Bakhtin Maingueneau

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    Filologia e lingstica portuguesa, So Paulo, n. 9, p. 229-251, 2007[2008].

    DILOGOS ENTRE MAINGUENEAU E O CRCULO DE BAKHTIN

    Sheila Vieira de Camargo Grillo*Simone Ribeiro de vila Veloso *

    RESUMO: Investigao das relaes entre as obras do Crculo de Bakhtin e de Dominique Maingueneau, no tocante aosseguintes aspectos: a presena da teoria de Saussure nas duas obras, a delimitao do objeto de estudo da Anlise do Discurso

    e da Metalingstica, a influncia do dialogismo sobre a noo de interdiscurso e, por fim, a noo de gneros do discurso. A

    leitura e a comparao dos textos evidenciaram pontos de convergncia, bem como incompatibilidades terico-

    epistemolgicas decorrentes de distintos contextos acadmicos das duas obras. Os aspectos pesquisados apontam para a

    necessidade de os estudiosos do discurso estabelecerem uma articulao cuidadosa entre as duas teorias, de modo a preservar

    as especificidades de cada uma, alm de revelarem a maneira como conceitos de um contexto terico e acadmico so

    incorporados e relidos em outro.

    PALAVRAS-CHAVE:anlise do discurso, metalingstica, dialogismo, interdiscurso, gneros do discurso.

    0. INTRODUO

    A obra de Bakhtin e seu crculo chegou ao contexto acadmico brasileiro mediada, emboa parte, por teorias francesas da literatura, do discurso e da enunciao. Esse dado pode seratestado pelo fato de que livros como Marxismo e filosofia da linguagem e Esttica dacriao verbal tenham suas primeiras tradues para o portugus feitas a partir das versesfrancesas, as quais condicionaram a recepo da obra do crculo a partir de, entre outros,distines francesas de enunciado/enunciao ou do apagamento da noo de gneros. Essesdados associados ao prestgio das teorias francesas do discurso no contexto brasileiro

    explicam o apagamento das diferenas e a homogeneizao terica da obra do crculo emproveito de um campo indiferenciado, chamado de anlise do discurso.

    As restries a esse modo de recepo tm sido assumidas, recentemente, por diversosestudiosos do discurso brasileiros e franceses. Gregolim (2006) posiciona-se contra ahomogeneizao de concepes tericas diversas, ao apontar o apagamento da singularidadedas posies de Pcheux, Foucault e Bakhtin. Brait (2006), ao identificar as semelhanasentre noes formuladas por Kristeva, Authier-Revuz e Bakhtin, constata que, embora hajaproximidade, conceitos como alteridade/dialogismo/ polifonia eheterogeneidade/interdiscursividade/intertextualidade no so necessariamenteintercambiveis, pois no se fundamentam nos mesmos princpios. Por fim, Sriot (2005)realiza, atualmente, uma re-traduo para o francs de Marxismo e filosofia da linguagem,pois a anterior produziu anacronismos como tratar o locutor de Bakhtin/Volochinov comose ele fosse um sujeito da enunciao na perspectiva de Benveniste.

    Na continuidade dessas investigaes, pretendemos verificar as relaes que a obra deDominique Maingueneau estabelece com a teoria de crculo, no tocante aos princpiosepistemolgicos que sustentam a Metalingstica proposta por Bakhtin e a Anlise do

    Discurso de Maingueneau, o que permitir uma avaliao de alguns dos fundamentos dasduas teorias, e s acepes que a noo de gneros do discurso adquire nos dois autores,noo para a qual a obra do crculo tem servido como uma espcie de doxapara as teoriasfrancesas do discurso. Pretendemos, com isso, evidenciar as possveis influncias do crculo

    *Professora da rea de Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade de So Paulo,(CNPq 401573/2004-4).*Mestre em Filologia e Lngua Portuguesa pelo Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Universidade de So Paulo.

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    sobre a obra do terico francs, bem como as especificidades de cada um, no intuito decontribuir para uma recepo mais adequada de ambos os autores no contexto brasileiro. Aescolha do terico francs justifica-se pela sua expressiva influncia sobre os trabalhos dodiscurso no Brasil, comprovada pelo grande nmero de obras traduzidas para o portugus epela sua presena constante em congressos e colquios em diversas partes do territrio

    brasileiro.Para tanto, fizemos uma seleo das obras do terico francs a partir dos seguintescritrios: primeiramente, a sua distribuio diacrnica, do incio dos anos oitenta at os diasatuais, com vistas a verificar a evoluo das noes; em segundo lugar, o privilgio aostrabalhos de pesquisa do autor, com nfase em artigos publicados em peridicos franceses ebrasileiros, lugar privilegiado de formulao de conceitos prprios, contrariamente aosmanuais de introduo anlise do discurso, que visam apresentar o estado de conhecimentosdo campo; e, finalmente, a obras sobre o discurso literrio, domnio de interesse e deformulao de conceitos tanto da obra do crculo de Bakhtin quanto de DominiqueMaingueneau.

    1.0 ANLISE DO DISCURSO E METALINGSTICAPor meio da leitura e anlise das obras em questo, circunscrevemos dois princpios

    fundadores, pertinentes para estabelecer o cotejamento entre a Anlise do discurso praticadapor Maingueneau e a Metalingstica proposta por Bakhtin1: o dilogo com a lingsticasaussureana e a delimitao do objeto de estudo.

    1.1 Saussure: o outroMaingueneau e o crculo de Bakhtin empreenderam um dilogo explcito com as obras

    ento disponveis do terico suo2, o qual se constitui em elemento delimitador dasabordagens de ambos. Ao dialogar com a lingstica saussureana durante a dcada de oitenta,identificamos que Maingueneau, ao definir a noo de formao discursiva, influenciadopela noo de sistema, ao mesmo tempo, que rejeita, em trabalho posterior, a possibilidade dalingstica do discurso estabelecer uma relao de complementaridade com a lingstica dalngua:

    Depuis quelles ont adopt des mthodes structurales elles ne cessentdtre hantes par le spectre de la rupture, se demandant commentpenser la discontinuit. De fait, une fois circonscrites des aires destabilit, des synchronies successives, se pose invitablement laquestion des modalits de la transition de lune lautre. (1983, p. 9)

    Les noncs appartenant chacune de ces rgions doivent pouvoir trecaractris par un ensemble de traits spcifiques, rapports au mmesystme de catgories et de rgles, cest--dire relever de la mmeformation discursive. Au lieu de voir dans le discours une simplecollection dnoncs on envisage donc le systme qui assure leurunit. (1983, p. 15)

    1Embora o termo metalingstica tenha sido proposto nas dcadas de 1950 e 1960, em textos exclusivamente deBakhtin, acreditamos que as noes envolvidas nesse projeto bem como o campo de fenmenos a estudarconstituem uma sntese e um aprofundamento de trabalhos elaborados pelos membros do crculo, desde a dcadade 20.2

    Faz-se necessrio ressaltar que, em razo de recentes descobertas de manuscritos, a leitura da obra deFerdinand de Saussure est sofrendo transformaes. Neste momento, Simon Bouquet realiza uma edio doCurso de lingstica geral, a partir de manuscritos de Saussure.

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    Si le jeu des contraintes qui dfinissent la langue, celle de Saussureet des linguistes, suppose que tout ne peut se dire, le discours unautre niveau suppose donc que lintrieur dun idiome particulier,pour une socit, un emplacement, un moment definis seule une part

    du dicible est accessible, que ce dicible forme systme et delimite uneidentit. (1984, p. 5-6)

    Pour les adeptes de la complmentarit il sagit dun fantasme descne primitive dans lequel les deux approches du champ viendraientse complter harmonieusement (...) Aussi ne manquent-ils pasdannoncer la venue de quelque hyperlinguistique dans laquelle lelangage se reconcilierait avec lui-mme: le sujet, la socit, lhistoirey rintgreraient la structure, moins que ce ne soit linverse, lastructure devenant subjective, sociale ou historique. (1988, p. 30-31)

    Nos trs primeiros excertos, observamos, primeiramente, que a colocao do problemada polmica3se inscreve no universo intelectual do estruturalismo francs, no sentido de quea justificativa e a motivao do estudo da relao polmica se engaja na identificao domodo como uma estrutura discursiva suplanta e sucede outra. Nos mbitos do estruturalismo,a relao entre formaes discursivas ne pouvait tre pense que sur le mode spontan de la

    juxtaposition dunits extrieurs les unes aux autres. (1984, p. 30). Em segundo lugar, nosegundo e terceiro fragmentos, percebemos que a definio de discurso e de formaodiscursiva, tomada como um sistema de categorias e regras semnticas assegurando a suaunidade, tributria da noo de sistema lingstico de Saussure. A prpria categorialingstica escolhida para cotejar os discursos devoto e jansenista - os semas entendidos comounidades elementares que tiram sua existncia unicamente da relao diferencial dentro de umsistema lexical escolhido - sada do domnio da semntica lingstica ou estruturalista.Nesse sentido, explicita-se como a defesa da autonomia da linguagem feita por Maingueneau(1990) revela a influncia da lingstica saussureana da poca sobre a Anlise do Discursofrancesa4. O quarto fragmento mostra o ceticismo do terico francs no tocante a umapossvel relao complementar entre a lingstica da lngua e a lingstica do discurso.

    A obra do crculo estabelece relaes diferenciadas s de Maingueneau no queconcerne teoria de Saussure, divulgada por meio do Curso de lingstica geral. Aexposio do projeto de uma metalingstica feita na oposio complementar com alingstica da lngua, embora haja poucos indcios de como isso se daria:

    Alm do mais, o estudo do enunciado como unidade real dacomunicao discursivapermitir compreender de modo mais corretotambm a natureza das unidades da lngua (enquanto sistema) aspalavras e oraes. (1952-1953/2003, p. 269).

    temos em vista o discurso ou seja, a lngua em sua integridadeconcreta e viva e no a lngua como objeto especfico da lingstica,obtido por meio de uma abstrao absolutamente legtima e necessria

    3Trata-se, aqui, da obra que investiga o modo de funcionamento da polmica, por meio da anlise das relaesentre o discurso humanista devoto e o discurso jansenista no sculo XVII, na Frana.4

    Mais tarde, na segunda metade da dcada de oitenta, as categorias descritivas de Maingueneau se desenvolvero a partir deteorias da enunciao (a noo de cenografia enunciativa, por exemplo) ou da retrica (a noo de ethos discursivo).

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    de alguns aspectos da vida concreta do discurso. (...) As pesquisasmetalingsticas, evidentemente, no podem ignorar a lingstica edevem aplicar os seus resultados. A lingstica e a metalingsticaestudam um mesmo fenmeno concreto, muito complexo emultifactico o discurso, mas estudam sob diferentes aspectos e

    diferentes ngulos de viso. Devem completar-se mutuamente e nofundir-se. Na prtica, os limites entre elas so violados com muitafreqncia. (1963/1997, p. 181)

    Primeiramente, Bakhtin demonstra, ao mesmo tempo, uma conscincia dametodologia de obteno de dados da lingstica e um respeito por seu projeto de pesquisa. Odomnio de exerccio da lingstica a lngua desconectada das enunciaes singulares eparticulares. Apesar dessa proximidade, Bakhtin nos adverte que os dois domnios no devemse confundir. Enfim, a metalingstica se interessa pelos fenmenos de dilogo que, mesmoque pertencentes ao domnio da lngua, no se restringem a ela, pois so de natureza extra-lingstica.

    Apesar desse dilogo comum com a lingstica saussureana, o contexto obra doCrculo de Bakhtin se insere, no propor de Brait, em outros arredores tericos ao da obra deMaingueneau, ocasionando o desenvolvimento de noes como polifonia, tema, formacomposicional, estilo, discurso relatado, gnero, dilogo que fogem s categorias lingsticasdesenvolvidas pela lingstica saussureana ou pela gramtica tradicional. Em suma, as noesda obra do Crculo no decorrem de categorias gramaticais, antes iluminam fenmenos dalinguagem que fogem ao escopo de trabalho da lingstica do sistema.

    1.2 Anlise do discurso e metalingstica: seus objetos de estudoNosso segundo ponto de observao do contato entre as obras de Maingueneau e do

    Crculo a circunscrio dos objetos de estudo da Anlise do Discurso e da Metalingstica.Nessa questo, a noo de interdiscursividade nodal, na medida em que nos permiteobservar a distncia na aparente proximidade. Nos textos do terico francs da dcada deoitenta, encontramos um projeto de pesquisa sobre o modo de constituio e de relao entrediscursos ou formaes discursivas, apreendidas por meio da construo de regras semnticasque delimitam regies do dizvel em um determinado corpus de textos: Distinction entredeux niveaux: dune part la surface discursive, les textes concrets appartenant lespacediscursif, de lautre un systme de rgles et de catgories, un modle construit pour rendrecompte de la surface. (1983, p. 25).

    A esse modo de apreenso e construo das regras semnticas definidoras do dizvelde uma formao discursiva, Maingueneau coloca no centro de sua proposta a relao entre

    dois discursos, trazendo a noo de interdiscursividade para o ncleo de sua abordagem. Aoabordar o modo de funcionamento da polmica entre o discurso jansenista e humanistadevoto, Maingueneau lana a tese do primado do interdiscurso sobre o discurso, a partir dahiptese de que um discurso sucessor, como o caso do jansenista, explora sistematicamentea falta que o discurso anterior, humanista devoto, instituiu ao se formar. Aqui o tericofrancs menciona que o crculo de Bakhtin o precursor da idia de que a relao com o outro o fundamento da interdiscursividade: Si en un sens notre dmarche sinscrit dans la mmeperspective que celle de Bakhtine, celle dune htrognit constitutive, nous opreronsnamoins dans un cadre restreint, assignant cette orientation gnrale un cadremthodologique et un domaine de validit beaucoup plus prcis. (1984, p. 27). O quadrometodolgico formado pelas noes universo discursivo, campo discursivo e espao

    discursivo, ou seja, a teoria dialgica transferida para o modo de constituio e de relaoentre discursos ou formaes discursivas, no sentido de que Maingueneau recusa a idia de

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    justaposio de regies discursivas insulares, em proveito do dilogo interno como formade delimitao dos discursos. Essa perspectiva permite que Maingueneau avance, em relaoa Foucault, a questo da descontinuidade entre os discursos.

    Em relao obra do crculo, o objeto de estudo da metalingstica so as relaesdialgicas: enunciados confrontados entre si, entram em um tipo especial de relaes

    semnticas que chamamos de dialgicas (1959-1961/2003, 324). O sentido aparece semprecomo produzido no dilogo, ou, em outros termos, a relao dialgica uma relaosemntica. Bakhtin postula que ele o objeto de interesse de todas as cincias humanasestamos interessados na especificidade do pensamento das cincias humanas, voltado parapensamentos, sentidos e significados dos outros, etc., realizados e dados ao pesquisadorapenas sob a forma de texto. (1959-1961/2003, p. 308). Mais frente, Bakhtin associa oestudo do homem sua expresso semitica e interpretao ou compreenso do seusignificado. Na seqncia, aparece a metalingstica enquanto estudo das relaes dialgicasentre os enunciados e no seu interior:

    Estamos interessados primordialmente nas formas concretas dostextos e nas condies concretas da vida dos textos, na sua inter-relao e interao.As relaes dialgicas entre os enunciados, que atravessam por dentrotambm enunciados isolados, pertencem metalingstica1. Diferemradicalmente de todas as eventuais relaes lingsticas dos elementostanto no sistema da lngua quanto em um enunciado isolado. (1959-1961/2003, p. 319-320)

    Enquanto a obra de Maingueneau visa atravessar a superfcie textual para chegar aoplano do discurso ou das formaes discursivas, que se constitui pela alteridade interna, ou

    seja, o outro j est contido no mesmo, a obra do Crculo se prope a estudar o dilogo entreenunciados e as relaes semnticas entre eles (de reflexo, de desacordo, de filiao etc).Essas relaes so, em ltima instncia, entre indivduos integrais. Por trs dos textos-enunciados esto sujeitos concretos, integrais, responsivos, inconclusos e inacabados, os quaiss podem ser compreendidos por meio do dilogo e no explicados como na relao pessoa eobjeto. As relaes dialgicas so, portanto, relaes pessoais, isto , vnculos semnticospersonificados: O texto s tem vida contatando com outro texto (contexto)(...) Por trsdesse contato est o contato entre indivduos e no entre coisas (no limite) (1970-1971/2003,p. 401). O discurso em Bakhtin , portanto, personificado.

    A proposta da metalingstica no texto de 1963 acompanhada de um conjunto defenmenos a estudar, entre os quais se inclui a polmica. A orientao em direo ao referente

    e em direo palavra alheia d a Bakhtin os meios de classificar os tipos de discurso:primeiro tipo, a palavra orientada exclusivamente para seu referente; segundo, a palavraobjetificada ou a palavra de uma pessoa representada, isto , as diversas variaes do discursocitado; enfim, a palavra a duas vozes ou bivocal a orientaes diversas, entre as quaisencontramos trs tipos: o discurso bivocal de orientao nica (estilizao, narrao donarrador, discurso no objetificado do heri-agente das idias do autor, Icherzhlung); odiscurso bivocal de orientao vria (pardia, qualquer transmisso da palavra do outro comvariao no acento, Icherzhlung parodstico); tipo ativo ou discurso refletido do outro, noqual a palavra do outro influencia ativamente o discurso do autor (polmica interna velada,autobiografia e confisso polemicamente refletidas, qualquer discurso que visa ao discurso dooutro, rplica do dilogo, dilogo velado). O ltimo tipo ou a palavra bivocal, na fonte danoo de polifonia em Dostoievski, o objeto privilegiado do estudo de Bakhtin.

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    No decorrer da dcada de noventa, a noo de formao discursiva ser abandonadapor boa parte dos analistas do discurso franceses, que se voltaro para outros conceitos. Ascausas desse abandono vo desde a conjuntura poltica e acadmica francesa, marcada pelorefluxo do marxismo e do estruturalismo, quanto pela entrada em cena de novas perspectivasdo texto e do discurso. A leitura da obra de Maingueneau revelar, em consonncia com esse

    contexto histrico, a substituio da noo de formao discursiva pela de gnero do discurso:

    Pour notre part nous nous tablirons au lieu o viennent sarticuler unfonctionnement discursif et son inscription historique, nouschercherons penser les conditions dune nonciabilithistoriquement cirsconscriptible. (1984, p. 6-7)

    lanalyse du discours, en revanche, na pour objet ni lorganisationtextuelle considre em elle-mme, ni la situation de communication,mais lintrication dun mode dnonciation et dun lieu socialdtermines. Le discours y est apprhend comme activit rapporte

    un genre, comme institution discursive; son intrt est de ne paspenser les lieux indpendamment des nonciations quils rendentpossibles et qui les rendent possibles. (1995a, p. 7-8)

    (...) quando Foucault recusa noes como viso de mundo, autor,documento, influncia, contexto, etc, ele libera espao para umprocedimento de anlise do discurso centrado sobre o que chamoinstituio discursiva, enlaamento recproco de um uso da lngua ede um lugar nesses dispositivos de enunciao que so os gneros dodiscurso. Apoiando-se sobre A Arqueologia, sobre as teorias daenunciao lingsticas e a pragmtica, pode-se repensar todo umconjunto de prticas e de noes imemoriais que ainda dominam nossaabordagem do texto. (1998/2006, p. 32)

    A comparao do primeiro excerto com os dois seguintes patenteia a passagem de umaanlise do discurso centrada no discurso e no seu modo de inscrio histrica, para outrafocada no texto e nos seus lugares sociais de produo/recepo. Essa mudana acompanhada, por um lado, pelo avano da ascendncia da sociologia de Pierre Bourdieu,sobretudo da noo de campo, sobre a obra de Maingueneau, e, por outro, pela mudana naacepo de interdiscursividade que, a princpio, era concebida no quadro das relaesconstitutivas entre formaes discursivas e depois reconfigurada como a relao entre textos

    e gneros em uma dada conjuntura: na anlise do discurso, costuma-se distinguir intertextode interdiscurso. O intertexto o conjunto de textos com os quais um texto particular entraem relao; o interdiscurso o conjunto de gneros e tipos de discurso que interagem numadada conjuntura. No nvel em que estamos aqui, no vamos fazer tal distino. (2006[2005],p. 163, nota de rodap). As possveis influncias da obra do crculo de Bakhtin sobre a noode gnero sero abordadas na seqncia.

    2.0A NOO DE GNERO DISCURSIVO

    Dentro do quadro terico da Anlise do Discurso francesa, em especial deMaingueneau, a noo de gnero discursivo ganha um espao relevante em estudos

    relacionados problemtica da enunciao. Desta forma, tomaremos esta noo como focopara delimitar especificidades tericas pertinentes ao Crculo de Bakhtin e aquelas presentes

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    em Maingueneau. Nosso objetivo, primeiramente, ser identificar em que medida o papel dointerlocutor/ouvinte aparece como elemento constitutivo do gnero, de acordo comperspectivas tericas prprias de cada um deles. O segundo ponto a ser observado o paraleloentre gneros primrios, secundrios de um lado e institudos e conversacionais de outro. Aterceira e ltima questo diz respeito ao estilo: podemos dizer que o Crculo tenha

    influenciado Maingueneau neste aspecto terico? Mais do que certezas, o que queremos suscitar um dilogo e levantar hipteses.

    2.1 O papel do interlocutor/ouvinte na constituio do gneroDentro das peculiaridades de enunciados relativamente estveis, denominados gneros

    discursivos por Bakhtin (2003, p.262), encontra-se a figura do interlocutor/ouvinte comoelemento-chave de sua constituio, uma vez que o EU construiria seu discurso tendo emvista o carter de ativa compreenso responsiva do mesmo. Ainda de acordo com essaconcepo, tal interlocutor pode se configurar na presena de uma coletividade diferenciadade especialistas de algum campo, um pblico mais ou menos diferenciado, adversrios ou serum outro totalmente indefinido (2003, p.301). O que possibilitaria o endereamentoda fala de

    um EU para um TU seria ofundo aperceptvel da percepo do discurso( deste EU) sobre odestinatrio: teria este conhecimentos necessrios acerca de determinado campo para queconsiga assimilar seu discurso? Segundo Bakhtin, ser esta considerao que determinar aescolha do gnero e de seus procedimentos estilsticos, composicionais e temticos.

    Em relao ao quadro terico da Anlise do Discurso de Maingueneau, qual aimportncia deste interlocutor/ouvinte na constituio do gnero? Observamos,primeiramente, que este autor no ignora as consideraes bakhtinianas acerca dessa noo.Ao contrrio, o cita explicitamente, observando que a comunicao verbal supe talexistncia. Faz uso da seguinte citao de Bakhtin:

    Ns aprendemos a moldar nosso discurso em forma de gneros e,quando ouvimos o discurso alheio, j adivinhamos o seu gnero pelasprimeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto , umaextenso aproximada do conjunto do discurso), uma determinadaconstruo [estrutura] composicional, prevemos o fim. (...) (Bakhtin,2006, p. 285)

    preciso destacar que, em Maingueneau, o papel do interlocutor/ouvinte, naconstituio do gnero, recebe uma dimenso estatutria, ou seja, a fala em determinadognero, no partiria de qualquer um, mas de um indivduo detentor de um dado estatuto aoutro ( Maingueneau, 2005, p.235). A categoria do gnero do discurso seria definida por

    critrios situacionais. O que vemos , aparentemente, uma incorporao do princpiobakhtiniano de endereamento da falade um EU para um TU: o Crculo vislumbra a presenade um TU capaz de orientar o discurso, enquanto Maingueneau analisa este TU dentro de umquadro metafrico que prev relaes de contrato, teatro e jogo. A primeira fundamentaria oaspecto cooperativo, isto , o interlocutor deve pressupor caractersticas de seu interlocutor-modelo, antes de construir seu discurso por meio de determinado gnero. A segunda identifica

    papisque os parceiros devem assumir em determinada situao de comunicao: um policialintervm como agente da ordem pblica e no como pai de famlia (Maingueneau, 2002, p.70). A terceira faz cruzar as duas metforas anteriores, ao enfatizar regras que devem sercomuns aos interlocutores que atuam no referido gnero.

    preciso salientar que no aspecto relacionado possvel incorporao apontada

    acima, no h citaes explcitas de Maingueneau ao Crculo, porm concepes tericasconvergentes que apontam para a mesma, uma vez que pressupem no a presena de um

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    ouvinte passivo, mas ativoem sua compreenso responsiva. O que parece ser especfico emMaingueneau o estatuto social atribudo aos parceiros da comunicao, definido por regrascoercitivas que compem o gnero discursivo em determinada situao de comunicao.Outra especificidade terica assumida por este autor seria a legitimidade do discurso, tendoem vista lugar e momentos legtimos adequados a determinado gnero discursivo e que

    corroboram tal estatuto.O Crculo apresenta o tema como possuidor de estabilidade relativa no gnero, bemcomo a presena do interlocutor como elemento capaz de direcionar tal estabilidade. Noenunciado, realizao concreta do gnero, adquiriria um carter irrepetvel, pois caracterizadocomo um ato scio-historicamente definido (Bakhtin; Medvedev, 1991/1928). ParaMaingueneau, os gneros so dispositivos de comunicao que s podem aparecer quandocertas condies scio-histricas esto presentes(Maingueneau, 2002, p. 61). Apresentam-secomo pertencentes a tipos de discurso associados a setores de atividade social. Acategorizao dos gneros apresenta-se vinculada ao usoque se faz dos mesmos. Neste caso,o interlocutor no parece se configurar elemento de destaque na proposio do que o autordenomina tipo de contedo (2002, p. 59), que seria um dos critrios para denominao dos

    gneros: romance sentimental remete a um tipo de contedo (sentimental), por exemplo.Portanto, para Maingueneau, o prprio gnero poderia pressupor certa recorrncia temtica, aconfirmar-se (ou no) pela situao real de comunicao.

    Tais traos constitutivos do gnero em Maingueneau apontam para uma concepomais pragmtica desta categoria discursiva. Ou seja, o autor parece assimilar a proposiobakhtiniana de interlocutor ativo dentro de um quadro terico que o considere um dosaspectos formadores do gnero, observando-o no conjunto dos elementos enunciativospresentes (espao/ tempo/ atores). Veremos, na prxima seo, especificidades relacionadasao estilo, presente na concepo de gnero do Crculo e de que forma tal elemento pode estararticulado em Maingueneau.

    2.2 Gneros primrios e secundrios X institudos e conversacionaisO Crculo trata a questo do estilo como indissocivel aos gneros ( Bakhtin, 2003, p.

    265), primrios ou secundrios. Os primeiros seriam formados nas condies da comunicaodiscursiva imediata, como as conversas espontneas. Os segundos, ao absorver os primeiros,configurariam gneros complexos, como romances, artigos cientficos, etc. Uma dimenso doestilo seria o reflexo de uma individualidade atrelada ao gnero. De acordo com aperspectiva bakhtiniana, h gneros mais propensos expresso desta individualidade eoutros menos, por requererem uma forma padronizada, como documentos oficiais. A noode gnero pressupe estilos de gneros de determinadas esferas da atividade humana,vinculadas a certas unidades temticas. Portanto, no se trata de entender o estilo como uma

    manifestao unicamente oriunda do EU, sem considerar o interlocutor. Os prprios limitesdo enunciado seriam definidos pela alternncia de sujeitos do discurso ( Bakhtin, 2003, p.275).

    Maingueneau tambm prev uma escala de objetivao do sujeito no momento em queidentifica gneros institudos (subdivididos em rotineiros e autorais) e conversacionais( Maingueneau, 2005, p. 238) Estes no teriam ligao estreita com lugares institucionais,fazendo uso de estratgias de negociao entre os interlocutores. Neste sentido, tal conceito seaproxima ao de gnero primrio do Crculo. Em relao aos gneros institudos, o autorfrancs pontua quatro tipos:

    Gneros institudos tipo 1: trata-se de gneros institudos que no

    admitem variaes ou admitem apenas umas poucas. Os participantes

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    obedecem estritamente s coeres desses gneros: carta comercial,guia telefnico, (...)Gneros institudos tipo 2:trata-se de gneros no mbito dos quais oslocutores produzem textos individualizados, porm sujeitos a normasformais que definem o conjunto de parmetros do ato comunicacional:

    telejornal,fait divers, (...)Gneros institudos tipo 3: no h para esses gneros(propaganda, canes, programas de televiso...) uma cenografiapreferencial (...)Gneros institudos tipo 4:trata-se dos gneros autorais propriamenteditos, aqueles com relao aos quais a prpria noo de gnero problemtica (...) no se limitam a seguir um modelo esperado, masdesejam capturar seu pblico mediante a instaurao de uma cena deenunciao original (...) (Maingueneau, 2005, p. 240 242)

    Postulamos que h um dilogo entre os dois quadros classificatrios apresentados. O

    nvel de individualidade expresso no quadro conceitual do Crculo parece prever variaesgenricas de Maingueneau em que o sujeito da enunciao se apresenta de forma mais oumenos explcita. A etapa seguinte consistir em identificar possveis parmetros de influnciada questo do estilo bakhtiniano na obra de Maingueneau.

    2.3 Estilo e ethos: tonalidades especficas de individualidade?Observamos, na seo anterior, que o terico francs identifica a maior ou menor

    objetivao do discurso de acordo com a cenografia preferencial adotada pelo gnero.Cenografia a cena de enunciao com a qual o interlocutor se depara, no se espera que eladesigne a si mesma; a cenografia se mostra, por definio, para alm de toda cena de fala queseja dita no texto (Maingueneau, 2005, p. 252). Esta cena que confirmar (ou no) as regrasde composio do gnero. Quanto maior a estabilidade destas, menos ser perceptvel aindividualidade do enunciador.

    O Crculo aponta a existncia de matizes de entonao expressiva: pode-se assumirum tommais seco ou respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introduzir a entonao de alegria,etc. (Bakhtin, 2003, p. 284). Atravs da reacentuao dos gneros,conceito tambm propostopelo Crculo, seria possvel transferir a forma de gnero de um campo para outro e empreg-lo com reacentuao irnico-pardica, por exemplo, fato que dependeria da existncia degneros mais livres e criativos. Ambos os conceitos expressam o estilo: escolhas gramaticaise lexicais, bem como combinaes sintagmticas que vislumbram a presena do interlocutor.

    A questo da individualidade em Maingueneau, ao se construir em cenografias

    diferenciadas, possibilita a insero do conceito de ethos discursivo, fenmeno enunciativopelo qual o enunciador revela sua personalidade, pelo modo como se mostra ao seuinterlocutor (Maingueneau, 2002, p. 98); seu carter (conjunto de traos psicolgicos); e suacorporalidade (maneira de se movimentar no espao social) que permitem a emergncia deum tom que d autoridade ao que dito e conseqentemente permite ao leitor construir arepresentao do corpo deste enunciador. Maingueneau (2005, p. 95) atribui explicitamenteao Crculo a noo de tome a destaca como ligada relao do locutor com seu ouvinte. Talreferncia se faz mediada pela leitura do livro Mikhail Bakhtine: le principe dialogique deTzvetan Todorov.

    Todorov (1981) mostra a proposta do Crculo de ocorrer, nessa relao, um horizontecomum de julgamento de valores, constitutivo do enunciado e que orientaria a expresso de

    valores atravs de uma entonao direcionada virtual presena do interlocutor. Em seusanexos, o autor expe uma das propostas tericas do Crculo: mostrar que esta orientao se

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    far presente em todo enunciado verbal ou gestual e poder evidenciar o tom de voz queacompanha os discursos (1981, p. 299). possvel, portanto, afirmar que Maingueneau(1984) inspira-se na noo de tombakhtiniano para compor o conceito de ethos discursivo.Entretanto, preciso considerar que o autor francs articula essa noo ao ethos retricoclssico: adapta-o para uma perspectiva enunciativa que articule as metforas apresentadas na

    cenografia de cada gnero.

    3. CONCLUSESA leitura e a comparao dos textos do Crculo de Bakhtin e de Dominique

    Maingueneau evidenciaram pontos de convergncia, bem como incompatibilidades terico-epistemolgicas decorrentes de distintos contextos acadmicos das duas obras. Os aspectosexplanados apontam para a necessidade de os estudiosos do discurso estabelecerem umaarticulao cuidadosa entre as duas teorias, de modo a preservar as especificidades de cadaautor, alm de revelarem o modo como conceitos de um contexto terico e acadmico soincorporados e relidos em outro.

    Embora as duas obras tenham dialogado com Saussure, a hegemonia do estruturalismo

    no contexto acadmico francs influenciou a definio de formao discursiva, a justificativada abordagem da polmica e ainda forneceu a principal categoria descritiva os semas paraa anlise dos discursos humanista devoto e jansenista da primeira fase da obra deMaingueneau. Diferentemente, a obra do crculo, ao estar inserida em outro entorno terico,estabeleceu um dilogo mais distante com o terico suo, apesar de propor uma relaocomplementar entre a lingstica saussureana e a metalingstica.

    A palavra discurso no tem as mesmas acepes nas duas obras. O crculo dedica-seao estudo e caracterizao do enunciado concreto situado scio-historicamente e decorrentede uma situao de comunicao imediata (relaes dialgicas com enunciados anteriores ecom o interlocutor, situao social imediata e momento histrico, tonalidade expressiva) e deum horizonte mais amplo (esfera, horizonte social da criao de um grupo social emdeterminada poca). Essa definio explica o desenvolvimento das categorias construocomposicional, tema e estilo, para definir os gneros e as obras literrias (Dostoivski), dandouma grande importncia ao modo de constituio da superfcie textual. J, em Maingueneau, anoo-chave o discurso, tomado como sinnimo de formao discursiva, e designa as regrase normas semnticas descobertas e construdas por meio da anlise de um conjunto de textos,cuja superfcie apenas um meio para se atingir o nvel discursivo. A individualizao de umdiscurso se d pelo estabelecimento da correlao entre um sistema de regras semnticas comcertos cdigos (dispositivos retricos, por exemplo) no interior de uma conjuntura histrica.Essa orientao pode explicar o fato de que, mesmo nos textos mais recentes nos quais anoo de formao discursiva abandonada, encontramos afirmaes como Todo gnero

    est associado a uma certa organizao textual que cabe lingstica textual estudar.(2002[1998], p. 68), reveladoras da ausncia de categorias textuais, no mbito da Anlise dodiscurso, para a definio dos gneros.

    O escopo de estudo da metalingstica so as relaes dialgicas entre enunciados e nointerior de um enunciado. O enunciado tem autor que, como vimos, caracterizado como umvnculo semntico personificado, com o qual se dialoga e o qual no pode ser explicado,como na relao do sujeito com os objetos do mundo. Em suma, o dialogismo bakhtinianopressupe a relao entre indivduos dotados de orientao axiolgico-semntica. A anlisedo discurso de Maingueneau se prope a estudar, primeiramente, as formaes discursivas e,mais tarde, os gneros do discurso, tomados como dispositivos de comunicao. A questo daindividualidade e da autoria est descartada em ambos os casos, pois o que interessa so os

    posicionamentos scio-histricos, a discursividade: La formation discursive est (...) une airede fonctionnement textuel spcifique correspondant une position dans un champ

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    idologique. Rien nempche a priori les mmes individus de circuler dune formationdiscursive une autre. (1983, p.18)

    No mbito da Anlise do discurso, as relaes dialgicas do crculo so inspiradorasda problemtica da interdiscursividade. O interdiscurso compreende a relao constitutivaentre formaes discursivas, no sentido de que o que rejeitado como externo delineia as

    fronteiras do que afirmado como interno e de que o surgimento de uma nova formaodiscursiva se d no espao da relao polmica com o j dito da formao discursivaprecedente. Tal como mostramos, a polmica aparece, na obra do crculo, como um dosfenmenos de palavra bivocal a ser estudado, vozes essas pertencentes a indivduosorientados axiolgico-semanticamente, enquanto que, em Maingueneau, a polmica abordada como um fenmeno constitutivo das relaes entre formaes discursivas distintas.

    Sobre a noo de gnero discursivo importante observar que se Maingueneaumostra, por um lado, assimilar a idia de ativa compreenso responsiva do interlocutor naformulao do discurso, por outro, lhe atribui um carter estatutrio articulado a outroselementos que podem (ou no) legitimar o discurso. Cabe, neste momento, salientardiferenas conceituais relacionadas presena do OUTRO: o crculo o identifica como

    elemento capaz de orientar a formulao do discurso do EU no enunciado concreto, enquantoMaingueneau focaliza este interlocutor em consonncia com a legitimao de seu discursodentro da cena enunciativa que pressupe lugares, momentos e atores legtimos ( ou no).Metforas como contrato, teatro e jogo acentuam o teor pragmtico de seu quadro terico quedemonstra estar em consonncia com uma perspectiva terica que articula os atos de fala aoslugares institucionais.

    As subdivises de gneros institudos parecem evidenciar esta articulao e,concomitantemente, pressupor, mesmo que no explicitamente, a subdiviso em gnerosprimrios e secundrios, proposta pelo crculo. Ambos os quadros tericos prevemposicionamentos scio-historicamente definidos do EU em gneros mais ou menos suscetveisa coeres do campo/ instituio em que se realizam e/ou do prprio gnero. Apesar deencontrarmos tal ponto de convergncia preciso observar que, em Maingueneau, o aspectomiditico aparece como constitutivo do gnero e no como simples meio material derealizao do discurso.

    A entonao expressiva assumida pelo EU bakhtiniano, que encontra no TU um nortepara sua dimenso e consistncia, explicita tais posicionamentos dado ao carter de ativacompreenso responsiva de seu interlocutor. Este movimento, que possibilitar a construodo estilo no gnero, parece oferecer ao conceito de ethos discursivo a referncia conceitual detom,oriunda do Crculo, em sua formulao. Maingueneau considera o interlocutor elementoque direciona o discurso do enunciador, pressupe um carter e uma corporalidade analisveisdentro da superfcie discursiva e que buscam persuadi-lo dentro de um quadro de valores

    determinados culturalmente.Embora devamos considerar a forte influncia de concepes enunciativas propostaspelo Crculo de Bakhtin desde os anos 20 do sculo passado, preciso observarespecificidades destas concepes em relao quelas apresentadas por Maingueneau. Asmetforas do teatro, contrato e jogo parecem destacar a importncia de elementos diticosdentro da cenografia que podem corroborar as regras do gnero, ou no. Neste ponto,observamos uma confluncia terica ao identificarmos que ambos prevem uma escala deobjetivao de gneros: desde aqueles que apresentam maior padronizao at os quepossibilitam maior expresso da individualidade.

    BIBLIOGRAFIA

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    ABSTRACT:Approach of the relationships between the BakhtinsCircles and Dominique Maingueneaus theories, in terms

    of the following aspects: the presence of the Saussures theory, the demarcation of the Discourse Analysiss and theMetalinguisticss object of study, the influence of the dialogism over the notion of interdiscourse and, at last, the genres of

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    Filologia e lingstica portuguesa, So Paulo, n. 9, p. 229-251, 2007[2008].

    discourse notion. The lecture and the compairison of the two works showed similarities, as well as theoretic-epistemological

    incompatibilities, issued from different academic contexts. In conclusion, the discourse analysts should be carefull in

    articulating the two theories and one learns the way some concepts from a theoretical context are incorporated and read by

    another one.

    KEYWORDS:discourse analysis, metalinguistics, dialogism, interdiscourse, genres of discourse.