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DataGramaZero Revista de Informação v.12 n.4 ago11 ARTIGO 03 A construção de bibliotecas comunitárias e o desejo de acessar: sentidos em movimento Constructing community libraries and the desire of access: moving senses por Gustavo Grandini Bastos e Lucília Maria Sousa Romão Resumo: Nosso trabalho intenta refletir sobre o tema bibliotecas comunitárias, destacando especialmente três eixos de abordagem: seu surgimento como indício de ruptura com as práticas oficiais de implantação de unidades informacionais e de distribuição de livros; sua inscrição no Brasil e nos países africanos como efeito de acesso de sujeitos da comunidade que passam a ter um espaço de expressão de sua voz; e sua constituição como aposta de uma nova forma de produção e circulação de discursividades. Entrevistamos sujeitos na posição de coordenadores de cinco projetos de bibliotecas comunitárias de três regiões brasileiras (sul, nordeste, sudeste) e, com os recortes do material coletado, ordenamos o nosso corpus de análise que será interpretado à luz da teoria discursiva tal como proposta por Michel Pêcheux. Palavraschave: Discurso; sujeito; memória; bibliotecas comunitárias; acesso. Abstract: This work seeks to reflect on the theme community libraries in three areas of particular approach: its emergence as a sign of a break with official practices for deploying information units and distribution of books; its entry in Brazil and African countries as an effect of subject access in the community who can have a space for expression of voice; and its constitution as a new form of production and circulation of discourses. Data were collected in a interview with subjects in the position of project coordinators of five community libraries in three Brazilian regions (South, Northeast, Southeast). The analysis corpus were sorted and that interpreted in light of the discursive theory as proposed by Pêcheux. KeyWords: Discourse; subject; memory; community libraries; access. Introdução: o desejo de compreender... As bibliotecas comunitárias são um fenômeno que merecem destaque nos estudos informacionais brasileiros, visto que cada vez mais essas instituições são formadas em várias comunidades do país em locais que muitas vezes não há nenhuma biblioteca e acabam por atender sujeitos, que em alguns casos, nunca pisaram em uma biblioteca nem tiveram contato com a leitura. O presente artigo, pretende abordar essas instituições no país e analisar um corpus discursivo composto por recortes de entrevistas com sujeitos coordenadores/organizadores de algumas bibliotecas comunitárias brasileiras, analisando a forma como eles discursivizam efeitos de leitura e de inserção dessas instituições nessas comunidades. Selecionamos seis bibliotecas comunitárias de todo o país, quais sejam, Sociedade Amantes da Leitura, Biblioteca Barca dos Livros, a Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado, Projeto Leitura de Barraco, Biblioteca Comunitária Novo Horizonte e a Biblioteca BECEI de Paraisópolis. O que nos causou foi o desejo de compreender que posições sujeito estão em jogo quando falamos de leitura, acesso, biblioteca e livros e são os resultados disso que apresentamos aqui. Bibliotecas brasileiras: efeitos em construção Em nosso país, a realidade das bibliotecas é complexa desde o processo de Colonização europeia permanecendo difícil até os dias atuais. A implantação de bibliotecas foi marcada por uma forte prática de censura, restrições e políticas ineficientes muito distantes de facilitar o acesso a leitura e as próprias bibliotecas no país. O silêncio acabou por fazer parte da constituição das bibliotecas brasileiras da mesma forma que acontecia na Europa, postulandose como indispensável, marcandoa com sentidos de restrições e censura, que não permitiam uma circulação de dizeres por parte dos sujeitosleitores, inclusive nas escolares. A história das 0

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DataGramaZero ­ Revista de Informação ­ v.12 n.4 ago11 ARTIGO 03

A construção de bibliotecas comunitárias e o desejo de acessar: sentidos em movimentoConstructing community libraries and the desire of access: moving senses

por Gustavo Grandini Bastos e Lucília Maria Sousa Romão

Resumo: Nosso trabalho intenta refletir sobre o tema bibliotecas comunitárias, destacando especialmente trêseixos de abordagem: seu surgimento como indício de ruptura com as práticas oficiais de implantação de unidadesinformacionais e de distribuição de livros; sua inscrição no Brasil e nos países africanos como efeito de acesso desujeitos da comunidade que passam a ter um espaço de expressão de sua voz; e sua constituição como aposta deuma nova forma de produção e circulação de discursividades. Entrevistamos sujeitos na posição de coordenadoresde cinco projetos de bibliotecas comunitárias de três regiões brasileiras (sul, nordeste, sudeste) e, com os recortesdo material coletado, ordenamos o nosso corpus de análise que será interpretado à luz da teoria discursiva talcomo proposta por Michel Pêcheux.Palavras­chave: Discurso; sujeito; memória; bibliotecas comunitárias; acesso.

Abstract: This work seeks to reflect on the theme community libraries in three areas of particular approach: itsemergence as a sign of a break with official practices for deploying information units and distribution of books; itsentry in Brazil and African countries as an effect of subject access in the community who can have a space forexpression of voice; and its constitution as a new form of production and circulation of discourses. Data werecollected in a interview with subjects in the position of project coordinators of five community libraries in threeBrazilian regions (South, Northeast, Southeast). The analysis corpus were sorted and that interpreted in light of thediscursive theory as proposed by Pêcheux.KeyWords: Discourse; subject; memory; community libraries; access.

Introdução: o desejo de compreender...As bibliotecas comunitárias são um fenômeno que merecem destaque nos estudosinformacionais brasileiros, visto que cada vez mais essas instituições são formadas em váriascomunidades do país em locais que muitas vezes não há nenhuma biblioteca e acabam poratender sujeitos, que em alguns casos, nunca pisaram em uma biblioteca nem tiveram contatocom a leitura. O presente artigo, pretende abordar essas instituições no país e analisar umcorpus discursivo composto por recortes de entrevistas com sujeitoscoordenadores/organizadores de algumas bibliotecas comunitárias brasileiras, analisando aforma como eles discursivizam efeitos de leitura e de inserção dessas instituições nessascomunidades. Selecionamos seis bibliotecas comunitárias de todo o país, quais sejam,Sociedade Amantes da Leitura, Biblioteca Barca dos Livros, a Biblioteca Comunitária Mariadas Neves Prado, Projeto Leitura de Barraco, Biblioteca Comunitária Novo Horizonte e aBiblioteca BECEI de Paraisópolis. O que nos causou foi o desejo de compreender que posições­sujeito estão em jogo quando falamos de leitura, acesso, biblioteca e livros e são os resultadosdisso que apresentamos aqui.

Bibliotecas brasileiras: efeitos em construçãoEm nosso país, a realidade das bibliotecas é complexa desde o processo de Colonizaçãoeuropeia permanecendo difícil até os dias atuais. A implantação de bibliotecas foi marcada poruma forte prática de censura, restrições e políticas ineficientes muito distantes de facilitar oacesso a leitura e as próprias bibliotecas no país. O silêncio acabou por fazer parte daconstituição das bibliotecas brasileiras da mesma forma que acontecia na Europa, postulando­secomo indispensável, marcando­a com sentidos de restrições e censura, que não permitiam umacirculação de dizeres por parte dos sujeitos­leitores, inclusive nas escolares. A história das

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bibliotecas no país tem início com a abertura das bibliotecas monásticas, na Bahia e em outrascapitais onde as primeiras instituições religiosas instalaram­se. Por exemplo, em Salvador, noColégio da Bahia, temos, em 1598, a inauguração dessa biblioteca usada pelos religiosos e notrabalho de educação dos alunos do colégio, existiam:

"além dos jesuítas, outras ordens religiosas possuíam boasbibliotecas e mantinham escolas nos conventos, nos três primeirosséculos do período colonial: a dos Beneditinos, Franciscanos eCarmelitas, as quais exerceram um papel fundamental naalfabetização e na vida cultural do povo brasileiro, até o final doXVIII. Essas bibliotecas eram constituídas por preciosas coleções queabrangiam os mais diversos ramos do conhecimento. (Maroto, 2009,p. 44)."

A biblioteca desse período é marcada por uma realidade onde 80% da população nacional éconstituída por analfabetos (Válio, 1990; Maroto, 2009), em que a biblioteca é usada paracatequizar e educar a população, constituída por isso de obras “fundamentalmente litúrgicas outendiam a confirmar a interpretação defendida por esta instituição” (Silva, 2004, p. 4). O paíspossuía raízes profundas com a oralidade, que foi preterida e desqualificada frente ao escrito,pois a grande parte dos que tinham condições de acessá­lo era formada por portugueses(Orlandi, 1990). Dessa forma, a certidão de nascimento da biblioteca faz aliança com o discursode apagamento da oralidade e da cultura local (indígena), marcando apenas a voz do estrangeirocolonizador, como de autoridade, prestígio e poder, e como capaz de adentrar o nobre espaçodas bibliotecas. Com isso, “a biblioteca constituía um instrumento de luxo, muitas vezes semfunção”. (Silva, 2004, p. 5). Com isso, temos a tessitura histórica de sentidos sobre bibliotecacomo lugar que valoriza(va) o silêncio como forma essencial para a realização de qualqueratividade e como um espaço de luxo, onde poucos conseguiam adentrar seu espaço, em umarealidade não distinta da apresentada no Velho Continente (Silva, 2006).

Os jesuítas foram expulsos do país pelo governo do Marquês de Pombal, em 1759, onde nãopuderam levar os livros das instituições, assim as bibliotecas acabaram destruídas e as obrastiveram um fim trágico: destruídas pelo tempo, ação de pragas ou destruídas para servirem deembrulhos de uma série de mercadorias, desde peixes a outros produtos (Lima, 1974; Maroto,2009). A situação só mudou com a vinda da Família Real de Portugal, em 1808, onde abiblioteca passou a servir de instrumento de dominação política essencial, sendo importanteobter a obediência da população, isso se tornou prática comum em nossa história: utilizarinstituições culturais e educacionais para exercer a dominação (Silva, 2004). Além disso, o paísque residia à família real necessitava de mudanças profundas que garantissem o status de umpaís ‘civilizado’, assim houve a criação de bibliotecas, abertura de livrarias, permissão para aedição e publicação de jornais e a abertura da Real Biblioteca, posteriormente, BibliotecaNacional do Brasil (Neves, 2000).

Na sequência, tivemos a criação de uma série de programas de distribuição de livros, além dadominação política das instituições pelos interesses dos governos ditatoriais nacionais, isso emmeio a instituições marcadas por um discurso de proibição, com obras de pouco interesse paraos sujeitos­leitores, voltadas para a satisfação da vontade de um discurso autoritário edominador de governos religiosos e, posteriormente, militares que acabaram por afastar osbrasileiros da leitura, permitindo que o livro permanecesse como um objeto de luxo e onde ossujeitos ainda estão longe de ver a informação como uma necessidade, um fator diferencial em

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suas realidades (Lima, 2006). No Estado Novo, foi criado o Instituto Nacional do Livro (INL)como o órgão que assumiu a postura de “disseminador, produtor, coordenador das políticaspara as bibliotecas escolares e públicas” (Castro, 2003, p. 68), constituindo­se como um:

"órgão federal criado para implantar uma biblioteca em cadamunicípio brasileiro. Havia uma forte campanha visando a difusão daleitura como alavanca para o desenvolvimento pessoal e coletivo. [...]seus livros seriam instrumentos de elevação do nível cultural ealavancas do desenvolvimento. Para isso, o INL estabeleceudeterminados pacotes de livros e espalhou­os pelas cidadesbrasileiras, acreditando que essa ação criaria o gosto pela leitura,tornando as bibliotecas municipais irresistíveis. [...] Apesar das boasintenções, essas bibliotecas vindas de cima para baixo, das esferasfederais para o cotidiano das cidadezinhas, da mesma forma comochegaram, desapareceram. Chegaram como surpresa edesapareceram nos meandros da vida municipal "(Milanesi, 2002, p.46­47).

Essas políticas assistencialistas pouco contribuíram para a formação de leitores e também nãocriaram verdadeiras bibliotecas, já que muitas obras sumiram como fumaça no ar. Com aditadura militar, instaurou­se, um verdadeiro período de interdição e acomodação, igualando­seao período de governo do Estado Novo do presidente Vargas com a semelhança de os doislidarem de maneira mais ou menos intensa com a censura, aqui entendida como política dosilêncio (Orlandi, 1997). Nessa época, existiu o Programa Nacional do Livro Didático, quebuscava distribuir para os diversos tipos de bibliotecas, livros diversos, principalmente osdidáticos, mas, no fim, esse programa foi extinto devido a sua incapacidade de realizar suatarefa principal, de formar leitores servindo no final apenas para enriquecer as editoras. Umapesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas no ano de 2009 nos revela que dos 5565municípios brasileiros, cerca de 79% deles possuem pelo menos uma biblioteca pública, o quecorresponde a 4.413 municípios, enquanto outros 8% não tem nenhuma instituição, os outros13% correspondem a processos de implantação ou reimplantação delas nesses municípios(Fundação Getúlio Vargas, 2009).

Nessa realidade controversa e problemática é que temos a biblioteca pública brasileira, órgãoque teoricamente deveria fornecer condições de acesso das populações, principalmente as maispobres, pouco atende aos interesses das classes mais necessitadas (Lemos, 2005). Desde acriação das bibliotecas públicas, temos uma associação delas com a classe dominante; depois,ela passa por um período de abandono e defasagem por parte dessa classe, por possuíremcondições de aquisição dos materiais nos suportes informacionais que desejarem, além de teremacesso a bibliotecas especializadas ou próprias, após esse ‘abandono’ elas passam por umprocesso que persiste até os dias de hoje e que já foi dito, a escolarização de seu acervo eserviços.

Dessa maneira, as bibliotecas comunitárias têm se apresentado como novos espaços deinformação e leitura; tem se observado o desenvolvimento dessas instituições em locaisperiféricos em que existe uma ausência de possibilidades de acesso a bens culturais quedeveriam ser oferecidos pelo Estado (Madella, 2010). Essas instituições desejam apresentarem­se como espaços que representem suas comunidades, organizados de acordo com os interessesdela. As bibliotecas comunitárias diferem das bibliotecas públicas no Brasil por existir umprocesso de identificação com a comunidade, essas instituições são legitimadas e entendidascomo pertencentes a elas, fortalecendo ações de educação e cultura dessas comunidades oumesmo incentivando o inicio da criação das mesmas (Machado, 2005, 2008). A biblioteca passaa ser compreendida como o centro dessas comunidades (Prado, 2004). Articulações da

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sociedade civil brasileira diante da ausência de bibliotecas e a privação da informação, já queem geral apresenta­se disponível apenas a quem pode pagar, sustentam o nascimento debibliotecas comunitárias. Em nosso país, o surgimento delas acontece, na maioria das vezes, emespaços de comunidades carentes que sofrem com a ausência de serviços básicos e de cultura,contribuindo com a promoção de efeitos de inclusão social (Jesus, 2007).

A utilização do termo “biblioteca comunitária” na literatura cientifica brasileira apareceu pelaprimeira vez, como nos relata Almeida Junior (1997) e posteriormente reafirma Machado(2009), em um texto de autoria de Carminda Nogueira de Castro Ferreira, publicado em 1978,na Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação com o título “Biblioteca Pública éBiblioteca Escolar?”. Na verdade, esse trabalho apresenta uma discussão acerca das bibliotecashoje nomeadas híbridas que tratam da atuação conjunta de bibliotecas públicas e escolares nosEstados Unidos. A questão é que essas bibliotecas cada vez mais ocupam uma posição de maiorimportância no Brasil e demais países subdesenvolvidos promovendo ações interessantes quevem permitindo uma constante aproximação desses sujeitos com a informação e a leitura.

Pontos que caracterizam essas bibliotecas foram estabelecidos por Machado (2008), nosseguintes termos:

a) as bibliotecas comunitárias são criadas pela e não para acomunidade, resultando em uma ação cultural;b) realização do combate à exclusão informacional como forma deluta pela igualdade e justiça social;c) grande relação com os membros integrantes da comunidade;d) na grande maioria dos casos, essas instituições são encontradas emregiões periféricas;e) e praticamente inexistem vínculos com órgãos de nívelgovernamental.

Temos uma tipologia institucional que vem ganhando destaque na mídia impressa e eletrônica,já que vem atuando na perspectiva de permitir o contato ao livro, leitura e a biblioteca aosmembros de comunidades que antes não contavam com equipamentos culturais quepermitissem aos seus membros a realização de tais possibilidades. Com essas instituições, oacesso passa a ser possível; vale adiantar que, em nossas análises, foi possível observar que oefeito motivador para a criação dessas bibliotecas foi a ausência de instituições que atendessema comunidade.

Análise do Discurso: conceitos para um estudoA Análise do Discurso de matriz francesa surgiu em meados dos anos 60 e é marcada porfundamentar­se em três áreas do conhecimento: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise; deacordo com Orlandi (2005), a teoria surge como fruto de um contexto marcado por rupturas,assim “com o progresso da linguística, era possível não mais considerar o sentido apenascomo conteúdo. Isto permitia à análise do discurso não visar o que o texto quer dizer (posiçãotradicional da análise de conteúdo face a um texto), mas como um texto funciona”, definindo odiscurso como um dos pilares de seu projeto teórico. Ferreira (1998, p. 203) define o objetoteórico na análise do discurso da seguinte maneira: “Isto significa que ele é entendido, emprimeiro lugar, como um lugar de reflexão. Pêcheux define­o como ‘efeito de sentido entreinterlocutores’. Mais do que um resultado, o discurso vai definir um processo de significaçãono qual estão presentes a língua e a história, em usa materialidade, e o sujeito, devidamenteinterpelados pela ideologia”.

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Assim como posto por Romão (2007) a noção de discurso tem um distanciamento da noção defala e da estrutura clássica proposta pelo esquema de comunicação, que é constituída daseguinte maneira: emissor (que fala baseando­se em algum código) e receptor (que capta amensagem e acaba por decodificá­la). Por essas razões o discurso se coloca como sendo o: “objeto teórico da análise do discurso (objeto histórico­ideológico), que se produz socialmenteatravés de sua materialidade específica (a língua); prática social cuja regularidade só pode serapreendida a partir da análise dos processos de sua produção, não de seus produtos”(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010). Assim, não existe um sentido pré­existentee fixado (Orlandi, 1997), de modo que a noção de evidência é ilusória, pois durante a leitura, ossentidos escapam e, não raro, caminham para outras direções, antes não pensadas pelo sujeitoenunciador.

A teoria discursiva “visa à compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, comoele esta investido de significância para e por sujeitos. Essa compreensão por sua vez, implicaem explicitar como o texto organiza gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido.”(Orlandi, 2006, p. 26­27). Isso tudo nos remete ao jogo movediço e tenso entre três conceitosordenados por Pêcheux (1969), o primeiro chama­se formação social (FS) e diz respeito aoslugares sociais disponíveis na trama sócio­histórica, ou seja, as regiões de poder que estão emfluxo na conjuntura social. Tais lugares instalam as formações ideológicas (FIs), definindo asrepresentações e as imagens de cada um desses lugares sociais; esse processo é assegurado pelaideologia que tece a naturalidade de alguns sentidos e o banimento de outros. Assim, asformações discursivas (FDs) engendram o que pode e deve ser dito a partir do lugar que osujeito ocupa e do modo como ele capturado pela ideologia (Pêcheux , 1975).

Ao inscrever­se na linguagem, o sujeito assume­se em uma posição, sempre provisória dadapelo que lhe é possível dizer na posição em que está; assim, o sujeito não é controlável,tampouco pode ser categorizado a partir de parâmetros sociológicos ou psicológicos, é posiçãono discurso. A Análise do Discurso considera que o sujeito assume uma posição dentre outras,podendo movimentar­se, repetir e/ou romper os sentidos dominantes, movimentando­se emprocesso de errâncias, visto que ele funciona capturado pelo inconsciente e pela ideologia, nãosendo a fonte transparente de seu dizer. O sujeito é a posição social e ideológica que ocupa emum determinado momento da história e podendo vir a não ocupar a mesma posição em outromomento. O processo discursivo, que acaba por apresentar sentidos como claros para o sujeito,não tem uma escolha aleatória, mas é fruto da evidência ideológica daquilo que é aceito eimposto como natural pelo grupo dominante, que, por sua vez, está em constante tensão com ogrupo dominado, que deseja aquela posição de poder. Isso tem relação fundamental com aideologia, entendida não como um sistema que oculta um ponto de vista, mas como ponto derelação constitutiva entre sujeito e condições sócio­históricas, de modo que um dizer façasentido para o sujeito (Pêcheux , 1975).

Assim, são as evidências que permitem que o sujeito consiga olhar a realidade através desistemas de significação, permitindo que seu dizer tenha relação com o contexto sócio­históricono qual está inserido (Orlandi, 1997). Sobre a ideologia, podemos considerar também que ela“se produz justamente no ponto de encontro da materialidade da língua com a materialidade dahistória” (Orlandi, 1997, p. 20). Entendemos, nos dizeres, a injunção ideológica, isto é, omecanismo que “torna possível tanto a naturalização de alguns sentidos, pela força darepetição, quanto os seus deslocamentos, rupturas, através do jogo tenso das relaçõesideológicas de poder entre os sujeitos e, também, da história” (Ferrarezi, 2007, p. 18). Aevidência de um sentido dado como indiscutível e claro pela ideologia é o que permite aosujeito enunciar, produzindo retornos e deslocamentos, deslocando­se pela língua a partir derepetições e regularidades em enunciados produzidos hoje renegociam sentidos já­postos emfuncionamento em outros contextos.

Assim, consoante a teoria discursiva, temos que o sujeito é a todo tempo interpelado pela

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ideologia, entendida, aqui, como o processo que naturaliza sentidos para o sujeito, fazendoparecer­lhe que determinada interpretação seja óbvia, como se fosse uma escolha lógica, que sópudesse ser uma. Assim, podemos dizer que inscreve­se, para o sujeito, a ilusão de que aspalavras, as representações são fixas e que há uma relação sólida entre palavra e termo, como sehouvesse um espelho refletindo o termo frente à palavra, levando o sujeito a ignorar que ascoisas não são transparentes, que a imagem esperada pode refletir outras tantas, já que sentidospodem escapar do formulado, pois eles sempre estão sujeitos a revelarem outras movimentaçõesde sentido. Por isso, a análise do discurso sustenta que inexiste um sentido literal, pronto eacabado, já que temos, sim, possibilidades de margens nas quais há a predominância de umsentido frente aos demais, sentido este apresentado como institucionalizado perante tantosoutros (Orlandi, 1996, p. 28).

Não há, pois, razão para se considerar o discurso como mera transmissão de informação, masantes, devemos considerá­lo como efeito de sentidos (Pêcheux, 1969). Dessa maneira, o socialaparece em relação à linguagem, na sua forca contraditória: porque o social é constitutivo dalinguagem, esta se sedimenta (ilusão do sujeito), e porque é fato social ela muda (polissemia). O sujeito, ao enunciar, paga o preço de se submeter à ideologia já que ela é constitutiva dalinguagem, assumindo os sentidos que ela lhe permite enunciar e construindo um imagináriosobre a cena em que enuncia. Assim, não poderemos mobilizar o conceito de sujeito semchamar ao nosso debate a noção de ideologia. Definida por Pêcheux (1975) como o mecanismoprodutor de evidências, a ideologia “se produz justamente no ponto de encontro damaterialidade da língua com a materialidade da história” (Orlandi, 1997, p. 20). Esse assaltopela/da ideologia faz com que o sujeito tenha como certa e exata a posição discursiva que eleocupa, trabalhando com a (necessária) ilusão de que há uma equivalência entre seu pensamentoe a realidade, entre palavra e mundo, entre o seu lugar e a obviedade dos sentidos que produz.

Para estudar o nosso objeto, julgamos importante definir também que o discurso tido comodominante pode sempre vi­a­ser outro, visto que ele é atravessado pela heterogeneidade que oesburaca e faz furar o estabilizado. Por isso, trabalhar com o discurso sempre nos coloca diantede uma tensão, um choque entre discursos distintos que provoca a sustentação ou apagamentode um discurso perante o outro; nesse eixo de contradições é que o discurso dominante sesobressai, apagando, assim, o discurso dominado que vir a emergir em outras condições deprodução. Isso tem relação com nosso objeto, pois a biblioteca é tida como uma instituição deleitura oficial e os sentidos de biblioteca apresentam­se ideologicamente atravessados efeito deneutralidade e: "igualdade de acessos, inscrevendo os sentidos de que qualquer um podeaproximar­se dos livros em sua cidade e de que qualquer aluno pode pesquisar à vontade, tantoquanto desejar a sua fome de livros, desconsiderando que os poderes são distribuídos demaneira desigual na nossa sociedade e que apenas uma distribuição material (seja do que for)não supre a assimetria de poderes e de saberes socialmente constituídos." (Romão, 2007, p. 6).

E as bibliotecas denominadas comunitárias inscrevem deslocamentos e furos no discursodominante, tensionando o diferente e o mesmo, o já­dito e a sua atualização, a memória e asfissuras instaladas em sua espessura. Estamos, assim, em um lugar teórico que compreende alinguagem permanentemente atravessada por tensões entre o considerado legitimado e o tidocomo marginal, sempre sustentados por diversos outros discursos que já circularam em outrosmomentos, contextos sócio­históricos. Isso tem relação com o nosso objeto de estudo, acesso,recupera e reordena redes de filiações históricas de sentidos naturalizadas como evidentes everdadeiras pela ideologia. Marcamos que o discurso dominante circula amplamente, difundidoem regiões de poder como no discurso cientifico e midiático, sendo repetido por sujeitos emposições de destaque que enunciam e marcam aqueles discursos como verdades e buscam, deforma autoritária, impor uma verdade, como algo indiscutível.

A saturação do sentido dominante aponta para os dois mecanismos de constituição dalinguagem, quais sejam, paráfrase e polissemia. No primeiro, temos a repetição, muito

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recorrente, por exemplo, nos discursos científicos; e na segunda, a multiplicidade, maisrecorrente do discurso lúdico que está centrado nas movimentações de sentidos diferentes e odesejo de deslocamento no dizer, permitindo a erupção do “novo” (Orlandi, 1997). Com aparáfrase, temos a repetição que, voltando constantemente aos mesmos espaços de dizer,possibilitando o processo de evidência de sentidos; já com a polissemia, temos a possibilidadede dizer de outras formas, de maneira que os sentidos vêm a ser múltiplos. Esse jogo épermanente e atravessa os dizeres dos sujeitos o tempo todo, constituindo de modo heterogêneoas diferentes posições ocupadas por eles; isso do mesmo modo que dizer e calar tambémimbricam um movimento constante.

Análise Discursiva: análise dos efeitos de acessoNossa análise consiste na leitura e estudo de um corpus em que investigamos as motivações dacriação dessas bibliotecas, assim identificamos como ponto principal da construção edesenvolvimento dessas instituições a ausência de instituições desse tipo. Temos a marca deacesso como a principal para falar desse espaço. Iniciamos nos trabalho com três recortes:

A minha intenção era e continua sendo colocar ao lado dolivro uma população que jamais tinha a mínima ideia doque era uma biblioteca (Biblioteca Comunitária Mariadas Neves Prado)

O projeto objetiva facilitar o acesso ao livro e a leitura, eformar leitores. Para isso, tem­se uma biblioteca, em umlocal de fácil acesso para os moradores da região, quenão cobra para fazer empréstimos (Sociedade Amantes daLeitura: Biblioteca Barca dos Livros)

Antes do projeto a gente não tinha acesso a livros aquidentro, né. A não ser somente as noticias da cidade, entãoa partir do que os livro veio pro assentamento e começouas leitura de barraco, a gente começou a aprender mais.(Projeto Leitura de Barraco)

O que de início nos chama a atenção em nosso processo de análise é essa marca de aproximaçãodo leitor com a leitura e o livro, através do uso no discurso de palavras como ‘colocar’, ‘aolado’, ‘facilitar’ e ‘fácil acesso’ para grifar essa ideia de sentidos de aproximação entre sujeitosde uma região, a leitura e os livros, na busca de evidenciar tais regiões de sentido em umprocesso de naturalização, que é explicado pelo conceito de ideologia na análise do discurso(Pêcheux , 1975). Marcamos, ainda, que não é qualquer região que é descrita aqui, mas como jáobservado em nosso trabalho, são comunidades periféricas com realidades sócio culturais eeconômicas adversas e complexas, sendo um dos pontos de grande problemática a ausência demeios culturais e educacionais, quando existentes, de qualidade.

Nos recortes ainda é desvelado essa ausência das instituições nessas comunidades, através dasindicações ‘ao lado do livro uma população que jamais tinha a mínima ideia do que era umabiblioteca’ e ‘acesso para os moradores da região’ o que reforça as marcas discursivas jáapontadas nas análises e no texto que marcam a ausência/falta os locais que essas bibliotecascomunitárias se estruturam, além disso um dos afastamentos observado no nosso estudo eanálises é recorrente o apontamento do não uso de bibliotecas, devido a falta de locais próximosa essas comunidades, esse discurso é apresentado no recorte ‘fácil acesso para os moradores’,essas instituições atuam com grande destaque nessas regiões e com esses sujeitos. Temos, nesses recortes, uma produção discursiva que remete a esse desejo de fomentar a leiturano seio dessas comunidades em uma atuação que visa fomentar o interesse da leitura à partir dapossibilidade desse sujeito ter contato com o objeto livro (e os outros vários suportes de

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leitura), já que a ação de ler só ocorre com o contato com esse suporte e a efetiva decodificaçãode signos e formulação de sentidos acerca dos discursos ali apresentados, o que efetivamenteproporciona uma série de possibilidades a esse sujeito discursivo. A noção de leiturainterferindo na vida do sujeito será apresentada em recortes ainda analisados. Observamos nosrecortes os efeitos de aproximação do sujeito com o livro, uma noção de caminhar conjunto,onde essa aproximação se torna possível em que o leitor vai se modificando de forma continuacom uma relação de proximidade, num processo equacional interacional permanente entre oleitor e o livro, onde a leitura permite uma convivência continua no caminho desse sujeito:

(que as pessoas) possam gradualmente ter acesso à informações quelhes facultem tomar consciência dos seus direitos de cidadãos que lhesforam usurpados pela ação daninha dos nossos colonizadores.Somente assim esses excluídos (...) começarão a ter possibilidades defazerem corretamente a sua leitura do mundo, do país e de si próprios.(Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado)

é importante a divulgação de instrumentos de democratização dainformação para a formação de verdadeiros cidadãos, e as bibliotecacomunitárias ou mesmo as públicas municipais podem exercer essepapel. (Biblioteca Comunitária Maria das Neves Prado)

Promover o acesso à leitura e à cultura. Eu realmente não tinha noçãoda extensão e da profundidade desse compromisso que acabei porabraçar. Eu sabia que era importante, que é importante, proporcionaroportunidades para os marginalizados, mas não pensei que tivesseforças para realizar um projeto com tais proporções. (BibliotecaComunitária Novo Horizonte)

Analisando os recortes acima, observamos discursos referentes ao acesso à informaçãopermeados de sentidos que falam dessa questão relacionada ao ‘direito’, ‘democratização’,‘divulgação’, ‘possibilidade’ e ‘cidadãos’ sentidos que marcam representativamente essesignificante, onde o sujeito discursivo busca apresentar essa noção de ter acesso à informação,onde essa instituição serviria como polo de melhoria da vida informacional não desseshabitantes, como analisado nos recortes anteriores, mas dos cidadãos, aliás, essa marca‘cidadão’ é constante nos recortes analisados, observamos uma movimentação discursiva forteno sentido de apresentar as noções de ‘informação’ e ‘cidadania’ muito próximas, quase comonecessárias para uma mútua existência.

Tais recortes são relevantes, quando realizamos uma ponte com a questão da Sociedade daInformação e da Desinformação, como essa questão é observada na sociedade contemporânea,onde ter acesso e condições de usar a informação é fundamental para a sobrevivência, existindotambém a sua importância para a alteração do quadro social, onde sujeitos discursivos deixamde ocupar a posição de ‘excluídos’ e ‘marginalizados’ para ocupar a dos ‘cidadãos’ aqueles quepossuem acesso a informação e sabem utilizá­la de forma a garantir seus direitos essenciais.Destacamos que o uso contínuo de palavras como ‘excluídos’ e ‘marginalizados’ reforçam odiscurso de que essas bibliotecas no nosso país tem sua criação e direcionamento de açõespensados para a atuação com esses sujeitos, essas instituições trabalham com a necessidade de

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atuar na condição de fornecer condições para esses sujeitos. Marcamos essa noção de direitoenvolta em sentidos de importância e necessidade dentro dessas comunidades.

No primeiro recorte é possível observar uma Formação Discursiva (FD) que é condição dalinguagem já que o sujeito sempre se move em dizeres alheios, re­significando­os einscrevendo­se em lugares já ditos, promovendo manutenções ou deslocamentos nas formaçõesdiscursivas (Pêcheux , 1997). Assim, apresenta a biblioteca e a informação envoltas emsignificantes de esclarecimento, munidas de ferramentas capazes de reverter essa posição desujeito ‘excluído’ que permeia os leitores dessas instituições, permitindo que adentrem e façamuso das possibilidades da dita Sociedade da Informação, observamos essa marca de mudançamuito presente nessas inscrições, onde as bibliotecas comunitárias são envoltas em significantesde “instrumentos de democratização da informação” capazes de alterar a posição social queesses sujeitos se encontram, aqui emergem uma teia de sentidos que faz falar sentidos históricosde potencialidade aferidos a leitura e a informação, como pontos de importância crucial namobilidade social do sujeito. No terceiro recorte marcamos a presença dessa nova afirmação deum espaço que proporciona mudanças sociais para que o frequentaObservamos nos recortes acima outra região de sentidos que apresenta o efeito de denuncia dasituação de exclusão social de populações de regiões inteiras, afastadas da possibilidade de ler.Os recortes acima discursivizam sentidos de contestação e rebeldia diante dos direitos negadoshistoricamente a grande parcela da população e tornam os projetos de leitura desenvolvidos poressas bibliotecas implicados pela ação de mudar a realidade.

Acervo de 11 mil volumes, temos acesso a internet, elaboramoscurrículos para moradores da comunidade, consultamosdocumentação, imprimimos 2ª via de contas de telefone, água e luz etambém esclarecemos dúvidas de moradores. Podemos dizer que aBecei e hoje um mime Poupa­Tempo1 da comunidade. (BibliotecaBECEI de Paraisópolis)

A Biblioteca em que eu trabalho e um pouco diferente de outras queexistem por aí, pois a mesma se tornou um ponto de encontro, umlugar para esclarecimentos de dúvidas e também porque sótrabalhamos com materiais que realmente serão utilizados no espaço.(Biblioteca BECEI de Paraisópolis)

Os recortes acima inscrevem o efeito de prestação de serviços que a biblioteca assume nessascomunidades, muitas vezes funções que não teria responsabilidade, mas que por ser dacomunidade e entender isso como um serviço importante realiza sem problemas, coloca comouma obrigação a ser realizada. Nesses recortes existe um apagamento da leitura em nome doemergir de sentidos mais operacionais, referentes a trabalhos mais operacionais, observamos amarca linguística do ‘poupa tempo’ que nos remete a um prestador de serviços estatais.Observamos, na superfície da língua, especialmente na sequencia em que aparece“poupatempo”, o retorno de efeitos da memória discursiva e de filiação discursiva de um localque provem serviços de uso da comunidade auxiliando com o fornecimento de informaçõesnecessárias no dia a dia desses sujeitos discursivos, servindo como ponto de referência paraencontrar informações, obter documentação e conseguir uma série de pontos que o permitemocuparem essa posição de cidadão tão aclamada dentro dos discursos analisados. Assim,questões como obter documentos é uma marca que circula para ser caracterizado como sujeitocidadão, obtendo condições de lutar de forma completa, pois a marca cidadão não é mais de umsujeito excluído, mas de alguém ciente de seus direitos e deveres. Assim essa marca ‘poupatempo’ é envolta em sentidos de cidadania nos remetendo a uma série de arquivos discursivoscom sentidos de inclusão e cidadania:

Eles entram para procurar os livros que querem, assentam­se no meu

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sofá, leem e conversam, permanecendo aqui por horas, às vezes.(Biblioteca Comunitária Novo Horizonte)

Nunca havia pensado nisso, mas agora vejo­a como um "sacolão" .Todos, sem exceção, tem liberdade para escolher aquele produto(livro) que mais lhe agrada aos olhos, ao tato, à curiosidade, aointeresse; se gostou leva, se não gostou pode trocar e pegar outro, sóque de graça. (Biblioteca Comunitária Novo Horizonte)

Entendemos que marcações como ‘sofá’, ‘conversa’ e ‘querem’ instauram um efeito de sentidode prazer, de compromisso exclusivo com as possibilidades de entretenimento oferecidas pelaleitura, ofertados pela possibilidade de contato com os livros, sentidos que margeiampossibilidades de liberdade, que, aliás, é marcada no segundo fragmento analisado e quecompõem nosso corpus. Destacamos a materialidade da palavra ‘conversa’ nesse discurso, jáque retomamos a observação desse sentido muito distante dos que circundam noções comobiblioteca e leitura, em nosso trabalho, apresentamos essa questão do silêncio materializadocomo um sentido filiado a essas duas inscrições, difundidos como constantes nos discursos daárea da Ciência da Informação, marcamos aqui uma outra formação discursiva nesses recortes,onde a conversa, o falar passa a ocupar uma posição de aceitação, de importância nacaracterização dessa leitura prazerosa, atrativa e que ocupa uma posição de legitimidade dentrodo espaço da biblioteca, não mais presa a placas exigindo um silêncio medieval e sepulcral,onde conversar se encontra num espaço de ilegalidade.

Essa marca de liberdade e (des)compromisso é um sentido observado quando avistamos marcasdo primeiro recorte, tais como ‘sofá’ e ‘conversa’, marcas distantes de sentidos que muitasvezes permeiam as bibliotecas, tais como ‘silêncio’ assim como um sentido de liberdade deescolhas, possibilidades, onde o sujeito permanece por horas da maneira que desejar nesseespaço. No recorte seguinte, observamos o efeito de liberdade e livre escolha, reafirmado pelapossibilidade de se escolher o que desejar, sem proibições, restrições; no segundo recorteobservamos a marca ‘produto (livro)’ fazendo circular sentidos mercadológicos, de livreescolha, onde o leitor é posto como um cliente que o que desejar é possível ser escolhido, umanoção de liberdade, a marca ‘sacolão’ também nos remete a uma ideia mercadológica de livreescolha do produto que lhe interessar, essa marca de liberdade é recorrente nesse discurso.

No corpus analisado, destacamos duas marcas importantes referente aos recortes analisados:temos o aparecimento de duas regiões de filiação discursiva distintas, representadas através dasmarcas linguísticas: ‘morador’ e ‘cidadão’, na primeira temos uma região de sentido quediscursiviza pessoas que vivem em um mesmo local, numa dada região, diferentemente dasegunda marca usada para apresentar um sujeito discursivo consciente de seus direitos com umainscrição social capaz de lutar por seus direitos, que já integra a teia de benefícios que acidadania permite, inclusive com o acesso a meios culturais, como a biblioteca e a leitura.

A discursivização desses projetos como pontos capazes de colocar os cidadãos em contato coma leitura é uma constante nos discursos analisados, esse sentido de suprir uma ausência, quecomo discutido anteriormente vem negando o direito à informação que o sujeito possui,consequentemente o afastando da possibilidade do contato com o livro e a leitura, observamos amovimentação dessa região de sentidos quando observamos a marcação de frases, tais como“colocar ao lado do livro uma população que jamais tinha a mínima ideia do que era umabiblioteca” e “facilitar o acesso ao livro e a leitura, e formar leitores” que nos apresentamessas bibliotecas comunitárias como reais espaços de mediação cultural para essascomunidades.

Considerações finais: uma aposta na auroraAo longo desse trabalho, buscamos refletir sobre como a emergência de bibliotecas

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comunitárias faz falar posições discursivas silenciadas em instituições oficiais de fomento àleitura, propiciando que outros sentidos sejam colocados em discurso. Para compreendê­los,consideramos importante escutar os modos de constituição sócio­histórica dos sentidos debibliotecas no nosso país, sempre ligados ao poder dominante e a práticas distribucionistas delivros sem, contudo, levar em conta os sujeitos­leitores. Observamos que, frente a isso, outros efeitos aparecem, quais sejam, a necessidade de unidadesde leitura na comunidade, o desejo de estar perto dos livros, o imperativo de poucas cobranças ea força identitária do comunitário. E esses efeitos têm produzido movimento, implicado ossujeitos das bibliotecas comunitárias a colocar em discurso o sentido do acesso que, em umaépoca afetada pelo digital, reclama a inclusão daqueles sujeitos aos quais é negada aaproximação com o mundo da leitura em seus diversos suportes. Que tais bibliotecas teçam, aomodo dos gritos de galos de João Cabral de Melo Netto, o anúncio de uma nova aurora coloridapelas tintas do novo.

Nota:

O Poupatempo é um serviço criado pelo Governo do Estado de São Paulo no ano de 1996, visandofacilitar o acesso do cidadão às informações e serviços públicos, implantou em 1996 o ProgramaPoupatempo, que reúne, em um único local, um amplo leque de órgãos e empresas prestadoras de serviçosde natureza pública. Existe em várias cidades do estado de São Paulo, ofertando mais de 400 tiposdiferentes de serviços (Poupatempo, 2010)

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Sobre o autor / About the Author:

Gustavo Grandini Bastos [email protected]

Mestrando do Programa de Pós­Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Centro deEducação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (CECH/UFSCar).

Lucília Maria Sousa Romão

[email protected]

Livre­docente em Ciência da Informação, Professora Dra. do curso de Graduação em Ciênciasda Informação e da Documentação e do Programa de Pós­Graduação em Psicologia daFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo(FFCLRP/USP). Professora colaboradora do Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade daUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar).