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que
segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo
surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger
aluno de Rickert
7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de
histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o
Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft
(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os
fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a
transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No
terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e
conceitos nas ciecircncias culturais
22
adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no
campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma
questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de
uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as
consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se
inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do
espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada
pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da
tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado
(SKIDELSKY 2008 p 23)
O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer
seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse
sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado
inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral
fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik
des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao
caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a
atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo
Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta
balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e
aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia
racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O
8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as
ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em
instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute
margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de
Heidegger
23
desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as
tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o
posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da
vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e
reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas
Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo
tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem
Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de
Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das
Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu
final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler
ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O
primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono
do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno
a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica
(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em
torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute
marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do
neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante
particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela
Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp
e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises
intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento
9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3
24
exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por
fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior
da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de
Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no
campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em
sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10
Doutrina de Marburgo
O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por
razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar
trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia
que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do
meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees
equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo
resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e
do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de
Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa
doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das
limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram
agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees
10
Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do
neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao
leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem
exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia
o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo
ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo
25
O meacutetodo transcendental
De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute
talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12
que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia
de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia
transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas
pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito
de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele
atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas
condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen
esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da
ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim
ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo
descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo
nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da
11
Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas
consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da
Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do
neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz
daquela serva desta)
12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos
distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo
estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica
seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que
Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas
focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua
obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual
e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por
Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a
Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)
26
ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal
proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14
A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a
questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado
por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de
Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente
uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave
ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de
conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que
Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash
nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi
concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das
ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de
Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-
lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de
entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)
Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de
Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na
13
ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58
14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke
(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-
Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem
rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina
de Marburgo
15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)
Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt
16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte
de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que
significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo
27
separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma
forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que
de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas
da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos
natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade
loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente
conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela
consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica
do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um
reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18
Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo
produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da
histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves
ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram
publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema
do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo
das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois
positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de
Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da
obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da
experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma
legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento
Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)
17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto
Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do
aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de
Husserl a respeito da recusa do psicologismo
18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de
Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola
entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante
28
pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos
gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental
A noccedilatildeo de forma
Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo
loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica
de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia
Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade
da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas
meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu
conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva
da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori
Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da
mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em
oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental
tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma
transcendentalrdquo
ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo
inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no
fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da
consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de
gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o
interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que
constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)
29
De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo
do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o
desenvolvimento histoacuterico Assim
ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e
Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias
empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental
kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)
Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)
para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori
regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende
mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de
conhecimento
Conhecimento e construccedilatildeo
Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia
exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo
19
A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do
entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica
newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem
condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da
coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia
Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto
os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da
independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori
constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo
30
(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma
construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute
conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a
experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute
passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma
forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees
da natureza
Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo
de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg
Segundo Koumlhnke esse princiacutepio
ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg
afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um
idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees
mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de
ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema
natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente
mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo
(KOumlHNKE 1986 p 178)20
Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem
diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a
passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute
fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento
20
Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma
ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente
ocasiatildeo
31
A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua
aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo
tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute
da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas
somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por
exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A
mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de
maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido
substancialmente modificadas
Substacircncia e Funccedilatildeo
A tarefa da nova loacutegica
Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases
fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua
primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de
1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados
da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia
desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do
desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo
foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o
terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem
de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de
32
Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o
domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que
vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde
Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada
para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua
inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo
satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos
avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua
ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22
O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes
desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees
levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava
haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas
investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus
postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles
O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute
radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o
trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da
Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia
ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das
ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que
21
Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem
22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto
onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e
o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der
gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)
33
se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias
ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave
elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje
progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos
pode afigurarrdquo (KrV B VIII)
Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo
ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um
campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas
levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O
julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho
da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)
O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este
dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um
importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente
neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia
criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica
tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido
em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto
satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o
corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico
alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele
Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de
seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que
34
novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em
primeiro planordquo (Idem ibidem)
A doutrina do conceito geneacuterico
A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas
alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta
as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa
de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica
atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os
elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras
palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia
de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o
ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)
donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da
formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de
processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas
ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas
em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa
riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas
() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas
de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)
Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do
conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash
35
e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira
expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de
elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise
uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de
suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza
precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio
sentido do ser
ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo
pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser
dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu
fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)
Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio
do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a
de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que
os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as
coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa
antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo
(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas
caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente
uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas
reais23
23
A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e
Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito
14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira
parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona
36
Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo
de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute
totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento
mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a
conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes
renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes
abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)
ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma
pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto
negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute
meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)
a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um
conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos
traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou
dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os
objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir
semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria
melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso
se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou
obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma
determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e
uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da
mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo
que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da
linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos
geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a
formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)
Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a
concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever
Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave
Marburgo como jaacute dito
37
Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose
agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo
alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem
sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p
7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha
loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo
para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui
notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia
o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos
pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em
decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade
independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento
verdadeiro
Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na
medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias
cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro
satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a
extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que
quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite
tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito
falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e
indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado
que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de
objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente
38
Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular
precisamente em suas particularidades de nenhum universal
ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do
particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele
deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las
muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)
Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da
abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular
da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito
psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos
gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo
se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo
no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou
lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a
identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das
particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash
incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees
sensiacuteveis
ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias
fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos
da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas
como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade
com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da
primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo
39
de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de
conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo
sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e
desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)
Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos
conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles
seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da
ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual
todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24
Os conceitos matemaacuteticos
Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no
acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos
conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode
ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados
deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos
nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do
pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos
24
Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica
igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade
metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute
tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram
comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo
processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)
Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito
entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela
ontoloacutegica ou psicoloacutegica
40
empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade
sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de
refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica
neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos
nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de
questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da
aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo
(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do
conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando
problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave
experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da
qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma
brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer
substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill
Cassirer diz
ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii
iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade
atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos
excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo
Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das
definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a
representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo
sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem
espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente
linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)
41
A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da
matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta
Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a
funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente
naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de
Aristoacuteteles
ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill
mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido
quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o
meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema
ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais
natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da
abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)
A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade
espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras
metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se
evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da
abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados
temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese
se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas
conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve
primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em
ldquoseacuteries de similaresrdquo
42
ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a
consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash
jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto
manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual
a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem
ibidem)
A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo
de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a
falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas
de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados
Conceito de funccedilatildeo
ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido
conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem
relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo
fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo
mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma
especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)
E por esta via
ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou
desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia
causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o
conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica
que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra
como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)
43
Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como
um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende
por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu
fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente
funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute
um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um
lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute
mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que
justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das
notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa
a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central
Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se
faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a
serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo
Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie
de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto
seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma
ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de
sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute
ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a
regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja
representadardquo (Idem ibidem)
44
Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F
representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a
serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25
Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de
ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva
caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos
conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um
matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz
de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da
foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos
geneacutericos
A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em
oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue
ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si
mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade
concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve
em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com
uma regrardquo (Idem p 20)
25
Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo
para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus
conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo
(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental
26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der
philosophischen und mathematischen Erkenntnis
27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer
sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo
pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito
embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras
45
O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e
ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas
particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os
casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos
conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute
inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais
enriquece em conteuacutedo
ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem
quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que
concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses
problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros
portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)
Sobre a loacutegica simboacutelica
Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser
lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os
avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental
ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na
descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De
acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o
neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com
os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave
46
reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p
52)
Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de
construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse
profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica
Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente
natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no
momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do
que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade
tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos
irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca
defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero
ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente
ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio
de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia
portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para
criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)
Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo
alienadardquo29 positivista
28
Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o
outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do
Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente
sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como
uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293
29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo
da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da
47
Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito
embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por
indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado
desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de
Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a
analiacutetica
ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo
onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a
siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do
conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro
corolaacuteriordquo31
Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para
o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em
outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica
Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o
que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo
somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a
proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de
combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e
ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo
razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria
tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I
30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar
e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos
proacuteximos diasrdquo
31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54
48
de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos
imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a
qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o
problema central de sua obra de maturidade a cultura32
A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as
quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica
transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a
doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo
o contraacuterio
ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade
obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com
isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na
determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis
formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato
sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)
Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente
pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo
sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado
que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo
ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um
32
De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em
Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o
texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da
mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no
mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo
pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura
49
iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar
o ldquoideal no realrdquo)
Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da
loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido
trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido
o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo
ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental
[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a
construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute
entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das
aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]
somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da
matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34
Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua
exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente
tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo
que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos
conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100
paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente
na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel
33
Cf esp cap 4
34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer
parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser
alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim
ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o
posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo
50
inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas
ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a
Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em
seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e
o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo
O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e
Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim
de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
Rupturas
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem
Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e
Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de
Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns
indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do
35
Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute
incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da
quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que
ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares
e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-
4)
36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho
como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por
si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de
uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra
51
neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que
respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de
Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen
especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento
em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua
fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema
transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen
em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do
homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen
endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia
e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui
Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de
relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a
relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria
ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como
errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no
conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo
de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma
categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo
inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da
realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)
37
Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel
Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf
1974 p 188-210
52
A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito
de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar
a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso
especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem
necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias
natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a
filosofia criacutetica38
ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal
qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que
ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um
fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia
natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a
questatildeo desse modordquo39
Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre
a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na
histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da
filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe
Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o
autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras
38
Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia
criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel
porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)
39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala
diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que
somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por
este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um
ser objetivo como algo significativo em seu todordquo
53
variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico
ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia
Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que
se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de
siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade
ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical
definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que
estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees
pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar
enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado
unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse
significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em
atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais
como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟
natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo
feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a
partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como
paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do
que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte
essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e
bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento
recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo
de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees
[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)
40
De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas
Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o
que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada
membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que
inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo
54
Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave
questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a
presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que
eacute proposto pelo sujeito41
Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas
razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que
comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente
matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais
fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se
referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo
[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de
realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo
ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que
conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese
intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo
subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)
Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de
inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor
ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de
objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma
estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo
41
Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de
Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte
55
particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente
familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas
intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a
acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-
intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)
Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros
passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do
espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente
questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja
evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade
num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para
as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar
de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento
particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para
a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917
Sobre a teoria da relatividade
Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa
dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de
Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e
todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o
agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a
fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee
um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick
por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo
56
com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia
criacutetica
ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico
geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que
jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria
funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)
Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de
investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides
e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de
tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma
concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na
Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade
de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo
Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und
Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e
primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico
Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da
Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de
maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o
que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De
42
A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s
Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15
57
acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no
total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande
obra
Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas
tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo
por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que
ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo
vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e
Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da
obra exemplifica
ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do
conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender
todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de
uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo
separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual
nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo
os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas
particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do
entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)
Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos
significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e
conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para
ilustrar Cassirer diz
43
Cf Ibid p 9-37
58
ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente
no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do
significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e
fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila
intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes
campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)
Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma
o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais
abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da
Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cisatildeo
Origem comum
Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de
Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da
filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por
Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o
entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento
anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute
exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash
44
De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger
que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o
assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)
59
Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo
formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico
publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit
nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi
aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de
Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo
influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e
proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a
Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46
que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de
maturidade47
Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e
Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras
proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu
desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas
45
Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente
no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)
46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida
a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento
como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento
de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a
obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7
47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica
partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como
beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo
haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas
carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em
recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas
de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008
esp cap 6
60
tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em
trechos significativos de seus trabalhos48
ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual
atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua
individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo
pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento
de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias
como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave
transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel
para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)
E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o
empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima
ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional
portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e
frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material
para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo
de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo
transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer
48
Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do
espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e
Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud
FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave
filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da
Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o
conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap
corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e
esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica
simboacutelica e a Escola de Marburgo
61
Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes
postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem
ibidem)
A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick
por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir
pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os
resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que
ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento
substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que
ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas
com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino
autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim
garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a
exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do
conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo
Loacutegica ou cultura
Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da
teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a
postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se
se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees
Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente
alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos
postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute
62
preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap
centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem
quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem
tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados
Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso
pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se
restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a
partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo
epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim
como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda
numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do
conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila
noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com
atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca
deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a
despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de
Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de
mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de
nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo
(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)
63
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar
nasce de sua carecircncia auto-reflexiva
O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo
sem trilhar os caminhos da irracionalidade
Adorno
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
O lugar da razatildeo
De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias
do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua
concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento
metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi
necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da
concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma
metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro
Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa
ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a
doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de
descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que
64
Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo
agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a
concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e
investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como
construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-
se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior
ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento
defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica
representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o
cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um
expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo
geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por
correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa
a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de
resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta
disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto
de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por
Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do
meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo
clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)
Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo
ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista
A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais
65
importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse
o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que
desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade
cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de
compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa
encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem
como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo
portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de
nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as
determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional
resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA
racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o
Ensaio Sobre o Homem
ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas
Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por
outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A
linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute
faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro
toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem
conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica
49
Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo
geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito
menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte
a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser
vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o
Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas
Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo
ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito
66
ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma
religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera
abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa
genuiacutena e concretardquo (EM p 49)
Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com
efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das
Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido
de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular
receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)
O homem no leito de Procrusto
O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do
Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa
das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do
autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a
Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um
iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da
matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade
Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)
radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para
que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si
O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o
conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos
demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees
67
mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das
ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de
resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por
cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de
vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes
de qualquer articulaccedilatildeo
ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx
entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os
fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []
Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e
economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar
ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem
em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo
(EM p 41-2)
A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a
respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco
zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute
indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica
50
Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana
promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a
resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de
Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter
descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)
Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas
finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve
dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no
capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de
sua eacutepoca
68
que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do
autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da
fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como
teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou
com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a
racionalidade moderna eacute soacute um exemplo
Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a
semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito
Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao
ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-
estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um
renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia
rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava
a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila
pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a
cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por
um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar
conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52
51
O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf
esp cap V
52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo
do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses
domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo
de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o
conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o
segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito
sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe
interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de
1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente
69
Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande
proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave
expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos
do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros
projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao
problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das
formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada
com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel
Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia
da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela
atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo
Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um
dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo
transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir
de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das
produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel
dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer
relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger
53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista
do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola
neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava
a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist
und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer
entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar
para discutir o estado entatildeo presente da filosofia
54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do
texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living
Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais
[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer
70
manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o
homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas
Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja
delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia
direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas
ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual
defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do
pensamento miacutetico
ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo
esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a
esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro
lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em
conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)
A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este
carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o
outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo
ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo
do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo
pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia
da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar
nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De
71
fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta
contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta
segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas
apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no
idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em
que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna
consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao
domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)
E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis
mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa
palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados
tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores
determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no
sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do
projeto de Cassirer eacute a de
ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana
do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na
sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)
Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua
aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se
pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo
limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua
autonomia e independecircncia
72
Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da
aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as
ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser
compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo
(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do
conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que
empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de
seu programa metodoloacutegico como se segue
ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das
formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da
natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo
funcional e natildeo substancial ()
Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma
possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas
disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e
indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas
reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao
descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia
sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia
infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala
humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia
geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em
consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de
meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo
pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico
Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares
Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos
capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No
73
nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem
precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso
poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais
metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()
Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da
cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva
Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()
A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura
humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas
individuais ()
O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo
uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve
ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as
formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)
Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo
daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que
caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada
mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a
isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da
fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos
uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja
uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute
Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas
como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo
centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a
concepccedilatildeo de siacutembolo
74
Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para
expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita
ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a
sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura
expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma
simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida
essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da
funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e
especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave
dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em
questatildeo
Conceito de forma simboacutelica
Conceito de siacutembolo
Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de
Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na
obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da
humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e
que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo
humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por
conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de
todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a
posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor
75
proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de
animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem
No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees
estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer
delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que
exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho
para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia
a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos
engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por
estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver
com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face
dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo
preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio
aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica
Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer
indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria
ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer
dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr
55
Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o
nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito
natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da
evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas
Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja
claramente definido
56 Cf De Interpretatione II 16a 12
57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua
Grega p 636
76
em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o
conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo
De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da
liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas
implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de
certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para
aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio
da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de
conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima
No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia
e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem
a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe
mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um
objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas
esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica
de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo
Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo
de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do
mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser
tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de
ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado
tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel
Como diz Verene
58
Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128
77
ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num
papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao
mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio
universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade
cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois
um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59
De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um
particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do
siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910
Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na
Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do
idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem
eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia
das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um
simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo
necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento
59
No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa
entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas
simboacutelicas falaremos em seguida
60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio
sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em
1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes
61 Cf p 14-16 29 e ss
62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no
dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma
situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por
Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos
justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em
segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do
real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo
78
necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das
impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo
espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e
de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I
p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em
dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute
ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens
agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz
ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento
da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos
quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que
possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos
tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas
tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima
referidardquo63
Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se
possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que
seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]
ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros
sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal
faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do
significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais
63
Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15
79
mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de
ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)
Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres
do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo
Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de
transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a
transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees
sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De
fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente
ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a
histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a
influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria
recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se
extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa
capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros
tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o
filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as
criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)
ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso
expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica
liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente
diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade
mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)
64
Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss
80
Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo
alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute
aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo
tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do
mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o
resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que
impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito
conforme veremos
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica
O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos
escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees
distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente
chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou
simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que
exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao
tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da
objetividade66
De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um
alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica
teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo
65
Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p
16 e 2008 p 98
66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58
81
do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de
saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do
conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que
a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute
visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas
formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo
engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de
significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza
Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur
Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada
no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que
laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em
relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto
na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e
responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel
que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das
configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra
ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero
de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como
um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do
distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de
preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas
82
parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve
ser tomado67
Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos
a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do
siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes
exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em
Warburg onde Cassirer disse
ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie
des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um
signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)
Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao
idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de
Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas
simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no
extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)
Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como
67
Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico
que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do
bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de
ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute
estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de
diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes
dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este
seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo
correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual
maior e mais complexo
68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo
metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)
83
uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre
uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um
determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente
na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um
liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que
pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto
possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como
independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da
experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta
desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo
ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de
algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de
apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas
representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)
A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos
fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o
procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como
atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer
vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo
linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt
69
Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e
parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)
discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse
entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf
p 2
84
viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um
papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana
ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da
linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua
estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples
desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela
espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo
(PSF I p 169-70)
Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da
Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie
des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas
reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um
determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse
sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo
humboldtiana
O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que
a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas
simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia
nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua
proacutepria atividade70
Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que
a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias
semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao
70
A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em
que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel
85
entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute
construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o
(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute
ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des
Geistes
A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de
ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria
na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a
unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute
margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a
diversidade das formas linguumliacutesticas
ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um
nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel
designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura
mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si
por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)
Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica
Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento
semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica
ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados
elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em
bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido
para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros
primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos
86
fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees
podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e
graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)
Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para
a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a
natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo
a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a
realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do
progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie
de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem
ser concebidas em conjunto
ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e
necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado
e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio
conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo
conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim
sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no
simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)
Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o
mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana
ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras
peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as
mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele
87
por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas
formasrdquo (Idem ibidem)
Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus
signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por
objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui
uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que
ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a
linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento
do qual falava o autor no prefaacutecio da obra
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas
Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser
considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um
nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se
define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no
momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras
formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito
essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica
Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma
forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e
encadeaacute-lo em seu campo significativo
ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a
qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o
88
caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma
filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas
aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e
de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite
definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)
Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro
criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a
suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos
sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas
determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim
dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a
justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual
em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves
suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e
Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante
Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela
mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute
71
Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se
refere explicitamente agrave obra de Cassirer
72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte
e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a
histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas
depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o
nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica
da contemporaneidade
89
o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se
separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73
Uma teoria da significaccedilatildeo
Linguagem e Loacutegica
Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa
aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do
conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam
mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras
epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui
fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da
significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para
a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso
meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo
Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do
conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo
filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos
sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer
73
Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz
distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23
74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral
os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de
Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua
obra
90
ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de
conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa
apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua
estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de
significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e
o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da
significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)
Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge
profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente
entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro
preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente
voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75
Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se
evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse
parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da
questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de
Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por
75
Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-
cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo
eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa
funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas
metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas
ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem
ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser
agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos
ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo
satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se
encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre
verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p
29)
91
meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da
significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma
linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e
tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de
uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do
projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave
formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo
(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a
loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76
Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave
humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica
toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de
verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em
relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que
a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a
de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas
matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana
como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em
76
Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus
Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo
77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics
(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como
bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em
que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa
filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de
qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)
78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que
tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento
[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito
92
relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia
analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que
ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia
natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico
mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo
psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia
da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e
social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da
linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)
O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como
o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a
dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva
como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da
ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e
privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o
primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece
estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta
em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo
de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se
sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da
Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da
linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na
93
filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que
percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou
em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria
significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem
sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios
idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute
suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais
amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo
de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da
assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um
retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este
primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor
ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza
imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do
espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um
siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)
Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela
inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa
79
As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato
este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero
historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo
representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados
temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso
constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p
23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo
80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas
94
ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio
em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da
coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de
algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa
ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma
realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em
Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-
se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra
universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir
todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas
fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de
totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde
cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute
capaz de expressar o ser
ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do
cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees
opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do
devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve
comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)
Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem
e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de
Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma
significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si
mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]
95
ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas
como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que
a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda
pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o
modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)
Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo
linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes
para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash
embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de
participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo
Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela
soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo
ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se
portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada
nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras
aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a
designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma
bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)
Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas
jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer
ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as
distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem
96
verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o
contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As
categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam
simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da
oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de
modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da
substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e
qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos
adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν
o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis
quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na
liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua
no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de
atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era
indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda
que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os
domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos
seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a
81
Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the
Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo
loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para
aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela
linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais
arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a
diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral
para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p
312)
82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela
causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute
97
comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash
vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada
quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da
natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de
surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves
ciecircncias do espiacuterito
Linguagem e verificaccedilatildeo
Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do
conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir
de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter
enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do
conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo
expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida
Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de
idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito
ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83
Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma
caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo
sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato
ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute
de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo
representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo
considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica
tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)
83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim
ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)
98
Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as
particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo
humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa
tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon
mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas
das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash
seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do
significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de
cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da
linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem
enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela
ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em
parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico
da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem
natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave
anaacutelise semacircntica
ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo
loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais
ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da
bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela
natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do
mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e
reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar
noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime
99
justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no
mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84
Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida
enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de
verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo
tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a
partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como
parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos
ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem
uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade
falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma
correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise
empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente
e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra
de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM
p 210-11)
Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser
considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar
que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das
formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para
todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de
mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus
84
Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma
filosofia da cultura
100
objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel
mas sempre como uma construccedilatildeo
ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave
pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela
compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de
mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)
A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada
aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso
significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos
postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa
ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por
meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo
igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico
fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant
com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas
Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de
vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora
resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da
significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo
de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da
85
Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a
mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo
para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e
histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e
significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada
101
filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da
formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da
ciecircncia
Pregnacircncia Simboacutelica
Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave
teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo
das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do
meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de
todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma
filosofia da cultura
A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute
dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o
filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a
partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria
das formas simboacutelicas
ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como
uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo
bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa
Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato
como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre
categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um
contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do
campo cientiacutefico (p 48 49)
102
aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados
julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua
organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo
ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de
significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86
De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute
anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido
abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende
naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo
princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e
o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de
significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal
sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim
dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno
entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de
significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a
totalidade da experiecircncia
ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio
assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a
86
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica
a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54
87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a
ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos
ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na
configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis
88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a
funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida
103
pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos
intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma
determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a
unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)
Convencionalismo e significaccedilatildeo
Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)
dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos
siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo
residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer
concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a
linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras
de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a
afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a
um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda
a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria
linguagem
89
Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de
outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses
ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o
filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a
obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro
possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte
histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar
ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a
priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de
Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente
analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)
104
ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos
simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato
social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel
somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e
forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)
Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno
da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e
simbolismo artificial
ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a
consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao
simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que
necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada
momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora
destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz
uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da
consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado
possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente
se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo
fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele
ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso
particularrdquo (PSF I p 62)
A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a
artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as
definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo
natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo
105
sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora
tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o
convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do
fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel
O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da
significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa
funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro
lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo
recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a
algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor
ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia
que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no
entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p
63)
90
Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente
individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele
tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente
inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute
uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de
Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de
cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a
ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes
de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de
Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito
agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a
dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O
problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem
importacircncia para o autor
106
Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia
crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o
fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase
de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos
ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo
criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do
significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos
natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si
mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados
complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)
Sensacionismo
A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia
simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os
empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida
na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das
impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos
elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois
problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os
sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de
sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar
que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que
sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das
91
Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e
LOFTS 2000 p 1 2
107
sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da
proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash
e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em
reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos
referenciais convencionais evidencia a falha do argumento
ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere
limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas
quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua
energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente
bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A
reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o
mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo
(PSF I p 37)
Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado
fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o
compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais
sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)
ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida
por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos
sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela
para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da
sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute
simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele
fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido
transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para
108
comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de
significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)
O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente
influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos
conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da
causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza
negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente
diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com
Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo
concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como
dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o
postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo
mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a
totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia
ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na
medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com
determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta
uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia
constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)
Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a
representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso
92
Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma
tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave
ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo
aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97
109
de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos
como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em
comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer
agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode
ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois
ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo
pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente
como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo
Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo
constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)
Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo
se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo
como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a
consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao
problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida
independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo
de todo o sistema topoloacutegico
Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da
unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a
apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en
passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um
ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos
que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda
percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma
110
referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a
brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem
em mimrdquo diz o autor
ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo
requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades
particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado
com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa
experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)
Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e
entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo
e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees
conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se
pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a
unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser
entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo
ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como
uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em
relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa
a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos
as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus
elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no
111
sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e
direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93
Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada
particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a
peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em
particular) de modo a ser definido objetivamente
Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada
em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos
diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir
entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao
ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da
consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem
p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de
organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no
momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta
disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da
histoacuteria94
93
A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento
reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais
tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute
precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente
dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um
bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero
diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo
94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante
nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee
em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e
produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente
112
ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos
os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em
um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que
determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na
denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas
estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a
expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)
Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a
modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o
cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada
em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na
primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira
com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais
articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito
semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo
Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo
causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de
modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e
daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a
modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o
espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de
bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus
momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de
configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no
pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de
organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se
distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a
organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)
113
significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande
multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a
capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na
verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do
espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta
ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM
p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente
diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na
histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em
textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas
inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir
ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um
exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que
cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo
quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz
ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia
nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e
cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma
determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo
de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas
95
No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave
questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um
esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave
adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave
medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde
os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a
articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94
114
precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas
apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma
estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado
puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a
construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico
distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente
espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma
ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos
meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na
forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade
animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente
ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular
e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma
determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades
recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a
entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela
torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal
geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como
um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se
por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas
tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta
negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente
irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal
mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a
ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior
noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica
temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia
esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma
para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia
matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela
115
uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa
lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis
formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades
e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal
de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez
estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha
como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal
abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de
fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar
os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas
como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder
factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo
esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da
significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso
Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura
ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida
somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de
uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e
respirardquo (PSF III p 200-01)96
Fenomenologia e intencionalidade
Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no
corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo
natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a
ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de
96
O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica
116
intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da
questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl
ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como
as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a
relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟
no outrordquo (PSF III p 197)
Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl
ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo
(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA
consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver
de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave
racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)
De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos
sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de
clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo
e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III
p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo
se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito
do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo
Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica
ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si
mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente
abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da
117
representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo
presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico
sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p
199)
No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O
Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste
na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre
mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato
ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio
da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando
nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟
Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se
estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de
bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl
entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional
entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser
separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute
gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em
dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e
mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa
separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos
outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o
profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)
Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual
ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas
118
aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da
concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma
revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as
fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente
traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade
ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave
criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de
apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes
tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses
mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa
proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo
sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p
33) Sendo assim
ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede
trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio
material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟
quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo
fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)
A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como
uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto
de vista da consciecircncia
ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟
mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e
119
sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma
criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se
constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva
que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo
(Idem p 70)
Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute
um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para
si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse
entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e
agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende
designarrdquo (PSF III p 202)
Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel
empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos
pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que
se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem
escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar
introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao
contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se
reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo
mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a
ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo
97
O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente
ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e
pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso
admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da
natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que
eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)
120
(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do
dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da
linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto
apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute
a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel
(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma
expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo
pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base
fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a
pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela
mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao
mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo
apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)
A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da
consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do
desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a
partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que
98
Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve
inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute
bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []
Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato
fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser
entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito
da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit
De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de
modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a
concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo
concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein
121
ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja
algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um
princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a
tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)
Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e
interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as
descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo
satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo
por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior
sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar
especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro
motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico
essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo
metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma
seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios
ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja
nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua
sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente
indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura
a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua
interaccedilatildeo
122
O animal symbolicum
Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar
passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo
em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas
humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome
Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave
psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar
como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo
os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer
evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em
reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual
possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim
ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os
animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a
99
A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo
contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a
cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido
que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico
dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente
abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em
Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem
duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles
elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus
instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e
estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui
igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro
natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo
retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas
ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo
123
relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute
incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos
condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter
essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute
se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e
mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um
estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a
universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute
a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso
especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma
quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo
capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo
Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido
objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese
de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem
meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo
de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao
ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)
Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos
pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu
ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo
agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum
124
Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem
com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma
garota nascida cega surda e muda100
ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante
aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo
tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber
Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando
quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo
Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais
tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela
debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a
caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo
da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e
ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-
u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou
para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome
Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito
excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas
horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde
seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto
perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um
nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que
natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por
ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e
100
Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo
detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento
ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para
fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia
simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os
objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente
125
pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e
a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos
que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101
Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute
distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da
psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve
como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos
sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o
conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se
fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de
conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual
efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente
o que se pode afirmar eacute que
ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do
material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem
pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos
A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo
geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila
cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do
animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)
Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do
poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila
do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo
101
Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61
126
horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio
desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que
natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-
inscreve em cada indiviacuteduo
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito
A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria
das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do
animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo
deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em
sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a
proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da
atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a
necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que
constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em
seus processos
Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente
dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De
102
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo
engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der
Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de
consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte
103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final
Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir
127
fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da
Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio
ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis
ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em
sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada
por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento
filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a
totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade
possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu
princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo
de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu
desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104
Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de
desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs
funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel
Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa
[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima
104
Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the
Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-
46
105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada
estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes
em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida
106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a
liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o
termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma
portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico
128
foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades
caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula
por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e
independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui
diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua
estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e
desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada
sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que
o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo
expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107
Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem
fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas
simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa
separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma
uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel
no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em
relaccedilatildeo agraves demais
remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido
por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as
premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que
exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem
interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash
nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer
supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido
tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto
ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes
constituir simbolicamente o objeto para si
107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase
sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e
espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos
129
A funccedilatildeo expressiva
Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel
a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas
fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de
acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que
Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia
O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo
da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos
bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma
abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)
A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva
de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este
primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui
designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da
fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que
de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da
consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia
natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo
deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo
108
Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a
explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez
mais adequado desenvolvimento
130
copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109
Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro
tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura
atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada
pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo
ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter
puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O
entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo
(PSF III p 63) 110
Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave
investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo
ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo
puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas
nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem
antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve
ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo
significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com
109
Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma
construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees
que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo
da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da
significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]
aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no
capiacutetulo seguinte
110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos
reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das
ciecircncias do espiacuterito
131
vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel
somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de
coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de
significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e
causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre
as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p
100)
Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute
radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e
pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e
depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente
oposta como a consciecircncia diferencia ambos111
ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo
fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o
mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num
sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo
(KROIS 1987 p 57 58)
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de
acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica
(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em
111
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute
o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere
explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que
fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A
pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo
corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)
132
relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo
empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica
Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar
conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da
consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre
consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do
mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas
tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva
deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do
mito
A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a
fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende
a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um
epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da
mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela
coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade
que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute
subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo
objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo
(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia
da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a
um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da
Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se
apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de
organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser
133
um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p
191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a
de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do
estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim
como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui
que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma
distinccedilatildeo ainda foi feita112
Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso
privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer
ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da
expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento
conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo
teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado
Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de
centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua
particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de
mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)
Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo
estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele
deve se integrar ao
ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute
mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o
112
Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana
Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss
134
mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia
do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu
comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da
intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)
Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o
primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio
primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica
serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas
ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um
meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro
sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da
consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social
assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua
verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo
nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)
Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade
ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da
consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva
Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico
apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo
psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria
razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus
135
domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se
apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113
ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da
generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente
entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se
em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for
visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)
Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento
Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma
proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo
(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas
mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito
como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se
pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo
histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute
necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito
entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash
natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da
cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar
por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)
113
Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees
sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A
questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito
Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao
problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos
136
A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa
ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada
metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo
meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na
modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta
da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica
em sua forma
ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da
representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a
consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo
admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico
pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente
inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila
que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115
Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos
metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a
ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades
que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se
voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo
114
ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de
formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do
tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo
um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)
115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo
natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em
The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas
claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII
137
espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em
todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de
um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees
do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da
fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico
para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu
Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia
antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente
entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode
senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como
ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por
isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute
pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem
como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas
caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se
apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente
ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada
fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou
inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo
sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas
determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles
mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos
que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)
Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao
contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia
138
consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em
oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do
mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da
consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei
natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre
subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia
da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente
aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees
lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de
paixotildees e pulsotildees subjetivas
ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e
autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a
realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se
manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de
configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117
Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo
mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como
116
A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os
fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em
seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da
religiatildeo
117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma
tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui
tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido
como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que
medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo
natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um
inconsciente individual
139
parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu
desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente
dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a
primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica
ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo
da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e
determinaccedilotildees posteriores
ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute
absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do
corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com
efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa
sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu
sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e
indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118
As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade
dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se
convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)
118
Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos
distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto
de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf
PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento
miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como
quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem
justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo
ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece
como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo
de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da
alma como sede da personalidade e sede da vida
140
da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo
(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa
exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo
tempo para em seguida se reunir120
Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros
indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees
ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como
membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de
um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele
possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas
manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos
invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-
se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p
298)
Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a
accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como
independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao
exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser
entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo
proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o
119
Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da
Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a
aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)
120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e
o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo
de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no
capiacutetulo seguinte
141
conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto
tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a
consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao
sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura
social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a
personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma
seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas
A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer
vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o
homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia
natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer
ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em
letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de
repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)
E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de
interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por
mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as
outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de
121
Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma
dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a
consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem
de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos
outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas
miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si
Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo
totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27
142
todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada
uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o
conhecimento-de-si do homem
Funccedilatildeo representativa
Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros
passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a
construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em
que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os
fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia
ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos
encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo
aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a
regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a
multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente
numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a
origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da
representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi
mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)
Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas
miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo
122
De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem
natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na
obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das
formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem
143
tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a
construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam
da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as
demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para
o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem
linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao
mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de
Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a
ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem
do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia
De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista
fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da
consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos
fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos
como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen
Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da
concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo
nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees
e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com
a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por
conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e
linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e
da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer
estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos
menores e artigos publicados por Cassirer
144
ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este
ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se
diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma
forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos
denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)
No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito
particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]
Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de
denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo
reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a
metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma
condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo
[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo
ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de
um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho
mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma
miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma
determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do
profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista
miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma
autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma
transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em
que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123
123
Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto
Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss
145
Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se
desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo
que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca
inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de
um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem
lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui
fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que
medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras
determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram
capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a
distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda
que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e
lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125
No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa
[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras
determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em
que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e
124
No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o
inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre
Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da
oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na
plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo
linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva
ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio
125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e
simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos
poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes
romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua
idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp
cap 2
146
desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as
divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees
humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas
representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas
desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas
Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto
a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre
quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute
que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas
em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o
mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias
criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para
poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico
de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de
destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo
soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de
Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a
linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que
o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer
valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da
qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e
religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa
fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel
determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)
A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves
147
imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade
das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana
ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece
como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido
necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais
captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)
As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as
configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam
a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer
toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-
iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo
desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no
Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas
por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma
que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o
indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a
divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de
sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser
caracterizado como o supremo e puro bem moral
ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de
tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo
reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de
objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e
niacutetidordquo (PSF II p 408)
148
A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre
deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de
tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash
seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na
dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a
caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada
pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da
consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao
mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela
somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer
A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as
enquanto tais
ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura
bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a
todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse
comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo
(PSF II p 432)
A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo
demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se
confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia
Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e
enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria
149
realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do
poder criador do espiacuterito
Funccedilatildeo significativa
Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo
representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente
nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto
grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo
significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro
tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as
consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de
conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a
luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no
programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja
o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em
relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura
humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma
simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o
Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a
consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do
gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)
Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a
inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a
ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo
150
de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste
com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao
mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma
espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que
todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126
tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo
trata por diversas vezes
O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de
signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do
qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz
fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se
que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua
relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia
ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada
tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a
linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que
126
Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas
tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da
consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura
127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e
rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se
desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo
realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento
toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute
pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem
estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar
alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)
151
ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde
quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas
E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda
comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de
uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)
Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of
Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da
filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de
natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais
(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a
respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento
racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles
a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo
com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos
obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu
procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam
desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash
e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo
uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo
(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees
sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas
Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo
ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito
uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar
os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela
152
falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as
leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e
mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)
Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a
linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que
Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de
conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute
escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem
Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos
ao domiacutenio da mathesis universalis
No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas
agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que
Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar
e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao
mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser
suficiente
ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma
certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas
palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128
128
No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em
fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a
entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)
153
Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados
para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o
momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129
ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do
conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo
Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente
novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente
diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)
O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute
que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem
eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros
esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos
da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O
caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais
pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no
conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de
superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica
129
Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma
da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de
maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da
astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem
seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o
territoacuterio do ser (Cf EM p 343)
130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees
ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na
Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os
trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo
154
pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e
elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a
linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao
qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia
De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de
Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A
depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos
presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana
dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do
espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam
aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer
ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e
o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na
Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste
ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme
que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo
sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do
movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito
culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de
sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos
anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros
momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre
155
todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do
conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)
Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada
liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash
natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se
subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute
somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a
consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do
que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o
estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no
momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema
Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do
ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de
encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que
incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por
paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa
orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o
levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da
cultura como jaacute tratado
Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de
progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande
caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash
o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo
progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser
descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz
156
o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal
como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita
como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter
especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que
conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo
ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo
do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse
processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder
de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave
sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa
unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes
contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo
podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e
obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo
denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e
complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um
novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os
contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na
contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)
O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da
dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela
diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de
uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o
momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas
se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A
passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez
157
disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash
incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como
conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo
entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo
Cassirer
ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento
de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de
determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As
etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves
outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A
evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees
espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e
completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p
392)
Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma
delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo
constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta
disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura
acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma
a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica
131
ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser
indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo
pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na
lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser
curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no
seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado
humanardquo (LDST p 327)
158
ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica
podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas
estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da
nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos
aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica
deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos
atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)
Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva
libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta
Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser
substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos
enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)
159
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas
mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas
Epiacuteteto
A Realidade Simboacutelica
Soliloacutequio
Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de
que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe
natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o
filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de
elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o
afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento
mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo
afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um
envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir
da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e
132
Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos
ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo
deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e
reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim
recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo
qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos
parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para
cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma
forma simboacutelica como veremos adiante
160
progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de
coisas mas num mundo de significados
ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo
simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente
natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em
proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as
proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo
mesmordquo (EM p 48)
Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma
mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as
questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash
natildeo se colocam
Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel
processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio
dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e
eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes
primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de
sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro
momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este
veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave
esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo
deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem
(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar
161
agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da
vida
ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo
em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos
de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo
consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-
las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se
consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da
existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta
existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para
transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)
O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito
marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em
relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer
afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em
espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo
133
Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura
de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada
de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias
disso para a sociedade em geral 134
Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente
fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees
tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute
consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do
assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia
contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto
mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A
mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento
162
simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo
fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos
siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor
ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como
siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem
[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um
real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio
mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este
autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma
bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas
especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio
delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-
se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)
Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se
ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do
conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional
Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava
pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto
das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo
como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem
mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer
humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo
ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da
imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte
primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma
tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)
163
tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da
concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima
consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo
loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos
Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou
mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja
marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave
ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem
fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja
perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de
significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a
linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave
psicologia behaviorista)
ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa
linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias
que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras
linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da
linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e
pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu
conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)
A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes
especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de
conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de
Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou
do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)
164
Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa
forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto
a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um
denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de
passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel
traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria
mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas
aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em
particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser
dito em uacuteltima instacircncia o mesmo
ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o
da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas
ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na
proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e
conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)
Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade
entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do
conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que
barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores
prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um
lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas
respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao
mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave
mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas
165
encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo
que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse
ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade
independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua
interaccedilatildeo
ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute
cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das
manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta
unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a
diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo
produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)
A tarefa simboacutelica da ciecircncia
As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo
de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A
novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda
que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar
hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia
que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada
135
Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel
assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas
como absolutamente incomensuraacuteveis
136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no
tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das
Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um
todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim
chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88
166
isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja
um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe
postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que
toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo
Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute
vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo
ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas
vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia
suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos
Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que
Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137
bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da
consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e
representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a
criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus
procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer
uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses
obscuros
Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma
alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na
antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um
137
Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno
da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo
em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca
das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias
sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa
preocupaccedilatildeo
167
domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves
demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees
concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para
tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras
obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la
intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas
simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas
baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer
mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam
cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138
ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura
apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto
uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera
particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do
ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as
orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de
culturardquo (PSF I p 24)
Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar
forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em
que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender
qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir
do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave
138
Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica
(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a
caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a
imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila
168
atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave
linguagem ou ao mito
De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo
central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o
desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de
compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila
espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves
demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia
uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode
pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado
o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de
envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica
O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na
filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em
relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer
que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do
espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos
concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a
praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de
Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao
positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu
momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da
repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso
139
Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de
1916
169
cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela
ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade
Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da
ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo
com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo
entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho
que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da
eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado
Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de
Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram
profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo
central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008
p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas
140
O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf
GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em
torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente
apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte
inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na
Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo
tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos
sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo
havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo
em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um
domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto
mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as
publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A
retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica
publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos
EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do
autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do
que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma
dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra
170
preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares
verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou
falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como
a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou
as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo
radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados
metafiacutesicos nele contidos
Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os
demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como
tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de
conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua
obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo
entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento
da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda
que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de
outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os
141
Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta
da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo
necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo
que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo
introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo
declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de
ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com
Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)
a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no
iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de
Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da
relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos
171
campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso
de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
O projeto de uma filosofia da cultura
Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu
aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi
idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das
reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum
entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a
instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves
demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo
que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e
positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das
Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de
maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da
Escola de Marburgo142
Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito
ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo
(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo
142
Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando
da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este
encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e
sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94
172
epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e
essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo
abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de
Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos
em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do
filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por
outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos
haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel
para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a
discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o
outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo
deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o
naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo
do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova
objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais
que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e
aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise
do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de
articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do
espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente
plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do
termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo
elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura
por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos
173
Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo
humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de
determinadas praacuteticas culturais em particular143
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser
associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por
Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela
que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer
faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras
consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144
Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre
ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as
ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e
agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos
particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos
eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com
143
Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o
tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como
sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura
144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da
Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden
a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo
metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente
analisada como mostraremos
145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua
tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos
conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo
agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta
suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)
como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto
174
aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado
da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a
proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o
estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a
proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as
ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu
trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo
(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser
trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para
natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo
(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda
parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da
Escola de Baden
ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a
alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia
matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica
Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser
investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um
sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge
a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade
objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele
estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a
146
Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a
considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico
[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa
realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e
singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96
175
priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi
provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem
suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente
onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)
Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo
baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo
de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido
em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem
fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo
anterior
ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza
agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais
Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos
nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode
nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)
A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla
de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em
direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]
orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente
Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele
147
Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um
pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum
equiacutevoco de interpretaccedilatildeo
176
ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das
transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro
caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a
alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um
absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)
A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da
percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico
corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual
somente surge a significaccedilatildeo
ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas
do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas
como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas
devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟
baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo
(Idem p 95)
Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo
loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para
Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta
da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os
produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)
Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar
no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em
suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo
significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como
177
exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao
observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela
coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem
de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos
atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma
significaccedilatildeo radicalmente diversa
ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao
inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a
conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o
uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de
uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo
satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)
A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis
significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade
podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da
percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto
mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de
significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]
cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e
(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural
natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute
apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de
Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que
isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem
178
reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de
significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de
condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da
discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo
Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer
cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de
Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando
Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek
Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a
obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias
de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com
o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava
inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos
escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de
agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A
nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado
ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados
quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo
com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da
histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela
sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e
classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um
problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de
148
Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e
Gay (1968)
179
meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo
caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este
livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias
oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua
fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)
O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o
ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash
dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio
Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese
ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura
alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)
O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay
(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de
democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que
se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte
consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que
perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela
atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a
cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash
por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras
naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)
180
Cultura e Civilizaccedilatildeo
Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo
da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal
rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as
duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute
uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que
Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo
(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que
proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo
Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita
na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso
representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao
determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do
espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em
Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que
modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista
Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por
conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades
mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em
que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito
ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito
entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a
ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a
arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por
181
construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em
relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a
religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito
chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como
o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave
constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em
que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade
Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem
apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era
sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante
virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p
50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de
Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute
depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa
transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de
civilizaccedilatildeo
Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave
histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como
paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no
149
O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto
dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade
jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute
notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a
filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo
sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da
filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural
182
idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de
razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a
um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo
traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo
moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade
impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash
cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder
portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja
correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por
exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do
tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura
Diversidade Cultural
Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do
espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido
teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito
absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e
(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem
aponta Krois (2002 p 28)
150
Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau
Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca
151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de
animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo
da humanidade cosmopolita
183
ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e
vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo
da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha
linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em
cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma
novas formasrdquo152
A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico
convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo
positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura
como um processo essencialmente relativo153
Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura
natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo
momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que
por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu
ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do
crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154
percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do
seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de
diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer
Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo
152
Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf
1987 p 176-181 ou 2002 p 28
153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que
marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta
(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a
intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza
154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies
em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960
184
da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de
passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia
saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute
norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no
singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo
estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute
necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da
filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute
evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos
estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos
variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa
Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em
vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou
mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre
povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir
corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo
das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem
no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de
fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti
mesmo
185
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Nota de esclarecimento
As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as
secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute
ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao
longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como
fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e
assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso
nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi
efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira
publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo
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- GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
- AGRADECIMENTOS
- RESUMO
- ABSTRACT
- LISTA DE ABREVIATURAS
- SUMAacuteRIO
- PARA LER CASSIRER
- ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
-
- Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
- Escola de Marburgo
- Doutrina de Marburgo
- Substacircncia e Funccedilatildeo
- Rupturas
- Cisatildeo
-
- AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
-
- Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
- Conceito de forma simboacutelica
- Uma teoria da significaccedilatildeo
- Pregnacircncia Simboacutelica
- As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
-
- O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
-
- A Realidade Simboacutelica
- Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
-
- REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
3
Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos
Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas
Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti
Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia
Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser
Siacutembolos Estou cansado de pensar
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando
Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos
Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa
It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end
Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei
Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know
Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos
Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos
(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)
4
RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia
das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo
Satildeo Paulo 2010
O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees
envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da
obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as
questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua
estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos
os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por
Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de
todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um
processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo
apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de
seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o
filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo
Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas
criacutetica da cultura
5
ABSTRACT
GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master
Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo
Paulo Satildeo Paulo 2010
This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns
out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt
with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s
work its structure and its main methodological postulates to eventually understand
the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of
human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual
activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do
so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his
philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher
wants to differentiate his own work from
Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of
culture
6
LISTA DE ABREVIATURAS
Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das
iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e
outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim
espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas
demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de
Cohen e Kant
Obras de Cassirer
EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie
EM Essay on Man
EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit
ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
KMM Kant und die moderne Mathematik
LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought
LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft
MS The Myth of the State
PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache
PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken
PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis
PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen
SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff
SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften
SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen
SMC Symbol Myth and Culture
Obras de Cohen e Kant
KRV Kritik der reinen Vernunft
KTE Kants Theorie der Erfahrung
LRE Logik der reinen Erkenntnis
7
SUMAacuteRIO
PARA LER CASSIRER11
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14
Escola de Marburgo 17
Panorama filosoacutefico 17
Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento
Ambiente poliacutetico 20
Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do
Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do
neokantismo
Doutrina de Marburgo 24
O meacutetodo transcendental 25
Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o
materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento
puro
A noccedilatildeo de forma 28
A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo
Conhecimento e construccedilatildeo 29
Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano
Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica
Substacircncia e Funccedilatildeo 31
A tarefa da nova loacutegica 31
Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional
A doutrina do conceito geneacuterico 34
A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de
notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo
Os conceitos matemaacuteticos 39
A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da
seacuterie
Conceito de funccedilatildeo 42
Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A
universalidade concreta
Sobre a loacutegica simboacutelica 45
8
Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e
a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental
Rupturas 50
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50
Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez
matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito
Sobre a teoria da relatividade 55
Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio
Cisatildeo 58
Origem comum 58
Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo
Loacutegica ou cultura 61
As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63
O lugar da razatildeo 63
Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de
conhecimento
O homem no leito de Procrusto 66
O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud
Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo
Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo
grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70
O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria
Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental
Conceito de forma simboacutelica 74
Conceito de siacutembolo 74
Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do
siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80
Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt
Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo
simboacutelica
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87
9
Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e
forma simboacutelica
Uma teoria da significaccedilatildeo 89
Linguagem e Loacutegica 89
Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo
Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o
λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito
Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser
Linguagem e verificaccedilatildeo 97
A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da
revoluccedilatildeo copernicana
Pregnacircncia Simboacutelica 101
Convencionalismo e significaccedilatildeo 103
Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa
Sensacionismo 106
A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo
dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva
Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na
consciecircncia O exemplo da linha
Fenomenologia e intencionalidade 115
Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo
Cultura e praxis
O animal symbolicum 122
O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen
Keller
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126
Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e
fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva 129
O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e
alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A
anterioridade da vida coletiva
Funccedilatildeo representativa 142
Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave
arte
10
Funccedilatildeo significativa 149
Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu
Bohr matemaacutetica e ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia 155
Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da
cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de
Hegel agrave aacutervore de Darwin
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159
A Realidade Simboacutelica 159
Soliloacutequio 159
O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade
Autonomia e incomensurabilidade
A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165
A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento
intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171
O projeto de uma filosofia da cultura 171
A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft
Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A
biblioteca de Warburg
Cultura e Civilizaccedilatildeo 180
Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e
progresso Razatildeo e homogeneidade
Diversidade Cultural 182
Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro
da discussatildeo
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187
11
PARA LER CASSIRER
Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito
Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas
Nelson Goodman
Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma
nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho
Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a
filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo
especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com
exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da
utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os
textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo
se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma
filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros
Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou
historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os
proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer
como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria
demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a
imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para
Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para
ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De
outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne
conhecedor da histoacuteria da filosofia
12
Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo
vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas
deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente
dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido
para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota
aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer
De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas
dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de
discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que
ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa
dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e
em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo
historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes
eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e
autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas
entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem
de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo
historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de
conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras
coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em
direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta
de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute
elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel
ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias
diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem
13
opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias
histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral
O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra
muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas
ideacuteias
Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da
filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho
se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de
Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em
que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa
forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de
Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo
estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez
de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta
de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a
inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou
outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os
estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro
filoacutesofo
Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a
filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de
outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo
quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash
desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais
14
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais
remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro
Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]
Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no
campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar
o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito
[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do
conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente
para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo
fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa
epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente
circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra
na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem
entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da
constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia
Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar
alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com
outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda
que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo
restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente
15
aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio
agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do
mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo
peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc
conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito
Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual
chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte
os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita
demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que
essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave
esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer
tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa
metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos
As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se
pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo
que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia
das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees
do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua
produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff
und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos
que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica
Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo
intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca
bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na
citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute
16
num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia
e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da
tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por
fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a
mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como
isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o
leitor no magnum opus de Cassirer
Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra
de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima
citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de
fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do
programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do
esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser
tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo
epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo
transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere
significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1
Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do
filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que
1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic
Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do
autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees
poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky
que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de
Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer
pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos
comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada
um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos
17
reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das
formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma
distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a
necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de
publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do
programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas
na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a
perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do
projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da
filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees
e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo
condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao
texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia
esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de
uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar
especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de
sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate
sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais
Escola de Marburgo
Panorama filosoacutefico
A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e
multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em
18
resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os
adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do
tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o
ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986
p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter
especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo
de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente
agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de
expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento
ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava
as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das
ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do
2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de
Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute
assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-
criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)
tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo
transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)
e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)
3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves
quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa
eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash
assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente
diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando
um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf
p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia
em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke
(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o
filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio
concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas
4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL
(2001) e POMA (1997)
19
espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash
Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista
quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de
reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves
tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de
Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da
situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de
Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute
especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela
[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado
para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo
trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico
primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel
central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que
o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras
palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves
Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os
valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash
curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou
propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente
na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso
5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse
caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo
20
Ambiente poliacutetico
No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo
coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo
Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com
vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo
positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da
Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo
de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio
filosoacutefico da DDR
ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima
associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia
alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse
periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da
Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE
1986 p 3)
Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa
da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se
for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo
criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou
Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo
Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir
a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes
distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo
que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-
21
filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute
corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas
vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas
natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves
Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao
positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias
naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que
significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar
do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original
adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a
Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a
interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras
palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o
meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a
6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as
quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas
ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque
satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo
de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o
progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um
afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que
segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo
surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger
aluno de Rickert
7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de
histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o
Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft
(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os
fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a
transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No
terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e
conceitos nas ciecircncias culturais
22
adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no
campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma
questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de
uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as
consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se
inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do
espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada
pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da
tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado
(SKIDELSKY 2008 p 23)
O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer
seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse
sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado
inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral
fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik
des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao
caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a
atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo
Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta
balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e
aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia
racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O
8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as
ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em
instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute
margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de
Heidegger
23
desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as
tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o
posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da
vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e
reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas
Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo
tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem
Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de
Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das
Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu
final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler
ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O
primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono
do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno
a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica
(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em
torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute
marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do
neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante
particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela
Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp
e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises
intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento
9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3
24
exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por
fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior
da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de
Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no
campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em
sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10
Doutrina de Marburgo
O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por
razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar
trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia
que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do
meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees
equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo
resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e
do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de
Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa
doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das
limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram
agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees
10
Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do
neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao
leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem
exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia
o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo
ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo
25
O meacutetodo transcendental
De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute
talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12
que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia
de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia
transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas
pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito
de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele
atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas
condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen
esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da
ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim
ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo
descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo
nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da
11
Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas
consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da
Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do
neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz
daquela serva desta)
12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos
distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo
estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica
seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que
Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas
focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua
obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual
e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por
Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a
Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)
26
ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal
proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14
A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a
questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado
por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de
Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente
uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave
ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de
conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que
Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash
nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi
concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das
ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de
Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-
lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de
entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)
Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de
Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na
13
ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58
14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke
(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-
Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem
rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina
de Marburgo
15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)
Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt
16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte
de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que
significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo
27
separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma
forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que
de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas
da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos
natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade
loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente
conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela
consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica
do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um
reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18
Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo
produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da
histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves
ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram
publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema
do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo
das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois
positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de
Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da
obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da
experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma
legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento
Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)
17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto
Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do
aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de
Husserl a respeito da recusa do psicologismo
18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de
Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola
entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante
28
pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos
gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental
A noccedilatildeo de forma
Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo
loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica
de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia
Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade
da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas
meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu
conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva
da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori
Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da
mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em
oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental
tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma
transcendentalrdquo
ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo
inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no
fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da
consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de
gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o
interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que
constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)
29
De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo
do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o
desenvolvimento histoacuterico Assim
ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e
Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias
empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental
kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)
Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)
para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori
regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende
mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de
conhecimento
Conhecimento e construccedilatildeo
Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia
exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo
19
A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do
entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica
newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem
condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da
coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia
Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto
os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da
independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori
constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo
30
(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma
construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute
conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a
experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute
passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma
forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees
da natureza
Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo
de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg
Segundo Koumlhnke esse princiacutepio
ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg
afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um
idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees
mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de
ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema
natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente
mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo
(KOumlHNKE 1986 p 178)20
Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem
diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a
passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute
fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento
20
Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma
ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente
ocasiatildeo
31
A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua
aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo
tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute
da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas
somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por
exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A
mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de
maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido
substancialmente modificadas
Substacircncia e Funccedilatildeo
A tarefa da nova loacutegica
Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases
fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua
primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de
1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados
da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia
desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do
desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo
foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o
terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem
de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de
32
Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o
domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que
vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde
Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada
para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua
inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo
satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos
avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua
ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22
O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes
desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees
levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava
haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas
investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus
postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles
O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute
radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o
trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da
Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia
ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das
ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que
21
Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem
22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto
onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e
o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der
gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)
33
se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias
ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave
elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje
progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos
pode afigurarrdquo (KrV B VIII)
Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo
ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um
campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas
levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O
julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho
da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)
O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este
dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um
importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente
neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia
criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica
tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido
em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto
satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o
corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico
alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele
Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de
seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que
34
novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em
primeiro planordquo (Idem ibidem)
A doutrina do conceito geneacuterico
A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas
alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta
as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa
de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica
atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os
elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras
palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia
de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o
ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)
donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da
formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de
processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas
ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas
em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa
riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas
() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas
de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)
Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do
conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash
35
e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira
expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de
elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise
uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de
suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza
precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio
sentido do ser
ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo
pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser
dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu
fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)
Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio
do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a
de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que
os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as
coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa
antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo
(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas
caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente
uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas
reais23
23
A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e
Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito
14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira
parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona
36
Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo
de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute
totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento
mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a
conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes
renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes
abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)
ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma
pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto
negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute
meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)
a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um
conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos
traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou
dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os
objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir
semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria
melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso
se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou
obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma
determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e
uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da
mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo
que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da
linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos
geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a
formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)
Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a
concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever
Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave
Marburgo como jaacute dito
37
Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose
agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo
alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem
sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p
7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha
loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo
para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui
notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia
o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos
pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em
decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade
independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento
verdadeiro
Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na
medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias
cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro
satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a
extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que
quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite
tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito
falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e
indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado
que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de
objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente
38
Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular
precisamente em suas particularidades de nenhum universal
ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do
particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele
deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las
muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)
Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da
abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular
da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito
psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos
gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo
se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo
no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou
lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a
identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das
particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash
incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees
sensiacuteveis
ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias
fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos
da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas
como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade
com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da
primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo
39
de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de
conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo
sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e
desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)
Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos
conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles
seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da
ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual
todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24
Os conceitos matemaacuteticos
Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no
acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos
conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode
ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados
deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos
nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do
pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos
24
Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica
igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade
metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute
tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram
comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo
processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)
Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito
entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela
ontoloacutegica ou psicoloacutegica
40
empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade
sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de
refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica
neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos
nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de
questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da
aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo
(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do
conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando
problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave
experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da
qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma
brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer
substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill
Cassirer diz
ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii
iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade
atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos
excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo
Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das
definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a
representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo
sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem
espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente
linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)
41
A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da
matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta
Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a
funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente
naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de
Aristoacuteteles
ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill
mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido
quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o
meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema
ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais
natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da
abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)
A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade
espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras
metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se
evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da
abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados
temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese
se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas
conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve
primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em
ldquoseacuteries de similaresrdquo
42
ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a
consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash
jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto
manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual
a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem
ibidem)
A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo
de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a
falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas
de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados
Conceito de funccedilatildeo
ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido
conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem
relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo
fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo
mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma
especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)
E por esta via
ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou
desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia
causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o
conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica
que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra
como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)
43
Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como
um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende
por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu
fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente
funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute
um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um
lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute
mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que
justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das
notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa
a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central
Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se
faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a
serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo
Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie
de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto
seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma
ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de
sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute
ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a
regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja
representadardquo (Idem ibidem)
44
Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F
representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a
serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25
Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de
ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva
caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos
conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um
matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz
de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da
foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos
geneacutericos
A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em
oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue
ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si
mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade
concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve
em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com
uma regrardquo (Idem p 20)
25
Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo
para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus
conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo
(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental
26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der
philosophischen und mathematischen Erkenntnis
27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer
sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo
pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito
embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras
45
O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e
ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas
particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os
casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos
conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute
inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais
enriquece em conteuacutedo
ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem
quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que
concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses
problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros
portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)
Sobre a loacutegica simboacutelica
Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser
lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os
avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental
ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na
descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De
acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o
neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com
os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave
46
reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p
52)
Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de
construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse
profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica
Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente
natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no
momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do
que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade
tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos
irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca
defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero
ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente
ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio
de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia
portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para
criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)
Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo
alienadardquo29 positivista
28
Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o
outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do
Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente
sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como
uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293
29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo
da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da
47
Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito
embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por
indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado
desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de
Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a
analiacutetica
ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo
onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a
siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do
conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro
corolaacuteriordquo31
Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para
o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em
outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica
Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o
que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo
somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a
proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de
combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e
ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo
razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria
tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I
30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar
e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos
proacuteximos diasrdquo
31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54
48
de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos
imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a
qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o
problema central de sua obra de maturidade a cultura32
A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as
quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica
transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a
doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo
o contraacuterio
ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade
obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com
isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na
determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis
formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato
sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)
Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente
pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo
sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado
que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo
ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um
32
De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em
Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o
texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da
mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no
mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo
pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura
49
iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar
o ldquoideal no realrdquo)
Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da
loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido
trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido
o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo
ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental
[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a
construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute
entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das
aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]
somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da
matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34
Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua
exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente
tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo
que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos
conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100
paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente
na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel
33
Cf esp cap 4
34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer
parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser
alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim
ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o
posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo
50
inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas
ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a
Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em
seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e
o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo
O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e
Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim
de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
Rupturas
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem
Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e
Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de
Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns
indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do
35
Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute
incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da
quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que
ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares
e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-
4)
36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho
como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por
si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de
uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra
51
neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que
respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de
Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen
especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento
em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua
fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema
transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen
em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do
homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen
endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia
e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui
Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de
relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a
relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria
ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como
errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no
conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo
de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma
categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo
inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da
realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)
37
Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel
Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf
1974 p 188-210
52
A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito
de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar
a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso
especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem
necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias
natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a
filosofia criacutetica38
ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal
qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que
ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um
fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia
natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a
questatildeo desse modordquo39
Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre
a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na
histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da
filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe
Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o
autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras
38
Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia
criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel
porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)
39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala
diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que
somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por
este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um
ser objetivo como algo significativo em seu todordquo
53
variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico
ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia
Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que
se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de
siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade
ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical
definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que
estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees
pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar
enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado
unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse
significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em
atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais
como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟
natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo
feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a
partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como
paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do
que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte
essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e
bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento
recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo
de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees
[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)
40
De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas
Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o
que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada
membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que
inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo
54
Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave
questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a
presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que
eacute proposto pelo sujeito41
Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas
razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que
comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente
matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais
fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se
referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo
[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de
realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo
ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que
conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese
intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo
subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)
Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de
inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor
ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de
objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma
estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo
41
Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de
Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte
55
particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente
familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas
intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a
acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-
intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)
Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros
passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do
espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente
questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja
evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade
num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para
as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar
de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento
particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para
a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917
Sobre a teoria da relatividade
Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa
dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de
Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e
todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o
agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a
fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee
um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick
por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo
56
com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia
criacutetica
ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico
geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que
jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria
funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)
Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de
investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides
e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de
tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma
concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na
Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade
de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo
Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und
Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e
primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico
Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da
Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de
maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o
que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De
42
A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s
Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15
57
acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no
total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande
obra
Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas
tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo
por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que
ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo
vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e
Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da
obra exemplifica
ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do
conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender
todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de
uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo
separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual
nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo
os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas
particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do
entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)
Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos
significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e
conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para
ilustrar Cassirer diz
43
Cf Ibid p 9-37
58
ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente
no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do
significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e
fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila
intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes
campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)
Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma
o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais
abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da
Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cisatildeo
Origem comum
Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de
Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da
filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por
Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o
entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento
anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute
exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash
44
De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger
que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o
assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)
59
Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo
formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico
publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit
nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi
aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de
Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo
influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e
proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a
Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46
que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de
maturidade47
Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e
Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras
proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu
desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas
45
Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente
no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)
46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida
a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento
como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento
de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a
obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7
47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica
partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como
beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo
haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas
carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em
recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas
de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008
esp cap 6
60
tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em
trechos significativos de seus trabalhos48
ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual
atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua
individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo
pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento
de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias
como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave
transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel
para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)
E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o
empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima
ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional
portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e
frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material
para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo
de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo
transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer
48
Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do
espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e
Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud
FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave
filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da
Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o
conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap
corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e
esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica
simboacutelica e a Escola de Marburgo
61
Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes
postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem
ibidem)
A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick
por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir
pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os
resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que
ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento
substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que
ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas
com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino
autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim
garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a
exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do
conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo
Loacutegica ou cultura
Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da
teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a
postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se
se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees
Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente
alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos
postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute
62
preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap
centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem
quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem
tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados
Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso
pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se
restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a
partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo
epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim
como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda
numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do
conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila
noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com
atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca
deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a
despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de
Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de
mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de
nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo
(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)
63
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar
nasce de sua carecircncia auto-reflexiva
O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo
sem trilhar os caminhos da irracionalidade
Adorno
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
O lugar da razatildeo
De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias
do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua
concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento
metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi
necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da
concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma
metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro
Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa
ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a
doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de
descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que
64
Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo
agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a
concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e
investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como
construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-
se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior
ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento
defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica
representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o
cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um
expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo
geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por
correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa
a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de
resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta
disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto
de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por
Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do
meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo
clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)
Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo
ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista
A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais
65
importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse
o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que
desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade
cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de
compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa
encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem
como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo
portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de
nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as
determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional
resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA
racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o
Ensaio Sobre o Homem
ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas
Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por
outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A
linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute
faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro
toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem
conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica
49
Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo
geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito
menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte
a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser
vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o
Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas
Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo
ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito
66
ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma
religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera
abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa
genuiacutena e concretardquo (EM p 49)
Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com
efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das
Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido
de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular
receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)
O homem no leito de Procrusto
O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do
Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa
das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do
autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a
Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um
iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da
matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade
Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)
radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para
que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si
O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o
conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos
demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees
67
mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das
ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de
resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por
cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de
vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes
de qualquer articulaccedilatildeo
ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx
entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os
fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []
Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e
economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar
ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem
em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo
(EM p 41-2)
A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a
respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco
zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute
indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica
50
Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana
promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a
resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de
Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter
descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)
Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas
finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve
dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no
capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de
sua eacutepoca
68
que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do
autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da
fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como
teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou
com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a
racionalidade moderna eacute soacute um exemplo
Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a
semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito
Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao
ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-
estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um
renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia
rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava
a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila
pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a
cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por
um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar
conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52
51
O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf
esp cap V
52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo
do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses
domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo
de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o
conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o
segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito
sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe
interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de
1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente
69
Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande
proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave
expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos
do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros
projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao
problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das
formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada
com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel
Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia
da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela
atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo
Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um
dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo
transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir
de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das
produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel
dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer
relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger
53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista
do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola
neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava
a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist
und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer
entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar
para discutir o estado entatildeo presente da filosofia
54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do
texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living
Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais
[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer
70
manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o
homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas
Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja
delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia
direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas
ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual
defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do
pensamento miacutetico
ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo
esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a
esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro
lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em
conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)
A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este
carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o
outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo
ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo
do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo
pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia
da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar
nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De
71
fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta
contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta
segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas
apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no
idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em
que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna
consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao
domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)
E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis
mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa
palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados
tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores
determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no
sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do
projeto de Cassirer eacute a de
ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana
do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na
sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)
Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua
aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se
pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo
limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua
autonomia e independecircncia
72
Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da
aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as
ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser
compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo
(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do
conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que
empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de
seu programa metodoloacutegico como se segue
ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das
formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da
natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo
funcional e natildeo substancial ()
Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma
possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas
disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e
indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas
reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao
descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia
sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia
infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala
humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia
geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em
consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de
meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo
pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico
Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares
Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos
capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No
73
nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem
precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso
poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais
metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()
Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da
cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva
Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()
A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura
humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas
individuais ()
O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo
uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve
ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as
formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)
Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo
daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que
caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada
mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a
isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da
fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos
uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja
uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute
Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas
como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo
centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a
concepccedilatildeo de siacutembolo
74
Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para
expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita
ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a
sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura
expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma
simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida
essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da
funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e
especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave
dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em
questatildeo
Conceito de forma simboacutelica
Conceito de siacutembolo
Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de
Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na
obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da
humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e
que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo
humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por
conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de
todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a
posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor
75
proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de
animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem
No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees
estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer
delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que
exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho
para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia
a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos
engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por
estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver
com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face
dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo
preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio
aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica
Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer
indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria
ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer
dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr
55
Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o
nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito
natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da
evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas
Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja
claramente definido
56 Cf De Interpretatione II 16a 12
57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua
Grega p 636
76
em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o
conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo
De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da
liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas
implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de
certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para
aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio
da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de
conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima
No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia
e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem
a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe
mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um
objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas
esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica
de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo
Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo
de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do
mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser
tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de
ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado
tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel
Como diz Verene
58
Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128
77
ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num
papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao
mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio
universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade
cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois
um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59
De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um
particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do
siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910
Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na
Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do
idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem
eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia
das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um
simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo
necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento
59
No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa
entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas
simboacutelicas falaremos em seguida
60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio
sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em
1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes
61 Cf p 14-16 29 e ss
62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no
dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma
situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por
Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos
justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em
segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do
real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo
78
necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das
impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo
espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e
de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I
p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em
dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute
ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens
agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz
ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento
da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos
quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que
possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos
tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas
tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima
referidardquo63
Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se
possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que
seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]
ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros
sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal
faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do
significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais
63
Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15
79
mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de
ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)
Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres
do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo
Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de
transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a
transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees
sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De
fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente
ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a
histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a
influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria
recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se
extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa
capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros
tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o
filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as
criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)
ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso
expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica
liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente
diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade
mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)
64
Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss
80
Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo
alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute
aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo
tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do
mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o
resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que
impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito
conforme veremos
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica
O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos
escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees
distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente
chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou
simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que
exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao
tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da
objetividade66
De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um
alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica
teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo
65
Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p
16 e 2008 p 98
66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58
81
do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de
saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do
conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que
a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute
visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas
formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo
engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de
significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza
Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur
Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada
no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que
laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em
relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto
na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e
responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel
que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das
configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra
ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero
de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como
um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do
distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de
preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas
82
parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve
ser tomado67
Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos
a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do
siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes
exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em
Warburg onde Cassirer disse
ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie
des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um
signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)
Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao
idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de
Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas
simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no
extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)
Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como
67
Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico
que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do
bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de
ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute
estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de
diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes
dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este
seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo
correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual
maior e mais complexo
68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo
metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)
83
uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre
uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um
determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente
na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um
liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que
pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto
possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como
independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da
experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta
desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo
ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de
algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de
apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas
representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)
A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos
fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o
procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como
atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer
vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo
linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt
69
Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e
parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)
discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse
entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf
p 2
84
viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um
papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana
ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da
linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua
estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples
desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela
espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo
(PSF I p 169-70)
Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da
Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie
des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas
reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um
determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse
sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo
humboldtiana
O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que
a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas
simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia
nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua
proacutepria atividade70
Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que
a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias
semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao
70
A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em
que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel
85
entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute
construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o
(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute
ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des
Geistes
A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de
ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria
na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a
unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute
margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a
diversidade das formas linguumliacutesticas
ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um
nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel
designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura
mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si
por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)
Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica
Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento
semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica
ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados
elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em
bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido
para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros
primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos
86
fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees
podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e
graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)
Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para
a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a
natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo
a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a
realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do
progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie
de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem
ser concebidas em conjunto
ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e
necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado
e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio
conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo
conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim
sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no
simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)
Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o
mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana
ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras
peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as
mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele
87
por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas
formasrdquo (Idem ibidem)
Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus
signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por
objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui
uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que
ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a
linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento
do qual falava o autor no prefaacutecio da obra
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas
Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser
considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um
nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se
define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no
momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras
formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito
essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica
Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma
forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e
encadeaacute-lo em seu campo significativo
ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a
qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o
88
caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma
filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas
aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e
de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite
definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)
Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro
criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a
suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos
sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas
determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim
dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a
justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual
em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves
suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e
Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante
Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela
mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute
71
Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se
refere explicitamente agrave obra de Cassirer
72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte
e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a
histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas
depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o
nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica
da contemporaneidade
89
o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se
separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73
Uma teoria da significaccedilatildeo
Linguagem e Loacutegica
Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa
aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do
conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam
mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras
epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui
fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da
significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para
a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso
meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo
Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do
conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo
filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos
sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer
73
Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz
distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23
74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral
os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de
Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua
obra
90
ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de
conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa
apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua
estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de
significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e
o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da
significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)
Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge
profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente
entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro
preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente
voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75
Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se
evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse
parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da
questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de
Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por
75
Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-
cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo
eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa
funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas
metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas
ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem
ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser
agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos
ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo
satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se
encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre
verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p
29)
91
meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da
significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma
linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e
tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de
uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do
projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave
formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo
(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a
loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76
Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave
humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica
toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de
verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em
relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que
a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a
de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas
matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana
como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em
76
Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus
Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo
77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics
(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como
bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em
que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa
filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de
qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)
78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que
tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento
[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito
92
relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia
analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que
ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia
natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico
mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo
psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia
da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e
social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da
linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)
O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como
o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a
dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva
como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da
ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e
privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o
primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece
estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta
em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo
de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se
sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da
Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da
linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na
93
filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que
percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou
em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria
significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem
sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios
idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute
suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais
amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo
de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da
assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um
retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este
primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor
ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza
imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do
espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um
siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)
Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela
inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa
79
As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato
este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero
historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo
representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados
temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso
constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p
23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo
80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas
94
ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio
em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da
coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de
algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa
ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma
realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em
Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-
se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra
universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir
todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas
fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de
totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde
cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute
capaz de expressar o ser
ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do
cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees
opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do
devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve
comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)
Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem
e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de
Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma
significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si
mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]
95
ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas
como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que
a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda
pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o
modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)
Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo
linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes
para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash
embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de
participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo
Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela
soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo
ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se
portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada
nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras
aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a
designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma
bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)
Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas
jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer
ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as
distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem
96
verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o
contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As
categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam
simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da
oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de
modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da
substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e
qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos
adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν
o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis
quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na
liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua
no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de
atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era
indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda
que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os
domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos
seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a
81
Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the
Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo
loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para
aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela
linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais
arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a
diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral
para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p
312)
82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela
causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute
97
comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash
vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada
quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da
natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de
surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves
ciecircncias do espiacuterito
Linguagem e verificaccedilatildeo
Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do
conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir
de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter
enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do
conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo
expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida
Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de
idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito
ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83
Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma
caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo
sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato
ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute
de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo
representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo
considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica
tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)
83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim
ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)
98
Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as
particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo
humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa
tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon
mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas
das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash
seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do
significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de
cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da
linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem
enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela
ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em
parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico
da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem
natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave
anaacutelise semacircntica
ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo
loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais
ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da
bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela
natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do
mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e
reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar
noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime
99
justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no
mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84
Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida
enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de
verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo
tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a
partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como
parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos
ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem
uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade
falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma
correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise
empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente
e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra
de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM
p 210-11)
Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser
considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar
que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das
formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para
todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de
mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus
84
Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma
filosofia da cultura
100
objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel
mas sempre como uma construccedilatildeo
ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave
pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela
compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de
mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)
A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada
aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso
significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos
postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa
ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por
meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo
igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico
fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant
com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas
Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de
vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora
resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da
significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo
de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da
85
Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a
mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo
para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e
histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e
significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada
101
filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da
formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da
ciecircncia
Pregnacircncia Simboacutelica
Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave
teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo
das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do
meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de
todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma
filosofia da cultura
A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute
dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o
filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a
partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria
das formas simboacutelicas
ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como
uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo
bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa
Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato
como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre
categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um
contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do
campo cientiacutefico (p 48 49)
102
aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados
julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua
organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo
ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de
significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86
De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute
anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido
abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende
naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo
princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e
o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de
significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal
sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim
dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno
entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de
significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a
totalidade da experiecircncia
ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio
assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a
86
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica
a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54
87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a
ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos
ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na
configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis
88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a
funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida
103
pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos
intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma
determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a
unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)
Convencionalismo e significaccedilatildeo
Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)
dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos
siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo
residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer
concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a
linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras
de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a
afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a
um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda
a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria
linguagem
89
Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de
outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses
ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o
filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a
obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro
possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte
histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar
ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a
priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de
Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente
analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)
104
ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos
simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato
social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel
somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e
forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)
Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno
da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e
simbolismo artificial
ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a
consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao
simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que
necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada
momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora
destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz
uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da
consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado
possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente
se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo
fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele
ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso
particularrdquo (PSF I p 62)
A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a
artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as
definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo
natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo
105
sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora
tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o
convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do
fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel
O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da
significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa
funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro
lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo
recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a
algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor
ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia
que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no
entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p
63)
90
Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente
individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele
tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente
inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute
uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de
Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de
cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a
ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes
de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de
Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito
agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a
dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O
problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem
importacircncia para o autor
106
Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia
crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o
fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase
de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos
ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo
criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do
significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos
natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si
mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados
complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)
Sensacionismo
A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia
simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os
empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida
na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das
impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos
elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois
problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os
sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de
sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar
que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que
sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das
91
Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e
LOFTS 2000 p 1 2
107
sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da
proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash
e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em
reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos
referenciais convencionais evidencia a falha do argumento
ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere
limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas
quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua
energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente
bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A
reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o
mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo
(PSF I p 37)
Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado
fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o
compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais
sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)
ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida
por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos
sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela
para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da
sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute
simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele
fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido
transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para
108
comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de
significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)
O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente
influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos
conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da
causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza
negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente
diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com
Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo
concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como
dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o
postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo
mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a
totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia
ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na
medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com
determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta
uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia
constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)
Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a
representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso
92
Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma
tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave
ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo
aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97
109
de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos
como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em
comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer
agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode
ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois
ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo
pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente
como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo
Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo
constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)
Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo
se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo
como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a
consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao
problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida
independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo
de todo o sistema topoloacutegico
Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da
unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a
apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en
passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um
ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos
que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda
percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma
110
referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a
brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem
em mimrdquo diz o autor
ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo
requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades
particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado
com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa
experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)
Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e
entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo
e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees
conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se
pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a
unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser
entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo
ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como
uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em
relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa
a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos
as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus
elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no
111
sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e
direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93
Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada
particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a
peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em
particular) de modo a ser definido objetivamente
Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada
em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos
diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir
entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao
ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da
consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem
p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de
organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no
momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta
disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da
histoacuteria94
93
A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento
reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais
tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute
precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente
dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um
bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero
diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo
94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante
nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee
em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e
produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente
112
ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos
os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em
um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que
determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na
denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas
estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a
expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)
Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a
modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o
cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada
em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na
primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira
com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais
articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito
semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo
Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo
causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de
modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e
daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a
modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o
espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de
bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus
momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de
configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no
pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de
organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se
distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a
organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)
113
significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande
multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a
capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na
verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do
espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta
ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM
p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente
diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na
histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em
textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas
inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir
ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um
exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que
cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo
quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz
ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia
nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e
cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma
determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo
de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas
95
No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave
questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um
esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave
adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave
medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde
os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a
articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94
114
precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas
apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma
estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado
puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a
construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico
distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente
espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma
ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos
meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na
forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade
animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente
ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular
e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma
determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades
recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a
entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela
torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal
geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como
um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se
por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas
tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta
negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente
irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal
mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a
ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior
noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica
temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia
esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma
para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia
matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela
115
uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa
lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis
formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades
e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal
de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez
estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha
como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal
abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de
fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar
os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas
como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder
factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo
esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da
significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso
Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura
ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida
somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de
uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e
respirardquo (PSF III p 200-01)96
Fenomenologia e intencionalidade
Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no
corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo
natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a
ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de
96
O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica
116
intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da
questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl
ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como
as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a
relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟
no outrordquo (PSF III p 197)
Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl
ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo
(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA
consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver
de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave
racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)
De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos
sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de
clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo
e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III
p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo
se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito
do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo
Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica
ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si
mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente
abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da
117
representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo
presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico
sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p
199)
No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O
Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste
na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre
mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato
ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio
da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando
nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟
Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se
estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de
bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl
entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional
entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser
separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute
gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em
dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e
mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa
separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos
outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o
profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)
Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual
ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas
118
aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da
concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma
revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as
fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente
traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade
ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave
criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de
apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes
tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses
mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa
proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo
sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p
33) Sendo assim
ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede
trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio
material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟
quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo
fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)
A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como
uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto
de vista da consciecircncia
ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟
mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e
119
sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma
criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se
constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva
que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo
(Idem p 70)
Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute
um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para
si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse
entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e
agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende
designarrdquo (PSF III p 202)
Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel
empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos
pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que
se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem
escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar
introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao
contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se
reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo
mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a
ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo
97
O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente
ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e
pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso
admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da
natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que
eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)
120
(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do
dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da
linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto
apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute
a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel
(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma
expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo
pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base
fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a
pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela
mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao
mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo
apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)
A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da
consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do
desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a
partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que
98
Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve
inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute
bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []
Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato
fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser
entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito
da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit
De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de
modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a
concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo
concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein
121
ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja
algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um
princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a
tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)
Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e
interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as
descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo
satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo
por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior
sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar
especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro
motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico
essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo
metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma
seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios
ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja
nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua
sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente
indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura
a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua
interaccedilatildeo
122
O animal symbolicum
Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar
passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo
em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas
humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome
Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave
psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar
como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo
os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer
evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em
reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual
possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim
ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os
animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a
99
A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo
contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a
cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido
que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico
dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente
abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em
Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem
duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles
elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus
instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e
estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui
igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro
natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo
retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas
ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo
123
relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute
incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos
condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter
essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute
se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e
mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um
estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a
universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute
a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso
especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma
quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo
capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo
Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido
objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese
de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem
meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo
de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao
ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)
Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos
pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu
ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo
agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum
124
Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem
com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma
garota nascida cega surda e muda100
ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante
aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo
tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber
Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando
quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo
Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais
tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela
debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a
caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo
da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e
ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-
u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou
para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome
Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito
excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas
horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde
seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto
perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um
nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que
natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por
ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e
100
Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo
detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento
ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para
fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia
simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os
objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente
125
pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e
a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos
que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101
Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute
distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da
psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve
como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos
sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o
conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se
fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de
conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual
efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente
o que se pode afirmar eacute que
ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do
material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem
pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos
A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo
geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila
cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do
animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)
Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do
poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila
do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo
101
Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61
126
horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio
desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que
natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-
inscreve em cada indiviacuteduo
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito
A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria
das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do
animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo
deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em
sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a
proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da
atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a
necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que
constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em
seus processos
Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente
dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De
102
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo
engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der
Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de
consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte
103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final
Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir
127
fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da
Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio
ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis
ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em
sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada
por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento
filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a
totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade
possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu
princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo
de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu
desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104
Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de
desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs
funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel
Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa
[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima
104
Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the
Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-
46
105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada
estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes
em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida
106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a
liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o
termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma
portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico
128
foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades
caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula
por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e
independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui
diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua
estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e
desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada
sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que
o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo
expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107
Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem
fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas
simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa
separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma
uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel
no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em
relaccedilatildeo agraves demais
remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido
por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as
premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que
exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem
interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash
nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer
supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido
tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto
ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes
constituir simbolicamente o objeto para si
107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase
sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e
espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos
129
A funccedilatildeo expressiva
Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel
a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas
fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de
acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que
Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia
O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo
da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos
bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma
abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)
A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva
de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este
primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui
designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da
fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que
de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da
consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia
natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo
deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo
108
Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a
explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez
mais adequado desenvolvimento
130
copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109
Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro
tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura
atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada
pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo
ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter
puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O
entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo
(PSF III p 63) 110
Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave
investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo
ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo
puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas
nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem
antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve
ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo
significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com
109
Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma
construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees
que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo
da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da
significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]
aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no
capiacutetulo seguinte
110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos
reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das
ciecircncias do espiacuterito
131
vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel
somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de
coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de
significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e
causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre
as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p
100)
Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute
radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e
pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e
depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente
oposta como a consciecircncia diferencia ambos111
ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo
fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o
mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num
sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo
(KROIS 1987 p 57 58)
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de
acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica
(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em
111
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute
o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere
explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que
fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A
pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo
corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)
132
relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo
empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica
Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar
conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da
consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre
consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do
mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas
tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva
deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do
mito
A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a
fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende
a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um
epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da
mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela
coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade
que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute
subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo
objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo
(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia
da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a
um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da
Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se
apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de
organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser
133
um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p
191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a
de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do
estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim
como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui
que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma
distinccedilatildeo ainda foi feita112
Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso
privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer
ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da
expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento
conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo
teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado
Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de
centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua
particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de
mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)
Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo
estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele
deve se integrar ao
ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute
mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o
112
Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana
Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss
134
mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia
do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu
comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da
intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)
Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o
primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio
primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica
serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas
ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um
meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro
sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da
consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social
assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua
verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo
nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)
Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade
ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da
consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva
Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico
apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo
psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria
razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus
135
domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se
apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113
ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da
generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente
entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se
em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for
visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)
Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento
Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma
proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo
(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas
mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito
como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se
pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo
histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute
necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito
entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash
natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da
cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar
por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)
113
Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees
sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A
questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito
Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao
problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos
136
A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa
ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada
metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo
meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na
modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta
da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica
em sua forma
ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da
representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a
consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo
admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico
pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente
inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila
que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115
Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos
metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a
ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades
que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se
voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo
114
ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de
formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do
tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo
um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)
115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo
natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em
The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas
claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII
137
espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em
todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de
um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees
do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da
fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico
para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu
Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia
antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente
entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode
senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como
ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por
isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute
pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem
como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas
caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se
apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente
ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada
fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou
inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo
sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas
determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles
mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos
que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)
Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao
contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia
138
consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em
oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do
mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da
consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei
natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre
subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia
da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente
aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees
lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de
paixotildees e pulsotildees subjetivas
ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e
autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a
realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se
manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de
configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117
Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo
mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como
116
A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os
fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em
seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da
religiatildeo
117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma
tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui
tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido
como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que
medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo
natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um
inconsciente individual
139
parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu
desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente
dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a
primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica
ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo
da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e
determinaccedilotildees posteriores
ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute
absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do
corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com
efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa
sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu
sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e
indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118
As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade
dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se
convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)
118
Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos
distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto
de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf
PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento
miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como
quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem
justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo
ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece
como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo
de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da
alma como sede da personalidade e sede da vida
140
da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo
(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa
exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo
tempo para em seguida se reunir120
Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros
indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees
ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como
membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de
um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele
possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas
manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos
invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-
se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p
298)
Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a
accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como
independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao
exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser
entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo
proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o
119
Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da
Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a
aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)
120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e
o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo
de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no
capiacutetulo seguinte
141
conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto
tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a
consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao
sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura
social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a
personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma
seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas
A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer
vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o
homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia
natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer
ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em
letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de
repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)
E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de
interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por
mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as
outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de
121
Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma
dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a
consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem
de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos
outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas
miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si
Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo
totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27
142
todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada
uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o
conhecimento-de-si do homem
Funccedilatildeo representativa
Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros
passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a
construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em
que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os
fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia
ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos
encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo
aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a
regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a
multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente
numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a
origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da
representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi
mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)
Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas
miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo
122
De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem
natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na
obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das
formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem
143
tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a
construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam
da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as
demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para
o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem
linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao
mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de
Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a
ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem
do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia
De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista
fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da
consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos
fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos
como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen
Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da
concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo
nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees
e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com
a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por
conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e
linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e
da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer
estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos
menores e artigos publicados por Cassirer
144
ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este
ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se
diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma
forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos
denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)
No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito
particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]
Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de
denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo
reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a
metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma
condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo
[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo
ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de
um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho
mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma
miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma
determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do
profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista
miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma
autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma
transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em
que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123
123
Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto
Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss
145
Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se
desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo
que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca
inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de
um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem
lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui
fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que
medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras
determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram
capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a
distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda
que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e
lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125
No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa
[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras
determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em
que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e
124
No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o
inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre
Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da
oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na
plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo
linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva
ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio
125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e
simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos
poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes
romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua
idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp
cap 2
146
desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as
divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees
humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas
representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas
desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas
Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto
a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre
quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute
que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas
em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o
mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias
criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para
poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico
de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de
destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo
soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de
Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a
linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que
o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer
valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da
qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e
religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa
fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel
determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)
A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves
147
imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade
das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana
ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece
como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido
necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais
captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)
As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as
configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam
a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer
toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-
iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo
desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no
Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas
por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma
que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o
indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a
divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de
sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser
caracterizado como o supremo e puro bem moral
ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de
tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo
reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de
objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e
niacutetidordquo (PSF II p 408)
148
A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre
deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de
tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash
seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na
dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a
caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada
pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da
consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao
mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela
somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer
A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as
enquanto tais
ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura
bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a
todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse
comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo
(PSF II p 432)
A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo
demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se
confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia
Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e
enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria
149
realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do
poder criador do espiacuterito
Funccedilatildeo significativa
Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo
representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente
nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto
grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo
significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro
tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as
consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de
conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a
luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no
programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja
o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em
relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura
humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma
simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o
Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a
consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do
gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)
Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a
inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a
ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo
150
de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste
com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao
mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma
espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que
todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126
tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo
trata por diversas vezes
O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de
signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do
qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz
fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se
que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua
relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia
ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada
tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a
linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que
126
Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas
tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da
consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura
127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e
rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se
desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo
realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento
toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute
pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem
estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar
alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)
151
ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde
quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas
E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda
comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de
uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)
Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of
Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da
filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de
natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais
(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a
respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento
racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles
a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo
com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos
obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu
procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam
desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash
e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo
uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo
(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees
sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas
Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo
ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito
uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar
os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela
152
falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as
leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e
mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)
Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a
linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que
Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de
conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute
escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem
Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos
ao domiacutenio da mathesis universalis
No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas
agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que
Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar
e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao
mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser
suficiente
ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma
certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas
palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128
128
No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em
fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a
entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)
153
Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados
para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o
momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129
ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do
conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo
Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente
novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente
diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)
O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute
que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem
eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros
esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos
da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O
caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais
pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no
conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de
superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica
129
Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma
da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de
maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da
astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem
seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o
territoacuterio do ser (Cf EM p 343)
130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees
ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na
Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os
trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo
154
pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e
elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a
linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao
qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia
De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de
Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A
depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos
presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana
dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do
espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam
aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer
ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e
o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na
Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste
ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme
que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo
sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do
movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito
culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de
sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos
anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros
momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre
155
todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do
conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)
Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada
liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash
natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se
subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute
somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a
consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do
que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o
estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no
momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema
Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do
ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de
encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que
incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por
paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa
orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o
levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da
cultura como jaacute tratado
Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de
progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande
caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash
o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo
progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser
descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz
156
o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal
como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita
como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter
especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que
conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo
ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo
do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse
processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder
de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave
sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa
unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes
contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo
podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e
obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo
denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e
complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um
novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os
contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na
contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)
O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da
dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela
diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de
uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o
momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas
se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A
passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez
157
disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash
incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como
conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo
entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo
Cassirer
ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento
de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de
determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As
etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves
outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A
evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees
espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e
completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p
392)
Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma
delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo
constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta
disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura
acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma
a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica
131
ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser
indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo
pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na
lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser
curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no
seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado
humanardquo (LDST p 327)
158
ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica
podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas
estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da
nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos
aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica
deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos
atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)
Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva
libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta
Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser
substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos
enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)
159
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas
mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas
Epiacuteteto
A Realidade Simboacutelica
Soliloacutequio
Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de
que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe
natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o
filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de
elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o
afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento
mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo
afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um
envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir
da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e
132
Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos
ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo
deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e
reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim
recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo
qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos
parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para
cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma
forma simboacutelica como veremos adiante
160
progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de
coisas mas num mundo de significados
ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo
simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente
natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em
proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as
proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo
mesmordquo (EM p 48)
Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma
mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as
questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash
natildeo se colocam
Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel
processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio
dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e
eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes
primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de
sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro
momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este
veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave
esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo
deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem
(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar
161
agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da
vida
ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo
em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos
de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo
consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-
las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se
consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da
existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta
existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para
transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)
O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito
marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em
relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer
afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em
espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo
133
Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura
de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada
de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias
disso para a sociedade em geral 134
Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente
fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees
tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute
consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do
assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia
contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto
mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A
mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento
162
simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo
fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos
siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor
ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como
siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem
[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um
real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio
mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este
autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma
bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas
especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio
delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-
se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)
Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se
ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do
conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional
Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava
pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto
das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo
como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem
mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer
humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo
ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da
imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte
primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma
tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)
163
tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da
concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima
consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo
loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos
Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou
mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja
marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave
ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem
fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja
perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de
significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a
linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave
psicologia behaviorista)
ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa
linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias
que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras
linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da
linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e
pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu
conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)
A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes
especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de
conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de
Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou
do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)
164
Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa
forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto
a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um
denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de
passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel
traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria
mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas
aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em
particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser
dito em uacuteltima instacircncia o mesmo
ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o
da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas
ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na
proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e
conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)
Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade
entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do
conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que
barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores
prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um
lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas
respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao
mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave
mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas
165
encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo
que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse
ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade
independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua
interaccedilatildeo
ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute
cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das
manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta
unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a
diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo
produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)
A tarefa simboacutelica da ciecircncia
As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo
de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A
novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda
que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar
hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia
que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada
135
Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel
assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas
como absolutamente incomensuraacuteveis
136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no
tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das
Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um
todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim
chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88
166
isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja
um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe
postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que
toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo
Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute
vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo
ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas
vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia
suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos
Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que
Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137
bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da
consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e
representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a
criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus
procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer
uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses
obscuros
Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma
alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na
antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um
137
Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno
da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo
em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca
das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias
sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa
preocupaccedilatildeo
167
domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves
demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees
concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para
tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras
obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la
intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas
simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas
baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer
mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam
cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138
ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura
apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto
uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera
particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do
ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as
orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de
culturardquo (PSF I p 24)
Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar
forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em
que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender
qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir
do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave
138
Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica
(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a
caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a
imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila
168
atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave
linguagem ou ao mito
De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo
central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o
desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de
compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila
espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves
demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia
uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode
pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado
o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de
envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica
O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na
filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em
relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer
que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do
espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos
concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a
praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de
Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao
positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu
momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da
repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso
139
Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de
1916
169
cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela
ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade
Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da
ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo
com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo
entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho
que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da
eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado
Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de
Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram
profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo
central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008
p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas
140
O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf
GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em
torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente
apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte
inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na
Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo
tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos
sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo
havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo
em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um
domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto
mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as
publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A
retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica
publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos
EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do
autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do
que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma
dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra
170
preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares
verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou
falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como
a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou
as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo
radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados
metafiacutesicos nele contidos
Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os
demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como
tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de
conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua
obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo
entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento
da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda
que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de
outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os
141
Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta
da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo
necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo
que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo
introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo
declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de
ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com
Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)
a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no
iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de
Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da
relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos
171
campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso
de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
O projeto de uma filosofia da cultura
Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu
aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi
idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das
reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum
entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a
instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves
demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo
que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e
positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das
Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de
maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da
Escola de Marburgo142
Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito
ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo
(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo
142
Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando
da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este
encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e
sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94
172
epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e
essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo
abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de
Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos
em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do
filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por
outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos
haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel
para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a
discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o
outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo
deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o
naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo
do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova
objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais
que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e
aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise
do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de
articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do
espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente
plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do
termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo
elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura
por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos
173
Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo
humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de
determinadas praacuteticas culturais em particular143
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser
associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por
Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela
que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer
faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras
consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144
Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre
ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as
ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e
agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos
particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos
eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com
143
Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o
tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como
sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura
144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da
Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden
a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo
metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente
analisada como mostraremos
145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua
tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos
conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo
agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta
suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)
como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto
174
aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado
da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a
proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o
estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a
proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as
ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu
trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo
(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser
trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para
natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo
(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda
parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da
Escola de Baden
ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a
alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia
matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica
Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser
investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um
sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge
a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade
objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele
estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a
146
Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a
considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico
[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa
realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e
singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96
175
priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi
provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem
suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente
onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)
Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo
baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo
de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido
em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem
fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo
anterior
ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza
agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais
Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos
nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode
nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)
A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla
de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em
direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]
orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente
Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele
147
Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um
pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum
equiacutevoco de interpretaccedilatildeo
176
ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das
transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro
caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a
alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um
absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)
A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da
percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico
corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual
somente surge a significaccedilatildeo
ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas
do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas
como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas
devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟
baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo
(Idem p 95)
Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo
loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para
Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta
da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os
produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)
Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar
no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em
suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo
significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como
177
exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao
observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela
coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem
de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos
atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma
significaccedilatildeo radicalmente diversa
ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao
inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a
conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o
uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de
uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo
satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)
A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis
significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade
podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da
percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto
mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de
significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]
cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e
(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural
natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute
apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de
Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que
isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem
178
reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de
significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de
condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da
discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo
Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer
cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de
Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando
Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek
Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a
obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias
de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com
o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava
inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos
escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de
agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A
nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado
ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados
quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo
com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da
histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela
sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e
classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um
problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de
148
Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e
Gay (1968)
179
meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo
caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este
livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias
oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua
fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)
O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o
ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash
dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio
Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese
ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura
alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)
O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay
(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de
democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que
se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte
consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que
perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela
atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a
cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash
por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras
naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)
180
Cultura e Civilizaccedilatildeo
Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo
da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal
rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as
duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute
uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que
Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo
(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que
proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo
Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita
na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso
representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao
determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do
espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em
Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que
modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista
Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por
conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades
mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em
que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito
ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito
entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a
ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a
arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por
181
construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em
relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a
religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito
chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como
o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave
constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em
que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade
Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem
apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era
sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante
virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p
50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de
Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute
depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa
transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de
civilizaccedilatildeo
Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave
histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como
paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no
149
O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto
dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade
jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute
notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a
filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo
sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da
filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural
182
idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de
razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a
um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo
traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo
moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade
impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash
cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder
portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja
correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por
exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do
tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura
Diversidade Cultural
Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do
espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido
teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito
absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e
(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem
aponta Krois (2002 p 28)
150
Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau
Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca
151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de
animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo
da humanidade cosmopolita
183
ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e
vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo
da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha
linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em
cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma
novas formasrdquo152
A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico
convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo
positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura
como um processo essencialmente relativo153
Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura
natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo
momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que
por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu
ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do
crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154
percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do
seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de
diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer
Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo
152
Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf
1987 p 176-181 ou 2002 p 28
153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que
marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta
(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a
intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza
154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies
em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960
184
da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de
passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia
saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute
norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no
singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo
estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute
necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da
filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute
evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos
estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos
variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa
Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em
vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou
mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre
povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir
corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo
das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem
no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de
fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti
mesmo
185
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Nota de esclarecimento
As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as
secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute
ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao
longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como
fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e
assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso
nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi
efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira
publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo
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- GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
- AGRADECIMENTOS
- RESUMO
- ABSTRACT
- LISTA DE ABREVIATURAS
- SUMAacuteRIO
- PARA LER CASSIRER
- ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
-
- Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
- Escola de Marburgo
- Doutrina de Marburgo
- Substacircncia e Funccedilatildeo
- Rupturas
- Cisatildeo
-
- AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
-
- Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
- Conceito de forma simboacutelica
- Uma teoria da significaccedilatildeo
- Pregnacircncia Simboacutelica
- As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
-
- O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
-
- A Realidade Simboacutelica
- Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
-
- REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-
4
RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia
das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo
Satildeo Paulo 2010
O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees
envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da
obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as
questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua
estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos
os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por
Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de
todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um
processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo
apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de
seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o
filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo
Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas
criacutetica da cultura
5
ABSTRACT
GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master
Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo
Paulo Satildeo Paulo 2010
This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The
Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns
out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt
with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s
work its structure and its main methodological postulates to eventually understand
the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of
human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual
activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do
so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his
philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher
wants to differentiate his own work from
Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of
culture
6
LISTA DE ABREVIATURAS
Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das
iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e
outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim
espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas
demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de
Cohen e Kant
Obras de Cassirer
EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie
EM Essay on Man
EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit
ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
KMM Kant und die moderne Mathematik
LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought
LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft
MS The Myth of the State
PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache
PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken
PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis
PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen
SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff
SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften
SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen
SMC Symbol Myth and Culture
Obras de Cohen e Kant
KRV Kritik der reinen Vernunft
KTE Kants Theorie der Erfahrung
LRE Logik der reinen Erkenntnis
7
SUMAacuteRIO
PARA LER CASSIRER11
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14
Escola de Marburgo 17
Panorama filosoacutefico 17
Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento
Ambiente poliacutetico 20
Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do
Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do
neokantismo
Doutrina de Marburgo 24
O meacutetodo transcendental 25
Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o
materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento
puro
A noccedilatildeo de forma 28
A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo
Conhecimento e construccedilatildeo 29
Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano
Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica
Substacircncia e Funccedilatildeo 31
A tarefa da nova loacutegica 31
Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional
A doutrina do conceito geneacuterico 34
A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de
notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo
Os conceitos matemaacuteticos 39
A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da
seacuterie
Conceito de funccedilatildeo 42
Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A
universalidade concreta
Sobre a loacutegica simboacutelica 45
8
Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e
a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental
Rupturas 50
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50
Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez
matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito
Sobre a teoria da relatividade 55
Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio
Cisatildeo 58
Origem comum 58
Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo
Loacutegica ou cultura 61
As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63
O lugar da razatildeo 63
Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de
conhecimento
O homem no leito de Procrusto 66
O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud
Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo
Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo
grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70
O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria
Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental
Conceito de forma simboacutelica 74
Conceito de siacutembolo 74
Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do
siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80
Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt
Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo
simboacutelica
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87
9
Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e
forma simboacutelica
Uma teoria da significaccedilatildeo 89
Linguagem e Loacutegica 89
Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo
Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o
λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito
Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser
Linguagem e verificaccedilatildeo 97
A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da
revoluccedilatildeo copernicana
Pregnacircncia Simboacutelica 101
Convencionalismo e significaccedilatildeo 103
Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa
Sensacionismo 106
A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo
dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva
Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na
consciecircncia O exemplo da linha
Fenomenologia e intencionalidade 115
Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo
Cultura e praxis
O animal symbolicum 122
O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen
Keller
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126
Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e
fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva 129
O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e
alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A
anterioridade da vida coletiva
Funccedilatildeo representativa 142
Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave
arte
10
Funccedilatildeo significativa 149
Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu
Bohr matemaacutetica e ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia 155
Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da
cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de
Hegel agrave aacutervore de Darwin
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159
A Realidade Simboacutelica 159
Soliloacutequio 159
O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade
Autonomia e incomensurabilidade
A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165
A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento
intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171
O projeto de uma filosofia da cultura 171
A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft
Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A
biblioteca de Warburg
Cultura e Civilizaccedilatildeo 180
Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e
progresso Razatildeo e homogeneidade
Diversidade Cultural 182
Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro
da discussatildeo
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187
11
PARA LER CASSIRER
Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito
Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas
Nelson Goodman
Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma
nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho
Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a
filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo
especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com
exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da
utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os
textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo
se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma
filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros
Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou
historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os
proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer
como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria
demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a
imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para
Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para
ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De
outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne
conhecedor da histoacuteria da filosofia
12
Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo
vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas
deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente
dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido
para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota
aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer
De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas
dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de
discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que
ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa
dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e
em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo
historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes
eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e
autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas
entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem
de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo
historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de
conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras
coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em
direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta
de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute
elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel
ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias
diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem
13
opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias
histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral
O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra
muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas
ideacuteias
Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da
filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho
se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de
Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em
que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa
forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de
Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo
estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez
de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta
de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a
inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou
outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os
estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro
filoacutesofo
Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a
filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de
outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo
quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash
desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais
14
ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais
remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro
Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]
Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no
campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar
o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito
[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do
conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente
para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo
fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa
epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente
circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra
na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem
entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da
constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia
Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar
alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com
outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda
que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo
restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente
15
aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio
agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do
mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo
peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc
conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito
Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual
chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte
os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita
demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que
essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave
esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer
tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa
metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos
As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se
pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo
que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia
das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees
do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua
produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff
und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos
que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica
Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo
intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca
bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na
citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute
16
num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia
e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da
tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por
fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a
mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como
isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o
leitor no magnum opus de Cassirer
Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra
de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima
citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de
fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do
programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do
esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser
tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo
epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo
transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere
significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1
Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do
filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que
1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic
Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do
autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees
poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky
que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de
Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer
pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos
comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada
um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos
17
reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das
formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma
distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a
necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de
publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do
programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas
na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a
perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do
projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da
filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees
e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo
condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao
texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia
esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de
uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar
especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de
sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate
sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais
Escola de Marburgo
Panorama filosoacutefico
A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e
multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em
18
resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os
adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do
tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o
ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986
p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter
especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo
de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente
agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de
expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento
ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava
as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das
ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do
2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de
Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute
assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-
criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)
tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo
transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)
e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)
3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves
quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa
eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash
assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente
diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando
um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf
p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia
em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke
(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o
filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio
concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas
4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL
(2001) e POMA (1997)
19
espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash
Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista
quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de
reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves
tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de
Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da
situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de
Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute
especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela
[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado
para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo
trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico
primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel
central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que
o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras
palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves
Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os
valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash
curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou
propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente
na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso
5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse
caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo
20
Ambiente poliacutetico
No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo
coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo
Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com
vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo
positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da
Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo
de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio
filosoacutefico da DDR
ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima
associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia
alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse
periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da
Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE
1986 p 3)
Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa
da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se
for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo
criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou
Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo
Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir
a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes
distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo
que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-
21
filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute
corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas
vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas
natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves
Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao
positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias
naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que
significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar
do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original
adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a
Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a
interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras
palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o
meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a
6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as
quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas
ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque
satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo
de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o
progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um
afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que
segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo
surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger
aluno de Rickert
7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de
histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o
Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft
(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os
fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a
transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No
terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e
conceitos nas ciecircncias culturais
22
adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no
campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma
questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de
uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as
consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se
inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do
espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada
pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da
tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado
(SKIDELSKY 2008 p 23)
O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer
seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse
sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado
inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral
fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik
des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao
caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a
atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo
Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta
balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e
aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia
racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O
8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as
ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em
instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute
margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de
Heidegger
23
desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as
tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o
posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da
vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e
reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas
Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo
tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem
Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de
Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das
Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu
final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler
ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O
primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono
do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina
autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno
a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica
(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em
torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute
marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do
neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante
particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela
Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp
e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises
intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento
9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3
24
exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por
fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior
da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de
Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no
campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em
sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10
Doutrina de Marburgo
O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por
razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar
trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia
que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do
meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees
equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo
resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e
do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de
Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa
doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das
limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram
agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees
10
Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do
neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao
leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem
exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia
o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo
ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo
25
O meacutetodo transcendental
De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute
talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12
que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia
de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia
transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas
pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito
de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele
atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas
condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen
esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da
ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim
ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo
descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo
nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da
11
Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas
consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da
Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do
neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz
daquela serva desta)
12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos
distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo
estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica
seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que
Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas
focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua
obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual
e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por
Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a
Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)
26
ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal
proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14
A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a
questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado
por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de
Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente
uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave
ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de
conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que
Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash
nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi
concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das
ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de
Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-
lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de
entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)
Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de
Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na
13
ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58
14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke
(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-
Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem
rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina
de Marburgo
15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)
Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt
16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte
de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que
significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo
27
separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma
forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que
de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas
da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos
natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade
loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente
conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela
consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica
do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um
reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18
Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo
produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da
histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves
ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram
publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema
do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo
das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois
positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de
Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da
obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da
experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma
legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento
Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)
17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto
Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do
aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de
Husserl a respeito da recusa do psicologismo
18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de
Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola
entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante
28
pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos
gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental
A noccedilatildeo de forma
Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo
loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica
de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia
Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade
da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas
meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu
conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva
da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori
Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da
mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em
oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental
tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma
transcendentalrdquo
ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo
inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no
fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da
consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de
gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o
interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que
constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)
29
De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo
do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o
desenvolvimento histoacuterico Assim
ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e
Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias
empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental
kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)
Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)
para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori
regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende
mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de
conhecimento
Conhecimento e construccedilatildeo
Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia
exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo
19
A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do
entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica
newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem
condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da
coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia
Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto
os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da
independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori
constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo
30
(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma
construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute
conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a
experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute
passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma
forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees
da natureza
Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo
de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg
Segundo Koumlhnke esse princiacutepio
ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg
afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um
idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees
mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de
ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema
natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente
mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo
(KOumlHNKE 1986 p 178)20
Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem
diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a
passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute
fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento
20
Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma
ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente
ocasiatildeo
31
A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua
aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo
tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute
da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas
somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por
exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A
mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de
maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido
substancialmente modificadas
Substacircncia e Funccedilatildeo
A tarefa da nova loacutegica
Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases
fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua
primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de
1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados
da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia
desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do
desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo
foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o
terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem
de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de
32
Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o
domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que
vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde
Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada
para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua
inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo
satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos
avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua
ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22
O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes
desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees
levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava
haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas
investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus
postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles
O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute
radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o
trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da
Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia
ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das
ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que
21
Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem
22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto
onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e
o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der
gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)
33
se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias
ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave
elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje
progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos
pode afigurarrdquo (KrV B VIII)
Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo
ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um
campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas
levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O
julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho
da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)
O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este
dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um
importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente
neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia
criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica
tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido
em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto
satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o
corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico
alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele
Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de
seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que
34
novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em
primeiro planordquo (Idem ibidem)
A doutrina do conceito geneacuterico
A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas
alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta
as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa
de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica
atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os
elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras
palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia
de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o
ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)
donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da
formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de
processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas
ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas
em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa
riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas
() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas
de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)
Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do
conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash
35
e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira
expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de
elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise
uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de
suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza
precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio
sentido do ser
ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo
pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser
dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu
fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)
Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio
do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a
de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que
os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as
coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa
antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo
(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas
caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente
uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas
reais23
23
A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e
Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito
14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira
parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona
36
Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo
de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute
totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento
mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a
conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes
renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes
abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)
ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma
pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto
negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute
meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)
a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um
conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos
traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou
dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os
objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir
semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria
melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso
se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou
obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma
determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e
uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da
mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo
que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da
linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos
geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a
formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)
Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a
concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever
Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave
Marburgo como jaacute dito
37
Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose
agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo
alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem
sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p
7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha
loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo
para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui
notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia
o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos
pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em
decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade
independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento
verdadeiro
Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na
medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias
cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro
satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a
extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que
quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite
tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito
falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e
indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado
que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de
objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente
38
Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular
precisamente em suas particularidades de nenhum universal
ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do
particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele
deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las
muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)
Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da
abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular
da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito
psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos
gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo
se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo
no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou
lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a
identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das
particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash
incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees
sensiacuteveis
ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias
fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos
da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas
como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade
com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da
primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo
39
de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de
conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo
sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e
desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)
Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos
conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles
seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da
ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual
todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24
Os conceitos matemaacuteticos
Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no
acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos
conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode
ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados
deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos
nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do
pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos
24
Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica
igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade
metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute
tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram
comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo
processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)
Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito
entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela
ontoloacutegica ou psicoloacutegica
40
empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade
sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de
refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica
neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos
nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de
questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da
aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo
(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do
conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando
problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave
experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da
qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma
brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer
substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill
Cassirer diz
ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii
iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade
atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos
excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo
Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das
definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a
representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo
sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem
espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente
linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)
41
A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da
matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta
Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a
funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente
naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de
Aristoacuteteles
ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill
mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido
quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o
meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema
ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais
natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da
abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)
A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade
espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras
metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se
evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da
abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados
temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese
se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas
conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve
primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em
ldquoseacuteries de similaresrdquo
42
ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a
consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash
jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto
manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual
a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem
ibidem)
A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo
de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a
falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas
de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados
Conceito de funccedilatildeo
ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido
conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem
relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo
fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo
mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma
especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)
E por esta via
ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou
desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia
causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o
conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica
que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra
como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)
43
Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como
um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende
por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu
fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente
funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute
um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um
lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute
mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que
justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das
notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa
a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central
Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se
faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a
serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo
Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie
de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto
seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma
ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de
sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute
ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a
regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja
representadardquo (Idem ibidem)
44
Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F
representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a
serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25
Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de
ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva
caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos
conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um
matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz
de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da
foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos
geneacutericos
A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em
oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue
ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si
mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade
concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve
em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com
uma regrardquo (Idem p 20)
25
Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo
para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus
conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo
(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental
26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der
philosophischen und mathematischen Erkenntnis
27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer
sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo
pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito
embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras
45
O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e
ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas
particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os
casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos
conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute
inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais
enriquece em conteuacutedo
ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem
quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que
concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses
problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros
portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)
Sobre a loacutegica simboacutelica
Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser
lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os
avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental
ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na
descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De
acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o
neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com
os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave
46
reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p
52)
Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de
construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse
profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica
Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente
natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no
momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do
que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade
tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos
irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca
defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero
ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente
ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio
de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia
portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para
criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)
Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo
alienadardquo29 positivista
28
Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o
outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do
Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente
sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como
uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293
29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo
da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da
47
Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito
embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por
indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado
desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de
Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a
analiacutetica
ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo
onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a
siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do
conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro
corolaacuteriordquo31
Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para
o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em
outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica
Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o
que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo
somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a
proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de
combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e
ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo
razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria
tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I
30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar
e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos
proacuteximos diasrdquo
31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54
48
de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos
imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a
qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o
problema central de sua obra de maturidade a cultura32
A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as
quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica
transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a
doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo
o contraacuterio
ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade
obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com
isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na
determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis
formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato
sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)
Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente
pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo
sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado
que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo
ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um
32
De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em
Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o
texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da
mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no
mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo
pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura
49
iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar
o ldquoideal no realrdquo)
Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da
loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido
trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido
o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo
ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental
[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a
construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute
entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das
aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]
somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da
matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34
Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua
exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente
tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo
que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos
conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100
paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente
na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel
33
Cf esp cap 4
34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer
parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser
alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim
ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o
posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo
50
inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas
ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a
Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em
seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e
o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo
O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e
Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim
de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
Rupturas
Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem
Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e
Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de
Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns
indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do
35
Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute
incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da
quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que
ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares
e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-
4)
36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho
como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por
si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de
uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra
51
neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que
respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de
Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen
especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento
em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua
fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema
transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen
em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do
homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen
endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia
e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui
Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de
relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a
relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria
ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como
errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no
conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo
de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma
categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo
inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da
realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)
37
Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel
Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf
1974 p 188-210
52
A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito
de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar
a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso
especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem
necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias
natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a
filosofia criacutetica38
ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal
qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que
ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um
fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia
natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a
questatildeo desse modordquo39
Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre
a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na
histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da
filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe
Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o
autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras
38
Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia
criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel
porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)
39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala
diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que
somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por
este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um
ser objetivo como algo significativo em seu todordquo
53
variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico
ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia
Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que
se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de
siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade
ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical
definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que
estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees
pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar
enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado
unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse
significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em
atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais
como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟
natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo
feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a
partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como
paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do
que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte
essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e
bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento
recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo
de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees
[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)
40
De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas
Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o
que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada
membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que
inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo
54
Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave
questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a
presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que
eacute proposto pelo sujeito41
Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas
razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que
comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente
matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais
fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se
referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo
[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de
realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo
ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que
conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese
intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo
subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)
Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de
inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor
ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de
objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma
estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo
41
Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de
Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte
55
particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente
familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas
intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a
acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-
intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)
Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros
passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do
espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente
questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja
evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade
num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para
as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar
de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento
particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para
a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917
Sobre a teoria da relatividade
Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa
dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de
Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e
todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o
agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a
fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee
um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick
por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo
56
com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia
criacutetica
ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico
geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que
jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria
funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)
Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de
investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides
e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de
tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma
concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas
Simboacutelicas
Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na
Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade
de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo
Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und
Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e
primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico
Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da
Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de
maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o
que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De
42
A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s
Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15
57
acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no
total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande
obra
Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas
tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie
[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo
por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que
ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo
vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e
Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da
obra exemplifica
ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do
conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender
todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de
uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo
separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual
nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo
os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas
particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do
entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)
Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos
significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e
conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para
ilustrar Cassirer diz
43
Cf Ibid p 9-37
58
ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente
no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do
significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e
fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila
intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes
campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)
Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma
o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais
abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da
Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cisatildeo
Origem comum
Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de
Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da
filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por
Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o
entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento
anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute
exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash
44
De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger
que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o
assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)
59
Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo
formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico
publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit
nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi
aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de
Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo
influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e
proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a
Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46
que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de
maturidade47
Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e
Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras
proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu
desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas
45
Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente
no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)
46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida
a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento
como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento
de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a
obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7
47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica
partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como
beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo
haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas
carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em
recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas
de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008
esp cap 6
60
tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em
trechos significativos de seus trabalhos48
ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual
atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua
individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo
pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento
de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias
como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave
transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel
para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)
E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o
empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima
ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional
portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e
frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material
para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo
de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo
transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer
48
Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do
espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e
Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud
FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave
filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da
Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o
conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap
corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e
esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica
simboacutelica e a Escola de Marburgo
61
Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes
postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem
ibidem)
A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick
por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir
pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os
resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que
ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento
substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que
ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas
com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino
autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim
garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a
exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do
conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo
Loacutegica ou cultura
Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da
teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a
postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se
se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees
Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente
alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos
postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute
62
preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap
centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem
quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem
tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados
Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso
pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se
restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a
partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo
epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim
como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda
numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do
conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila
noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com
atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca
deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a
despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de
Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de
mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de
nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo
(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)
63
AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar
nasce de sua carecircncia auto-reflexiva
O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo
sem trilhar os caminhos da irracionalidade
Adorno
Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
O lugar da razatildeo
De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das
Formas Simboacutelicas
ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias
do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua
concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento
metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi
necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)
Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da
concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma
metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro
Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa
ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a
doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de
descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que
64
Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo
agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a
concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e
investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como
construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-
se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior
ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento
defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica
representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o
cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um
expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo
geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por
correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa
a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de
resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta
disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto
de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por
Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do
meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo
clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)
Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo
ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista
A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais
65
importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse
o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que
desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade
cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de
compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa
encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem
como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo
portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de
nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as
determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional
resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA
racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o
Ensaio Sobre o Homem
ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas
Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por
outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A
linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute
faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro
toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem
conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica
49
Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo
geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito
menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte
a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser
vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o
Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas
Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo
ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito
66
ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma
religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera
abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa
genuiacutena e concretardquo (EM p 49)
Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com
efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das
Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido
de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular
receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)
O homem no leito de Procrusto
O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do
Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa
das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do
autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a
Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um
iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da
matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade
Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)
radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para
que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si
O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o
conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos
demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees
67
mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das
ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de
resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por
cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de
vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes
de qualquer articulaccedilatildeo
ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx
entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os
fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []
Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e
economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar
ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem
em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo
(EM p 41-2)
A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a
respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco
zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute
indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica
50
Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana
promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a
resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de
Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter
descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)
Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas
finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve
dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no
capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de
sua eacutepoca
68
que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do
autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da
fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como
teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou
com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a
racionalidade moderna eacute soacute um exemplo
Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a
semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito
Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao
ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-
estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um
renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia
rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava
a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila
pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a
cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por
um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar
conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52
51
O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf
esp cap V
52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo
do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses
domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo
de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o
conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o
segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito
sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe
interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de
1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente
69
Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande
proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave
expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos
do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros
projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao
problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das
formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada
com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel
Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia
da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela
atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo
Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um
dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo
transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir
de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das
produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel
dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer
relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger
53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista
do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola
neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava
a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist
und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer
entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar
para discutir o estado entatildeo presente da filosofia
54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do
texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living
Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais
[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer
70
manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o
homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si
O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas
Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja
delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia
direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas
ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual
defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do
pensamento miacutetico
ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo
esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a
esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro
lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em
conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)
A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este
carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o
outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo
ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo
do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo
pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia
da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar
nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De
71
fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta
contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta
segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas
apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no
idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em
que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna
consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao
domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)
E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis
mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa
palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados
tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores
determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no
sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do
projeto de Cassirer eacute a de
ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana
do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na
sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)
Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua
aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se
pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo
limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua
autonomia e independecircncia
72
Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da
aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as
ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser
compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo
(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do
conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que
empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de
seu programa metodoloacutegico como se segue
ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das
formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da
natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo
funcional e natildeo substancial ()
Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma
possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas
disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e
indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas
reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao
descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia
sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia
infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala
humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia
geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em
consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de
meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo
pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico
Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares
Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos
capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No
73
nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem
precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso
poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais
metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()
Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da
cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva
Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()
A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura
humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas
individuais ()
O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo
uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve
ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as
formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)
Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo
daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que
caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada
mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a
isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da
fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos
uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja
uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute
Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas
como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo
centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a
concepccedilatildeo de siacutembolo
74
Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para
expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita
ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a
sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura
expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma
simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida
essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da
funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e
especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave
dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em
questatildeo
Conceito de forma simboacutelica
Conceito de siacutembolo
Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de
Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na
obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da
humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e
que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo
humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por
conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de
todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a
posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor
75
proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de
animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem
No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees
estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer
delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que
exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho
para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia
a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos
engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por
estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver
com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face
dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo
preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio
aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica
Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer
indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria
ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer
dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr
55
Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o
nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito
natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da
evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas
Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja
claramente definido
56 Cf De Interpretatione II 16a 12
57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua
Grega p 636
76
em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o
conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo
De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da
liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas
implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de
certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para
aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio
da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de
conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima
No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia
e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem
a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe
mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um
objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas
esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica
de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo
Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo
de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do
mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser
tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de
ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado
tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel
Como diz Verene
58
Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128
77
ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num
papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao
mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio
universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade
cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois
um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59
De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um
particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do
siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910
Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na
Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do
idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem
eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia
das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um
simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo
necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento
59
No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa
entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas
simboacutelicas falaremos em seguida
60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio
sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em
1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes
61 Cf p 14-16 29 e ss
62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no
dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma
situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por
Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos
justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em
segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do
real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo
78
necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das
impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo
espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e
de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I
p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em
dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute
ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens
agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz
ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento
da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos
quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que
possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos
tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas
tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima
referidardquo63
Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se
possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que
seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]
ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros
sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal
faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do
significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais
63
Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15
79
mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de
ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)
Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres
do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo
Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de
transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a
transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees
sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De
fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente
ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a
histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a
influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria
recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se
extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa
capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros
tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o
filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as
criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)
ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso
expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica
liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente
diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade
mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)
64
Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss
80
Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo
alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute
aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo
tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do
mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o
resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que
impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito
conforme veremos
Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica
O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos
escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees
distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente
chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou
simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que
exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao
tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da
objetividade66
De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um
alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica
teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo
65
Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p
16 e 2008 p 98
66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58
81
do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de
saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do
conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que
a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute
visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas
formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo
engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de
significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza
Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur
Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada
no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que
laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em
relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto
na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e
responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel
que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das
configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra
ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero
de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como
um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do
distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de
preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas
82
parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve
ser tomado67
Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos
a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do
siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes
exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em
Warburg onde Cassirer disse
ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie
des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um
signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)
Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao
idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de
Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas
simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no
extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)
Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como
67
Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico
que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do
bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de
ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute
estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de
diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes
dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este
seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo
correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual
maior e mais complexo
68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo
metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)
83
uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre
uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um
determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente
na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um
liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que
pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto
possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como
independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da
experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta
desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo
ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de
algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de
apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas
representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)
A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos
fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o
procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como
atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer
vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo
linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt
69
Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e
parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)
discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse
entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf
p 2
84
viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um
papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana
ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da
linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua
estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples
desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela
espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo
(PSF I p 169-70)
Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da
Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie
des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas
reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um
determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse
sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo
humboldtiana
O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que
a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas
simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia
nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua
proacutepria atividade70
Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que
a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias
semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao
70
A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em
que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel
85
entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute
construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o
(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute
ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des
Geistes
A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de
ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria
na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a
unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute
margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a
diversidade das formas linguumliacutesticas
ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um
nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel
designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura
mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si
por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)
Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica
Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento
semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica
ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados
elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em
bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido
para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros
primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos
86
fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees
podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e
graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)
Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para
a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a
natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo
a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a
realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do
progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie
de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem
ser concebidas em conjunto
ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e
necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado
e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio
conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo
conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim
sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no
simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)
Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o
mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana
ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras
peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as
mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele
87
por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas
formasrdquo (Idem ibidem)
Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus
signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por
objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui
uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que
ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a
linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento
do qual falava o autor no prefaacutecio da obra
Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas
Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser
considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um
nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se
define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no
momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras
formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito
essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica
Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma
forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e
encadeaacute-lo em seu campo significativo
ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a
qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o
88
caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma
filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas
aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e
de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite
definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)
Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro
criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a
suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos
sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas
determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim
dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a
justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual
em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves
suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e
Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante
Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela
mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute
71
Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se
refere explicitamente agrave obra de Cassirer
72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte
e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a
histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas
depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o
nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica
da contemporaneidade
89
o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se
separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73
Uma teoria da significaccedilatildeo
Linguagem e Loacutegica
Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa
aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do
conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam
mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras
epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui
fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da
significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para
a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso
meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo
Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do
conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo
filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos
sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer
73
Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz
distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23
74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral
os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de
Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua
obra
90
ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de
conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa
apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua
estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de
significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e
o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da
significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)
Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge
profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente
entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro
preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente
voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75
Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se
evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse
parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da
questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de
Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por
75
Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-
cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo
eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa
funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas
metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas
ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem
ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser
agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos
ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo
satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se
encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre
verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p
29)
91
meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da
significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma
linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e
tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de
uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do
projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave
formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo
(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a
loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76
Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave
humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica
toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de
verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em
relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que
a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a
de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas
matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana
como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em
76
Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus
Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo
77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics
(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como
bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em
que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa
filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de
qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)
78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que
tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento
[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito
92
relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia
analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que
ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia
natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico
mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo
psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia
da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e
social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da
linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)
O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como
o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a
dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva
como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da
ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e
privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o
primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece
estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta
em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo
de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se
sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da
Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da
linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na
93
filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que
percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou
em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria
significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem
sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios
idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute
suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais
amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo
de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da
assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um
retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este
primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor
ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza
imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do
espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um
siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)
Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela
inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa
79
As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato
este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero
historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo
representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados
temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso
constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p
23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo
80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas
94
ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio
em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da
coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de
algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa
ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma
realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em
Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-
se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra
universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir
todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas
fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de
totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde
cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute
capaz de expressar o ser
ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do
cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees
opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do
devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve
comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)
Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem
e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de
Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma
significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si
mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]
95
ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas
como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que
a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda
pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o
modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)
Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo
linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes
para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash
embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de
participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo
Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela
soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo
ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se
portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada
nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras
aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a
designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma
bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)
Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas
jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer
ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as
distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem
96
verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o
contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As
categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam
simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da
oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de
modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da
substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e
qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos
adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν
o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis
quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na
liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua
no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de
atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era
indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda
que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os
domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos
seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a
81
Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the
Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo
loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para
aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela
linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais
arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a
diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral
para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p
312)
82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela
causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute
97
comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash
vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada
quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da
natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de
surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves
ciecircncias do espiacuterito
Linguagem e verificaccedilatildeo
Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do
conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir
de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter
enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do
conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo
expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida
Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de
idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito
ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83
Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma
caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo
sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato
ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute
de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo
representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo
considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica
tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)
83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim
ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)
98
Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as
particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo
humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa
tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon
mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas
das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash
seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do
significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de
cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da
linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem
enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela
ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em
parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico
da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem
natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave
anaacutelise semacircntica
ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo
loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais
ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da
bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela
natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do
mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e
reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar
noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime
99
justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no
mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84
Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida
enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de
verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo
tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a
partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como
parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos
ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem
uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade
falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma
correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise
empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente
e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra
de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM
p 210-11)
Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser
considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar
que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das
formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para
todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de
mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus
84
Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma
filosofia da cultura
100
objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel
mas sempre como uma construccedilatildeo
ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave
pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela
compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de
mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)
A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada
aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso
significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos
postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa
ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por
meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo
igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico
fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant
com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas
Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de
vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora
resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da
significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo
de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da
85
Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a
mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo
para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e
histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e
significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada
101
filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da
formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da
ciecircncia
Pregnacircncia Simboacutelica
Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave
teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo
das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do
meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de
todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma
filosofia da cultura
A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute
dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o
filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a
partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria
das formas simboacutelicas
ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como
uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo
bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa
Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato
como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre
categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um
contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do
campo cientiacutefico (p 48 49)
102
aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados
julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua
organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo
ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de
significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86
De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute
anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido
abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende
naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo
princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e
o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de
significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal
sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim
dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno
entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de
significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a
totalidade da experiecircncia
ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio
assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a
86
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica
a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54
87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a
ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos
ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na
configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis
88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a
funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida
103
pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos
intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma
determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a
unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)
Convencionalismo e significaccedilatildeo
Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)
dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos
siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo
residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer
concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a
linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras
de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a
afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a
um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda
a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria
linguagem
89
Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de
outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses
ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o
filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a
obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro
possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte
histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar
ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a
priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de
Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente
analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)
104
ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos
simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato
social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel
somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e
forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)
Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno
da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e
simbolismo artificial
ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a
consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao
simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que
necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada
momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora
destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz
uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da
consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado
possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente
se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo
fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele
ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso
particularrdquo (PSF I p 62)
A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a
artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as
definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo
natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo
105
sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora
tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o
convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do
fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel
O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da
significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa
funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro
lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo
recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a
algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor
ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia
que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no
entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p
63)
90
Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente
individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele
tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente
inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute
uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de
Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de
cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a
ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes
de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de
Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito
agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a
dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O
problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem
importacircncia para o autor
106
Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia
crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o
fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase
de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos
ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo
criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do
significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos
natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si
mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados
complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)
Sensacionismo
A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia
simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os
empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida
na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das
impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos
elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois
problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os
sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de
sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar
que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que
sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das
91
Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e
LOFTS 2000 p 1 2
107
sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da
proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash
e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em
reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos
referenciais convencionais evidencia a falha do argumento
ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere
limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas
quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua
energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente
bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A
reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o
mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo
(PSF I p 37)
Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado
fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o
compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais
sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)
ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida
por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos
sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela
para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da
sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute
simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele
fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido
transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para
108
comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de
significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)
O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente
influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos
conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da
causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza
negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente
diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com
Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo
concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como
dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o
postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo
mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a
totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia
ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na
medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com
determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta
uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia
constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)
Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a
representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso
92
Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma
tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave
ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo
aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97
109
de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos
como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em
comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer
agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode
ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois
ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo
pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente
como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo
Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo
constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)
Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo
se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo
como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a
consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao
problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida
independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo
de todo o sistema topoloacutegico
Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da
unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a
apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en
passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um
ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos
que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda
percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma
110
referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a
brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem
em mimrdquo diz o autor
ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo
requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades
particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado
com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa
experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)
Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e
entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo
e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees
conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se
pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a
unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser
entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo
ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como
uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em
relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa
a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos
as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus
elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no
111
sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e
direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93
Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada
particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a
peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em
particular) de modo a ser definido objetivamente
Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada
em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos
diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir
entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao
ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da
consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem
p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de
organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no
momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta
disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da
histoacuteria94
93
A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento
reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais
tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute
precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente
dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um
bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero
diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo
94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante
nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee
em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e
produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente
112
ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos
os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em
um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que
determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na
denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas
estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a
expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)
Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a
modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o
cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada
em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na
primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira
com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais
articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito
semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo
Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo
causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de
modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e
daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a
modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o
espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de
bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus
momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de
configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no
pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de
organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se
distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a
organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)
113
significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande
multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a
capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na
verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do
espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta
ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM
p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente
diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na
histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em
textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas
inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir
ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um
exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que
cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo
quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz
ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia
nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e
cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma
determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo
de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas
95
No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave
questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um
esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave
adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave
medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde
os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a
articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94
114
precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas
apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma
estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado
puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a
construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico
distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente
espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma
ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos
meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na
forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade
animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente
ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular
e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma
determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades
recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a
entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela
torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal
geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como
um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se
por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas
tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta
negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente
irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal
mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a
ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior
noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica
temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia
esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma
para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia
matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela
115
uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa
lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis
formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades
e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal
de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez
estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha
como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal
abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de
fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar
os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas
como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder
factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo
esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da
significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso
Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura
ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida
somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de
uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e
respirardquo (PSF III p 200-01)96
Fenomenologia e intencionalidade
Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no
corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo
natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a
ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de
96
O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica
116
intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da
questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl
ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como
as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a
relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟
no outrordquo (PSF III p 197)
Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl
ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo
(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA
consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver
de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave
racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)
De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos
sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de
clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo
e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III
p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo
se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito
do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo
Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica
ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si
mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente
abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da
117
representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo
presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico
sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p
199)
No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O
Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste
na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre
mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato
ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio
da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando
nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟
Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se
estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de
bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl
entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional
entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser
separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute
gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em
dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e
mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa
separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos
outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o
profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)
Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual
ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas
118
aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da
concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma
revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as
fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente
traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade
ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave
criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de
apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes
tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses
mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa
proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo
sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p
33) Sendo assim
ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede
trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio
material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟
quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo
fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)
A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como
uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto
de vista da consciecircncia
ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟
mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e
119
sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma
criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se
constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva
que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo
(Idem p 70)
Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute
um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para
si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse
entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e
agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende
designarrdquo (PSF III p 202)
Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel
empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos
pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que
se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem
escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar
introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao
contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se
reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo
mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a
ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo
97
O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente
ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e
pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso
admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da
natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que
eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)
120
(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do
dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da
linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto
apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute
a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel
(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma
expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo
pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base
fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a
pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela
mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao
mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo
apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)
A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da
consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do
desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a
partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que
98
Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve
inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute
bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []
Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato
fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser
entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito
da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit
De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de
modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a
concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo
concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein
121
ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja
algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um
princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a
tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)
Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e
interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as
descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo
satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo
por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior
sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar
especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro
motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico
essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo
metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma
seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios
ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja
nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua
sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente
indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura
a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua
interaccedilatildeo
122
O animal symbolicum
Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar
passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo
em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas
humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome
Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave
psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar
como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo
os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer
evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em
reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual
possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim
ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os
animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a
99
A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo
contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a
cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido
que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico
dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente
abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em
Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem
duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles
elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus
instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e
estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui
igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro
natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo
retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas
ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo
123
relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute
incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos
condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter
essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute
se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e
mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um
estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a
universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute
a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso
especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma
quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo
capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo
Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido
objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese
de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem
meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo
de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao
ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)
Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos
pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu
ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo
agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum
124
Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem
com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma
garota nascida cega surda e muda100
ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante
aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo
tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber
Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando
quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo
Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais
tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela
debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a
caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo
da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e
ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-
u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou
para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome
Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito
excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas
horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde
seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto
perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um
nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que
natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por
ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e
100
Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo
detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento
ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para
fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia
simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os
objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente
125
pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e
a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos
que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101
Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute
distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da
psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve
como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos
sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o
conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se
fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de
conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual
efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente
o que se pode afirmar eacute que
ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do
material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem
pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos
A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo
geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila
cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do
animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)
Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do
poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila
do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo
101
Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61
126
horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio
desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que
natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-
inscreve em cada indiviacuteduo
As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito
A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria
das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do
animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo
deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em
sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a
proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da
atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a
necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que
constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em
seus processos
Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente
dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De
102
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo
engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der
Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de
consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte
103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final
Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir
127
fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da
Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio
ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis
ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em
sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada
por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento
filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a
totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade
possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu
princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo
de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu
desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104
Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de
desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs
funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel
Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa
[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima
104
Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e
interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the
Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-
46
105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada
estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes
em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida
106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a
liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o
termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma
portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico
128
foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades
caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula
por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e
independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui
diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua
estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e
desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada
sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que
o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo
expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107
Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem
fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas
simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa
separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma
uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel
no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em
relaccedilatildeo agraves demais
remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido
por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as
premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que
exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem
interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash
nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer
supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido
tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto
ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes
constituir simbolicamente o objeto para si
107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase
sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e
espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos
129
A funccedilatildeo expressiva
Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel
a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas
fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de
acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que
Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia
O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo
da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos
bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma
abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)
A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva
de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este
primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui
designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da
fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que
de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da
consciecircncia
A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia
natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo
deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo
108
Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a
explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez
mais adequado desenvolvimento
130
copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109
Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro
tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura
atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada
pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo
ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter
puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O
entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo
(PSF III p 63) 110
Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave
investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo
ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo
puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas
nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem
antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve
ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo
significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com
109
Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma
construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees
que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo
da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da
significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]
aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no
capiacutetulo seguinte
110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos
reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das
ciecircncias do espiacuterito
131
vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel
somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de
coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de
significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e
causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre
as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p
100)
Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute
radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e
pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e
depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente
oposta como a consciecircncia diferencia ambos111
ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo
fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o
mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num
sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo
(KROIS 1987 p 57 58)
A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de
acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica
(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em
111
Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute
o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere
explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que
fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A
pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo
corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)
132
relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo
empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica
Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar
conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da
consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre
consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do
mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas
tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva
deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do
mito
A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a
fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende
a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um
epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da
mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela
coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade
que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute
subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo
objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo
(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia
da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a
um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da
Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se
apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de
organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser
133
um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p
191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a
de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do
estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim
como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui
que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma
distinccedilatildeo ainda foi feita112
Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso
privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer
ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da
expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento
conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo
teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado
Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de
centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua
particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de
mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)
Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo
estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele
deve se integrar ao
ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute
mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o
112
Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana
Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss
134
mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia
do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu
comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da
intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)
Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o
primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio
primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica
serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas
ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um
meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro
sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da
consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social
assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua
verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo
nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)
Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade
ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da
consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva
Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico
apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo
psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria
razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus
135
domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se
apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113
ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da
generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente
entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se
em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for
visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)
Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento
Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma
proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo
(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas
mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito
como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se
pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo
histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute
necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito
entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash
natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da
cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar
por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)
113
Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees
sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A
questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito
Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao
problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos
136
A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa
ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada
metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo
meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na
modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta
da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica
em sua forma
ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da
representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a
consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo
admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico
pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente
inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila
que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115
Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos
metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a
ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades
que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se
voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo
114
ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de
formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do
tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo
um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)
115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo
natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em
The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas
claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII
137
espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em
todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de
um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees
do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da
fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico
para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu
Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia
antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente
entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode
senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como
ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por
isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute
pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem
como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas
caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se
apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente
ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada
fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou
inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo
sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas
determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles
mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos
que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)
Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao
contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia
138
consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em
oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do
mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da
consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei
natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre
subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia
da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente
aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees
lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de
paixotildees e pulsotildees subjetivas
ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e
autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a
realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se
manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de
configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117
Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo
mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como
116
A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os
fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em
seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da
religiatildeo
117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma
tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui
tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido
como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que
medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo
natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um
inconsciente individual
139
parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu
desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente
dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a
primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica
ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo
da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e
determinaccedilotildees posteriores
ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute
absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do
corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com
efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa
sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu
sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e
indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118
As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade
dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se
convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)
118
Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos
distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto
de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf
PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento
miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como
quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem
justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo
ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece
como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo
de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da
alma como sede da personalidade e sede da vida
140
da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo
(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa
exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo
tempo para em seguida se reunir120
Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros
indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees
ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como
membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de
um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele
possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas
manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos
invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-
se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p
298)
Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a
accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como
independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao
exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser
entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo
proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o
119
Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da
Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a
aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)
120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e
o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo
de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no
capiacutetulo seguinte
141
conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto
tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a
consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao
sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura
social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a
personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma
seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas
A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer
vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o
homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia
natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer
ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em
letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de
repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)
E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de
interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por
mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as
outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de
121
Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma
dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a
consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem
de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos
outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas
miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si
Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo
totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27
142
todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada
uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o
conhecimento-de-si do homem
Funccedilatildeo representativa
Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros
passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a
construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em
que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os
fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia
ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos
encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo
aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a
regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a
multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente
numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a
origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da
representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi
mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)
Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas
miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo
122
De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem
natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na
obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das
formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem
143
tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a
construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam
da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as
demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para
o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem
linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao
mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de
Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a
ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem
do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia
De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista
fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da
consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos
fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos
como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen
Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da
concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo
nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees
e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com
a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por
conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e
linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e
da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer
estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos
menores e artigos publicados por Cassirer
144
ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este
ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se
diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma
forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos
denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)
No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito
particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]
Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de
denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo
reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a
metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma
condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo
[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo
ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de
um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho
mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma
miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma
determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do
profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista
miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma
autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma
transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em
que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123
123
Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto
Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss
145
Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se
desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo
que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca
inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de
um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem
lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui
fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que
medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras
determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram
capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a
distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda
que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e
lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125
No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa
[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras
determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em
que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e
124
No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o
inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre
Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da
oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na
plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo
linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva
ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio
125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e
simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos
poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes
romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua
idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp
cap 2
146
desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as
divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees
humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas
representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas
desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas
Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto
a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre
quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute
que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas
em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o
mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias
criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para
poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico
de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de
destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo
soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de
Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a
linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que
o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer
valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da
qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e
religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa
fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel
determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)
A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves
147
imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade
das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana
ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece
como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido
necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais
captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)
As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as
configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam
a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer
toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-
iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo
desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no
Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas
por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma
que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o
indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a
divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de
sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser
caracterizado como o supremo e puro bem moral
ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de
tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo
reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de
objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e
niacutetidordquo (PSF II p 408)
148
A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre
deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de
tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash
seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na
dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a
caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada
pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da
consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao
mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela
somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer
A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as
enquanto tais
ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura
bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a
todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse
comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo
(PSF II p 432)
A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo
demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se
confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia
Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e
enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria
149
realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do
poder criador do espiacuterito
Funccedilatildeo significativa
Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo
representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente
nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto
grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo
significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro
tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as
consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de
conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a
luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no
programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja
o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em
relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura
humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma
simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o
Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a
consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do
gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)
Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a
inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a
ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo
150
de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste
com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao
mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma
espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que
todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126
tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo
trata por diversas vezes
O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de
signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do
qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz
fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se
que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua
relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia
ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada
tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a
linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que
126
Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas
tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da
consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura
127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e
rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se
desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo
realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento
toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute
pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem
estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar
alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)
151
ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde
quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas
E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda
comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de
uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)
Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of
Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da
filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de
natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais
(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a
respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento
racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles
a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo
com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos
obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu
procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam
desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash
e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo
uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo
(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees
sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas
Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo
ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito
uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar
os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela
152
falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as
leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e
mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)
Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a
linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que
Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de
conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute
escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem
Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos
ao domiacutenio da mathesis universalis
No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas
agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que
Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar
e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao
mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser
suficiente
ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma
certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas
palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128
128
No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em
fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a
entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)
153
Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados
para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o
momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129
ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do
conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo
Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente
novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente
diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)
O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute
que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem
eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros
esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos
da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O
caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais
pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no
conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de
superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica
129
Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma
da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de
maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da
astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem
seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o
territoacuterio do ser (Cf EM p 343)
130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees
ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na
Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os
trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo
154
pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e
elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a
linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao
qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia
Dialeacutetica e teleologia
De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de
Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A
depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos
presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana
dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do
espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam
aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer
ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e
o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na
Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste
ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme
que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo
sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do
movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito
culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de
sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos
anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros
momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre
155
todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do
conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)
Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada
liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash
natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se
subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute
somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a
consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do
que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o
estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no
momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema
Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do
ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de
encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que
incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por
paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa
orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o
levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da
cultura como jaacute tratado
Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de
progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande
caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash
o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo
progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser
descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz
156
o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal
como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita
como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter
especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que
conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo
ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo
do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse
processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder
de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave
sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa
unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes
contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo
podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e
obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo
denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e
complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um
novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os
contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na
contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)
O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da
dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela
diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de
uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o
momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas
se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A
passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez
157
disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash
incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como
conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo
entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo
Cassirer
ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento
de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de
determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As
etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves
outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A
evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees
espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e
completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p
392)
Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma
delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo
constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta
disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura
acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma
a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica
131
ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser
indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo
pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na
lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser
curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no
seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado
humanardquo (LDST p 327)
158
ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica
podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas
estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da
nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos
aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica
deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos
atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)
Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva
libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta
Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser
substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos
enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)
159
O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas
mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas
Epiacuteteto
A Realidade Simboacutelica
Soliloacutequio
Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de
que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe
natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o
filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de
elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o
afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento
mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo
afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um
envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir
da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e
132
Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos
ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo
deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e
reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim
recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo
qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos
parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para
cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma
forma simboacutelica como veremos adiante
160
progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de
coisas mas num mundo de significados
ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo
simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente
natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em
proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as
proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo
mesmordquo (EM p 48)
Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma
mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as
questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash
natildeo se colocam
Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel
processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio
dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e
eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes
primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de
sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro
momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este
veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave
esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo
deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem
(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar
161
agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da
vida
ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo
em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos
de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo
consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-
las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se
consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da
existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta
existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para
transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)
O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito
marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em
relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer
afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em
espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo
133
Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura
de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada
de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias
disso para a sociedade em geral 134
Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente
fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees
tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute
consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do
assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia
contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto
mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A
mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas
Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento
162
simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo
fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos
siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor
ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como
siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem
[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um
real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio
mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este
autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma
bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas
especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio
delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-
se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)
Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se
ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do
conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional
Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava
pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto
das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo
como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem
mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer
humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo
ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da
imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte
primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma
tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)
163
tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da
concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima
consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo
loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos
Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou
mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja
marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave
ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem
fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja
perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de
significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a
linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave
psicologia behaviorista)
ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa
linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias
que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras
linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da
linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e
pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu
conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)
A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes
especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de
conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de
Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou
do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)
164
Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa
forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto
a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um
denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de
passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel
traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria
mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas
aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em
particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser
dito em uacuteltima instacircncia o mesmo
ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o
da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas
ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na
proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e
conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)
Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade
entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do
conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que
barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores
prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um
lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas
respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao
mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave
mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas
165
encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo
que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse
ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade
independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua
interaccedilatildeo
ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute
cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das
manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta
unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a
diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo
produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)
A tarefa simboacutelica da ciecircncia
As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo
de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A
novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda
que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar
hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia
que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada
135
Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel
assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas
como absolutamente incomensuraacuteveis
136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no
tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das
Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um
todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim
chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88
166
isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja
um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe
postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que
toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo
Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute
vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo
ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas
vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia
suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos
Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que
Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137
bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da
consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e
representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a
criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus
procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer
uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses
obscuros
Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma
alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na
antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um
137
Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno
da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo
em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca
das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias
sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa
preocupaccedilatildeo
167
domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves
demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees
concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para
tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras
obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la
intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas
simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas
baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer
mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam
cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138
ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura
apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto
uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera
particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do
ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as
orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de
culturardquo (PSF I p 24)
Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar
forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em
que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender
qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir
do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave
138
Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica
(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a
caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a
imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila
168
atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave
linguagem ou ao mito
De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo
central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o
desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de
compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila
espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves
demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia
uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode
pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado
o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de
envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica
O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na
filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em
relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer
que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do
espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos
concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a
praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de
Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao
positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu
momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da
repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso
139
Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de
1916
169
cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela
ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade
Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da
ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo
com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo
entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho
que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da
eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado
Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de
Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram
profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo
central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008
p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas
140
O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf
GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em
torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente
apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte
inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na
Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo
tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos
sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo
havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo
em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um
domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto
mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as
publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A
retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica
publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos
EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do
autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do
que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma
dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra
170
preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares
verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou
falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como
a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou
as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo
radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados
metafiacutesicos nele contidos
Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os
demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como
tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de
conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua
obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo
entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento
da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda
que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de
outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os
141
Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta
da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo
necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo
que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo
introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo
declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de
ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com
Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)
a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no
iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de
Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da
relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos
171
campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso
de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)
Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
O projeto de uma filosofia da cultura
Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu
aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi
idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das
reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum
entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a
instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves
demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo
que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e
positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das
Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de
maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da
Escola de Marburgo142
Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito
ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo
(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo
142
Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando
da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este
encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e
sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94
172
epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e
essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo
abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de
Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos
em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do
filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas
Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por
outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos
haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel
para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a
discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o
outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo
deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o
naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo
do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova
objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais
que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e
aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise
do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de
articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do
espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente
plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do
termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo
elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura
por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos
173
Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo
humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de
determinadas praacuteticas culturais em particular143
Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser
associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por
Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela
que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer
faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras
consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144
Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre
ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as
ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e
agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos
particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos
eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com
143
Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o
tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como
sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura
144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da
Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden
a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo
metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente
analisada como mostraremos
145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua
tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos
conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo
agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta
suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)
como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto
174
aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado
da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a
proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o
estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a
proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as
ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu
trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo
(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser
trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para
natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo
(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda
parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da
Escola de Baden
ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a
alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia
matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica
Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser
investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um
sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge
a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade
objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele
estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a
146
Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a
considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico
[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa
realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e
singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96
175
priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi
provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem
suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente
onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)
Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo
baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo
de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido
em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem
fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo
anterior
ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza
agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais
Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos
nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode
nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)
A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla
de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em
direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]
orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente
Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele
147
Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um
pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum
equiacutevoco de interpretaccedilatildeo
176
ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das
transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro
caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a
alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um
absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)
A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da
percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico
corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual
somente surge a significaccedilatildeo
ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas
do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas
como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas
devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟
baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo
(Idem p 95)
Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo
loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para
Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta
da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os
produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)
Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar
no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em
suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo
significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como
177
exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao
observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela
coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem
de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos
atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma
significaccedilatildeo radicalmente diversa
ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao
inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a
conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o
uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de
uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo
satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)
A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis
significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade
podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da
percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto
mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de
significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]
cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e
(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural
natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute
apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de
Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que
isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem
178
reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de
significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de
condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da
discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo
Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer
cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de
Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando
Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek
Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a
obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias
de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com
o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava
inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos
escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de
agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das
Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A
nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado
ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados
quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo
com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da
histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela
sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e
classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um
problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de
148
Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e
Gay (1968)
179
meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo
caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este
livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias
oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua
fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)
O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o
ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash
dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio
Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese
ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura
alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)
O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay
(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de
democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que
se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte
consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que
perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela
atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a
cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash
por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras
naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)
180
Cultura e Civilizaccedilatildeo
Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo
da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal
rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as
duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute
uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que
Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo
(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que
proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo
Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita
na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso
representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao
determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do
espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em
Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que
modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista
Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por
conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades
mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em
que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito
ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito
entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a
ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a
arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por
181
construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em
relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a
religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito
chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como
o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave
constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em
que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade
Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem
apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era
sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante
virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p
50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de
Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute
depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa
transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de
civilizaccedilatildeo
Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave
histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como
paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no
149
O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto
dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade
jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute
notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a
filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo
sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da
filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural
182
idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de
razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a
um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo
traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo
moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade
impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash
cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder
portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja
correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por
exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do
tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura
Diversidade Cultural
Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do
espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido
teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito
absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e
(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem
aponta Krois (2002 p 28)
150
Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau
Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca
151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de
animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo
da humanidade cosmopolita
183
ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e
vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo
da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha
linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em
cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma
novas formasrdquo152
A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico
convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo
positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura
como um processo essencialmente relativo153
Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura
natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo
momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que
por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu
ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do
crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154
percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do
seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de
diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer
Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo
152
Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf
1987 p 176-181 ou 2002 p 28
153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que
marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta
(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a
intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza
154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies
em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960
184
da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de
passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia
saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute
norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no
singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo
estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute
necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da
filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute
evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos
estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos
variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa
Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em
vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou
mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre
povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir
corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo
das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem
no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de
fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti
mesmo
185
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
Nota de esclarecimento
As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as
secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute
ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao
longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como
fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e
assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso
nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi
efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira
publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo
Primaacuterias
CASSIRER E El Concepto de la Forma Simboacutelica en la Construccioacuten de las
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- GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
- AGRADECIMENTOS
- RESUMO
- ABSTRACT
- LISTA DE ABREVIATURAS
- SUMAacuteRIO
- PARA LER CASSIRER
- ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
-
- Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
- Escola de Marburgo
- Doutrina de Marburgo
- Substacircncia e Funccedilatildeo
- Rupturas
- Cisatildeo
-
- AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
-
- Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
- Conceito de forma simboacutelica
- Uma teoria da significaccedilatildeo
- Pregnacircncia Simboacutelica
- As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
-
- O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
-
- A Realidade Simboacutelica
- Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
-
- REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
-